Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7634/19.8YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONDIÇÃO SUSPENSIVA
Nº do Documento: RP202109207634/19.8YIPRT.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - O tribunal deve abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados.
III - Não pode ser classificado como condição suspensiva (cfr. artigo 270.º do CCivil) a cláusula inserta num contrato que apenas fixa o prazo do pagamento dos serviços prestados por uma das partes a outra, não obstante esse momento deva coincidir com verificação de determinada circunstância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 7634/19.8YIPRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Local Cível de Aveiro-J1
Relator: Des. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, LDA., com sede na Rua …, n.º …, em Aveiro, apresentou requerimento de injunção contra C…, LDA., com sede na Avenida …, N.º …, D…–Lojas .. e .., em Odivelas, pedindo que esta fosse condenada a pagar-lhe € 39.779,60 (trinta e nove mil setecentos e setenta e nove euros e sessenta cêntimos), por não ter procedido ao pagamento dos serviços de consultoria constantes da factura FT 2018/13, que discriminou no seu requerimento inicial e que se computam no valor total de €38.745,00 a título de capital, a que acrescem €631,60 a título de juros vencidos à taxa comercial, bem como os juros comerciais vincendos até efectivo e integral pagamento, e por ter obrigado a que esta incorresse, por força das diligências de tentativa de cobrança que desenvolveu, em despesas de €250,00, a que se soma ainda a taxa de justiça paga, correspondente a €153,00.
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Notificada de tal requerimento, a requerida apresentou oposição alegando que celebrou com a requerente um contrato de prestação de serviços, pelo qual esta se obrigou a elaborar para a primeira um processo de candidatura ao Sistema de Incentivos às empresas, a prestar-lhe apoio (quer na sua elaboração e na definição do plano de actividades e investimentos do projecto, quer no acompanhamento desse processo), através de uma série de diligências e tarefas, tendo-se comprometido a executar esse plano de acção até à formalização do contrato de incentivos. A requerida, por sua vez, obrigou-se a pagar à requerente 5% sobre o montante de incentivo aprovado com a homologação de tal candidatura: 50% aquando da homologação e 50% na data do primeiro pagamento dos incentivos. Reconheceu que a requerente elaborou e apresentou a candidatura em seu nome na plataforma Portugal 2020, mas defendeu que esta não foi homologada, pois o Turismo de Portugal impôs-lhe condicionantes, designadamente um financiamento bancário no montante de €610.369,17. Acrescentou que a requerente tinha conhecimento disso, bem como de que a requerida não conseguiu obtê-lo, pelo que aquela procedeu à alteração das fontes de financiamento na candidatura, sem que o Turismo de Portugal tenha aceitado tal alteração, nem, por isso, homologado a candidatura, não tendo existido qualquer pagamento de incentivos. Estando o pagamento pela requerida à requerente condicionado a esses dois momentos e não se tendo verificado nenhum dos dois, sem que isso lhe seja imputável, entende que não lhe é exigível o pagamento pedido (pelo que devolveu à requerente a factura em causa). Requereu a produção de prova documental e testemunhal.
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Em função da determinação legal quanto à tramitação desta acção sob a forma de processo comum, por despacho proferido a 18 de Março de 2019, foi a autora convidada a apresentar nova petição inicial, de onde constassem de forma mais pormenorizada a causa de pedir, o pedido e os meios de prova. Nesta, invocou a autora que, após negociações entre as partes, estas celebraram um contrato de prestação de serviços, pelo qual a autora se obrigou a elaborar para a ré os trabalhos supra descritos, enquanto a ré se obrigou a pagar-lhe 5% sobre o já referido montante de incentivo. Alegou ter cumprido com as obrigações a que estava adstrita, tendo submetido a candidatura na plataforma do Portugal 2020, prestado o seu apoio na definição do Plano de Actividades e Investimento, bem como a demais assistência técnica relativa ao acompanhamento daquela candidatura, elaborado um Plano de Desenvolvimento Estratégico e de Viabilidade Económico-Financeira e um Plano de Marketing, mais valias naquele processo de candidatura, e servido de canal entre a ré e o Turismo de Portugal e a Plataforma Operacional de Lisboa. Acrescentou ainda que aquela candidatura foi aprovada e homologada, já que a ré assinou o respectivo termo de aceitação, tendo assim aceitado a concessão do incentivo proposto, e que a ré tinha consciência do significado disso, uma vez que foi informada verbalmente e por escrito, através do Briefing Incentivos que lhe foi entregue pela autora. Conclui, portanto, que, por ter prestado todos os serviços a que se tinha obrigado, emitiu a referida factura e que a mesma não foi paga, assim pugnando pela condenação da ré no pagamento dos valores supra descritos.
