Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2506/17.3T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ESTELITA DE MENDONÇA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO DE COMÉRCIO
PROCEDIMENTO CAUTELAR
ACTOS MATERIALMENTE SOCIAIS
Nº do Documento: RP201711142506/17.3T8VFR.P1
Data do Acordão: 11/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 792, FLS.117-128)
Área Temática: .
Sumário: Os juízos de comércio são competentes, em razão da matéria, para conhecer dos procedimentos cautelares prévios às acções relativas ao exercício de direitos sociais e de suspensão e de anulação de deliberações sociais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2506/17.3T8VFR.P1
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Recorrentes: B… e marido C…
Recorridos: D…
E…
F…
G…
H… S.A. e outros
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Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação do Porto:
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Com data de 23/08/2017 foi proferida a seguinte decisão (itálico de nossa autoria para melhor compreensão):
Competência em razão da matéria
1. Nos presentes autos de procedimento cautelar comum instaurado por B… e marido C… contra D…, E…, F…, G…, H…, S.A, I… – SGPS, SA e J…, Lda., são formulados os seguintes pedidos:
1) Que os Requeridos G…, E…, F… e D… se abstenham de deliberar, realizar ou registar qualquer aumento de capital social nas sociedades H…, SA, I…, SGPS, SA e J… Ldª que distorça, desvalorize ou por qualquer meio, forma ou processo tenha subjacente e revele a forma intencional de provocar a redução do valor patrimonial dos bens e participações sociais doados por H… e K… para obterem proveito pessoal contrário à ordem pública e aos bons costumes, através do reforço de participação social nestas sociedades de cada um dos Requeridos até decisão final da sentença que venha a ser proferida na acção por simulação que a Requerente vai instaurar contra todos os Requeridos;
2) Sob pena de cometerem o crime de desobediência, previsto no artigo 348º do Código Penal, em caso de desrespeito à decisão proferida na providência cautelar.
3) Que as Requeridas H…, SA e I…, SGPS, SA e J…, Ldª, G…, E…, F… e D… se abstenham de através dos seus respectivos representantes legais, administradores ou gerentes, accionistas ou sócios, de decidir, deliberar, realizar, executar ou registar qualquer aumento de capital social quer na sua própria sociedade Requerida, quer nas sociedades em que sejam ou possam vir a ser accionistas ou sócias e sejam agora Requeridas nesta providência cautelar, que tenham subjacentes os factos e o direito invocados pela Requerente e que distorçam, desvalorizam ou por qualquer meio, forma ou processo tenham subjacente e revelem a forma intencional dos Requeridos G…, E…, D… e F… de provocar a redução do valor patrimonial dos bens e participações sociais doados a estes por H… e K… para obterem proveito pessoal contrário à ordem pública e aos bons costumes, através do reforço de participação social nestas sociedades de cada um dos Requeridos até decisão final da sentença que venha a ser proferida na acção por simulação que a Requerente vai instaurar contra todos os Requeridos;
4) O não registo na conservatória do registo comercial de qualquer aumento de capital nas sociedades H…, SA, I…, SGPS, SA e J…, Ldª, deliberado e realizado nas formas e circunstâncias referidas na alínea anterior, até decisão final que venha a ser proferida na acção principal;
5) A suspensão de eficácia de todo e qualquer efeito jurídico de qualquer aumento de capital social que as sociedades H…, SA, I…, SGPS, SA e J… Ldª, pretendam registar ou seja registado na conservatória do registo comercial, deliberado e realizado nas formas e circunstâncias referidas no 1.º pedido até decisão final que venha a ser proferida na acção principal.
2. No seu requerimento inicial os Requerentes enunciam (pontos 152 ss.) que o presente procedimento cautelar é dependência de uma acção declarativa que irão instaurar contra os Requeridos e seus pais, com vista à declaração de nulidade dos actos e negócios jurídicos praticados pelos aqui Requeridos tendentes a deliberarem aumentos de capital social nas sociedades Requeridas, por elas não necessitarem de tais aumentos de capital e porque os aumentos de capital que os Requeridos se propõem fazer têm o único objectivo de desvalorizarem, em termos relativos, as participações sociais que lhes foram doadas pelos seus pais, como meio ou forma de, aquando da abertura das heranças por óbito dos seus pais, tais participações terem um valor simbólico ou residual. Referem ainda que a acção a instaurar terá como fundamento a existência de simulação pelos Requeridos donatários na deliberação e realização dos aumentos de capital social destas 3 sociedades, sustentando que as deliberações sociais para aumento de capital social nas sociedades H…, Sa, I…, SAGPSD, SA e J…, Ldª, as quais não precisam, para o exercício das suas actividades de qualquer aumento de capital social, nada mais são do que razões ou condições falsas, não queridas pelos Requeridos e que estes criaram com o intuito de prejudicar a Requerente.
