Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
66/22.2PAOVR-D.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ ANTÓNIO RODRIGUES DA CUNHA
Descritores: PENAS DE SUBSTITUIÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
DECISÃO CONDENATÓRIA
DESPACHO
REVOGAÇÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
IRREGULARIDADE
PODERES DO JUIZ
CASO JULGADO
Nº do Documento: RP2023030166/22.2PAOVR-D.P1
Data do Acordão: 03/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O momento de aplicação das medidas previstas nos artigos 43.º, 46º, 50º, 53º, 58º e 59º, todos do Código Penal, é o da prolação da decisão condenatória, ou eventual subsequente despacho revogatório, no processo do tribunal do julgamento, encontrando-se tais matérias dentro do círculo dos poderes do juiz de julgamento.
II – Incorre em omissão de pronúncia a decisão do tribunal que determine o cumprimento da pena de prisão sem ponderar fundadamente sob que forma deveria ser executada, concretamente, sob obrigação de permanência na habitação ou na cadeia.
III – Tal omissão de pronúncia consubstancia uma mera irregularidade que ficará sanada se não for regular e tempestivamente arguido, nos termos e prazo previstos no nº 1 do artigo 123º do Código de Processo Penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 66/22.2PAOVR-D.P1

ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I - RELATÓRIO
Inconformado com o despacho de 21.12.2022, Ref.ª 125049009, que não apreciou da possibilidade de cumprir a pena de prisão em que foi condenado, na sequência de incumprimento de pena de multa de substituição, em regime de permanência na habitação, dele interpôs recurso o arguido AA.
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Pese embora tenha sido julgado improcedente um recurso interposto pelo arguido, o Tribunal Superior, no caso, este Tribunal, no segmento decisório do Acórdão determinou: (…) ressalvado o dever de o tribunal a quo se vir a pronunciar, oficiosamente ou a requerimento, acerca da verificação ou não dos pressupostos de que depende a execução da pena de prisão imposta ao arguido em regime de permanência na habitação (artigo 43º nº 1 al. c), do Código Penal, eventualmente subordinada a regras de conduta previstas no seu nº 4) decidindo-se, então, em conformidade (…);
2. Crê a defesa, que este Tribunal Superior determinou que a situação do arguido fosse analisada pelo Tribunal de Primeira Instância em face dos pressupostos de que depende a aplicação ao mesmo do regime de permanência na habitação, não se compreendendo, pois, de outro modo, a alusão ao dever de o Tribunal oficiosamente ou a requerimento o fazer;
3. O Tribunal de Primeira Instância, apegando-se ao princípio ínsito no Artº. 613º do CPC, entendeu esgotado o seu poder jurisdicional e não se pronunciou quanto a tal determinação (dever) constante da decisão deste Tribunal superior, violando-a.
4. Este Tribunal da Relação do Porto, ao determinar tal dever no Acórdão que proferiu, sabia já que a decisão de Primeira Instância tinha transitado. Como é bem de ver, se o TRP entendesse que tal obstava à análise dos pressupostos do apontado regime, obviamente, que não referiria aquele dever que sobre o Tribunal a quo impende;
5. O despacho recorrido mostra-se, assim, violador da decisão deste Tribunal, assim como do disposto nos Artº.s 43º nº. 1 al. c) do CPP e do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, e 15.º da LOFTJ (Lei n.º 38/87, de 23/12, na sua atual redação), assim como do artigo 4.º, n.º 1, da Lei 21/85, de 30/7, (na redação em vigor), donde emerge com a clareza do que não pode nem deve nunca ser posto em causa o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores.
TERMOS EM QUE, NOS MELHORES DE DIREITO CUJO PROFICIENTE SUPRIMENTO DE Vª.S EXª.S SE INVOCA, DEVE O PRESENTE RECURSO SER RECEBIDO E MERECER PROVIMENTO, REVOGANDO-SE O DESPACHO RECORRIDO ORDENANDO-SE AO TRIBUNAL A QUO O CUMPRIMENTO DO APONTADO DEVER, OU, EM FACE DOS ELEMENTOS CONSTANTES DOS AUTOS, O DETERMINE ESTE TRIBUNAL, ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA.
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O Ministério Público junto do Tribunal de Primeira Instância apresentou resposta, pugnando no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso e confirmado o despacho recorrido.
Termina com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Ao indeferir o requerimento apresentado pelo arguido, que pretende o cumprimento da pena de prisão em que foi condenado, na sequência de incumprimento de pena de multa de substituição, em regime de permanência na habitação, o Tribunal a quo não incumpriu a decisão proferida pelo Tribunal da Relação.
2. Com efeito, tendo o arguido formulado idêntica pretensão junto do Tribunal de Execução de Penas, o qual já proferira decisão na data da prolação do despacho recorrido, não pode o Tribunal a quo reapreciar a questão.
3. A questão do cumprimento em regime de permanência na habitação da pena de prisão que o arguido cumpre desde 12/10/2022 e que pretende que seja reapreciada pelo Tribunal da condenação, foi já apreciada e decidida pelo T.E.P., mostrando-se assim esgotado o poder jurisdicional da primeira instância.