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Contestando esta petição inicial aperfeiçoada, a ré reforçou as suas alegações e conclusões em sede de oposição e esclareceu que, quanto à candidatura apresentada, tão só foi proposta a sua elegibilidade mediante certas condições, sem que tenha sido homologada, uma vez que a ré não conseguiu cumprir com aquelas. Disse ainda que não pediu à autora a elaboração de um Plano de Desenvolvimento Estratégico e de Viabilidade Económico-Financeira nem de um Plano de Marketing, tendo-se vinculado apenas aos serviços constantes do contrato.
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Por seu turno, foi a autora convidada a responder à matéria de excepção então alegada pela ré, pelo que reforçou as alegações e conclusões da sua petição inicial aperfeiçoada, refutando a excepção de não cumprimento e esclarecendo também que a ré sabia que estava obrigada, pelo contrato que celebraram, a assegurar as fontes de financiamento ao projecto e, portanto, a possuir capital próprio no montante de €610.369,17 e que as alterações ao projecto foram por ela solicitadas. Sublinhou que a candidatura foi homologada através da assinatura do termo de aceitação, apenas não tendo sido executada pela ré, e defendeu que o pagamento da autora não foi condicionado ao pagamento dos incentivos, mas apenas à aprovação da candidatura, que ocorreu, sendo por isso aquele pagamento devido.
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Concluída a fase dos articulados, teve lugar a audiência prévia, no âmbito da qual foram proferidos o despacho saneador, e os despachos de identificação do objecto do litígio e de enunciação dos temas da prova.
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Teve lugar a audiência que decorreu com observância do formalismo legal, tudo como melhor resulta das actas.
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A final, foi proferida decisão que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência condenou a ré C…, Lda. a pagar à autora B…, Lda. a quantia de €38.178,27 (trinta e oito mil cento e setenta e oito euros e vinte e sete cêntimos), acrescida dos juros de mora, à taxa legal estabelecida para os juros comerciais, a contar de 14 de Dezembro de 2018 até integral e efectivo pagamento e em € 40,00, a título de indemnização pelos custos de cobrança da divida, absolvendo-a do demais peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
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Devidamente notificada contra-alegou a Autora concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. A autora dedica-se, com intuito lucrativo, para além do mais, à prestação de serviços de consultoria de gestão, estudos económicos e de engenharia, actividades de contabilidade, auditoria e consultoria fiscal, estudos de mercado e sondagens de opinião, consultoria de marketing e comunicação, consultoria estratégica de prospecção de mercado e é actualmente representada por E….
2. A ré dedica-se, com intuito lucrativo, às actividades de transportes marítimos costeiros e não costeiros de passageiros e de organização de actividades de animação turística e é actualmente representada por F….
3. Em 22 de Maio de 2017, e após negociações entre E… e G…, as partes celebraram um contrato de prestação de serviços, identificado com o n.º C/2017/…..