3. Devidamente citados, os Requeridos (com excepção do Requerido D…) arguiram várias excepções, entre as quais a de excepção de incompetência do Tribunal em razão da matéria, invocando em síntese serem competentes para os termos da causa principal e, consequentemente, do procedimento cautelar, os juízos de comércio já que o litigio em apreço, resulta de uma deliberação social a ocorrer, e enquadra-se pois assim em mais que uma alínea do preceito em referencia, nomeadamente nas alíneas b), c), d) e h, do art.º 128.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário, sendo as questões suscitadas de natureza meramente comercial, “na medida em que emerge única e exclusivamente de uma deliberação social a ocorrer, e funda-se pois assim num aumento de capital social igualmente a ser ainda aprovado, e pois assim à data ainda não sucedeu”, ou seja, o procedimento cautelar tem a ver fundamentalmente e por simples leitura, com a pretensão dos AA. de impedir que nas três assembleias gerais marcadas das referidas sociedades requeridas, respectivamente H…, S.A, I…, SGPS, S.A e J…, Lda. deliberem e no interesse e sentido das mesmas, um necessário aumento de capital, e que nos termos objectivos dos pactos sociais e respectiva legislação comercial do CSC, é direito intrínseco e exclusivo das mesmas sociedades.
4. Devidamente notificados da Oposição, os Requerentes responderam, entre outras, à excepção deduzida, enunciando que “ou os Requeridos não leram o requerimento da providência ou não quiseram interpretá-lo, pois a causa e razão de ser da própria providência cautelar, tem subjacente a fraude legal que os Requeridos pessoas em conjugação de esforços dos pais dos Requeridos pessoas estão a praticar e baseia-se na existência de contratos simulados entre os Requeridos pessoas e os seus pais, sendo as empresas meros instrumentos activos da fraude legal que os Requeridos estão a fazer e a tentar continuar a fazer através dos aumentos de capital simulados”.
5. Cumpre apreciar e decidir.
5.1. Nos termos do disposto no art.º 364.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado e pode ser instaurado como preliminar ou como incidente da acção declarativa ou executiva. Conforme decidiu o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. 01-03-2007, proc. 07A4669, Cons. Sebastião Póvoas), “(…) III-A competência material para a acção é que determina a do processo cautelar. IV- Sendo a medida preventiva requerida como preliminar da acção, a competência em razão da matéria deve aferir-se pela ponderação do pedido, e causa de pedir, desta, nos termos afirmados pelo requerente da medida cautelar”. Diversamente do que sustentado por alguma jurisprudência (minoritária, cfr., por todos Ac. TRL, de 30-05-2013, proc. 1100/12.0TBSCR), afigura-se que a competência em razão da matéria não pode ser excluída da apreciação em sede de procedimento cautelar quando este seja prévio à instauração da acção. Conforme foi decidido no aresto do STJ supra citado, se assim não fosse “(…) seriam, então, materialmente competentes tribunais diferentes para a lide principal e para a lide instrumental. Mas não pode ser. Por um lado, quer para a competência territorial (cf. Cons. Salvador da Costa, in “A injunção e as conexas acções e execuções”, 5ª ed, 2005, 47) quer para a competência material (cf. Des. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, III, 3ª ed; “Procedimento Cautelar Comum”, 221 – nota – e 213) o tribunal é competente para decidir as medidas cautelares dela dependentes. (cf. v.g. Acórdão do STJ de 4 de outubro de 2006 – 06S383). É o que resulta, claramente, da instrumentalidade geradora de similitude com os procedimentos incidentais e o disposto no [nº1 do artigo 96º do CPC – actual art.º 86.º]. Ademais, deve o processo cautelar ser apensado à acção principal logo que esta seja instaurada, sendo que, nos casos de instrumentalidade actual, deve ser instaurado no tribunal onde corre a acção. Daí que o tribunal competente para o procedimento cautelar comum seja o da acção de que é instrumental e, quando requerido antes de instaurada essa lide, a competência material deve determinar-se face ao pedido, e causa de pedir, da acção, que devem ser alegados no requerimento da medida preventiva” (sic).
Nesta conformidade, importa apreciar desde já a excepção deduzida, relativamente à qual os Requerentes exerceram o seu direito ao contraditório.
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5.2. A competência material do tribunal, que corresponde a um pressuposto processual da acção, afere-se pela pretensão jurídica deduzida e respectiva fundamentação, ou seja, o pedido formulado e a sua causa de pedir, in casu, no procedimento cautelar, tendo por referência a acção principal da qual aquele está dependente. Com efeito, para a determinação da competência em geral - e, por conseguinte, também em razão da matéria - «deve olhar-se para os termos em que foi posta a acção - seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.) seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)» (Ac. STJ, 26-06-2012, Cons. Fonseca Ramos), considerando-se a natureza da relação jurídica material em causa, segundo a versão apresentada em juízo pelos Requerentes. Neste sentido, alvitrou Remédio Marques que “na tarefa de determinação do tribunal competente em razão da matéria, é importante a delimitação que o autor efectua dos factos que pretende ver provados. Pressupõe-se então a existência dos factos alegados pelo autor e só com base nesses factos é que se determina a competência do tribunal» (Remédio Marques, Acção declarativa à luz do Código Revisto, p. 299).
