Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
233/20.3T9MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
ENUMERAÇÃO DOS FACTOS INDICIADOS E NÃO INDICIADOS
OMISSÃO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
CONSEQUÊNCIAS
NULIDADE RELATIVA
SANAÇÃO
IRREGULARIDADE
REPARAÇÃO
Nº do Documento: RP20230517233/20.3T9MTS.P1
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PROCEDENTE O RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Ao despacho de pronúncia e não pronúncia é correspondentemente aplicável o disposto no art. 283º n.º 3, ex-vi art. 308º n.º 2, do CPP. Por força dessa remissão, o despacho de não pronúncia tem de conter a enumeração autónoma e sistematizada, ainda que sintética, dos factos considerados não suficientemente indiciados, o que é fundamental para sindicância da sua correção pelo tribunal de recurso e para determinação do âmbito do caso julgado dentro e fora do processo.
II – Tal vício acarreta a nulidade relativa da decisão de não pronúncia, a qual deve ser arguida perante o tribunal a quo, nos termos e prazo previstos no art.120º, do Código Processo Penal, sob pena de ficar sanada.
III – Contudo, a necessidade de descrição dos factos indiciados e não indiciados é corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais, pois são estes que delimitam o objeto de apreciação e imposto pelo art.205º, nº1, da C.R.P., e pelo art.97º, nº5, do CPP.
IV – Não é possível a discussão critica dos indícios probatórios sem a incindível clarificação do sentido indiciado ou não dos factos conexos submetidos ao juízo indiciário. Só especificando os factos julgados não indiciados, o despacho de não pronúncia explicitará verdadeiramente as razões de facto e de direito impostas pelo art.307º, nº1, do CPP.
V – Ao não enumerar autonomamente os factos indiciados e não indiciados, o despacho não permite minimamente a sua apreensão no juízo de indiciação, a partir da discussão critica das provas, nem a sindicância da correção do raciocínio efetuado sobre estas por referência ambígua aos factos que constituem o objeto do processo.
VI – Consequentemente, o despacho de não pronúncia acaba por padecer de falta de fundamentação e encontra-se ferido de irregularidade, cuja reparação deve ser ordenada a todo o tempo, a requerimento ou oficiosamente, sempre que – como é o caso - puder afetar o valor do ato praticado – art.123º, nº2, do CPP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 233/20.3T9MTS.P1


Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:



1. RELATÓRIO

No processo nº 233/20.3T9MTS do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos J1, foi em 16.11.2022 proferida decisão instrutória de não pronúncia da arguida AA, pela prática do crime de violência doméstica que lhe era imputado na acusação.
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Não se conformando com essa decisão, dela veio o assistente BB interpor recurso, formulando as seguintes
conclusões que se transcrevem:
1.ª Vem o presente recurso interposto da douta decisão instrutória proferida nos autos que não pronunciou a arguida AA, determinando o arquivamento dos autos.
2.ª Salvo o devido e muito respeito, o Assistente entende que o Tribunal não decidiu bem, padecendo o despacho em crise, desde logo, da nulidade decorrente da violação do disposto nos arts. 308.º, n.º 2, e 283.º, n.º 3, b), do CPP.
3.ª Com efeito, a decisão recorrida limita-se a tecer considerações genéricas acerca da (não) existência de indícios suficientes para considerar provável a condenação da Arguida, sem descrever e especificar quais os factos considerados, ou não considerados, suficientemente indiciados.
4.ª Na verdade, o art. 308.º, n.º 2, do CPP estabelece que à decisão instrutória é aplicável o disposto no art. 283.º do mesmo Código, cujo n.º 3, al. b), estatui que a acusação contém, sob pena de nulidade, a indicação, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança.
5.ª Conforme assinala a melhor doutrina e a jurisprudência supra citada, o despacho de não pronúncia configura uma decisão de mérito, que tem força vinculativa dentro e fora do processo em que foi proferida, constituindo caso julgado, cujo alcance só é fixado pela fixação dos factos que em concreto não se consideram suficientemente indiciados.
6.ª Tal vício deve ser qualificado como nulidade insanável, que aqui expressamente se argui, em decorrência do disposto no art. 283.º, n.º 3, b), do CPP (para que remete o art. 308.º, n.º 2, do mesmo Código), à luz relevância sistémica do princípio do caso julgado material, não podendo ficar dependente de arguição.
7.ª In casu, tal vício da decisão dificulta a tarefa recursiva do Assistente e dificultará a apreciação da existência de indícios do crime imputado ao Arguido, devendo o despacho de não pronúncia recorrido ser revogado e substituído por outro que supra a apontada omissão de enumeração dos factos indiciados e não indiciados.
8.ª Por outro lado, e sem prescindir, o Assistente não se conforma com a consideração de que não existem indícios suficientes da prática dos factos vertidos na acusação, desde logo porque o Tribunal recorrido fez tábua-rasa da prova coligida em sede de inquérito e de instrução, a que não dedica uma palavra que seja!
9.ª O Tribunal recorrido socorre-se quase exclusivamente da convicção formada por um outro tribunal, no julgamento de outros factos (Proc. 1160/18.0GAMAI), no sentido de se terem como pouco credíveis as declarações prestadas pelo aqui Assistente, ao invés do que se considerou do depoimento da ora Arguida.