4. Nos termos do contrato, a autora obrigou-se a «elaborar para a segunda outorgante um processo de candidatura ao Sistema de Incentivos às empresas: Inovação Empresarial e Empreendedorismo na área Inovação Produtiva PME (Pequena e Média Empresa), aprovado pela Portaria nº 57 A/2015, de 27 de Fevereiro, alterado através das portarias nº 181-B/2015, 328 A/2015, 211-A/2016, 142/2017 e da Declaração de Rectificação nº 30-B/2015», bem como a prestar «apoio à definição do plano de actividades e investimentos do projecto de acordo com as exigências do Programa, a preparação de toda a documentação de suporte à candidatura e a elaboração do respectivo Dossier de Candidatura» e ainda «o apoio necessário ao acompanhamento do processo na empresa e nas entidades competentes, designadamente nos procedimentos a efectuar com a formalização do contrato de incentivos, na prestação de informação complementares quando solicitadas e contactos tendentes a saber em que fase de apreciação o processo se encontra com vista à celebração das decisões junto das entidades responsáveis pela gestão do Portugal 2020».
5. A autora comprometeu-se a executar o plano de acção objecto do presente contrato, prestando a assistência técnica relativa ao acompanhamento da candidatura até à formalização do contrato de incentivos.
6. A ré obrigou-se a pagar à autora uma componente variável de 5% sobre o montante de incentivo aprovado com a homologação da candidatura, acrescida de IVA à taxa em vigor na data de elaboração das facturas.
7. As partes convencionaram o pagamento do preço acordado nas seguintes condições: a) 50% com a homologação da candidatura; b) Os restantes 50% na data do primeiro pagamento de incentivos, tendo determinado ainda que o grau de realização do investimento elegível por parte da ré não determinava o montante total da componente variável a pagar à autora.
8. A ré vinculou-se ainda a assegurar as fontes de financiamento ao projecto, bem como a assegurar o cumprimento das condições da empresa e do projecto.
9. Foi a ré quem procedeu ao registo na plataforma SGO 2020.
10. A elaboração, apresentação e gestão da candidatura ficaram a cargo da autora.
11. A autora elaborou a candidatura em nome da Ré e submeteu-a na plataforma SGO 2020, tendo-lhe sido atribuído o n.º de projecto …….
12. A autora prestou à ré apoio à definição do plano de actividades e investimentos do projecto, bem como o demais apoio e assistência técnica necessários ao acompanhamento da candidatura, designadamente comunicando com o Turismo de Portugal e a Plataforma Operacional Regional de Lisboa através da plataforma SGO 2020 e dando resposta às solicitações destes, entre a submissão e a aprovação da candidatura.
13. Na sequência das solicitações do Turismo de Portugal, a autora elaborou um Plano de Desenvolvimento Estratégico e de Viabilidade Económico-Financeira.
14. O Turismo de Portugal é o organismo intermédio (entre as entidades promotoras e a Plataforma Operacional Regional de Lisboa, entidade de gestão) que acompanha a realização do investimento no âmbito destes projectos, analisando-os e emitindo pareceres.
15. No parecer que proferiu acerca do projecto n.º ……, o Turismo de Portugal indicou, na estrutura de financiamento (recursos financeiros), uma rubrica de financiamento de instituições de crédito no montante de €610.369,17 (seiscentos e dez mil trezentos e sessenta e nove euros e dezassete cêntimos), tendo referido ainda que, por indicação da entidade promotora, em sede de esclarecimentos complementares, o diferencial entre o valor do investimento proposto e o do elegível seria financiado através de empréstimo bancário e que, por isso, tinha procedido ao reforço da fonte de financiamento relativa às instituições de crédito.
16. A candidatura foi aprovada no dia 30 de Outubro de 2017, conforme o parecer do Turismo de Portugal, com um investimento elegível de €1.551.962,01 (um milhão quinhentos e cinquenta e um mil novecentos e sessenta e dois euros e um cêntimo) e um valor de incentivo de €620.784,80 (seiscentos e vinte mil setecentos e oitenta e quatro euros e oitenta cêntimos).
17. A 17 de Novembro de 2017, a ré assinou o Termo de Aceitação da proposta de concessão de incentivos da Comissão Directiva do Programa Operacional Regional de Lisboa, pelo qual se obrigou a apresentar, até ao primeiro pagamento de incentivo, carta de aprovação do empréstimo bancário.