Para que o Tribunal possa decidir sobre a procedência ou o mérito de um pedido, é, desde logo, indispensável que a acção (neste caso, a providência cautelar) seja proposta perante o Tribunal competente para a sua apreciação. A competência (material) do Tribunal é, assim, um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, que importa analisar antes de se conhecer do fundo da causa, e de que depende poder o Juiz proferir decisão de mérito sobre a mesma (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra: Coimbra Editora, pp.74 e 75), sendo igualmente necessário haver uma relação directa entre a competência e o pedido (Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, Coimbra: Coimbra Editora, p. 557). Neste mesmo sentido, cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-04-2010, proc. 490/09.6TTPRT.P1, no qual foi decidido que “a competência do Tribunal em razão da matéria tem de aferir-se pela natureza da relação jurídica, tal como é apresentada pela Autora na petição inicial, pelos termos em que a acção foi proposta, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir e também o pedido formulado”.
Em sede de competência em razão da matéria, estabelece o art.º 65.º, do CPC que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
Assim, nos termos do disposto no art.º 40.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, alterada pela Lei n.º 40-A/2016 de 22 de dezembro), “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
De acordo com o disposto no art.º 79.º do mesmo diploma, “os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca”, estatuindo o art.º 80.º, n.º 1 uma competência residual para os tribunais de comarca na preparação e julgamento dos “processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”, estipulando o n.º 2, que “os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada”.
À data da instauração da presente acção, a redacção do art.º 81.º, n.º 1, previa o desdobramento do Tribunal de Comarca em juízos centrais, uns de competência genérica e outros de competência especializada [alínea a)] e juízos locais. De acordo com a alteração introduzida pela citada Lei n.º 40-A/2016, os Tribunais de Comarca passaram agora a ser desdobrados em juízos, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade, nomeadamente os juízos centrais cíveis [al. a)] e os juízos de comércio (al. i)].
Concretamente quanto aos juízos centrais cíveis, estabelece o art.º 117.º, da LOSJ serem competente apenas para “a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00; b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a €50.000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei”.
Daqui resulta, designadamente tendo por base o citado art.º 117.º, que a competência atribuída aos juízos centrais cíveis é residual quanto às acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00 [al. a)], não estando prevista a esses juízos outra competência de forma expressa [al. d)], desde que a competência para o julgamento da concreta matéria não esteja exclusiva e expressamente atribuída a outro Tribunal (in casu, a outro juízo de competência especializada).
Quanto aos juízos de comércio, dispõe o art.º 128.º, n.º 1, da mesma LOSJ competir aos mesmos preparar e julgar “a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras”.
Os aumentos de capital pretendidos realizar pelos sócios de uma sociedade constituem o exercício dos respectivos direitos sociais e, por seu turno, as deliberações tomadas em assembleia da sociedade de aprovação ou rejeição dos referidos aumentos de capital constituem deliberações sociais. Por conseguinte, os actos relativamente aos quais os Requerentes pretendem ver apreciada a sua legalidade (ou nulidade) e os pedidos formulados no sentido de os Requeridos se absterem de praticar constituem actos materialmente sociais. São os próprios Requerentes que expressamente enunciam que a sua pretensão funda-se na prática desses actos sociais (“tendentes a deliberarem aumentos de capital social nas sociedades Requeridas, por elas não necessitarem de tais aumentos de capital e porque os aumentos de capital”; “a acção a instaurar terá como fundamento a existência de simulação pelos Requeridos donatários na deliberação e realização dos aumentos de capital social destas 3 sociedades, sustentando que as deliberações sociais para aumento de capital social nas sociedades H…, Sa, I…, SAGPSD, SA e J…, Ldª, as quais não precisam, para o exercício das suas actividades de qualquer aumento de capital social, nada mais são do que razões ou condições falsas” - e portanto pretendendo a anulação e/ou sem eficácia jurídica de tais deliberações), sendo os no sentido da abstenção da prática de direitos sociais pelos sócios bem como de suspensão de deliberações sociais (ou prevenção da possibilidade da sua deliberação), pelo que expressamente abrangida pela competência atribuída aos Juízos de Comércio nas alíneas c) e d), bem como, de acordo com o pedido formulado de ser obstado o ato de registo comercial de aumento de capital, ao abrigo da al. h), todas do art.º 128.º, da LOSJ.