10.ª A verdade é que a maior ou menor credibilidade atribuída naquele outro processo a uma ou outra parte no confronto de duas versões contraditórias dos factos não pode ter qualquer peso nestes autos, em que se discutem factos absolutamente distintos e em relação aos quais Assistente e Arguido invertem os seus papéis.
11.ª Acresce que, para além da tomada de declarações ao Assistente e à Arguida, foram inquiridas variadíssimas testemunhas, 5 das quais se mostram arroladas na acusação e outras 6 foram oferecidas com o Requerimento de Abertura de Instrução, o que é completamente omitido na decisão em crise.
12.ª Do que vai dito resulta que a tarefa do Assistente no presente recurso, na procura de contrariar o entendimento do tribunal de instrução, mostra-se muito dificultada, sendo até impossível escalpelizar mais profundamente os fundamentos da decisão recorrida, que não conhece verdadeiramente, pois o Tribunal não tomou qualquer posição sobre os concretos factos vertidos na acusação e no RAI, tal como não analisou as diferentes provas produzidas.
13.ª Ora, o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127.º do CPP impõe que a prova seja apreciada segundo as regras da experiência, pela utilização de raciocínios indutivos e de juízos de probabilidade.
14.ª Acresce que o juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável pronúncia ou não pronúncia, consabidamente não equivale ao juízo de certeza exigido ao juiz de julgamento na condenação, desde logo porque a lei opta aqui pelo conceito de indícios “suficientes” e não “fortes”.
15.ª O significado de suficiência dos indícios deve, pois, ser interpretado de harmonia com o conceito de acusação “manifestamente infundada”, previsto no art. 311.º, n.º 2, al. a), do CPP, hipótese legal em que o juiz de julgamento pode rejeitar liminarmente a acusação, perante a evidência de que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime – o que não é o caso dos autos.
16.ª A instrução configura unicamente um momento de “controlo” da conformidade e legalidade da atividade do Ministério Público que culminou com a decisão de acusar e nada mais, não sendo o momento para efetuar o julgamento dos factos sob discussão.
17.ª Resta, assim, concluir pela indiciação dos factos relativos aos elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica praticado pela Arguida, sob a forma de atos injuriosos e de humilhação que atentaram contra a dignidade e a saúde física e psíquica do Assistente, e sendo tais indícios suficientes da verificação dos pressupostos de aplicação à Arguida de uma pena, impõe-se a sua pronúncia, nos termos do art. 308.°, n.º 1, do CPP. 18.ª Face ao exposto, a decisão recorrida violou de forma manifesta o disposto no art. 152.º, n.º 1, al. a), e n.ºs 2, 4, 5 e 6 do CP, bem como o previsto nos arts. 127.º, 283.º, n.º 2, 308.º, n.º 1, al. a), e 311.º, n.º 2, do CPP, razão pela qual não deve ser mantida.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser a douta decisão em crise revogada e substituída por outra que especifique os factos considerados suficientemente indiciados e não indiciados, e que pronuncie a Arguida pelos factos e crime imputados na acusação do Ministério Público, remetendo-se o processo para julgamento”.
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Por despacho foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata nos autos e efeito não suspensivo.
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Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal a quo, sustentando não se verificar a nulidade arguida por falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados, pugnando no mais pela manutenção da decisão instrutória de não pronúncia.
Também a arguida respondeu, sustentando não se verificar a nulidade arguida por falta de especificação dos factos indiciados e não indiciados, pugnando no mais pela manutenção da decisão instrutória de não pronúncia, tanto mais que o recorrente “não explica as razões de facto e de direito pelas quais discorda da decisão recorrida (cfr. art. 412º, n.º 1, 1ª parte, do CPP). O Recorrente não faz qualquer alusão aos factos constantes na prova produzida que foram incorretamente apreciados, nem aos factos que comprovam a existência de indícios suficientes, limitando-se apenas a indicar que «nos autos foram inquiridas variadíssimas testemunhas», como lhe impõe o regime consagrado no artigo 412º, nº 3 e nº 4, do CPC. Sem discriminar aquelas que são pertinentes para a sua motivação, sem fazer referência ao consignado na ata, e sem indicar “as passagens em que se funda a impugnação”. O Recorrente não cumpriu o dever de correta e concretamente, indicar os factos em que se baseia a pretendida existência de indícios suficientes”.
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Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o art. 416.º do Código de Processo Penal, defendeu dever ser julgada procedente a arguição de nulidade da decisão instrutória por falta de descrição dos factos que considerou, ou não, suficientemente indiciados, embora inexistindo indícios bastantes que conduzissem à pronúncia da arguida.
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Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do CPP, procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme vêm considerando a doutrina e a jurisprudência de forma uniforme, à luz do disposto no art. 412º, nº 1, do Código Processo Penal (ao qual respeitam os normativos adiante indicados sem indicação da respetiva fonte legal), o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, em que resume as razões do pedido, sem prejuízo, naturalmente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
Das conclusões supra transcritas emergem as seguintes
questões a resolver:
- Da nulidade da decisão instrutória por falta de narração dos factos indiciados e não indiciados;
- Da existência de indícios suficientes da verificação do crime de violência doméstica.