18. Apesar de, com ajuda da autora, ter solicitado financiamento bancário a diversos bancos, a ré não logrou obtê-lo.
19. A ré não assegurou as fontes de financiamento do projecto nem comprovou o início do investimento no prazo de 6 meses após a notificação da concessão da comparticipação financeira, que ocorreu a 2 de Novembro de 2017.
20. Por essas razões, o contrato de concessão de incentivos foi resolvido pelo Programa Operacional Regional de Lisboa a 14 de Outubro de 2019, sem que tenha havido qualquer pagamento de incentivos.
21. A autora emitiu a factura FT 2018/13, com data de vencimento de 1 de Novembro de 2018 e um valor total de €38.745,00 (trinta e oito mil setecentos e quarenta e cinco euros)–sendo €31.500,00 relativos aos serviços e € 7.245,00 relativos ao IVA, à taxa de 23%–, relativa aos seguintes serviços de consultoria:
21.1. Elaboração de processo de candidatura ao Sistema de Incentivos às Empresas –Inovação Empresarial e Empreendedorismo na área da Inovação Produtiva PME (Aviso ../SI/2017)–Projecto nº ……;
21.2.Apoio à definição do Plano de Actividades e Investimento do Projecto n.º ……, de acordo com as exigências do programa;
21.3. Apoio necessário ao acompanhamento do processo na empresa e nas entidades competentes, designadamente nos procedimentos efectuados com a formalização do contrato de incentivos, na prestação de informações complementares solicitadas e contactos tendentes a saber em que fase de apreciação o processo se encontrava, com vista à aceleração das decisões junto das entidades responsáveis pela gestão do Portugal 2020.
22. A ré recebeu essa factura a 14 de Novembro de 2018 e, desde então, não efectuou qualquer pagamento.
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Factos não provados
Não se provou que:
A. Antes da celebração do contrato, a autora entregou à ré um documento denominado Briefing Incentivos, do qual constava a obrigação de obter financiamento bancário.
B. A autora deteve o monopólio nos contactos directos com o Turismo de Portugal e o acesso à plataforma.
C. A ré nunca teve acesso à plataforma, não lhe tendo o mesmo sido concedido pela autora.
D. As credenciais de acesso à plataforma nunca foram alteradas pela autora.
E. A autora elaborou um Plano de Marketing para a ré.
F. Foi a ré quem solicitou à autora que elaborasse um Plano de Desenvolvimento Estratégico e de Viabilidade Económico-Financeira e um Plano de Marketing.
G. O Plano de Desenvolvimento Estratégico e de Viabilidade Económico-Financeira tem um valor comercial de €31.500,00 e o Plano de Marketing tem um valor comercial de €10.000,00.
H. A candidatura apresentada não foi elegível.
I. A autora procedeu à alteração da candidatura no que tange à alteração das fontes de financiamento.
J. O Turismo de Portugal não aceitou a alteração às fontes de financiamento do projecto.
K. A ré não aceitou a factura n.º FT2018/11, tendo devolvido a mesma à autora e comunicado a esta que, no seu entender, o pagamento da mesma não era devido.
L. A autora despendeu, em tentativas de cobrança, a quantia de €250,00.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão vem colocada no recurso prende-se com:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões o recorrente impugnou a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento parcial aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus analisemos, então, este segmento recursivo.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[1]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[2]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[3]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[4]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[5]
Tendo presentes estes princípios orientadores é altura de nos debruçarmos, em concreto, sobre a impugnação da fundamentação factual feita pelo recorrente.
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Pretende a Ré que deve ser aditado ao ponto 7. dos factos provados o que consta do ponto 3. da Cláusula Quinta do contrato celebrado entre as partes.
Ora, o referido ponto da citada cláusula para além de estar plasmado no referido contrato e, portanto, sempre o tribunal poderia convocá-lo se assim o entendesse sem que o mesmo constasse da fundamentação factual, o certo é que a Ré, em nenhures dos articulados que apresentou, veio invocar qualquer desistência da candidatura, factualidade que teria de ser alegada e provada para que o referido ponto pudesse ser chamado à colação.