Atento o supra enunciado, conclui-se que a competência para o julgamento do presente procedimento cautelar (e respectiva acção declarativa de que depende) é exclusiva dos Juízos de Comércio, por via do disposto no art.º 128.º, n.º 1, al. c) e d), da LOSJ, sendo incompetentes, em razão da matéria, os Juízos Centrais Cíveis, por decorrência do disposto no 117.º, a contrario, da LOSJ, ex vi art.º 65.º, do Código de Processo Civil, in fine, verificando-se a incompetência absoluta, em razão da matéria, deste Juízo Central Cível para o conhecimento da causa [art.º 96.º, al. a), do CPC], constituindo uma excepção dilatória que implica a absolvição dos Requeridos da instância (considerando que, in casu, as Requerentes formulam todos os pedidos em regime de solidariedade), de acordo com o disposto nos art.os 99.º, n.º 1, 577.º, al. a) e 278.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil, sem prejuízo da faculdade reconhecida aos Requerentes pelo n.º 2, do art.º 99.º, do mesmo Código.
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5.3. Os termos da presente decisão obstam a que este Tribunal proceda à apreciação de qualquer outra excepção (designadamente incompetência em razão do território e ilegitimidade dos Requerentes) ou nulidade (designadamente de ineptidão do requerimento inicial) arguidas pelos Requeridos.
6. Decisão
Termos em que, nos termos dos fundamentos supra consignados, julga-se este Tribunal - Juízo Central Cível — incompetente, em razão da matéria, para o julgamento da presente causa e, por conseguinte, absolvem-se todos os Requeridos da instância.
Custas, pelos Requerentes (art.º 527.º, do CPC e 6.º, do RCP), incluindo quanto a custas de parte.
Valor do procedimento cautelar (art.º 297.º, do CPC): €200.000,00.
Registe e notifique (Requerentes, Requeridos e Ministério Público), sem prejuízo de, assim o pretendendo, os Requerentes podendo requerer, após trânsito, a remessa dos autos para o Juízo de Comércio competente, nos termos e prazo previstos no art.º 99.º, n.º 2, do CPC.”

Desta decisão apelou B… e marido oferecendo alegações e formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Os pedidos formulados na providência cautelar assentam e têm subjacentes a prática de actos e contratos simulados concertadamente praticados pelos Requeridos pessoas e seus pais e que têm natureza exclusivamente civil, sendo que, dentro dessa concertação de actos estrategicamente planeados, os Requeridos pessoas e seus pais utilizam sociedades como instrumentos para levaram a bom termo as suas intenções ilegais e abusivas;
2. Os aumentos de capital pretendidos pelos Requeridos pessoas nas sociedades requeridas inserem-se na estratégia concertada dos pais da Recorrente (G… e K…) e dos filhos ora requeridos (G.., D…, F… e E…) de, intencional, voluntária e conscientemente, mas de forma dissimulada, procederem à doação de todos os bens dos pais da Recorrente aos requeridos pessoas, sob uma forma hábil e de aparência legal, visando excluir e deserdar as filhas B… (ora recorrente) e L…;
3. Os pais da Recorrente e os Requeridos, em concertação de intenções e com o objectivo comum de esconderem as doações feitas pelos pais da Recorrente aos Requeridos seus irmãos, de forma subtil, estão a praticar actos que, sob uma aparência legal, escondem a intenção de doar bens acrescida da intenção de retirarem subtilmente tais bens da esfera jurídica dos pais da Recorrente de maneira a que, na data da morte dos pais, não haja vestígios das doações feitas e os requeridos conseguirem, com isso, o objectivo de sonegarem à herança dos pais, para efeitos de avaliação real das doações, tais bens e, com tais actos simulados, conseguirem o objectivo dos Requeridos e dos seus pais de darem participações sociais representativas das empresas dos pais e deserdarem as filhas e irmãs, impedindo-as de quinhoarem nas participações sociais nas sociedades H…, SA e I…, SGPS, SA.
4. Os aumentos de capital social que os Requeridos pessoas pretendem levar a efeito, visam unicamente satisfazer os interesses privados e particulares dos Requeridos pessoas, enquanto instrumento próprio de desvalorizarem o valor das doações que lhes foram feitas pelos seus pais H… e K… e, simultaneamente, desvalorizarem, dentro das empresas, o valor do património pessoal que os RR H… e mulher K… transferiram para estas sociedades.
5. Os Requeridos pessoas têm a intenção, de, à data da morte dos seus pais, estes não tenham quaisquer bens nem nenhuma participação social em nenhum sociedade e, através disso, serem eles os únicos a herdarem os bens dos pais.
6. O centro nuclear na origem da providência cautelar, é a fraude legal que os Requeridos pessoas pretendem fazer à lei sucessória através do recurso à realização de aumentos de capital nas 3 sociedades com o objectivo de defraudar os direitos de herdeiras da Recorrente e da sua outra irmã, de nome L….
