Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4507/13.1TBMTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
AUDIÊNCIA PRÉVIA
CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
Nº do Documento: RP201511124507/13.1TBMTS-A.P1
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas al.s a), b), c) e g) do nº l do art.º 591º do Código de Processo Civil.
II - Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 4507/13.1TBMTS-A.P1 (apelação)
Comarca do Porto – Inst. Central – 1ª Secção de Execução

Relator: Filipe Caroço (por vencimento)
Adj. Desemb. Pedro Martins
Adj. Desemb. Pedro Lima Costa[1]

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, SA., instaurou no dia 10.7.2013 execução para pagamento de quantia certa contra C…, SA., a fim de cobrar a quantia de € 620.617,74, acrescida de juros de mora à taxa supletiva legal prevista para as dívidas comerciais, juros esses contados sobre o capital de € 575.293,56 desde a referida data até integral pagamento.
No requerimento executivo invocam-se duas garantias bancárias, datadas de 6.8.2007 e de 25.8.2009, em que o executado se compromete a pagar verbas à exequente em vez da sociedade D…, SA., no âmbito de dois contratos de compra exclusiva com mútuo celebrados entre a exequente e esta sociedade.
No dia 16.10.2013, já ao abrigo do novo Código de Processo Civil[2], aprovado pelo art.º 1 da Lei 41/2013, de 26 de junho, o executado deduziu os embargos que constituem o presente apenso A, com o seguinte pedido:
Termos em que deverá ser julgada procedente a presente oposição, por provada e, consequentemente, ser o Banco Executado absolvido do pedido nesta execução.
Para o efeito, alegou --- aqui sumariamente --- que o acionamento das garantias bancárias visa defraudar o executado, uma vez que têm subjacente o incumprimento de contratos de compra exclusiva com mútuo gratuito (juntos como documentos 1 e 2 e datados de 24.10.2007 e 3.8.2009), os quais já seriam contratos inusitados no comércio jurídico, mas que foram feitos, ou aparentados, para enganarem o executado. São contratos simulados, celebrados pela sociedade D…, que veio a ser declarada insolvente em 16.7.2012, na certeza de que não foram emprestadas pela exequente a essa sociedade as verbas de € 500.000,00 e de € 200.000,00.
Se tivessem existido, tais empréstimos seriam nulos por vício de forma, pois a lei civil exige escritura pública ou documento autenticado, na certeza de que por natureza um mútuo gratuito não é um contrato mercantil.
Sendo os alegados mútuos inexistentes ou nulos, as garantias bancárias são inválidas. Têm natureza de fiança bancária e são meramente acessórias da obrigação principal, ficando dependentes da existência e validade das obrigações contraídas pela sociedade D…, nos termos dos art.ºs 627º, nº 1 e 632º, nº 1, do Código Civil.
Essa natureza não é afastada pela menção, nas garantias, de pagamento à primeira solicitação.
Não pode produzir efeito a declaração de renúncia aos meios de defesa, declaração que consta nas garantias, pois é nula a cláusula do contrato de fiança em que o fiador se obrigue a não opor ao credor os meios de defesa que tem o devedor.
É legítima a recusa de pagamento da garantia em caso de ausência manifesta de direito do beneficiário, uma vez que tal pagamento corporizaria enriquecimento sem causa, sendo operante a exceção de fraude manifesta ou abuso evidente, além de se poder objetar ao beneficiário o abuso de direito.
O executado deve ter, nestes autos, a possibilidade de provar que está a ser vítima de tentativa de fraude manifesta, pelo que requer, entre outros meios de prova testemunhal e de depoimento de parte da exequente, que a exequente apresente cópias dos cheques que atestem o pagamento de € 500.000,00 e de € 200.000,00 à sociedade D…, respetivamente em 24.10.2007 e 3.8.2009, com extratos bancários redundantes seja do lado da conta bancária da exequente seja do lado da conta bancária da sociedade D…, bem como que sejam exibidos elementos da contabilidade desta última sociedade documentando aqueles recebimentos.
Liminarmente recebidos os embargos, a exequente apresentou contestação onde conclui pela procedência total da pretensão executiva e reclama a condenação do exequente em multa e a pagar-lhe indemnização não inferior a € 50.000,00 por litigância de má fé, já no despacho saneador.
Para tal, alega essencialmente que o executado litiga de má fé, nomeadamente porque antes de ter sido instaurada a execução já tinha declarado à exequente que “o C… aceita e reconhece a autonomia das garantias bancárias prestadas, não sendo sua intenção contestar ou por qualquer forma opor-se à sua execução”.
A exequente emprestou efetivamente as quantias referidas nos contratos de 24/10/2007 e 3/8/2009.
A exequente junta cópia de cheques de € 474.845, € 25.155 e € 17.732 e cópia de extrato da sua conta bancária que alude a tais cheques, tendo-se destinado os dois primeiros cheques a satisfazer os € 500.000 emprestados, ao passo que o cheque de € 17.732 se destinou a pagar a diferença entre os € 200.000 emprestados no segundo contrato e créditos que a exequente tinha junto da sociedade D…, nos valores de € 95.468 e € 86.800.
Os contratos não tinham de ser celebrados por escritura pública, sendo as duas garantias instrumento suficiente para a cobrança da verba exequenda, além de não ter a exequente de provar o que quer que seja para as executar. São garantias bancárias autónomas, com a cláusula “on first demand” e não meras “fianças bancárias”, sendo que não há qualquer invalidade ou fraude nos contratos de mútuo que estão na sua base.
As partes quiseram, assim, excluir qualquer condição para o pagamento das quantias garantidas. Com a sua subscrição, a executada abdicou de discutir o cumprimento ou incumprimento do contrato, sendo suficiente, para ficar obrigado a pagar as quantias em causa, a simples interpelação.
O executado apresentou resposta relativamente ao pedido de condenação por litigância de má fé, onde considerou que o mesmo deve improceder.
O executado prestou caução, pelo que a execução foi suspensa no dia 17.1.2014.
O tribunal recorrido designou data para a realização de audiência prévia nos seguintes termos:
«Para a realização de audiência prévia, nos termos e para os efeitos do art. 591.°, n.° 1, als. a) a d), do NCPC, designo o dia 03.04.2014, pelas 14h30m.»
Na data agendada iniciou-se aquela audiência, mas, a pedido das partes, foi suspensa a instância, tendo em vista a sua conciliação, ao abrigo do art.º 272º, nº 4, do Código de Processo Civil.
Perante a informação de que não tinha sido possível o acordo das partes, no dia 9.6.2014 foi proferido o seguinte despacho:
«Não obstante ter sido inicialmente agendada audiência prévia, entende o tribunal que, considerando, por um lado, que se frustrou a tentativa de conciliação --- uma das razões da convocação de audiência prévia ---, e, por outro lado, que, em face dos factos alegados e comprovados nos autos, o estado do processo permite, sem necessidade de mais provas, a apreciação total do mérito dos presentes embargos, o qual foi já discutido nos articulados, dispensa-se a realização/continuação da audiência prévia, nos termos do art. 593.°, n.° 1, do NCPC, por referência aos arts. 591.°. n.° 1. al. d), e 595.° do NCPC.» (sic)
Passou-se então, sem mais, na mesma peça processual, a proferir despacho saneador-sentença, no qual se julgaram os embargos de executado totalmente improcedentes.
*
Inconformado, o executado apelou do despacho saneador-sentença, a fim de ser revogado e ser ordenado o prosseguimento do incidente de embargos de executado, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:

O executado apresenta as seguintes conclusões:
«A. O apelante prestou, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 733 n° 1 al. a) do NCPC, caução mediante fiança bancária no âmbito dos embargos de executados à margem melhor identificados, com vista à suspensão da execução até ao trânsito em julgado da decisão que pudesse vir a ser proferida.
B. Quanto a este facto, dispõe o n° 6 do art. 733 do NCPC “Quando seja prestada caução nos termos do n° 1, aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos n°s 3 e 4 do art. 650”.