Como assim e de ponto de vista das várias soluções plausíveis da questão de direito, de nada releva o aditamento propugnado pela recorrente mencionado no referido ponto factual.
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Alega depois a recorrente que o ponto 8. da resenha dos factos provados devia ser considerado não provado.
O referido ponto tem a seguinte redacção:
A ré vinculou-se ainda a assegurar as fontes de financiamento ao projecto, bem como a assegurar o cumprimento das condições da empresa e do projecto”.
Para o efeito convoca o depoimento da testemunha H….
Acontece que o referido ponto 8. corresponde ao que se encontra plasmado nas alíneas d) e c) da Cláusula Terceira do contrato referente às obrigações a que estava adstrita a segunda outorgante, documento em que o tribunal recorrido fundamentou a sua reposta (cfr. motivação da decisão da matéria de facto) e que, como a própria recorrente afirma nas suas alegações recursivas se trata de documento particular que faz prova plena quanto ao seu clausulado, aliás, no seguimento daquilo que também afirma o tribunal a quo.
Deve, por isso, o citado ponto factual continuar a constar do elenco dos factos provados, não obstante o afirmado pela testemunha H….
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Entende depois a recorrente que dever ser aditado ao elenco dos factos provados o seguinte facto:
No âmbito da candidatura submetida, a que foi atribuído o nº de projecto ……, não existiu o pagamento de qualquer incentivo”.
Ora esse factualidade já consta do ponto 20. da resenha dos factos provados.
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Pugna depois a recorrente pela não prova do ponto 22. da fundamentação factual.
Alega para o efeito que a Autora não fez a prova que lhe competia sobre a recepção da factura datada de 14 de Novembro de 2018.
Sob este conspecto, como se torna evidente, a recorrente não cumpre os ónus impostos pelo artigo 640.º do CPCivil.
Como se evidencia da motivação da decisão da matéria de facto o tribunal recorrido sobre o citado ponto factual discorreu do seguinte modo:
“(…) a factura provou o facto 21 e o facto 22 (quanto à recepção da factura) baseou-se na missiva assinada por H… e enviada à Autora a 23 de Novembro de 2018”.
Ora, para contrariar a referida fundamentação o recorrente teria de indicar o porquê da discordância, isto é, em que é que o referido meio probatório contraria a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importaria apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta do citado meio probatório, ou eventualmente indicar outros que infirmassem aquele.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Trata-se, aliás, da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
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Desta forma, deve o citado ponto continuar a constar do elenco dos factos provados.
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Pretende, por último a recorrente que devem ser dados como provados as alíneas b) e k) da resenha dos factos não provados.
Convoca para o efeito os documentos nºs 5 e 6 de fls.42 e 43 juntos com a oposição à injunção e ainda o depoimento da testemunha H….
Mas terão tais factos qualquer interesse para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito?
A resposta é, sem dúvida, negativa.
Na verdade, o monopólio quer dos contactos telefónicos quer do acesso à plataforma nenhum relevo assumem na forma como foi delineada a acção que se estriba no incumprimento do contrato de prestação de serviços, sendo que, no citado incumprimento a referida factualidade não tem qualquer expressão.
No que tange à devolução da factura nº FT2018/11 também esse facto não tem qualquer relevância sob o ponto de vista da subsunção jurídica.
Com efeito, a esse respeito o facto essencial tendo em vista a contabilização dos juros moratórios já se encontra provado, qual seja a recepção da por parte da recorrente do citado documentos contabilístico.
Ora, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de actos inúteis (artigo 137º do Código de Processo Civil, na redacção que vigorava antes da Lei nº 41/2013, de 26 de Junho e a que corresponde actualmente o artigo 130º do vigente Código de Processo Civil, aprovado pela lei que antes se citou).
Como refere Abrantes Geraldes,[6] “De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objecto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
No mesmo sentido cfr. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 24.4.2012, processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, e da Relação de Guimarães de 10.09.2015, processo n.º 639/13.4TTBRG.G1.[7]
Por esse motivo, abstemo-nos de reapreciar a decisão da matéria de facto relativamente aos pontos em questão.