7. Os Requeridos, com a anuência e beneplácito dos seus pais, pretendem, de forma consciente, intencional, em congregação de esforços, actos e objectivos, anularem ou desvalorizarem substancialmente o valor dos bens que lhes foram doados pelos Seus pais G… e K….
8. Os Requeridos pessoas, em união de esforços e colaboração, pretendem modificar os valores das participações sociais nas sociedades por forma de diluírem o património doado pelos seus pais G… e K…, apropriando-se os RR G…, E…, F… e D… desse mesmo património de uma forma ilegal, embora com contornos em que existe aparência da lei, mas há, na realidade, a ofensa da lei e dos princípios norteadores que essa mesma lei protege e quer proteger.
9. Qualquer deliberação de aumentos de capital nas sociedades H…, SA, I…, SGPS, SA e J…, Ldª, através do expediente de movimentos contabilísticos sob a capa de entradas em dinheiro por parte dos Requeridos pessoas donatários, representa a violação dos princípios de ordem pública, nos princípios orientadores do direito sucessório, são ofensivos dos bons costumes, e representam uma lesão grave e irreparável à Recorrente.
10. Os Requeridos pessoas pretendem somente aproveitarem a realização de aumentos de capital nas sociedades para atingir o fim que é o de, através de aumentos de capital social, relativizarem e reduzirem drasticamente o valor dos bens doados, para evitar que o valor real que os bens têm hoje, exista à data da morte dos pais.
11. A nulidade do negócio jurídico por o seu objecto ser contrário à lei, à ordem pública e ou ofensivo dos bons costumes (artº 280º CC) foi o mecanismo de protecção legal que o legislador encontrou para garantir o equilíbrio das normas e princípios que regulam cada um dos livros que compões o Código Civil, incluindo o do direitos das sucessões.
12. O fim prosseguido nesta providência cautelar é um fim civil em que as Requeridas sociedades só intervêm porque os seus sócios são precisamente os Requeridos pessoas que se conluiaram com os seus pais para prosseguirem o fim ilegal que pretendem e que defrauda objectivamente o próprio ordenamento jurídico no que concerne ao direito das sucessões.
13. O aparecimento de sociedades requeridas na providência é sequencial e efeito das estratégia traçada pelos requeridos pessoas para defraudarem a lei e o ordenamento jurídico.
14. O senhor juiz a quo viola directamente o disposto nos artigo 64º, 65º e 82º-3 do Código do Processo Civil que diz que “quando se cumulem… pedidos entre os quais haja uma relação de dependência ou subsidiariedade, deve a acção ser proposta no tribunal competente para a apreciação do pedido principal.
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exªs sabiamente saberão suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso, julgando-o procedente, com as consequências legais.
J U S T I Ç A

Foram apresentadas Contra-alegações por E… e OUTROS, terminando do seguinte modo:
A. A decisão proferida de 1.ª Instância, respeitou todos os determinativos processuais e substantivos, e, como tal, deve ser mantida in totum.
B. Aliás, apreciando-se criteriosamente o mesmo Recurso interposto pelos Requerentes, e cotejando os pedidos formulados na sua p.i, facilmente se conclui ser o objecto da mesma claramente o impedir o aumento de capital das sociedades H…, S.A, I… SGPS, S.A e J… Lda., ora Recorridas.
C. É pois assim mais que evidente, o objecto do presente procedimento cautelar, ser a eventual deliberação social a ser tomada pela assembleia geral, respeitante a um aumento do capital social, e que os Requerentes pretendem, por esta via, não ocorra.
D. Tal consta clara e inequivocamente expresso nos pedidos formulados na p.i e que foram, respectivamente:
1) que os Requeridos G…, E…, F… e D… se abstenham de deliberar, realizar ou registar qualquer aumento de capital social nas sociedades H…, S.A, I…, SGPS, S.A e J…, Lda., que distorça, desvalorize ou por qualquer meio, forma ou processo tenha subjacente e revele a forma intencional de provocar a redução do valor patrimonial dos bens e participações sociais doados por G… e K… para obterem proveito pessoal contrário à ordem pública e aos bons costumes, através do reforço de participação social nestas sociedades de cada um dos Requeridos até decisão final da sentença que venha a ser proferida na acção por simulação que a Requerente vai instaurar contra todos os Requeridos;
2) sob pena de cometerem o crime de desobediência, previsto no artigo 348.º do Código Penal, em caso de desrespeito à decisão proferida na providência cautelar.