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Importa reproduzir o teor da decisão instrutória de não pronúncia, objeto do presente recurso, proferido pelo Sr. Juiz de Instrução Criminal, na sequência do debate instrutório realizado:
Despacho de não pronúncia
A arguida AA veio requerer a abertura da instrução por não se conformar com a acusação pública registada a fls. 145 a 147 dos autos, que lhe imputa a prática de um crime de violência doméstica previsto e punível pelo artigo 152. 2, n. Q 1, al. a), e n. Qs 2, 4, 5 e 6, do Código Penal.
Alegou o que melhor consta do seu requerimento de fls. 158 a 176 no sentido da sua inocência.
Realizaram-se as diligências consideradas necessárias bem como o debate instrutório.
Inexistem quaisquer questões prévias ou incidentais que ora cumpra conhecer.
Como é sabido a instrução visa a comprovação judicial da suficiência ou insuficiência de indícios em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento.
Nos termos do artigo 308. 2, n Q 1, do Código de Processo Penal, "se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia".
E nos termos do artigo 307º , nº 1, do Código de Processo Penal, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia pode ser fundamentado por remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação ou no requerimento de abertura da instrução.
No confronto entre os factos alegados na acusação e as razões de facto e de direito alegadas no requerimento de abertura de instrução, e na ponderação de toda a prova produzida, afigura-se-nos assistir razão à arguida quando afirma a insuficiência dos indícios para considerar provável a sua condenação pelos factos que lhe são imputados.
Para esta conclusão não podemos deixar de considerar os factos provados e aqueles que resultaram não provados por sentença de 10-01-2022, transitada em julgado, proferida no processo comum nº1160/18.0GAMAl, na qual o aqui assistente BB foi condenado numa pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa com regime de prova, pelo crime de violência doméstica contra a aqui arguida, AA.
Em nosso entender, aquilo que naquela sentença ficou provado, e o que não provado, permite antecipar o sentido da prova indiciária produzida nos presentes autos.
O tribunal do julgamento naquele processo 1160/18.0GAMAl considerou pouco credíveis as declarações prestadas pelo arguido BB naquela audiência.
Diferentemente, aquele mesmo tribunal considerou o depoimento de AA "absolutamente credível e sincero, o que foi também aferido pela ausência de contradições no discurso apresentado, acompanhado de visíveis e inquestionáveis sinais faciais e físicos de sofrimento, situação que só é perceptível com recurso ao princípio da imediação presente em audiência de discussão e julgamento".
AA foi também ouvida na presente instrução, em 03-09-2021, pela forma registada a fls. 309, que nos pareceu sincera e credível.
O depoimento do assistente nesta instrução não teve a virtualidade de produzir no tribunal uma impressão semelhante, nem uma convicção segura, acima de uma dúvida razoável, sobre os factos da acusação.
Assim, no confronto de duas versões contraditórias, a versão da aqui arguida pareceu-nos bastante mais credível, atendendo ainda ao enquadramento alegado nos artigos 1º a 5º. do requerimento de abertura de instrução. Também se nos afigura acertada a crítica da prova testemunhal da acusação, formulada pela defesa nos artigos 84.º a 111º do requerimento de abertura de instrução que aqui se dão por reproduzidos por razões de brevidade.
Por estas razões, somos levados a concluir que as declarações do assistente, desacompanhadas de provas sólidas e consistentes, são insuficientes para justificar o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento, atendendo nomeadamente aos princípios da presunção da inocência da arguida e do in dubio pro reo.
Pelo exposto, por insuficiência dos indícios, nos termos dos artigos 307º nº1, e 308º do Código de Processo Penal, não pronuncio a arguida AA, determinando o arquivamento dos autos.
Nos termos do artigo 515º nº 1, al. a), do Código de Processo Penal, condeno o assistente BB em € 300 de taxa de justiça.
Notifique.”
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Cumpre apreciar:
Da nulidade da decisão instrutória por falta de narração dos factos
Na situação dos autos, a decisão recorrida é, como se viu, de não pronúncia, após ter sido aberta a instrução, a requerimento da arguida, na sequência da acusação que lhe imputara o seguinte:
Acusação
1. “A arguida casou com o ofendido BB a 18 de Março de 2000.
2. Desse casamento nasceram CC, a .../.../2004 e DD a .../.../2001.
3. Fixaram residência na Rua ..., ..., urbanização..., na Maia. A vítima BB decidiu divorciar-se a 06 de Agosto de 2018;
4. Desde essa data, com uma frequência diária, a arguida, dirigindo-se a BB, dizia: "que ele era um burro, para se ir embora, pois já tinha outro" que "Estava ansiosa para pôr esta besta para fora de casa, para poder trazer os seu namorado" que: "Não era o pai da DD" e que: "Tinha uns cornos a roçar o chão".
5. Diariamente, no interior da residência de ambos, a arguida insultava o BB de: "Corno de merda e cobarde", isto, na presença dos filhos de ambos.
6. Desde a data referida em 4., como forma de pressionar a vítima a sair de casa, a arguida trocou a fechadura da porta do corredor, impedindo dessa forma o acesso daquela às restantes divisões da casa e depositou da cama da vítima um pó branco, para que se visse forçado a lavar os lençóis.
7. Por diversas vezes beliscou a vítima e deu-lhe com o aspirador, para que esta perdesse controle, ao mesmo tempo que dizia: "Vai-te embora de minha casa"
8. Em data não concretamente apurada do mês de Novembro de 2019, pelas 15h, a arguida dirigiu-se à vítima, na presença de terceiros e apelidou-o de "Homem de merda, cobarde, carnudo".