C. Ora o supra referido artigo refere no seu n° 3 “se a caução tiver sido prestada por fiança, garantia bancária ou seguro caução, a mesma mantém-se até ao trânsito em julgado da decisão final proferida no último recurso interposto, só podendo ser libertada em caso de absolvição do pedido ou tendo a parte sido condenada, provando que cumpriu a obrigação no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado”.
D. Assim e de acordo com o disposto nos artigos supra referidos, em conjugação com o art. 647 n° 2, ao presente recurso deve ser atribuído efeito suspensivo, decorrente da caução prestada anteriormente, nos termos e para os efeitos do art. 733 n° 1 al. a) do NCPC.
E. O Mmo Juiz a quo agendou uma audiência prévia, nos termos e para os efeitos do art. 591 n° 1, als. a) a d) do NCPC, para o dia 3/4/2014, a qual, apesar de ter sido iniciada, foi adiada com o intuito de as partes chegarem a acordo.
F. A frustração desta tentativa de conciliação levou a que o Mmo Juiz a quo considerasse em 2/6/2014 que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais prova, a apreciação total do mérito da causa, tendo nesse momento dispensado a realização/continuação de audiência prévia, e, sem mais, proferido a douta sentença de que ora se recorre.
G. Decisão essa que surpreendeu o ora apelante, uma vez que dos autos não decorriam quaisquer indícios que o Mmo Juiz iria agir deste modo.
H. Se os autos permitiam a decisão do mérito, sem mais qualquer acto, porque foi agendada a primeira audiência prévia, ao invés de se ter proferido despacho de dispensa da mesma?
I. O certo é que o apelante considera que os autos não permitiam a tomada desta decisão surpresa e esse facto é confirmado pela própria sentença.
J. Isto porque a página tantas o Mmo Juiz a quo refere “Acontece que o que está aqui em causa para apreciação neste processo não é se a alegação da embargante corresponde ou não à verdade – o que exigiria produção de prova – (…)” (sublinhado e negrito nosso).
K. E um pouco mais à frente o Mmo Juiz a quo refere mais uma vez “(...) exige-se um mais, o qual, deverá ser traduzido pela posse por parte do garante de elementos de prova (no essencial documental) consistentes que tornem líquida/patente a verificação daqueles fundamentos de recusa”.
L. Para posteriormente concluir (...) “entende o tribunal que a recusa da embargante em pagar o valor das garantias apenas seria legítima se alegasse – e depois provasse – estar na posse de tais provas patentes das excepções invocadas” (sublinhado e negrito nossos).
M. Apesar de o Mmo Juiz a quo, teoricamente, aceitar que o apelante deveria ter produzido prova conducente à confirmação da sua alegação, certo é que não deu azo a que tal facto acontecesse.
N. Isto é, apesar das partes terem apresentado, nos seus requerimentos, a prova testemunhal e documental que queriam ver produzida em sede de audiência de julgamento, o certo é que esta prova nunca chegou a ser produzida.
O. Não só não foi permitido às partes ouvirem as suas testemunhas, como também não foi possível dar seguimento ao peticionado pelo apelante no seu requerimento de oposição à execução relativamente ao pedido de notificação do administrador de insolvência de D…, SA, para juntar extractos da conta bancária daquela sociedade, para se fazer prova ou não da existência da entrada dos valores alegados na conta da insolvente.
P. Questão de sobeja importância, que permitiria in fine provar a simulação ou não dos contratos de mútuo gratuitos, o que permitiria aferir pela legitimidade ou não do pedido preconizado pelo exequente.
Q. A este propósito pronuncia-se Jorge Miranda e Rui Medeiros que resumem o alcance do princípio do contraditório nos seguintes termos: “Segundo o Tribunal Constitucional, do conteúdo do direito de defesa e do princípio do contraditório resulta, prima facie, que cada uma das partes deve poder exercer uma influência efectiva no desenvolvimento do processo, devendo ter a possibilidade, não só de apresentar as razões de facto e de direito que sustentam a sua posição antes do tribunal decidir questões que lhe digam respeito, mas também de deduzir as suas razões, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e tomar posição sobre o resultado de uma e de outras (acórdãos 1185/96 e 1193/96)” (Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, tomo I, p. 194).
R. Mal andou o Mmo Juiz a quo ao tomar esta decisão, porquanto e pelo que se verifica pelo texto da sentença, o próprio teve dúvidas no momento do proferimento de tal decisão. Dúvidas essas que, a existirem, teriam que ter sido colmatadas pela realização de audiência de julgamento e produção da prova indicada pelas partes e por toda a que se viesse a mostrar necessária.
S. Com a não produção de prova testemunhal, proferindo o tribunal a quo a decisão de mérito agora recorrida, apenas com os elementos existentes nos articulados, foi impedida a recorrente de cumprir o ónus probatório relativo aos factos alegados, conforme lhe competia, tendo o Mmo Juiz a quo violado o disposto no art. 595 n° 1 al. b) do CPC.
T. Pelo que deve tal decisão ser revogada por ilegal e determinado o prosseguimento do processo com vista à delimitação dos temas do litígio e posterior produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento.
U. Quanto a este ponto pronunciou-se o Supremo Tribunal Administrativo em 23/9/2004 “O conhecimento do mérito da causa no despacho saneador não pode ocorrer quando do processo não constem todos os elementos de prova essenciais a uma decisão segura e suficientemente fundamentada, o que sucederá, em especial, quando o processo carece de ulterior instrução e actividade probatória, sendo que, no âmbito de aplicação do disposto na al. b) do n° 1 do art. 510 do CPC, a actuação do juiz se deve nortear por um critério de extrema prudência, por forma a obviar a decisões precipitadas”.
V. Mais se pronuncia a jurisprudência, nomeadamente o acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 20/12/2012 “Tanto mais que tendo considerado oportuna a realização de uma tentativa de conciliação nos termos do art. 509 do CPC, a designação desta, não deixou transparecer a sua intenção de conhecimento imediato do pedido, caso em que poderia realizá-la no âmbito da uma audiência preliminar e, nessa sede, facultar às partes também a discussão de facto e de direito sobre o mérito da causa (art. 508-A n° 1 als. a) e b) do CPC). E realizando tal tentativa de conciliação, a Exma Juíza proferiu decisão sem anunciar a sua intenção de conhecer imediatamente do mérito da causa. A sentença assim proferida constituiu, sem dúvida, uma decisão surpresa. A violação do contraditório inclui-se na cláusula geral sobre as nulidades processuais constante do art. 201 n° 1 do CPC (a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influenciar a decisão da causa). E dada a importância do contraditório é indiscutível que a sua inobservância pelo Tribunal é susceptível de influir no exame ou decisão da causa” (sublinhado e negrito nosso).
W. A prolação da sentença em sede de despacho saneador sem que tenha sido dado conhecimento da intenção dessa prolação às partes e sem lhes dar oportunidade de sobre ela se pronunciarem, constitui decisão-surpresa, a qual gera nulidade processual nos termos do art. 201 n° 1 do CPC.
X. Devendo para tanto ser anulada a sentença recorrida e, em consequência, determinar a baixa do processo à 1a instância para que aí se dê cumprimento ao princípio do contraditório e após se determine o prosseguimento dos autos, conforme for entendido de direito.
Y. Ainda em sede de sentença, vem o Mmo Juiz a quo dar como assente que subjacente à garantia bancária ……… encontra-se o documento escrito particular assinado pelos contraentes intitulado “contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito”, junto aos autos a fls. 15 a 20. Mais dá como assente que subjacente à garantia bancária …/../….. encontra-se o documento escrito particular assinado pelos contraentes intitulado “contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito”, junto aos autos a fls. 21 a 26.
Z. No entanto e salvo o devido respeito por opinião diversa, considera o apelante que os documentos juntos aos autos pela apelada não podem conduzir a esta decisão sem mais discussão, uma vez que não só a apelada não alega nem junta em sede de requerimento executivo os contratos supra referidos, como também da leitura dos mesmos não decorre explicitamente que os mesmos estejam subjacentes a cada uma das garantias bancárias.