3) Que as Requeridas H…, S.A e I…, SGPS, S.A e J…, Lda., G…, E…, F… e D… se abstenham de através dos seus respectivos representantes legais, administradores ou gerentes, accionistas ou sócios, de decidir, deliberar, realizar, executar ou registar qualquer aumento de capital social quer na sua própria sociedade Requerida, quer nas sociedades em que sejam ou possam vir a ser accionistas ou sócias e sejam agora Requeridas nesta providência cautelar, que tenham subjacentes os factos e o direito invocados pela Requerente e que distorçam, desvalorizam ou por qualquer meio, forma ou processo tenham subjacente e revelem a forma intencional dos Requeridos G…, E…, D… e F… de provocar a redução do valor patrimonial dos bens e participações sociais doados a estes por G… e K… para obterem proveito pessoal contrário à ordem pública e aos bons costumes, através do reforço de participação social nestas sociedades de cada um dos Requeridos até decisão final da sentença que venha a ser proferida na acção por simulação que a Requerente vai instaurar contra todos os Requeridos;
4) o não registo na conservatória do registo comercial de qualquer aumento de capital nas sociedades H…, S.A, I…, SGPS, S.A e J…, Lda., deliberado e realizado nas formas e circunstâncias referidas na alínea anterior, até decisão final que venha a ser proferida na acção principal;
5) a suspensão de eficácia de todo e qualquer efeito jurídico de qualquer aumento de capital social que as sociedades H…, S.A, I…, SGPS, S.A e J…, Lda, pretendam registar ou seja registado na conservatória do registo comercial, deliberado e realizado nas formas e circunstâncias referidas na alínea a) até decisão final que venha a ser proferida na acção principal”.
E. Pelo que, por leitura dos pedidos formulados se constata a natureza e âmbito dos mesmos, que o é e tão só o impedir o aumento de capital das sociedades requeridas, e pois assim,
F. O presente processo cautelar tem a ver fundamentalmente, com a pretensão dos AA. de impedir que, nas três assembleias gerais marcadas das referidas sociedades requeridas, respectivamente H…, S.A, I…, SGPS, S.A e J…, Lda. deliberem e no interesse e sentido das mesmas, um necessário aumento de capital, e que nos termos objectivos dos pactos sociais e respectiva legislação comercial do CSC, é direito intrínseco e exclusivo das mesmas sociedades.
G. A douta decisão proferida firmou-se pois assim nos preceitos normativos vigentes, como não poderia deixar de ser, e pois assim, nos termos do art. 40.º e 80.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei Da Organização Do Sistema Judiciário), os tribunais judiciais têm competência meramente subsidiária, julgando as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e pois assim preparam e julgam processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais de competência especializada.
H. Por sua vez, os Juízos de Comércio, são tribunais de competência especializada em razão da matéria, (arts. 65.° do Cód. Proc. Civil, e 128.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto), tendo vocação exclusiva e limitada ao conhecimento das questões jurídico-comerciais previstas no art. 128.º, isto é: os Tribunais de Comércio não só não têm vocação generalista, como não se pretende que na sua competência se absorvam matérias não reguladas pela Lei Comercial
I. Assim sendo, os juízos de comércio têm competência para, entre outras, julgar acções de declaração de inexistência e nulidade ou anulação do contrato de sociedade, acções relativas ao exercício de direitos sociais, acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais, acções a que se refere o art. 128.º do Código do Registo Comercial, e as quais estão presentes pois in casu.
J. Assim, para decidir a questão de determinação do Tribunal competente para a presente providência, a pedra de toque é formada assim pelo pedido formulado pelos Requerentes, ou seja, in casu, um aumento de capital social de três sociedades comerciais distintas,
K. Ora, salvo o devido respeito por outra melhor opinião, tal objecto, como se constata, está assim contido na previsão do preceito legal supra mencionado, e pois assim o é então da competência do Tribunal do Comercio e não dos Tribunais Judiciais.
L. Assim sendo, o litigio em apreço, resulta prima facie de uma deliberação social a ocorrer, e enquadra-se pois assim em mais que uma alínea do preceito em referencia, nomeadamente nas alíneas b), c), d) e h, pelo que é inequívoca a competência dos juízos de Comércio competentes.
M. Crê-se pois assim estarmos, in casu, perante uma questão meramente comercial, tratam-se de actos materialmente sociais, consubstanciados no exercício dos respectivos direitos sociais, na medida em que emerge única e exclusivamente de uma deliberação social a ocorrer, e funda-se pois assim num aumento de capital social igualmente a ser ainda aprovado, e pois assim à data ainda não sucedeu.
N. Face ao supra exposto duvidas não subsistem de que é competente para conhecer o litígio em apreço, a jurisdição dos tribunais do comércio, tendo em conta a natureza da questão principal presente nestes autos, e os pedidos formulados, e uma vez que, para as questões a dirimir relativamente às mesmas (e aos seus sócios e accionistas) o Tribunal competente, crê-se, é o do Comercio da respectiva sede social, que neste caso é então Santarém.