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Permanecendo inalterado o quadro factual que o tribunal recorrido deu como provado a segunda questão colocada no recurso consiste:
b)- em saber se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
Ora, salvo o devido respeito por diferente opinião, não nos merece censura a decisão recorrida sob o ponto de vista da subsunção jurídica do quadro factual que nos autos se mostra provado.
É certo que as partes acordaram, na cláusula 4ª do contrato, no pagamento pela Ré à Autora de uma componente variável de 5% sobre o montante de incentivo aprovado com a homologação da candidatura, nas condições de pagamento referidas na cláusula 5ª (cfr. ponto 6. da fundamentação factual).
Também dúvidas não restam de que as partes acordaram que a liquidação dessa importância seria feita da seguinte forma: 50% com a homologação da candidatura e os restantes 50% na data do primeiro pagamento de incentivos (cfr. ponto 7. da fundamentação factual)
Também está provado nos autos que a apelante não recebeu qualquer incentivo de apoio (cfr. ponto 20. da fundamentação factual).
Importa porém, enfatizar que a falta de pagamento de qualquer incentivo tem de ser imputável à apelante que, não tendo assegurado as fontes de financiamento do projecto nem comprovado o início do investimento no prazo de 6 meses após a notificação da concessão da comparticipação financeira, que ocorreu a 2 de Novembro de 2017, viu ser resolvido o contrato de concessão de incentivos pelo Programa Operacional Regional de Lisboa a 14 de Outubro de 2019 (cfr. pontos 19. e 20. da fundamentação factual)
É que conforme resulta do ponto 8. da fundamentação factual a Ré vinculou-se a assegurar as fontes de financiamento ao projecto, bem como a assegurar o cumprimento das condições da empresa e do projecto [cfr. alíneas d) e c) da Cláusula Terceira do contrato referente às obrigações a que estava adstrita a segunda outorgante].
E dos autos não resulta que esse não financiamento lhe não seja imputável pois que apenas se encontra provado que a apelante não logrou obter o referido financiamento (cfr. ponto 18. da fundamentação factual).
Aliás, ainda que assim não fosse sempre a Ré estava adstrita a pagar os serviços prestadas pela Autora.
Com efeito, estando provado que a Autora prestou à Ré os serviços contratados (cfr. pontos 21. a 21.3 da fundamentação factual), o pagamento sempre seria exigível, pois que, ao contrário do refere a apelante, o pagamento não ficou sujeito a qualquer condição suspensiva nos termos do preceituado no artigo 270.º do CCivil.
Na referida Cláusula Quinta apenas ficou acordado as condições de pagamento quanto ao momento do seu vencimento, isto é, da sua exigência a partir do qual a apelante, não cumprindo, ficaria constituída em mora (artigo 804.º do CCivil).[8]
E tal entendimento não se altera pelo simples facto de esse momento dever coincidir com verificação de determinada circunstância, no caso concreto, com a data do primeiro pagamento de incentivos.
Porém, resolvido o contrato de concessão de incentivos pelo Programa Operacional Regional de Lisboa a 14 de Outubro de 2019, torna-se evidente que aquele prazo de vencimento da obrigação deixou de ter relevo dentro do programa negocial, já que nunca iria acontecer o primeiro pagamento de incentivos, razão pela qual estava a apelada em condições de exigir o pagamento dos serviços prestados logo que interpelasse a apelante para o efeito, como veio a suceder com a emissão e envio da respectiva factura.
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Improcedem, desta forma todas as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente, por não provada, e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Ré apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 20 de Setembro de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[2] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[3] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[6] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada pág. 297.
[7] In www.dgsi.pt.
[8] Diga-se, aliás, que nada impedia a apelante de lançar da acção de cumprimento se, na hipótese de o contrato de concessão de incentivos não tivesse sido resolvido, tivesse vindo exigir à Ré o pagamento dos serviços prestados, apenas sendo de observar nesse caso aquilo que se encontra preceituado no artigo 610.º do CPCivil.