AA. Ao contrário: da leitura do contrato verifica-se que o exequente, ora apelado, veio pedir a execução da garantia bancária …….. e para tanto junta como documento 1 a referida garantia, com data de emissão de 6/8/2007, sem fazer qualquer referência ao contrato de mútuo que alegadamente a mesma garante, referindo apenas que se tratava de contrato de mútuo gratuito outorgado em 24/10/2007.
BB. Ora, pela leitura atenta do referido contrato verifica-se que efectivamente o mesmo foi garantido por garantia bancária, mas não uma só, conforme se alega na execução. O contrato refere na sua cláusula 8a, ponto 2 “As prestações serão tituladas por duas garantias bancárias (...)”.
CC. Mais, a garantia bancária ……… foi emitida em 6/8/2007 e o contrato de mútuo gratuito que alegadamente esta garante tem data de 24/10/2007: como é possível, então, que no texto da garantia bancária se diga expressamente “tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de 500.000€?”.
DD. Levanta-se pois a dúvida sobre se a garantia bancária executada corresponde de facto àquele contrato de mútuo datado de 24/10/2007. Dúvida essa que os autos não tiveram possibilidade de ver respondida, porquanto não foi permitida a produção de prova e que é adensada, quando ao analisarmos o segundo cotrato de mútuo gratuito, junto aos autos pelo apelante no seu requerimento enviado aos autos em 16/10/2013, com a referência 14742837, se verifica que o mesmo refere no considerando b) que foi celebrado em 8/6/2006 um contrato de compra e venda exclusiva com mútuo gratuito no valor de 500.000€, que foi posteriormente renegociado.
EE. Também este garantido por uma garantia bancária, que não se sabe onde está, qual é ou se ainda estará válida.
FF. Factos dos quais foram dados conhecimento aos autos, pelo que o Mmo Juiz a quo tinha obrigação de ter conhecimento destas questões, devendo ter suscitado essa dúvida, ao invés de dar como assentes factos dos quais não tem provas.
GG. Pelo que considera o apelante que tal questão deveria ter merecido uma análise mais cuidada pelo Mmo Juiz a quo, o que não sucedeu, e, consequentemente serem tais factos inseridos na base instrutória, para que possa ser produzida prova quanto a eles.
HH. No que concerne à natureza do título executivo, considera o Mmo Juiz a quo que as garantias apresentadas como título executivo “(...) integram claramente o conceito de garantia bancária autónoma à primeira solicitação (...)”. Posição da qual o apelante discorda, porquanto não pode esta instância, sem qualquer produção de prova nesse sentido, concluir, sem mais, que esse seria o sentido que qualquer declaratário normal deduziria do declarado.
II. Pois se assim fosse, sempre se diria que as referidas garantias também encetam no seu texto “(...) declara pela presente constituir-se fiador e principal pagador à referida B…”.
JJ. E aqui qual o valor que se deverá dar a esta declaração negocial? Como pode o Mmo Juiz a quo considerar sem mais que não estamos perante uma fiança, sem ouvir sequer as partes com vista ao esclarecimento cabal do sentido negocial que as mesmas queriam dar ao referido documento?
KK. O facto de as garantias bancárias encetarem esta declaração implicaria que estamos perante uma fiança bancária e consequentemente adstritos à acessoriedade das obrigações assumidas pelo apelante – cfr. disposto nos artigos 627 nº 2 e 632 n° 1 do CC.
LL. Estabelece o art. 3 nº 3 do CPC que “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
MM. Ora se é certo que a garantia bancária em causa, a se fazer prova que é on first demand, não permite que o apelante lhe oponha qualquer tipo de objecção ou meio de defesa, também é certo que esta renúncia de direitos não pode operar ipsis verbis, porquanto esta renúncia não se encontra na disponibilidade das partes e de acordo com o art. 809 do Código Civil a cláusula pela qual o credor renuncie antecipadamente a qualquer direito que lhe seja facultado é nula.
NN. Aliás a este propósito sempre se dirá que o garante deve recusar a entrega dos valores pelos quais a garantia seja accionada sempre que esta solicitação seja fraudulenta, com base no princípio da boa-fé e no princípio da proibição do abuso de direito (arts. 762 e 334 do Código Civil). Assim e no caso de se poder vir a verificar, o que por mera hipótese académica se coloca, que as garantias aqui em causa sejam qualificadas como on first demand, não pode o apelante deixar de invocar desde já a situação de fraude por parte da apelada, porquanto se encontra a reclamar valores baseados em obrigações inexistentes/inválidas, conforme factos já descritos no ponto B do presente recurso.
PP. Factos esses que conforme já referido anteriormente, em sede de instrução, teriam de ser trazidos à tona e discutidos em sede de audiência de discussão e julgamento e com os quais as testemunhas teriam decerto de serem confrontadas.
QQ. Isto porque os documentos juntos aos autos encetam questões/dúvidas que podem obstar ao pagamento dos valores peticionados e isso tem que ser tido em consideração pelo Mmo Juiz a quo no momento decisório, pelo que desde já se requer a V. Exas se dignem a ordenar a substituição da sentença recorrida por outra que ordene o prosseguimento do autos e consequente produção de prova em sede de audiência de julgamento.
*
Nas contra-alegações, a exequente pugna pela confirmação do despacho saneador-sentença.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
Questões a apreciar
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º, do Código de Processo Civil[3]).
Estão para decidir as seguintes questões[4]:
- Nulidade processual por preterição da audição prévia das partes relativamente ao saneador-sentença que conheceu do mérito dos embargos;
- Necessidade de produção de prova antes de proferir decisão sobre o mérito da causa.
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No despacho saneador-sentença consideram-se assentes os seguintes factos:[5]
1. Na execução a que os presentes autos estão apensos foram apresentadas à execução, como títulos executivos, os seguintes documentos escritos e assinados pelo executado:
a) documento intitulado “garantia bancária ……… first demand”, datado de 6/8/2007, no qual a executada declara o teor do documento de fls. 6 a 7 dos autos executivos, o qual aqui se dá por reproduzido, salientando-se o seguinte extracto:
“O C… …, tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de 500.000€ … concedido pela B… ... à sociedade D…, SA, ... no âmbito do acordo de compra exclusiva celebrado entre ambas, declara pela presente constituir-se fiador e principal pagador à referida B… de todas as obrigações pecuniárias que, por força do referido empréstimo, vierem a resultar para a mutuária, até à sua integral liquidação.
A presente garantia abrange não só a dívida do capital da referida operação, mas ainda os respectivos juros, indemnização pelo incumprimento e demais encargos que se mostrem devidos. Este banco obriga-se assim, incondicionalmente e irrevogavelmente, a pagar ao primeiro pedido da B…, SA, todas as importâncias que, nos termos expostos, forem devidas a esta sociedade, renunciando, desde já, a qualquer objecção ou meios de defesa que eventualmente pudesse vir a prevalecer-se.
O valor da presente garantia poderá ser reduzido, semestralmente, na exacta medida das prestações do empréstimo já comprovadamente pagas pela mutuária, desde que a B…, solicitada por escrito por este, dê a sua concordância a cada redução e a comunique por escrito ao banco. Esta garantia é válida até 31/3/2012, data a partir da qual nada mais poderá ser exigido ao C… …”;
b) Documento intitulado “garantia bancária …/../….. first demand”, datado de 25/8/2009, no qual a executada declara o teor do documento de fls. 24 a 25 dos autos executivos, o qual aqui se dá por reproduzido, salientando-se o seguinte extracto:
“O C… ...., tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de 200.000€ … concedido pela B… ... à sociedade D…, SA, ... no âmbito do acordo de compra exclusiva celebrado entre ambas, declara pela presente constituir-se fiador e principal pagador à referida B… de todas as obrigações pecuniárias que, por força do referido empréstimo, vierem a resultar para a mutuária, até à sua integral liquidação.