O. Alias, e como bem refere a douta sentença, entendimento que igualmente perfilhamos: “Os aumentos de capital pretendidos realizar pelos sócios de uma sociedade constituem o exercício dos respectivos direitos sociais e, por seu turno, as deliberações tomadas em assembleia da sociedade de aprovação ou rejeição dos referidos aumentos de capital constituem deliberações sociais. Por conseguinte, os actos relativamente aos quais os Requerentes pretendem ver apreciada a sua legalidade (ou nulidade) e os pedidos formulados no sentido de os Requeridos se absterem de praticar constituem actos materialmente sociais.”
P. E ainda no dizer da mesma decisão, como esta e bem refere: “São os próprios Requerentes que expressamente enunciam que a sua pretensão funda-se na prática desses actos sociais – e, portanto pretendendo a anulação e/ou sem eficácia jurídica de tais deliberações), sendo os no sentido da abstenção da pratica de direitos sociais pelos sócios bem como de suspensão de deliberações sociais (ou prevenção da possibilidade da sua deliberação), pelo que expressamente abrangida pela competência atribuída aos Juízos de Comércio nas alíneas c) e d), bem como, de acordo com o pedido formulado de ser obstado o ato de registo comercial de aumento de capital, ao abrigo da al. H), todas do art.º 128.º, da LOSJ.”
Q. Tanto assim é que, e porque a Recorrente. esposa é accionista minoritária somente na sociedade J…, Lda , o que esta incontroversamente pretende é, objectivamente, a não realização da assembleia geral para a qual foi devidamente convocada, com a referida ordem de trabalhos, e pois sim é irrefutável o supra exposto, e sendo que, neste caso, por razoes mais que óbvias , trata-se de matéria a ser dirimida então no referido Tribunal de Comercio de Santarém.
R. Assim, crê-se estar-se incontroversamente perante a incompetência material do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira para apreciar a matéria em causa, e o que se crê também, por outra excepção, neste caso a territorialidade porquanto, o interesse maioritário neste caso é das sociedades, e se pretende evitar tais deliberações de aumento de capital, e têm estas a sua sede em Santarém, e não em Santa Maria da Feira, tanto mais que, trata-se de questão especifica das sociedades, onde os sócios e accionistas têm um interesse societário que não eminentemente pessoal apenas reflexamente o têm, bastando referir que, por exemplo, na sociedade H…, S.A a principal detentora que é a sociedade I… SGPS, S.A é largamente maioritária.
S. De realçar que, os Requerentes, ao agirem desta forma, coligam as mesmas sociedades como se todas elas não tivessem personalidade jurídica distinta, e pois assim é que, em face da convocatória o ser obrigatoriamente diversa, não se crê que processualmente as mesmas possam figurar no presente processo cautelar, pois cada uma juridicamente tem a sua personalidade, está sujeita aos respectivos determinativos societários, e não podem nem devem configurar num aglomerado, como o pretendem os Requerentes.
T. Face ao supra exposto, e por adesão plena aos fundamentos aduzidos em 1.ª instância, ocorre inequivocamente a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal conducente à absolvição da instancia dos Réus nos termos do disposto nos arts. 96.º a), 97.º, 98.º, 99.º, 576.º n.º2, 577.º a), 578.º todos do CPC, pelo que,
U. Bem andou a douta sentença ao decidir Julgar este Tribunal – Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira – incompetente, em razão da matéria, para o julgamento da presente causa e, por conseguinte, absolver todos os Requeridos da instância, devendo pois assim a mesma decisão manter-se in totum, porque firmou-se em preceitos legais, estando elaborada de acordo com os mesmos.
Pelo supra exposto, e pelo que doutamente for suprido por Vossas Excelências, deve o presente Recurso ser considerado improcedente, mantendo-se a douta decisão recorrida, porque está elaborada de acordo com os normativos legais vigentes e assim não ofende qualquer preceito de direito substantivo, devendo pois assim ser mantida e consequentemente não ser anulada, com o que se fará inteira JUSTIÇA!
Cumpre agora decidir.
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Delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações – artigo 635 do Código de Processo Civil – das formuladas pelos Apelante resulta que as questões colocadas à nossa apreciação são as de saber se a decisão recorrida deve ser revogada declarando-se o tribunal recorrido competente em razão da matéria, ou se, pelo contrário, a decisão recorrida deve ser mantida.
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Vejamos então.
Como se disse, a questão que se coloca consiste, assim, em apurar se a jurisdição comum é competente em razão da matéria para preparar e julgar o presente procedimento cautelar (enquanto preliminar da respectiva acção – art. 364 n.º 1 do C. P. Civil) ou se a mesma está afecta a jurisdição especializada.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da acção e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição [Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pág. 91. Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço electrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.].