9. A arguida quis injuriar BB, bem sabendo que o mesmo havia sido seu marido, agindo com indiferença a esse laço.
10. Quis desse modo humilhar o seu marido e submete-lo à sua vontade, através do sobressalto que essa situação lhe acarreta.
11. Quis com a sua conduta atingir a saúde física a psíquica da vítima, o que conseguiu.
12. Agiu sempre livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Praticou um crime de violência doméstica, do art. 152. º, n. º l, al a) e n. º 2, com as penas acessórias dos nºs 4, 5 e 6, do Código Penal.”
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No caso concreto, havendo acusação, o objeto do processo passou a ser definido pela narração típica ali descrita [1].
Assim, a partir da narração dos factos imputados à arguida cumpria ao Juiz de Instrução aquilatar dos indícios da verificação dessa factualidade, suficientes do ponto de vista do Ministério Público e insuficientes na perspetiva da arguida.
Só a partir dessa enunciação factual podia o JIC extrair as conclusões na aproximação ao caso sub judice, bem assim o tribunal de recurso aferir da sua legalidade e correção, segundo as quais não se colhem nos autos indícios bastantes que permitam imputar à arguida a prática de um crime de violência doméstica.
Estabelece o art. 308º, n.º 1, que: “Se, até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Segundo o art. 283º, nº 2, para onde remete o art. 308º, nº 2, “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”.
Em resumo, limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução, sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas, o JIC investiga autonomamente o caso submetido a instrução e não está vinculado à solução jurídica apresentada por qualquer sujeito processual - cfr. arts. 287º, n.ºs 1 e 2 e 288º, n.º 4.
Mas, ainda que de forma remissiva, não pode é o Juiz de instrução deixar de expor as (suas) razões de facto e de direito do despacho de pronúncia ou de não pronúncia – art.307º, nº1, in fine, ex vi art.308º, nº2, in fine.
Aqui chegados deparamo-nos com a questão a resolver, relacionada com a invalidade da decisão instrutória, por falta de narração dos factos indiciados e não indiciados.
Considerou o recorrente assistente, com a concordância do Ministério Público já nesta instância de recurso, que ao não enumerar todos os factos constantes da acusação que considera suficientemente indiciados e não indiciados, o tribunal a quo deixou de cumprir o dever de fundamentação quanto à enunciação dos factos indiciados ou não indiciados, incorrendo em nulidade.
É certo que as nulidades previstas no art.379º são exclusivas da sentença, tendo o legislador inclusivamente autonomizado o respetivo regime de arguição (art.379º, nº2) relativamente ao regime geral previsto no art. 118º e segs., do mesmo diploma legal.
A decisão instrutória não reveste a natureza de sentença, mas antes de despacho, consoante se apura do disposto nos arts. 97º, 307º e 308º, o que, obviamente, exclui a aplicação daquele normativo à decisão recorrida de não pronúncia.
Da falta de narração dos factos
Ao despacho de pronúncia e não pronúncia é correspondentemente aplicável o disposto no art. 283º n.º 3, ex-vi art. 308º n.º 2.
Daí que, por força dessa remissão, o despacho de não pronúncia, por se tratar de despacho final do processo, tem de conter no mínimo a enumeração autónoma e sistematizada, ainda que sintética, dos factos considerados não suficientemente indiciados. Já o despacho de pronúncia pode limitar-se, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 308º, nºs 1 e 2, e 283º, nºs 2, 3 e 4, por um lado, à descrição dos factos constitutivos do crime imputado ou de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, assim como a indicação das disposições legais aplicáveis e as provas a produzir em audiência. Mas pode também, nos termos do nº 1 do art.º 307º do CPP, ser lavrado por mera remissão para as razões de facto e de direito enunciadas na acusação – RP 04-03-2020 (Francisco Mota Ribeiro) www.dgsi.pt.
Seja como for, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia deve conter, ainda que de forma sintética, os factos que possibilitam chegar à conclusão da suficiência ou insuficiência da prova indiciária.
Tanto mais que a narração dos factos considerados como suficientemente indiciados, ou não, além da delimitação dos poderes de cognição do Juiz de Instrução ao proferir o despacho de pronúncia ou não pronúncia, nos termos do art.308.º do C.P.Penal, é de fundamental para a determinação dos efeitos do caso julgado da decisão final de não pronúncia, quando está assenta na não verificação dos pressupostos materiais de punibilidade do arguido [2].
Tendo o despacho de não pronúncia “força vinculativa de caso julgado material, então isso implica, necessariamente, a definição de um objeto (de um “tema”) de não pronúncia, que não possa ser renovado. Ou seja, o despacho de não pronúncia tem de especificar, pelo menos, os factos considerados não suficientemente indiciados” – cfr. RP 31-05-2017 (Neto Moura) www.dgsi.pt..
Em qualquer caso, como alerta J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557, previamente ao despacho de não pronuncia, existe um objeto do processo instituído pela acusação ou, tendo havido arquivamento, pelo requerimento de abertura de instrução do assistente, donde a sanação da nulidade daquele (art.120º), por falta de arguição, tempestiva e na primeira instância, da ausência de enunciação dos factos indiciados ou não indiciados.
A nulidade não torna inexistente o ato, ele existe e por isso subsiste enquanto não for declarado nulo.