A presente garantia abrange não só a dívida do capital da referida operação, mas ainda os respectivos juros, indemnização pelo incumprimento e demais encargos que se mostrem devidos. Este banco obriga-se assim, incondicional e irrevogavelmente, a pagar ao primeiro pedido da B…, SA, todas as importâncias que, nos termos expostos, forem devidas a esta sociedade, renunciando, desde já, a qualquer objecção ou meios de defesa que eventualmente pudesse vir a prevalecer-se.
O valor da presente garantia poderá ser deduzido, semestralmente na exacta medida das prestações do empréstimo já comprovadamente pagas pela mutuária, desde que a B…, solicitada por escrito por este, dê a sua concordância a cada redução e a comunique por escrito ao banco. Esta garantia é válida até 31/12/2013, data a partir da qual nada mais poderá ser exigido ao C…, S.A....”.
2. Subjacente à emissão da garantia bancária aludida em 1a), encontra-se o documento escrito particular assinado pelos contraentes intitulado “contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito” constante de fls. 15 a 20, que aqui se dá por reproduzido.
3. Subjacente à emissão da garantia bancária aludida em 1b), encontra-se o documento escrito particular assinado pelos contraentes intitulado “contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito” constante de fls. 21 a 26, que aqui se dá por reproduzido.
*
III.
1- Nulidade processual por preterição da audição prévia das partes relativamente ao saneador-sentença
Como resulta do relatório que antecede, o M.mo Juiz designou audiência prévia “nos termos e para os efeitos do art. 591.°, n.° 1, als. a) a d), do NCPC”, ou seja, para:
a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.°;
b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;
c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;
d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.° 1 do artigo 595.°;”.

Suspensa que foi a instância na pendência da audiência prévia tendo em vista a obtenção de acordo quanto ao objeto do litígio --- um, apenas um, dos fins para que fora designada --- logo que o M.mo Juiz tomou conhecimento de que as partes não lograram obtê-lo no prazo concedido (15 dias), dispensou a continuação da audiência e, invocando a aplicação do art.º 593º, nº 1, por referência aos art.ºs 591º, nº 1, al. d) e 595º do Código de Processo Civil, proferiu imediatamente saneador-sentença onde conheceu do mérito dos embargos, no sentido da sua improcedência.
A questão é saber se ocorre a nulidade processual invocada pela recorrente, por preterição do direito das partes de serem ouvidas relativamente à decisão que conheceu do mérito dos embargos de executado no despacho-saneador.
Refere Paulo Pimenta[6] que a audiência prévia se assume como um dos momentos mais marcantes da ação declarativa, visando assegurar, com efetividade, a aproximação entre as partes, e estas e o tribunal, através de uma cultura de diálogo. Tal diálogo só será proveitoso se todos forem preparados para o mesmo. Acrescenta: “Ora, essa preparação supõe que as partes e seus mandatários saibam o que vai acontecer, o que vai discutir-se, o que vai tratar-se na audiência prévia. Disso devem ser informados pelo despacho que marca a audiência. O mesmo é dizer que o juiz deve ter o cuidado e o rigor de indicar, expressamente, o objecto da audiência prévia, tanto mais que, podendo, em abstracto, a audiência prévia cumprir diversas finalidades, há que definir quais as finalidades a considerar em cada concreto processo”.
Refere ainda aquele autor que, “quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa, decisão que, a ter lugar, será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, nessa audiência [arts. 591º1.d), 595º 1.b) e 595º 2], a audiência prévia será então destinada a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projecta decidir”[7]. Mais refere que “deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados”.
Tal solução impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão-surpresa (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida já uma decisão final. Desse modo, a discussão entre as partes tanto poderá confirmar como infirmar a existência de condições para o tal conhecimento imediato do mérito.[8]
J. Lebre de Freitas segue, quanto a este aspeto, entendimento semelhante quando refere que, propondo-se o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta, total ou parcial, ao pedido (ou pedidos) nela deduzidos, deve convocar a audiência prévia para esse fim; não pode julgar de mérito no despacho saneador sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes.[9]
As situações de não realização da audiência prévia constam do art.º 592º e nelas não cabem, com toda a evidência, os presentes embargos.
A dispensa de audiência prévia carece de preencher os requisitos previstos no art.º 593º, desde logo que a ação haja de prosseguir. Só neste caso o juiz pode dispensar a realização daquela audiência, contanto que se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do nº 1 do art.º 591º. O conhecimento da totalidade do mérito não é de considerar para efeitos do art.º 593º, pois não satisfaz o primeiro requisito da norma habilitadora da dispensa: “ações que hajam de prosseguir”.[10]
Em qualquer caso, juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas al.s a), b), c) e g) do nº l do art.º 591º. Ela é de realização necessária, designadamente, “quando o juiz tencione conhecer de todo o mérito da causa, se a questão não tiver sido debatida nos articulados. Mesmo quando o tenha sido, a decisão de dispensa deve, todavia, ser precedida da consulta das partes (art.º 3º, nº 3), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, como também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa”.[11] A dispensa da audiência prévia só seria admissível num contexto que o tribunal sempre teria que descrever no despacho respetivo e só depois de ouvidas as partes (art.ºs 547º e 6º).
O despacho saneador constitui uma figura autónoma face à audiência prévia, desde logo porque a decisão contida neste despacho (apreciando determinadas matérias) realiza uma função processual distinta da levada a cabo pela audiência prévia.[12]
D exposição de motivos da Proposta de Lei n° 113/XII já se podia extrair que “a audiência prévia é, por princípio, obrigatória, porquanto só não se realizará nas ações não contestadas que tenham prosseguido em regime de revelia inoperante e nas ações que devam findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória, desde que esta tenha sido debatida nos articulados”.
Retomando o caso sub judice, é por demais evidente a necessidade de realizar a audiência prévia ante a perspetiva do tribunal conhecer do mérito dos embargos de executado. Não só não ocorre nenhum dos motivos legalmente previstos para a não realização ou para a sua dispensa (art.ºs 592º e 593º), como também o próprio tribunal a designou, além do mais, com a finalidade expressa prevista na al. b) do nº 1 do art.º 591º, ou seja, para “facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz … tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa”.
O próprio tribunal reconheceu, ao designar a audiência, a necessidade de ouvir as partes para aquele fim. Convocou-as também para esse efeito. Não podia, por isso, simplesmente, conhecer do mérito da ação, sem cumprir aquele desígnio, aquela finalidade. Ao dispensar a sua continuação nos termos do art.º 593º, nº 1--- como vimos, não aplicável ao caso --- com a agravante de não ter comunicado essa posição às partes antes da comunicação do teor da decisão sobre o mérito da causa no despacho saneador-sentença, violou o seu direito de serem ouvidas sobre a matéria de facto e de direito em causa e defraudou as suas legítimas expetativas de contribuírem para a sua discussão em função da antecipação da decisão para o momento do saneador.
Com efeito, a decisão de mérito proferida constituiu para as partes uma decisão-surpresa, proibida nos termos do art.º 3º, nº 3, e em violação do art.º 591º, nº 1, al. b).
A preterição daquela formalidade processual constitui a omissão de um ato prescrito na lei capaz de influir no exame e na decisão da causa (art.º 195º, nº 1), pelo que, tendo sido invocada (como nulidade), em sede de recurso e a coberto da decisão recorrida, sempre pode ser apreciada nesta Relação.
Com efeito e ao abrigo do nº 2 do art.º 195º, cumpre determinar a invalidade de todos os atos processuais subsequentes à audiência prévia, na parte que foi realizada, designadamente o saneador-sentença, devendo dar-se cumprimento aos fins para que foi designada, com exceção da tentativa de conciliação, já consumada.