Como é sabido, a competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstracta de um tribunal designa a fracção do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada acção, significa que a acção cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstracta do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia (de subordinação ou dependência) entre elas. Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito (ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 195. JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil, vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.).
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada. Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo excepção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas.
Nos termos do art. 64º CPC são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, como se prevê no art. 96º alínea a) do CPC.
A incompetência absoluta do tribunal é uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância ou, no caso de ter sido decretada depois de findos os articulados, a remessa dos autos ao Tribunal competente, desde que o autor tal requeira, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão e o réu esteja de acordo sobre o aproveitamento dos articulados (art. 99 n.º 1 e 2 do CPC).
Temos assim que recorrer à Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto (Lei da Organização Judiciária) para averiguar se, no caso vertente, existe alguma jurisdição especializada.
Ora, como bem se diz na decisão recorrida “nos termos do disposto no art.º 40.º, n.º 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, alterada pela Lei n.º 40-A/2016 de 22 de dezembro), “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
De acordo com o disposto no art.º 79.º do mesmo diploma, “os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca”, estatuindo o art.º 80.º, n.º 1 uma competência residual para os tribunais de comarca na preparação e julgamento dos “processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”, estipulando o n.º 2, que “os tribunais de comarca são de competência genérica e de competência especializada”.
À data da instauração da presente acção, a redacção do art.º 81.º, n.º 1, previa o desdobramento do Tribunal de Comarca em juízos centrais, uns de competência genérica e outros de competência especializada [alínea a)] e juízos locais. De acordo com a alteração introduzida pela citada Lei n.º 40-A/2016, os Tribunais de Comarca passaram agora a ser desdobrados em juízos, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade, nomeadamente os juízos centrais cíveis [al. a)] e os juízos de comércio (al. i)].
Concretamente quanto aos juízos centrais cíveis, estabelece o art.º 117.º, da LOSJ serem competente apenas para “a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00; b) Exercer, no âmbito das acções executivas de natureza cível de valor superior a €50.000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal; c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam acções da sua competência; d) Exercer as demais competências conferidas por lei”.
Daqui resulta, designadamente tendo por base o citado art.º 117.º, que a competência atribuída aos juízos centrais cíveis é residual quanto às acções declarativas cíveis de processo comum de valor superior a €50.000,00 [al. a)], não estando prevista a esses juízos outra competência de forma expressa [al. d)], desde que a competência para o julgamento da concreta matéria não esteja exclusiva e expressamente atribuída a outro Tribunal (in casu, a outro juízo de competência especializada).
Quanto aos juízos de comércio, dispõe o art.º 128.º, n.º 1, da mesma LOSJ competir aos mesmos preparar e julgar “a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras”.
Aqui chegados, importa agora aplicar os princípios acima referidos e estabelecer o tribunal competente, em função dos pedidos formulados e da causa de pedir dos mesmos.
Os pedidos formulados, e já acima transcritos, pretendem impedir “os requeridos de deliberar, realizar ou registar qualquer aumento de capital social” nas sociedades indicadas no requerimento inicial, e impedir que “as sociedades indicadas no requerimento inicial se abstenham de através dos seus respectivos representantes legais, administradores ou gerentes, accionistas ou sócios, de decidir, deliberar, realizar, executar ou registar qualquer aumento de capital social quer na sua própria sociedade Requerida, quer nas sociedades em que sejam ou possam vir a ser accionistas ou sócias e sejam agora Requeridas nesta providência cautelar”, ou seja, visam impedir que sejam tomadas deliberações sociais de aumento de capital.
Ora, como bem se diz na decisão recorrida “os aumentos de capital pretendidos realizar pelos sócios de uma sociedade constituem o exercício dos respectivos direitos sociais e, por seu turno, as deliberações tomadas em assembleia da sociedade de aprovação ou rejeição dos referidos aumentos de capital constituem deliberações sociais. Por conseguinte, os actos relativamente aos quais os Requerentes pretendem ver apreciada a sua legalidade (ou nulidade) e os pedidos formulados no sentido de os Requeridos se absterem de praticar constituem actos materialmente sociais”.
É o que resulta dos artigos 246 e 265 e seguintes do Código das Sociedades Comerciais, acrescentamos nós.
Sendo assim, competindo aos juízos de comércio, nos termos do art. 128 n.º 1 alíneas c) e d), respectivamente, da LOSJ “As acções relativas ao exercício de direitos sociais” e as “As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais”, também os procedimentos cautelares prévios a tais acções terão de ser intentados no tribunal de comércio por ser o competente em razão da matéria.
Improcede assim o recurso, sendo de confirmar a decisão recorrida.
***
Decisão:
Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão apelada.
Custas pelos apelantes.

Porto, 14 de Novembro de 2017.
Estelita de Mendonça
Anabela Dias da Silva
Ana Lucinda Cabral