A decisão judicial com trânsito em julgado cobre a nulidade dos atos processuais até então praticados, jamais podendo estas ser arguidas ou conhecidas oficiosamente.
As nulidades, qualquer que seja a sua natureza, ficam sanadas logo que se forme caso julgado.
Em torno da conservação dos atos imperfeitos afirma Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.
Tratando-se o despacho de não pronúncia de um ato decisório do juiz, tem de ser fundamentado, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º nº5 do C.P.Penal – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Com efeito, o Tribunal da Relação tem de conhecer quais os indícios tidos por assentes pela 1ª Instância, para que possa fazer uma valoração lógica da gravidade, precisão e concordância dos mesmos, de molde a tê-los como suficientes ou insuficientes à aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança e desta forma poder confirmar o despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
Com efeito, como recordam o ac RP 17-02-2010 (Eduarda Lobo) ), RP 26.04.2017 (Maria Ermelinda Carneiro) www.dgsi.pt ,, “é da apreciação critica das provas recolhidas no inquérito, bem como na instrução, que há-de resultar uma verdadeira convicção de probabilidade de uma futura condenação ou não, não bastando um mero juízo de carácter subjectivo, antes se exigindo um juízo objectivo fundamentado nas provas recolhidas. E é sobre esse juízo que este Tribunal pode decidir do acerto ou não da decisão recorrida”.
Se o despacho de não pronúncia não especifica os factos em relação aos quais existe prova indiciária suficiente e/ou aqueles em relação aos quais não existem indícios suficientes, não se mostra possível conhecer, em recurso, se foi ou não correta a decisão de não pronunciar o(a) arguido(a).
Atenta a natureza e o âmbito do recurso, sem que o recorrente tivesse oportunamente reclamado da falta de enumeração dos factos indiciados e/ou não indiciados, não cabe ao tribunal ad quem a busca dos elementos de facto que, no seu entender, suportem a sua pretensão recursiva.
Se este Tribunal ad quem procedesse, sem mais, à análise da real e efetiva questão de fundo estaria a apreciar, argumentar e decidir ex novo e não a censurar qualquer ilegalidade ou a apoiar alguma interpretação concretizada na decisão recorrida cujos reais e efetivos fundamentos legais se desconhecem, assim se substituindo ao tribunal de 1ª instância em completo arrepio da natureza, das normas e princípios que regem os recursos [4].
Com efeito, o recurso destina-se exclusivamente à eliminação ou correção de concretos e relevantes vícios jurídico-silogísticos ou de específicas ilegalidades de que, porventura, enferme a decisão recorrida, configurando-se como procedimento de estrito controlo da observância da legalidade no ato de julgar e decidir doutro órgão judiciário.
Mas, se o Tribunal de recurso não pode apreciar da legalidade e correção de um despacho de pronúncia ou não pronúncia se o mesmo for omisso quanto à narração dos factos indiciários [5], daí não se extrai necessariamente que a consequência dessa omissão seja a nulidade insanável quando não está expressamente prevista como tal, nem consagrada entre aquelas do art.119º.
Resta, então, saber quais as consequências da omissão dessa especificação no despacho de não pronúncia.
Ora, por força da mesma norma remissiva (art. 283º n.º 3, ex-vi art. 308º n.º 2) temos que a falta de narração de factos ou outra omissão relevante sobre as circunstâncias da ocorrência delituosa ou participação do agente, são ali cominadas com a nulidade. Nulidade esta dependente de arguição pelo interessado - visto que não se integra na previsão dos arts. 119º e 120º, do citado Código – pelo que, a existir, estaria sanada por não ter sido invocada pelo recorrente em sede e tempo próprios [ou seja perante o tribunal de 1ª instância e no próprio acto de leitura da decisão, estando presente ou, não comparecendo nem estando representado, no prazo geral de 10 dias após a notificação].
Mais uma vez, se tivesse sido intenção do legislador permitir, em sede de recurso, a impugnação e o conhecimento oficioso deste e outros vícios da decisão instrutória, teria estabelecido para a fase de instrução um regime idêntico ao do art.379º, nº2, para a sentença, em vez de autonomizar o regime de arguição à previsão estrita do art.309º, nº2, e art.310º, nº3.
E tendo tido os sujeitos processuais a possibilidade de, em tempo, arguir uma tal nulidade ou mesmo qualquer irregularidade, não vemos como possa o recorrente dizer que foram violadas as suas garantias de defesa e/ou contraditório, ou mesmo direito à tutela jurisdicional efetiva mormente por referência à norma do art.º 32º ou do art.º 20º da Constituição da República Portuguesa, porquanto se não exerceu em tempo os direitos que lhe assistia, após notificação do despacho de não pronúncia, arguindo o correspondente vício em tempo e lugar próprios, tal omissão apenas à sua inércia se deve – sibi imputet (– cfr. RP 04-03-2020 (Francisco Mota Ribeiro) www.dgsi.pt).
A nulidade deveria ter sido previamente arguida perante o tribunal recorrido, sendo então, nesse caso, admissível recurso da decisão que este viesse a proferir. Não o tendo sido, não pode ser conhecida em primeira linha pela instância de recurso, pois, “os recursos têm por objecto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada” [6].
Ora, vista a decisão recorrida logo se constata que nenhuma narração dos factos descritos na acusação ali se efetua.