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2. Necessidade de produção de prova antes de proferir decisão sobre o mérito da causa
Declarada a nulidade da decisão, temos como prejudicada a apreciação da segunda questão do recurso.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1- O juiz não pode dispensar a realização da audiência prévia quando, para satisfação dos respetivos fins, haja necessidade de realizar qualquer dos atos previstos nas al.s a), b), c) e g) do nº l do art.º 591º do Código de Processo Civil.
2- Mesmo quando a questão tenha sido debatida nos articulados, a decisão de dispensa deve ser precedida da consulta das partes (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil), assim se garantindo não apenas o contraditório sobre a gestão do processo, mas também uma derradeira oportunidade para as partes discutirem o mérito da causa.
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IV.
Nesta conformidade, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, declara-se a nulidade de todos os atos processuais subsequentes à audiência prévia, na parte que foi realizada, designadamente o saneador-sentença, devendo dar-se cumprimento aos fins para os quais aquela diligência foi designada, com exceção da tentativa de conciliação, já realizada.
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Custas pela recorrida.
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Porto, 12 de novembro de 2015
Filipe Caroço
Pedro Martins
Pedro Lima Costa (Vencido conforme declaração que se segue)
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[1] Junta voto de vencido (relator originário).
[2] Que, por isso, é aqui aplicável, nos termos do art.º 6º, nº 4, daquela lei.
[3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[4] A questão prévia da atribuição de efeito suspensivo ao recurso por força da prestação de caução pela executada, está prejudicada pela efetiva atribuição desse efeito, seja na 1ª instância, sena nesta 2ª instância (cf. fl.s 161 e 211).
[5] Por transcrição.
[6] Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 225 e 226.
[7] Idem, pág. 230.
[8] Idem, pág. 231.
[9] A Acção Declarativa Comum…, Coimbra, 3ª edição, pág. 172.
[10] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina 2014, 2ª edição, pág.s 535 e 536. No mesmo sentido, o recente acórdão da Relação do Porto de 24.9.2015, proc. 128/14.0T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt, citando, designadamente, o acórdão da Relação de Lisboa de 5.5.2015, publicado na mesma base de dados, segundo o qual “não se verificando nenhuma das situações previstas no art. 592°, e se a acção não houver de prosseguir, nomeadamente por se ir conhecer no despacho saneador do mérito da acção, deve ser convocada audiência prévia para facultar às partes a discussão de facto e de direito (art.º 591º, nº 1, al. b)”.
[11] Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 536.
[12] Idem, Paulo Pimenta, pág. 234.
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Voto Vencido
Teria formulado a seguinte fundamentação e teria decidido nos termos que constam adiante, tudo sem que se me afigure possível, para os efeitos da parte final do art. 663 nº 1 do Código de Processo Civil (CPC), melhor sintetização do que a exposição que se segue.
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O disposto no art. 593 nº 1 do CPC legitima a decisão de 9/6/2014 de não ser prosseguida a audiência prévia que tinha sido realizada em 3/4/2014, uma vez que essa audiência se destinou primordialmente à tentativa de conciliação entre as partes e a ser proferido o despacho saneador se aquela tentativa falhasse, tanto mais que as partes já tinham discutido, de forma suficiente, as suas posições nos articulados (inclui-se no conceito de articulados o requerimento executivo).
Constatada a falta de acordo, ficou legitimado o imediato avanço para o despacho saneador sentença fora do contexto de audiência prévia, por via da remessa que o citado art. 593 nº 1 faz para a al. d) do nº 1 do art. 591 do CPC.
O apelante renunciou contratualmente a meios de defesa e a confirmações probatórias quando subscreveu as duas garantias bancárias, pelo que não pode agora querer discutir factos como se fosse um vulgar fiador, como se verá que não é.
É verdade que no contrato de 24/10/2007 se alude a duas garantias bancárias, quando só existe uma garantia que se lhe pode ajustar, a de 6/8/2007.
A evidência de esta data ser anterior àquele dia 24/10/2007 não significa necessariamente que o executado, quando emitiu tal garantia, já não conhecesse perfeitamente o contrato que veio a ter a data de 24/10/2007: se não conhecesse, também ficaria por explicar porque é que na garantia de 6/8/2007 declarou “O C… ...., tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de 500.000€ (…)”.
As incoerências que o executado aponta à conciliação que se faz na decisão apelada entre o contrato de 24/10/2007 e a garantia de 6/8/2007 não são de molde a desmentir o acerto dos factos atendidos na decisão apelada.
Não se aceita que a garantia de 6/8/2007 se reporte ao contrato de 8/6/2006, mesmo sabendo-se que aí se procedeu a um (outro) empréstimo de 500.000€, uma vez que não é correcto o entendimento de que o contrato de 8/6/2006 foi salvaguardado por uma qualquer garantia bancária específica e ainda menos é correcto que tenha sido a garantia de 6/8/2007 a salvaguardar esse contrato de 8/6/2006 (cfr. conclusões DD e EE).
Com efeito, é o próprio executado quem junta cópia do contrato de 24/10/2007, mas se a garantia de 6/8/2007 se baseasse no contrato de 8/6/2006, também seria o executado quem juntaria cópia desse contrato de 8/6/2006 em vez de juntar cópia do contrato de 24/10/2007.
Acresce que a carta de accionamento da garantia de 6/8/2007, datada de 13/3/2012 (fls. 172), é claríssima na associação da garantia de 6/8/2007 ao contrato de 24/10/2007.
Essa carta foi junta ao requerimento executivo e o seu teor não foi impugnado pelo executado.
Num contexto de indefesa assumida pelo executado, na acepção que se referirá adiante, são inteiramente correctos os factos provados considerados no despacho saneador sentença, face ao teor seguro da prova documental – não obstante as pequenas incongruências assinaladas.
Não ocorreu lapso ou precipitação na fixação dos factos provados.
Foi correcta a tomada da decisão logo no despacho saneador sentença – o que não se deve confundir com a correcção da decisão então tomada –, destacando-se, novamente, que as cópias dos exemplares dos contratos de 24/10/2007 e 3/8/2009 foram juntas pelo executado, sendo confirmadas tanto como correctas, como não descontextualizadas, pela exequente no subsequente articulado de 18/11/2013.
Os factos atendidos no despacho saneador sentença estão correctos e não se justifica a produção de mais prova para se apurarem os factos que interessam à decisão da causa, dentro das soluções jurídicas plausíveis que o assunto admite.
O executado não tem de se considerar surpreendido pela decisão logo no despacho saneador, mesmo tendo requerido a produção de prova testemunhal e um depoimento de parte, uma vez que assumiu uma condição contratual de indefesa e de renúncia a confirmações probatórias e se limitou a anunciar na audiência prévia que era possível a realização de um acordo com a exequente, sem ressalvar a não renúncia a qualquer outro efeito previsto nas als. b) e c) do nº 1 do art. 591 do CPC.
Não ocorreu nulidade processual com o facto de se ter decidido sem conferir oportunidade ao executado de produzir as provas que tinha requerido – testemunhas e depoimento de parte da exequente – ou de confirmar por novas redundâncias o sentido probatório inerente à junção da cópia de 3 cheques pela exequente.
Entendo que improcedem as objecções do apelante que se prendem com a desadequação e insuficiência dos factos considerados provados na decisão apelada, de se tratar para ele de decisão que se possa razoavelmente considerar uma decisão surpresa e de nulidade processual.
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Nas conclusões HH a KK o executado C… questiona a natureza jurídica dos documentos apresentados como título executivos: são garantias bancárias à primeira solicitação ou são fianças ordinárias?
Não existe lei portuguesa que regule especificamente o contrato de garantia bancária à primeira solicitação.
É um contrato inominado perante a lei.
O art. 4 nº 1 al. b) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (aprovado pelo art. 1 do Decreto-Lei 298/92, de 31/12) não dá resposta à necessidade, ou à eventual necessidade, de regulação jurídica detalhada das garantias bancárias aí previstas.