4. Pelo que não podia o Tribunal a quo decidir de modo diverso do decidido no despacho recorrido, sob pena de concorrer com tribunal da mesma hierarquia, reapreciando, modificando ou alterando decisão proferida por este.
Pelo exposto, porque o despacho recorrido não violou qualquer normativo legal, deverá ser confirmado e mantido, negando-se provimento ao recurso interposto pelo arguido.
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O Ministério Público junto desta Relação acompanhou a resposta apresentada na Primeira Instância e emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso e da manutenção do despacho recorrido, nos seus precisos e exactos termos.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código Processo Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
a) Despacho recorrido [transcrição]:
Vem o arguido AA requerer que se aprecie da possibilidade de o mesmo cumprir a pena de prisão em que foi condenado, na sequência de incumprimento de pena de multa de substituição, em regime de permanência na habitação.
Cumpre dizer que a decisão que determinou o cumprimento da pena de prisão transitou em julgado, encontrando-se o arguido em cumprimento de pena de prisão desde 12.10.2022.
É certo que o Acórdão do Tribunal da Relação proferido nos autos, que negou provimento ao recurso interposto e manteve as decisões recorridas, deixa em aberto a possibilidade de ser apreciada, oficiosamente ou a requerimento, a eventual execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
Ora, de acordo com o requerimento apresentado no dia de hoje pelo arguido, esta questão foi já conhecida por tribunal de 1ª Instância (TEP). Com efeito, junta o arguido decisão proferida pelo Tribunal de Execução das Penas do Porto – Juiz 3, da qual resulta que foi conhecida pretensão ali formulada de cumprimento da pena de prisão que o arguido está a cumprir à ordem destes autos, em regime de permanência na habitação. Contrariamente ao que alega o arguido, aquele Tribunal não se julga incompetente para conhecer a questão, conhecendo e indeferindo a pretensão formulada, por falta de fundamento legal. O que acontece é que, na fundamentação da decisão, o TEP defende que o artigo 43º do Código Penal deve ser devidamente ponderado aquando da prolação da decisão condenatória (ou eventual subsequente despacho revogatório), o que, forçosamente, será da competência do tribunal da condenação. Todavia, a questão sub judice não é essa, é sim a de aplicação desse regime, após o trânsito em julgado daquela decisão. Essa questão, que o arguido pretende ver reapreciada pelo tribunal da condenação, foi ali devidamente conhecida.
Ora, outro não pode ser o entendimento de que, sobre essa questão, está esgotado o poder jurisdicional da 1ª Instância – artigo 613º do Código de Processo Civil, ex. vi. artigo 4º do Código de Processo Penal.
Desta forma, não podendo este tribunal reapreciar, modificando ou alterando, a decisão proferida pelo Tribunal de Execução das Penas, por serem tribunal da mesma hierarquia, indefere-se o requerido, restando ao requerente aguardar a decisão do recurso daquela decisão, que afirma ter interposto.
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III - APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com jurisprudência assente, o objeto do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto, considerando tais conclusões, a única questão suscitada resume-se a saber se o despacho de 21.12.2022, onde foi decidido não tomar conhecimento do pedido formulado pelo arguido para que se aprecie da possibilidade de o mesmo cumprir a pena de prisão em que foi condenado, na sequência de incumprimento de pena de multa de substituição, em regime de permanência na habitação, viola a decisão do Tribunal da Relação, bem como o disposto nos art.ºs 43.º, n.º 1, al. c), do CPP, 3.º, n.º 1, e 15.º, da LOFTJ, e 4.º, n.º 1, da Lei 21/85, de 30.7, de onde resulta que não pode ser posto em causa o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas em via de recurso pelos tribunais superiores.
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Cumpre decidir.
O recorrente insurge-se contra a decisão do Tribunal a quo de não tomar conhecimento do pedido para apreciar a possibilidade de o mesmo cumprir a pena de prisão em que foi condenado, na sequência de incumprimento de pena de multa de substituição, em regime de permanência na habitação.
Começa por invocar que desobedeceu ao Acórdão de 14.12.2022 deste Tribunal da Relação.
Sem razão, porém.
Com efeito, no que concerne à questão da execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, embora naquele aresto se tenha reconhecido que o Tribunal a quo cometeu uma irregularidade, por omissão de pronúncia ao determinar o cumprimento da pena de prisão sem ponderar fundadamente sob que forma deveria ser executada, concretamente, sob obrigação de permanência na habitação ou na cadeia, considerou-se, todavia, que tal vicio se encontra sanado, por não ter sido regular e tempestivamente arguido, nos termos e prazo previstos no n.º 1 do art. 123º do CPP. Contudo, refere-se no Acórdão que essa omissão não obsta a que o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, venha agora a pronunciar-se sobre a forma de execução da pena de prisão cujo cumprimento determinou, já que o caso julgado formado não cobre uma questão (nova) que a decisão recorrida concretamente não conheceu. No entanto, como bem anota o Ministério Público no seu Parecer, o Tribunal da Relação não ordenou ou emitiu qualquer diretiva vinculativa para o tribunal de primeira instância no sentido de impor o conhecimento da possibilidade de execução da pena de prisão em Regime de Permanência na Habitação. Julgando o recurso interposto pelo arguido completamente improcedente e confirmando integralmente a decisão recorrida, apenas mobiliza uma chamada de atenção para o tribunal de primeira instância, de forma construtiva e propedêutica, destacando a pertinência e actualidade desta questão, funcionando como um alerta ou lembrete assente no princípio da mútua colaboração institucional entre tribunais, mas não formulou qualquer injunção imperativa de acatamento hierárquico obrigatório ou cogente.