A decisão de não pronúncia, não obstante o saneamento do processo, as considerações gerais sobre o âmbito e finalidade da instrução, apesar do desenho jurídico em torno do bem jurídico e dos elementos do tipo de violência doméstica, não expressa de forma específica, clara e objetiva a factualidade que entende suficientemente e/ou não suficientemente indiciada, acabando por não se perceber – afinal – quais os concretos factos pelos quais decidiu não pronunciar a arguida.
Em parte alguma do despacho, o Exmº Juiz faz qualquer referência à factualidade que entende suficientemente indiciada, tal como àquela que entende que o não foi, por reporte à acusação.
Tal vício fere de nulidade relativa e, portanto, sanável [7], a decisão recorrida, por força da aplicação do artigo 283º, nº 3, ex vi art.308º, nº 2, sendo ao caso irrelevante a convocação feita da prova produzida e respetivo exame critico.
Sempre que a lei comine a nulidade de um ato sem que, expressamente, a qualifique como insanável, terá de ser havida como nulidade relativa (princípio da subsidiariedade da nulidade sanável (art.120º).
Terá, pois, de se concluir pela sanação, por falta de arguição no local próprio, da nulidade de que o despacho recorrido em nosso entender padece quanto à falta de narração, autónoma e sistematizada, ainda que sintética, dos factos não indiciados.
Concluiu a decisão instrutória que os subsídios probatórios constantes dos autos são insuficientes para legitimar uma decisão de pronúncia, depois de aludir às provas disponíveis com concretização, especificação ou análise critica das mesmas.
Ora, como sobredito, o regime das nulidades foi submetido ao princípio da legalidade.
Todos os vícios que inquinem atos processuais, que não sejam expressamente feridos de nulidade, constituirão uma irregularidade (art.123º).
O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art. 123º n.º 1).
Ressalva-se no seu n.º 2, a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.
O recorrente não arguiu, tempestivamente, perante a autoridade judiciária respetiva, nos termos e prazo legalmente previstos, a existência de qualquer irregularidade que afetasse o despacho recorrido.
Resta, pois, analisar se o caso pode ser subsumido à previsão do n.º 2, do citado art. 123º.
Nos termos do art. 205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais - que não sejam de mero expediente - são fundamentadas na forma prevista na lei.
Também segundo o disposto no art. 97º n.ºs 1 e 5, os despachos e sentenças dos juízes constituem atos decisórios necessariamente fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito que os sustentam.
Tal exigência, além da compreensão das decisões pelos cidadãos, especialmente pelos interessados, tem em vista o controlo crítico, por via de recurso, da lógica e transparência da decisão, constituindo fator de legitimação do poder jurisdicional e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, obstando a decisões arbitrárias.
Daí que a fundamentação de ato decisório deva ser “objectiva, clara e rigorosa e exteriorizar-se no respectivo texto de modo que se perceba qual o seu sentido e os argumentos lógicos que compõem o seu substrato racional”, estando em causa “a transparência democrática no exercício da função jurisdicional e a boa administração da justiça, interesses supra partes que justificam, se for esse o caso, a intervenção oficiosa visando a sanação do vício” – cfr. ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Dionísio) www.dgsi.pt.
Consequentemente, entendendo-se que a irregularidade que se evidencia do texto da decisão recorrida atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente por este tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art.123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes – cfr. Ac RG 27-05-2019 (Fátima Furtado), o ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Deonísio) www.dgsi.pt , RP 31-05-2017 (Neto Moura), www.dgsi.pt. Também ATRG de 5/1/2004 Proc. 293/04.1, de 12/2/2007 Proc. 2335/06.1, ATRP de 16 /12/2009 Proc. 568/09 GFVNG.P1www.dgsi.pt
Neste caso, a extrema gravidade e consequências da imperfeição que atinge o ato decisório determina que o tribunal possa declarar a sua ineficácia, independentemente da sua arguição (nulidade insanável e irregularidades de conhecimento oficioso), dada a ofensa aos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, sobrepondo-se aos ideias de segurança, celeridade e economia na administração da justiça pena [8].
Este poder-dever restringe-se aos casos em que esteja em causa o interesse público e não um interesse privado disponível – cfr. João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.

Não se verifica uma nulidade já que a discussão dos indícios no despacho instrutório não está incluída no art.308º, nº2, conjugado com o art.283º, nº3.
Inexiste qualquer especial regime normativo – disciplinante quer da forma quer do conteúdo justificativo da decisão instrutória de não pronúncia, similar ao que o legislador reservou para as sentenças/acórdãos estabelecidas pelos artºs 374º, 375º, nº1 e 379º, nº 1 al. a).
Daí que a falta de fundamentação constitua uma irregularidade processual (art.97º, nº5, e art.123º [9] , que no caso afeta o valor do ato e poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente.
No caso concreto está verificada a irregularidade abrangida pela estatuição do art.123º n.º 2, por omissão dos reais fundamentos da decisão de não pronunciar a arguida pelos factos referenciados na acusação. Em consequência cumpre declarar inválido o despacho de não pronúncia (e todos os atos posteriores dele dependentes), devendo ser substituído por outro que se pronuncie sobre a existência ou não de indícios suficientes da prática dos factos vertidos na acusação, especificando-os.
A decisão de não pronúncia deverá explicitar e exteriorizar no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam o respetivo juízo indiciário, pois só assim se dará claro e completo cumprimento ao imperativo constitucional da fundamentação da decisão instrutória.