Como não consta no texto das denominadas garantias bancárias dos autos qualquer referência às Uniform Rules for Demand Guarantees, tais garantias não se regem por um ordenamento que constitui uso no sector bancário internacional, mesmo no âmbito de relações que só se desenvolvam dentro da ordem jurídica portuguesa. Esse ordenamento é estabelecido pela Câmara de Comércio Internacional sob a norma URDG 458 (desde 1/7/2010 vigora a norma URDG 758, a qual está publicada em português pela Delegação Portuguesa da Câmara de Comércio Internacional).
Se existisse qualquer remissão nas garantias em causa para a URDG 458, tal ordenamento de uso bancário passaria a ter eficácia contratual entre as três partes – exequente, executado e D…, Sociedade Anónima.
A propósito da URDG 458, cumpre referir que não faculta ao banco a recusa de pagamento da garantia com fundamento em “fraude relevante”, bem ao contrário daquilo que acontece nos contratos de créditos documentários (as Regras e Usos Uniformes para os Créditos Documentários da Câmara de Comércio Internacional, conforme revisão do ano 2007, estão publicadas em versão bilingue pela Delegação Portuguesa da Câmara de Comércio Internacional, sob o título “Regras e Usos Uniformes da CCI para os Créditos Documentários, Revisão 2007, UCP 600”, com depósito legal 2596667/07).
Ainda a propósito da URDG 458, o art. 3 nº 1 do Código Civil (CC) só confere valor jurídico aos usos quando a lei o determinar. Sucede que o art. 3 do Código Comercial não faculta a aplicação dos usos comerciais nos casos em que a lei seja omissa sobre essa possibilidade.
A garantia bancária à primeira solicitação teria algumas semelhanças com o contrato de seguro financeiro na modalidade de seguro de caução – regulado no Decreto-Lei 183/88, de 24/5, e ainda previsto nos arts. 161 e seguintes do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (aprovado pelo art. 1 do Decreto-Lei 72/2008, de 16/4). Sucede que a regulação jurídica do contrato de garantia bancária à primeira solicitação não deve ser procurada na interpretação analógica do regime daquele Decreto-Lei 183/88, ou no regime geral dos contratos de seguro, como facultaria o dito art. 3 do Código Comercial. Com efeito, ocorre diferença substantiva entre o contrato de garantia bancária à primeira solicitação e o regime primário do contrato de seguro, diferença essa que consiste precisamente na insusceptibilidade de o banco sindicar os fundamentos invocados para a mobilização da garantia bancária. Essa insusceptibilidade de averiguação torna o “sinistro” a que se reporta a garantia bancária assunto substantivamente distinto do sinistro que pode ser objecto do contrato de seguro de caução, já que a seguradora tem sempre inteira liberdade contratual e legal de escrutinar todas as circunstâncias do sinistro que lhe é comunicado: as seguradoras garantem riscos, mas a assumpção do risco nunca chega ao ponto de se vincularem a ressarcir com base em mera participação de sinistro. Por divergência primária e radical com os fundamentais do contrato de seguro, o assunto não deve ser regulado por aplicação analógica do regime do Decreto-Lei 183/88, ou com o regime geral dos contratos de seguro.
A garantia bancária à primeira solicitação, em que o banco se compromete a pagar ao beneficiário em vez do garantido, é um contrato de intervenção tripartida que teria alguma aproximação ao contrato a favor de terceiro para remissão de dívida com beneficiário determinado, genericamente regulado pelo art. 443 do Código Civil (anota-se que essa condição tripartida exclui a aplicação do regime específico dos contratos de garantia financeira previsto no Decreto-Lei 105/2004, de 8/5). Sucede que também o regime jurídico do contrato a favor de terceiro para remissão de dívida com beneficiário determinado se não deve aplicar, por analogia, à regulação do contrato de garantia bancária à primeira solicitação, na medida em que o art. 449 do CC prevê que o garante/promitente pode opôr ao beneficiário/terceiro todos os meios de defesa que lhe poderiam ser opostos pelo garantido/promissário.
Regressando à questão de saber se são garantias bancárias à primeira solicitação ou se são fianças ordinárias, importa ter presente o art. 637 nº 1 do Código Civil (CC): “além dos meios de defesa que lhe são próprios, o fiador tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador”.
É uma norma peculiar quando estabelece no seu trecho final uma excepção à prerrogativa que o fiador tem de opor ao credor os meios de defesa que lhe poderia opor o devedor primário.
Ou seja e no caso em apreço, quando o banco executado abdica contratualmente dos meios de defesa que poderiam ser opostos à exequente B… pela sociedade D…, constitui-se uma garantia bancária à primeira solicitação, a qual é distinta da fiança ordinária, integrando-se aquele contrato na excepção do trecho final do transcrito art. 637 nº 1.
Este trecho final retira a prerrogativa geral própria do fiador – também prevista no mesmo nº 1 do art. 637 – de o banco executado poder opor à beneficiária exequente os meios de defesa que o garantido D… lhe poderia opor, ou seja legitimando a abdicação contratual desse limiar alargado de defesa por via do trecho final “salvo se forem incompatíveis com a obrigação do fiador”.
A quase impossibilidade contratual de o banco poder opor ao beneficiário os meios de defesa que o garantido lhe poderia opor deve ser a característica mais importante do contrato tripartido de garantia bancária à primeira solicitação, sendo característica muito peculiar, para mais tornando particularmente difícil o suprimento da disciplina legal desse contrato, como se constatou supra.
As garantias bancárias à primeira solicitação são um negócio bancário cujo sucesso se sustenta na indefesa do banco perante o beneficiário.
Os dois títulos executivos revelam essa indefesa assumida, por via da renúncia antecipada pelo banco à invocação de motivos dirimentes ou atenuantes que o garantido D… poderia opor à exequente para não lhe pagar, ou para lhe pagar menos do que aquilo que esta lhe exigisse.
Repete-se: os dois títulos executivos são garantias bancárias à primeira solicitação.
Na acepção de indefesa assumida, é em vão que o executado opõe agora à exequente excepções peremptórias que talvez valessem ao D….
O contrato tripartido de garantia bancária à primeira solicitação integra-se na prerrogativa de liberdade contratual prevista no art. 405 nº 1 do CC, tendo de ser pontualmente cumprido, de acordo com a norma de eficácia dos contratos do art. 406 nº 1 do CC.
Nos contratos celebrados entre a exequente B… e o D…, tal como nas duas garantias bancárias, consta a expressão “mútuo gratuito”. Essa expressão, com aparente incoerência interna, só tem o sentido de não renumeração do capital mutuado com juros se a devolução parcelada do capital for feita nos prazos acordados, o mesmo é dizer que só se vencem juros (e uma indemnização de 10%) quando ocorre mora na devolução parcelada do capital. Ou seja, “mútuo gratuito” significa ausência ordinária de renumeração do capital emprestado.
Acrescenta-se que os contratos celebrados entre a exequente, na condição de comerciante no âmbito do seu comércio, e o D…, na condição de comerciante no âmbito do seu comércio, não têm vício de forma ao serem concluídos por via de meros documentos particulares assinados pelos contratantes.
Com efeito, os empréstimos integram-se em contratos tendencialmente lucrativos e por isso têm natureza mercantil, associados como estão à convenção de compra em exclusivo de cervejas, águas e refrigerantes em dispenser, ou de cervejas, águas lisas e com gás e refrigerantes, tudo das marcas do comércio da exequente, pelo D… – além dos compradores E…, Limitada, num contrato, e F…, Limitada, no outro contrato.
Não haveria mútuo gratuito na acepção descrita – devolução parcelada do capital nos prazos acordados sem remuneração desse capital –, uma vez que a exequente veria o capital que emprestou remunerado com os lucros que obteria nas compras em exclusivo a que o D… e outros se obrigaram junto dela.