Temos, pois, que não se verifica a invocada desobediência.
Acresce, como assinala o despacho recorrido, que a decisão que determinou o cumprimento da pena de prisão transitou em julgado, encontrando-se o arguido em cumprimento de pena de prisão desde 12.10.2022. Por outro lado, o aqui recorrente apresentou requerimento junto do TEP do Porto, onde formulou idêntico pedido para cumprir a pena de prisão em que foi condenado na sequência do incumprimento da pena de multa de substituição, em regime de permanência na habitação. O TEP do Porto indeferiu o requerido por despacho de 29.11.2022, conhecendo a questão, como resulta claro do respetivo teor[1] e é devidamente assinalado no Parecer do Ministério Público. A eventual incompetência do TEP, como sublinha o Senhor Procurador Geral Ajunto, é apenas convocada a título subsidiário e como argumento de segunda linha. Inconformado com o indeferimento, o arguido recorreu, estando o recurso pendente.
Considerando o exposto, temos, pois, que, efetivamente, se encontra esgotado o poder jurisdicional do Tribunal a quo, não merecendo reparo o despacho recorrido.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, e, em consequência, confirmam o despacho recorrido.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça.
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Porto, 1 de março de 2023
José António Rodrigues da Cunha
William Themudo Gilman
Liliana de Páris Dias
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[1] O momento de aplicação das medidas previstas nos art.s 43.º-46.º;50.º;53.º;58.º;59.º CP, é o da prolação da decisão condenatória (ou eventual subsequente despacho revogatório) no processo do tribunal do julgamento, encontrando-se tais matérias dentro do círculo dos poderes do juiz de julgamento. Neste sentido, no caso particular do instituto regulado no art. 44.º CP (versão anterior à L94/2017- 23agosto), veja-se o AcTRPorto, proferido em 7março2012 no NUIPC 117/07.0GAPFR-A., relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Alves Duarte, acessível em www.dgsi.pt, onde sem sumário, de forma expressa se lê que “O regime de permanência na habitação, enquanto pena substitutiva da pena de prisão, só pode ser aplicado na própria sentença condenatória.” Já no domínio do regime legal em vigor (art. 43.ºCP), consulte-se o teor do AcTRÉvora, proferido em 21janeiro2020 no NUIPC 569/07.9GCVCT.E2, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Nuno Garcia, acessível em www.dgsi.pt, onde no corpo, de forma expressa se lê que (…) “tudo o que tem que ver com eventual alteração da forma de cumprimento de uma pena de prisão que se encontra em execução, como é caso em análise, é regulado no Código da execução das penas e medidas privativas da liberdade, aprovado pela L. 115/2009 de 12/10 (desconsiderando agora a norma transitória prevista no artº 12º da L. 94/2017 de 23/8 apenas para os casos, “eliminados”, de prisão por dias livres ou semi-detenção). (…) Assim, estando a decorrer já o cumprimento da pena de prisão, a única possibilidade de ocorrer alteração no modo de execução dessa pena, deixando de ser em meio prisional e passando a ser em permanência na habitação, é nos casos previstos no acima referido artº 118º.” Não tendo sido feita, nesse âmbito, aplicação de uma qualquer dessas medidas e tendo transitado em julgado a respectiva decisão ou despacho final subsequente, mostra-se esgotado o respectivo poder jurisdicional [com a prolação da sentença (ou, acrescenta-se, de subsequente despacho revogatório, no qual deverá ser ponderada a possibilidade prevista no art. 43.º/1c)CP, ponderação que não poderá ser ajuizada por tribunal distinto do da condenação/revogação), o juiz realiza o acto final de cumprimento do seu dever de julgar (1) e fica, por isso, imediatamente esgotado o seu poder jurisdicional quanto à matéria em causa – art. 613.º/1CPC]. Por seu turno, como citado está no AcTRPorto, proferido em 11setembro2019 no NUIPC 2010/10.0TXPRT-O.P1, relatado pelo Sr. Juiz Desembargador Jorge Langweg, acessível em www.dgsi.pt “na decisão do Tribunal da Relação do Porto proferida em 16.03.2016, no quadro do processo n.° 119/11.2PFMTS-B.P1, entendeu-se que "a sentença que (...) transitou em julgado, por isso, não pode, por definição, ser alterada por um qualquer despacho posterior, seja de que tribunal for”.