Com efeito, não é possível a discussão critica desses indícios probatórios sem a incindível clarificação do sentido indiciado ou não dos factos conexos submetidos ao juízo indiciário.
A fundamentação influi essencialmente sobre a descrição dos factos indiciados e dos factos não indiciados, pois são estes que delimitam o objeto de apreciação. A necessidade de descrição dos factos indiciados e não indiciados é corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais e imposto quer pela CRP quer pela lei ordinária – artº 97º CPP como mencionado).
Assim, a fundamentação da decisão instrutória, ao mover o seu juízo critico probatório entre os factos elencados na acusação ou, havendo arquivamento, no RAI do assistente, não pode deixar indicar aqueles que julga indiciados e/ou aqueles que julga não indiciados, e só no final poderá extrair a consequência jurídica que se impõe (pronúncia ou não pronúncia), designadamente por os factos indiciados constituírem ou não crime.
Em suma, o despacho de não pronuncia deve ser fundamentado, o que à semelhança da sentença (art.374º, nº2)), inclui a especificação dos factos indiciados e não indiciados que podendo ser feita por remissão (artº 307º, nº1) deve sê-lo de forma especificada de modo a esclarecer os precisos factos indiciados, ou a indicação precisa de que nenhum facto se indicia. Só especificando os factos julgados não indiciados, o despacho de não pronúncia explicitará verdadeiramente as razões de facto e de direito impostas pelo art.307º, nº1.
O despacho de não pronúncia, ao não enumerar autonomamente os factos indiciados e não indiciados, não permite minimamente a sua apreensão no juízo de indiciação, a partir da discussão critica das provas obtidas, nem a sindicância da correção do raciocínio efetuado sobre estas por referência ambígua aos factos que constituem o objeto do processo.
Assim, o despacho de não pronúncia acaba por padecer de falta de fundamentação e encontra-se ferido de irregularidade, cuja reparação deve ser ordenada a todo o tempo, a requerimento ou oficiosamente, sempre que – como é o caso - puder afetar o valor do ato praticado.
A declaração desta irregularidade, que afeta o valor do ato praticado e implica a sua repetição, prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso, pelo que haverá que ordenar a baixa do processo à 1ª instância.
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3. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, em consequência, julgando-se verificada a irregularidade do art.123º n.º2, por omissão dos reais fundamentos da decisão de não pronunciar a arguida por cada um dos factos referenciados na acusação, declara-se inválido o despacho de não pronúncia e todos os atos posteriores dele dependentes, devendo ser substituído por outro que se pronuncie sobre a existência ou não de indícios suficientes da prática dos factos individuais vertidos na acusação e explicite e exteriorize no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam o respetivo juízo indiciário.
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Sem custas.

Notifique.

(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
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Porto, 17 de maio de 2023
João Pedro Pereira Cardoso
Rául Cordeiro
Carla Oliveira
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[1] Saber se existem indícios suficientes do cometimento do crime que se imputa pressupõe sempre uma narração na acusação ou, no caso de arquivamento, no requerimento de abertura de instrução, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, aqui incluída a descrição dos elementos subjetivos do tipo de crime que se imputa – art.287º, nº2, e art. 283º, nº3, al.b).
O requerimento para abertura de instrução não está sujeito a formalidades especiais –art.º 287 n.º 2. Todavia, quando requerida pelo assistente, o mesmo “não pode, em termos materiais e funcionais, deixar de revestir o conteúdo de uma acusação alternativa, onde constem os factos que se considera indiciados e que integrem o crime, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório” – cfr. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 41; Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado e Comentado, 9.ª edição, 541
Face à estrutura acusatória do processo penal português, nos termos do nº 4, do artº 288º, do CPP, o juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, mas tendo em conta a indicação constante do requerimento de abertura de instrução, estando vinculado factualmente aos elementos que lhe são trazidos no RAI de forma a poder decidir sobre a justeza ou acerto da decisão de acusação ou arquivamento.
O requerimento de abertura de instrução equivale, em tudo, à acusação, definindo e delimitando o objeto do processo a partir da sua apresentação. Tal requerimento constitui uma acusação alternativa ao despacho de não acusação proferido pelo Ministério Público – cfr. ac RE 18.02.2020 (Alberto Borges), ac RP 29.04.2020 (Maria Joana Grácio) e RG 6.02.2017 (Fernando Pina), todos in www.dgsi.pt.
[2] O despacho de não pronúncia por insuficiência de indícios, após um debate público, contraditório e tematicamente vinculado, deverá fixar expressamente quais os factos considerados não suficientemente indiciados.
Na verdade, é sobre tais factos que se forma caso julgado, “em termos de ser inadmissível a reabertura do processo face à eventual descoberta de novos factos ou meios de prova, ao contrário do que acontece com o inquérito arquivado, que pode ser reaberto se forem descobertos factos novos (art. 279º, nº 1). Esses elementos novos só poderão ser considerados por meio de recurso de revisão (…)» Maia Costa in “Código Processo Penal Comentado”, 2014, anot. Art.308º, pág. 1024.