Descendo ao pormenor e não perdendo de vista a afirmação do executado de que estamos perante contratos completamente inusitados no comércio jurídico, é duvidoso que os contratos fossem lucrativos para a exequente ainda que fossem, à justa mas irrepreensivelmente, cumpridos pelos compradores D… e outros, já que não se tem por nada evidente, no caso de um dos contratos, que se compensariam os frutos civis que se possam entender como correntes para um capital de 500.000€ – devolvido à razão próxima dos 10.416€ ao mês durante 48 meses (4 anos) – por via do lucro grossista que se obteria na venda de 336.000 litros de cervejas, águas e refrigerantes em dispenser durante 49 meses.
Mas claro que essa dúvida não permite concluir que o contrato em causa, o de 24/10/2007, não fosse tendencialmente lucrativo e, por isso mesmo, dotado de verdadeira natureza mercantil.
Ou seja, a combinação inextricável entre empréstimos e obrigação de compra em exclusivo configura um verdadeiro contrato mercantil para o efeito de poder ser celebrado validamente por meio de documento particular assinado pelos contratantes, conforme art. 396 do Código Comercial.
As duas garantias têm o seguinte conteúdo essencial: o executado C… paga à exequente B… aquilo que a exequente poderia exigir ao D… se este iniciasse incumprimento do contrato.
As garantias em causa não são um contrato fechado, como aconteceria no caso em que o D… ou cumpria ou só poderia ter um único modo possível de incumprimento. Essa característica de contrato não fechado consta no texto da garantia e torna-se evidente quando a exequente não pretende a cobrança do capital de 700.000€, sendo 500.000€ da primeira garantia e 200.000€ da segunda garantia. O incumprimento contemplado na garanta é variável, o que torna cada garantia um contrato aberto, tendo o intervalo entre as responsabilidades que poderiam ser assacadas ao D… de ser delimitado em instrumentos declarativos que aparentem uma pretensão externamente inequívoca perante o executado.
A interpelação de accionamento da garantia, a um tempo, não pode ser escrutinada pelo executado, uma vez que este não se quis defender quanto a ela e não quis prova alguma que confirmasse aquilo que lhe é afirmado na interpelação.
Mas a outro tempo, a interpelação de accionamento da garantia tem de se apresentar como declaração/pretensão externamente inequívoca perante o executado.
É aqui que se inicia a divergência com a decisão apelada: a aparência com que o executado é confrontado não sustenta o capital exequendo de 575.293,56€.
Se a aparência daquilo que é declarado ao executado e daquilo que já lhe foi dado a conhecer for equívoca, o executado só tem de pagar à exequente o mínimo que se possa entender como inequívoco, chamemos-lhe “pagar um mínimo denominador comum”.
A declaração/pretensão externamente inequívoca é aferida pelo entendimento que dela extrairia um declaratário normal, colocado na posição do executado, conforme art. 236 nº 1 do CC.
Esse declaratário normal, tal como o executado, teria conhecimento dos contratos que foram celebrados entre a exequente e o D… (não interessa para o assunto a intervenção de E… e de F…).
Esse conhecimento está incorporado no texto das garantias, sob as menções “tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de 500.000€ … concedido pela B…... à sociedade D…, SA, ... no âmbito do acordo de compra exclusiva celebrado entre ambas” e “tendo tomado perfeito conhecimento dos termos e condições do mútuo gratuito de 200.000€ … concedido pela B… ... à sociedade D…, SA, ... no âmbito do acordo de compra exclusiva celebrado entre ambas”.
Esse conhecimento integra-se na aparência daquilo que é dado a conhecer àquele que seria o declaratário normal, não estando englobado no núcleo de indefesa e de dispensa de prova supra caracterizado: a dispensa de prova é uma dispensa de prova constituenda, mas não obriga ao esquecimento daquilo que antes tinha sido dado a conhecer.
Dito isto, o que perceberia um declaratário normal à vista dos contratos de 24/10/2007 e de 3/8/2009, das garantias ……… e …/../….., do requerimento executivo e das cartas de accionamento das garantias de 13/3/2012 (garantia ………) e de 27/7/2012 (garantia …/../…..), tudo sem poder escrutinar algo fora dos correspondentes textos?
Antes do mais cumpre deixar esclarecido que “Dá-se a novação objectiva quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga”, conforme art. 857 do CC.
A essência do litígio reside na novação objectiva total dos contratos de 8/6/2006 e de 24/10/2007 por via do contrato de 3/8/2009.
Vejamos.
No contrato de 3/8/2009 constam os seguintes considerandos e cláusulas 7 e 8:
Considerando b): entre o fornecedor [exequente] e a primeira revendedora [D…] foi celebrado a 8/6/2006 um contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito relativo ao estabelecimento […]”
Considerando c): conforme previsto na cláusula 8 do contrato referido no considerando anterior, a primeira revendedora deveria reembolsar ao fornecedor o valor do capital em dívida, resultante do mútuo gratuito de 500.000€ que este lhe concedeu, em 36 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira prestação de 13.920€ e as restantes 35 de 13.888€ cada, vencendo-se a primeira em 5/9/2006 e as restantes no dia 5 dos meses subsequentes;
Considerando d): a primeira revendedora procedeu ao pagamento das primeiras 29 prestações referidas no considerando antecedente, mais o montante de 1.748€ para crédito em conta referente a parte da trigésima prestação, pelo que reconhece dever ainda ao fornecedor a quantia de 95.468€;
Considerando e): entre o fornecedor e a primeira revendedora e a sociedade E…, Limitada, foi celebrado a 24/10/2007 um contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito relativo aos estabelecimentos […], o qual se manterá em vigor, com exclusão dos estabelecimentos […];
Considerando f): […];
Considerando g): conforme previsto na cláusula 8 do contrato referido no considerando e), a primeira revendedora deveria reembolsar ao fornecedor o valor do capital em dívida, resultante do mútuo gratuito de 500.000€ que este lhe concedeu, em 48 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira prestação de 10.448€ e as restantes 47 de 10.416€ cada, vencendo-se a primeira em 5/12/2007 e as restantes no dia 5 dos meses subsequentes;
Considerando h): a primeira revendedora procedeu ao pagamento das primeiras 12 prestações referidas no considerando g), mais o montante de 6.944€ para crédito em conta referente a parte da décima terceira prestação, pelo que reconhece dever ainda ao fornecedor a quantia de 86.800€;
Considerando i): a primeira revendedora manifestou interesse em renegociar o contrato referido no considerando b) mediante celebração de um novo contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito, englobando no mesmo os estabelecimentos […], que, em consequência ficam excluídos do contrato referido no considerando e), sendo a entrega da quantia mutuada satisfeita parcialmente mediante compensação com as dívidas da primeira revendedora ao fornecedor referidas nos considerandos d) e h);
Considerando j): […];
Considerando k): o fornecedor aceita celebrar com a primeira revendedora um novo contrato de compra exclusiva com mútuo gratuito que se regerá pelas seguintes cláusulas:
[…]
Cláusula 7: 1- Como contrapartida da exclusividade conferida pelas revendedoras e por acordo de ambas expresso neste contrato, o fornecedor empresta à primeira revendedora, sem juros, a quantia de 200.000€, destinada à compra de equipamento para os estabelecimentos referidos na cláusula 2. 2- A obrigação de entrega da quantia mutuada é satisfeita, em parte, pela compensação com o crédito de 95.468€ que o fornecedor tem sobre a primeira revendedora descrito no considerando d), bem como pelo crédito de 86.800€ referente no considerando h), pelo que o fornecedor só entregará no presente acto à primeira revendedora o diferencial da quantia de 17.732€.
Cláusula 8: 1- O reembolso do capital em dívida, resultante do mútuo referido no nº 1 da cláusula anterior, será efectuado pela primeira revendedora em 48 prestações mensais e sucessivas, sendo a primeira no valor de 4.104€ e as restantes 47 de 4.168€, vencendo-se a primeira no dia 20/9/2009 e as restantes no dia 20 dos meses subsequentes; 2- As prestações serão tituladas por garantia bancária, apresentada pela primeira revendedora em benefício do fornecedor, de capital igual ao mútuo referido na cláusula anterior; 3- […]; 4 […].
O contrato de 24/10/2007 titula um empréstimo de 500.000€.
Desse capital, a exequente declarou na carta de 13/3/2012 que está paga a parte de 250.016€ e reclama ao executado a diferença de 249.984€.
O contrato de 3/8/2009 titula um empréstimo de 200.000€, decomposto nos seguintes capitais:
- 95.468€ que constituem novação objectiva total do (primeiro) empréstimo de 500.000€ concedido por contrato de 8/6/2006 [95.468€ = 500.000€ - ((13.920€ x 1 prestação) + (13.888€ x 28 prestações) + 1.748€)];
- 86.800€ que constituem outra novação objectiva total, agora do referido contrato de 24/10/2007, com perdão de 281.232€ no capital do (segundo) empréstimo de 500.000€ [86.800€ = 500.000€ - ((10.448€ x 1 prestação) + (10.416€ x 11 prestações) + 6.944€) - 281.232€] (avulta a substantiva diferença entre os supra citados 249.984€ e esta verba de 86.800€ e o facto de naquele dia 13/3/2012 a exequente saber que em 3/8/2009 tinha procedido à novação objectiva total do contrato de 24/10/2007);
- 17.732€ entregues pela exequente ao D… no próprio acto de 3/8/2009 [200.000€ = 95.468€ + 86.800€ + 17.732€].
Na carta de 27/7/2012 a exequente declara que do capital de 200.000€ está paga a parte de 12.440€ [12.440€ = (1 prestação x 4.104€) + (2 prestações x 4.168€)] e reclama ao executado a diferença de 187.560€ [187.560€ = (32 prestações vencidas x 4.168€) + (13 prestações vincendas x 4.168€)]. Deve-se a lapso de escrita, revelado no próprio contexto dessa carta, uma menção a “8.512€”, percebendo-se que se queria escrever “54.184€” [187.560€ = (500.000€ + 500.000€ + 17.732€) - ((13.920€ x 1 prestação) + (13.888€ x 28 prestações) + 1.748€ + (10.448€ x 1 prestação) + (10.416€ x 11 prestações) + 6.944€ + 281.232€ + (1 prestação x 4.104€) + (2 prestações x 4.168€))].
Nessa carta a exequente ainda reclama indemnização de 20.000€ [20.000€ = 200.000€ x (10 : 100)] ao abrigo da cláusula 10 nº 3 do contrato de 3/8/2009, a título de alíquota do capital inicial de 200.000€.
Essa cláusula 10 nº 3 estabelece que “o incumprimento dará lugar ao pagamento, pela parte faltosa, de uma indemnização, que, por acordo, se fixa em 10% da quantia mutuada”.
Por fim, na carta de 27/7/2012 a exequente também reclama “juros contratuais”, os quais liquida, sem especificação adicional, em 72.012,76€.
A cláusula 10 nº 4 do contrato de 3/8/2009 estabelece que “para além da indemnização prevista no número anterior, o incumprimento, por parte de qualquer revendedora, dará lugar ao vencimento imediato de todas as prestações em dívida e ao pagamento solidário pelas revendedoras de juros moratórios calculados à taxa máxima legal, permitida pela aplicação conjugada dos arts. 559, 559-A e 1146 nº 2 do Código Civil, e computados desde a data do cumprimento da obrigação da entrega quantia mutuada até à data do efectivo pagamento daquelas prestações”. O trecho “desde a data do cumprimento da obrigação da entrega quantia mutuada” tem o único sentido plausível de “data em que se deveria ter devolvido alguma parcela da quantia mutuada”.
Como se constatará melhor, essa cláusula comporta incoerência interna ao cumular a indemnização prevista na cláusula 10 nº 3 ao mesmo tempo que remete para o disposto no art. 1146 nº 2 do CC.
Essa incoerência revela-se ao dito declaratário normal.
Ao remeter para três artigos do Código Civil, a cláusula 10 nº 4 afasta a taxa de juros supletiva prevista no art. 102 do Código Comercial para os créditos de que sejam titulares empresas comerciais.
Como a taxa de juro anual prevista no art. 559 do CC era de 4% aquando de qualquer um dos dias em que deveriam terem sido devolvidas 45 parcelas da quantia mutuada (Portaria 263/99, de 12/4) e como a essa taxa anual acrescem 9%, também ao ano, como veremos, a remessa operada na cláusula 10 nº 4 para o art. 1146 nº 2 do CC determina que a referida alíquota de 10% prevista na cláusula 10 nº 3 seja reduzida, a fim de ser cumprida a compensação pela mora no máximo de 13% ao ano, sendo essa compensação calculada sobre 45 parcelas individuais de 4.168€ desde o dia seguinte a cada um dos 45 dias em que cada uma dessas parcelas deveria ter sido paga pelo D… à exequente [45 x 4.168€ = 187.560€].
Com efeito, o dito art. 1146 nº 2 estabelece que “é havida também como usurária a cláusula penal que fixar como indemnização devida pela falta de restituição do empréstimo relativamente ao tempo de mora mais do que o correspondente a 7% ou 9% acima dos juros legais, conforme exista ou não garantia real”.
A garantia bancária não é uma garantia real, pelo que a taxa máxima em causa será de 13% ao ano, corresponde à adição de 4% com os 9% que vêm previstos no transcrito art. 1146 nº 2.
A redução da compensação pela mora a 13% ao ano não é decorrência de excepção peremptória de usura, mas sim manifestação do entendimento que um declaratário normal extrai dentro de um sentido inequívoco da aparência da declaração/pretensão externa que lhe é apresentada.
Não pode ser cobrada compensação pela mora superior a 13% ao ano, por via da remissão contratual para o transcrito art. 1146 nº 2.
Em suma, o declaratário normal, colocado na posição do executado, retira da aparência das declarações pertinentes que a exequente só poderia ter reclamado ao D… o capital de 187.560€ e juros à taxa anual de 13%, estes contados sobre 45 parcelas individuais de 4.168€ desde o dia seguinte a cada um dos 45 dias em que cada uma dessas parcelas deveria ter sido paga pelo D… à exequente.
É esse o capital e são esses juros que o executado tem de pagar à exequente.
Para essa asserção contribui o entendimento que o declaratário normal obteria pela aparência dos documentos pertinentes no sentido de que o contrato de 3/8/2009 opera a novação objectiva total dos contratos de 8/6/2006 e de 24/10/2007 e que em relação a este último tal novação incorpora um perdão de capital de 281.232€.
O despacho saneador sentença consagra a cobrança do capital de 575.293,56€ e juros, mas, a meu ver, tem de ser alterado apenas para o efeito de o capital exequendo passar a ser 187.560€, acrescido de juros à taxa de 13% ao ano contados nos termos já referidos.
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Teria julgado a apelação parcialmente procedente e teria alterado o despacho saneador sentença apenas para o efeito de a execução prosseguir para cobrança do capital de 187.560€, acrescido de juros à taxa anual de 13% contabilizados sobre cada um de 45 capitais individuais de 4.168€ desde 21/12/2009, 21/1/2010, 21/2/2010, 21/3/2010, 21/4/2010, 21/5/2010, 21/6/2010, 21/7/2010, 21/8/2010, 21/9/2010, 21/10/2010, 21/11/2010, 21/12/2010, 21/1/2011, 21/2/2011, 21/3/2011, 21/4/2011, 21/5/2011, 21/6/2011, 21/7/2011, 21/8/2011, 21/9/2011, 21/10/2011, 21/11/2011, 21/12/2011, 21/1/2012, 21/2/2012, 21/3/2012, 21/4/2012, 21/5/2012, 21/6/2012, 21/7/2012, 21/8/2012, 21/9/2012, 21/10/2012, 21/11/2012, 21/12/2012, 21/1/2013, 21/2/2013, 21/3/2013, 21/4/2013, 21/5/2013, 21/6/2013, 21/7/2013 e 21/8/2013 até efectivo pagamento.

Pedro Lima Costa