Ao proferir um despacho de não pronúncia o juiz profere uma decisão de mérito que tem força vinculativa não só dentro do processo em que foi proferida como fora dele, constituindo caso julgado res iudicata e só mediante recurso de revisão poderá ser reaberta a discussão sobre tais factos - RP 26.04.2017 (Maria Ermelinda Carneiro); RP 31-05-2017 (Neto Moura), RG 13.01.2003 (Heitor Gonçalves), RP 16.12.2009 (Francisco Marcolino), RP 22-09-2021 (Pedro Vaz Pato) www.dgsi.pt
No mesmo sentido Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, UCE, pág. 779, Frederico Lacerda da Costa Pinto, “Direito Processual Penal”, edição AAFDL, 1998, pag. 164, e de J.M Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da acção penal”, in “Que futuro para o processo penal?”, p. 557; Pedro Soares Albergaria in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.
[3] A conservação dos atos imperfeitos consiste em lhes reconhecer capacidade para provocar os efeitos correspondentes aos atos válidos- João Conde Correia, ob cit. pg.129. A formação do caso julgado torna insindicáveis todos os vicios suscetiveis de constituir causa de nulidade - seja qual for a sua natureza - permitindo a sua conservação - ob. cit. pg.169
[4] Funcionando o recurso como remédio quanto a questões concretamente suscitadas e, eventualmente, carecidas de reparação, os erros de julgamento (de facto e de direito) trazidos ao tribunal ad quem hão-de reconduzir-se à apreciação da validade e adequação do juízo indiciário que determinou a prolação do despacho recorrido, por referência à concreta impugnação apresentada pelo recorrente, não cumprindo a este tribunal ad quem efetuar a revisão de toda a prova disponível e apreciar todas as questões que esta eventualmente possa suscitar, com vista a obter um novo e reforçado juízo indiciário, autónomo quer da decisão do tribunal a quo quer da própria impugnação apresentada.
[5] Cfr. RP 26.04.2017 (Maria Ermelinda Carneiro) e ac RP 17-02-2010 (Eduarda Lobo) www.dgsi.pt), devendo o JIC dizê-lo expressamente se nenhum facto resulta indiciado.
[6] “São remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas, e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas “ – cfr. RP 23.04.2008 ( Maria Leonor Esteves) www.dgsi.pt.
[7] Na controvérsia jurisprudencial sobre o vício da decisão de pronúncia ou de não pronúncia que não contém a enumeração da matéria de facto indiciada e/ou não indiciada:
- sustentando tratar-se de uma nulidade insanável do conhecimento oficioso (RP 22-09-2021 (Pedro Vaz Pato), ac RP 17-02-2010 (Eduarda Lobo), RP 26.04.2017 (Maria Ermelinda Carneiro), RE 20.12.2012, 26.02.2013 e de 17.06.2014, RL 07.05.2013) e RC 13.11.2013) www.dgsi.pt. Também na doutrina, neste sentido, se pronuncia Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág 770, anotação 3 «É também nulo o despacho instrutório que não contiver as menções do artigo 283º, nº 3 (artigo 308, nº 2, conjugado com os artigos 283, nº 3, e 287, nº 2) (…) Se se tratar de um despacho de não pronúncia, a respectiva nulidade pode ser arguida e conhecida no recurso interposto do despacho de não pronúncia (artigo 379º, nº 2, por identidade de razão..». No mesmo sentido Pedro Soares Albergaria in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.
- defendendo a existência de uma nulidade relativa (sanável) e, portanto, dependente de arguição perante o JIC, cabendo recurso do despacho que a indefira - RP 31-05-2017 (Neto Moura), RP 25-02-2015 (Moreira Ramos), RP 21-01-2015 (Lígia Figueiredo), RP 7/7/2010; RC 26/10/2011 e de 21/5/2015, RC 16.06.2015 (Luís Coimbra), e da RG 2/11/2015 (Alcina Ribeiro), RP 17.02.2010, 27.02.2013 e de 07.07.2010, RE 10.12.2009, 19.11.2013 e 22.04.2014 e RL 10.07.2007).
- optando pela verificação de uma irregularidade dependente de arguição (art.123º, nº1) – cfr. RP 04-03-2020 (Francisco Mota Ribeiro) www.dgsi.pt), RP 05-01-2011 (Joaquim Gomes), RC 18/05/2011 disponível www.dgsi.pt); RP 29.05.2013 e RC 03.07.2013) www.dgsi.pt.
- seguindo o entendimento de que estamos perante uma irregularidade, mas do conhecimento oficioso (art.123º, nº2) – cfr. RP 15-04-2015 (Maria Luisa Arantes), RP de 6/01/2016, CJ, XLI, I, pg. 187, RP 12-10-2016 (José Carreto), RP 16/12/2009 e RG 09.07.2009 (Cruz Bucho), 06.12.2010, 18.06.2007 e de 12.02.2007 in www.dgsi
[8] João Conde Correia. Contibuto para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, BFDUC, Stydia Ivridica, 44. Coimbra Editora, 1999, pg. 171 e 174.
Haverá aqui que distinguir, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, volume II, 5ª edição, página 131, “entre a validade do acto e o seu valor; o acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava”.
[9] Neste sentido, Eduardo Maia Costa in “Código Processo Penal Comentado”, 2014, anot. Art.308º, pág. 1024; também Francisco Marcolino) www.dgsi.pt. Também Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 3.ª edição actualizada, UCE, anot. Art.309º, pág. 779 e Pedro Soares Albergaria in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art. º, pg. s.d.