Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3041/16.2T8VNG-C.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
PRAZO PARA REQUERER A QUALIFICAÇÃO
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: RP202003243041/16.2T8VNG-C.P1
Data do Acordão: 03/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os despachos em que o juiz se limita a ordenar a prática de atos processuais previstos na normal tramitação do processo, a fazer prosseguir o processo de acordo com a sua configuração legal, são despachos de mero expediente e não formam sequer caso julgado formal.
II - Independentemente da natureza do prazo estabelecido no art. 188º nº 1 do CIRE, como sendo um prazo “regulador”, “ordenador” ou de “organização processual” não é admissível o requerimento de abertura de incidente de qualificação de insolvência apresentado por credor mais de três anos após o decurso daquele, sob pena de violação dos princípios da confiança e da segurança do direito, que decorrem do Estado de Direito Democrático.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 3041/16.2T8VNG-C.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto- Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz 6

SUMÁRIO:
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Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
Por sentença de 21.04.2016 (fls. 35 a 38 do processo principal) foi declarada a insolvência da requerida “B…, Lda.”.
Aí foi decidido, – para além do mais – que “Não há elementos suficientes nos autos que justifiquem, por ora, a abertura do incidente de qualificação de insolvência – art. 36.º, al. g) e 149.º, n.ºs 1, al. a) e b) e n.º 2, do CIRE; cfr. art. 150.º do CIRE” .
O credor C… apresentou no apenso “A” - Apreensão de Bens - os requerimentos que se mostram juntos a fls. 17 e ss., o primeiro datado de 28.10.2019.
Notificados o Ministério Público e o Administrador de Insolvência, veio este juntar requerimento datado de 14.10.2019 dizendo em suma que o requerimento apresentado pelo credor C… era desprovido de fundamento e que aquele deveria, querendo, ter requerido abertura de Incidente de insolvência culposa.
O Ministério Por sua vez, pronunciou-se a 7.10.2019, nos seguintes termos:
“P. se extraia e me seja entregue certidão integral do presente apenso, acompanhada de certidão, dos autos principais, do requerimento inicial (fls. 3 a 5), da douta sentença que declarou a insolvência, com menção do trânsito em julgado, de fls. 95 a 115, 142 a 155, 158, 175, para efeitos de instauração de inquérito para a averiguação de ilícito criminal, nomeadamente insolvência dolosa.
Mais se p. se extraia cópia dos requerimentos do credor C1… (de fls. 35 e ss e de fls. 70 e 71) e se autue por apenso, abrindo-se incidente de qualificação de insolvência, notificando-se o A.I. para apresentar parecer, nos termos do art. 188.º do CIRE.”
Finalmente, p. se notifique o AI para averiguar e informar, nos termos já requeridos, junto da conservatória de registo automóvel, qual o percurso dos veículos a que se refere o credor C1… e o douto despacho de fls. 60, nomeadamente nos 3 anos que antecederam a declaração de insolvência.”
Tal promoção mereceu despacho datado de 21.10.2019, que deferiu o promovido nos seguintes termos: “Proceda nos exatos termos promovidos”.
Foi então criado o apenso C - de “Incidente qualificação insolvência (CIRE)” - com junção dos aludidos requerimentos do credor C… e aberta conclusão, tendo sido proferido nesses autos de Incidente de Qualificação de Insolvência em 29.10.2019, o seguinte despacho:
No domínio do CIRE, antes da Lei 16/2012, de 20 de abril, a abertura do incidente de qualificação da insolvência, logo na sentença que a declarava, era oficiosa e obrigatória, tivesse ele carácter pleno ou limitado, tal não dependendo de qualquer específico pressuposto prévio nem da iniciativa dos interessados.
Então, a elaboração e apresentação, pelo administrador, do respetivo parecer, pressupunha que o incidente já se encontrava pendente e o desrespeito do prazo (não perentório, apenas regulador ou ordenador) para tal não tinha efeito preclusivo ou similar.
Depois da Lei 16/2012, a declaração de abertura do incidente continua a ser oficiosa, não estando na pura disponibilidade de qualquer dos interessados nem do administrador (embora possam requerê-la), mas deixou de ser automática, dependendo necessariamente de o juiz dispor de “elementos justificativos” e de tal “considerar oportuno”.
Tal declaração, agora, pode ter lugar em dois momentos: um, aquando da prolação da sentença declarativa da insolvência; outro, após alegações (pelo administrador ou por qualquer interessado) e se, então, o juiz tal “considerar oportuno”.
A Lei 16/2012, querendo, por um lado, afastar a automaticidade e obrigatoriedade da declaração de abertura do incidente de qualificação da insolvência, pelo Juiz, na sentença, e condicioná-los à existência e verificação de elementos disponíveis no processo justificativos do seu desencadeamento, visou, por outro, e para contrabalançar essa limitação, conferir, quer ao administrador quer aos demais interessados, a possibilidade de, nos prazos cominados, aportarem dados ao processo, alegando, fundamentadamente, por escrito, em requerimento a autuar por apenso, o que - os factos, entenda-se - tiverem por conveniente para aquele efeito (qualificação como culposa) e de indicarem as pessoas que deverão ser afetadas, assim introduzindo uma dimensão caracteristicamente dispositiva (embora mitigada) na iniciativa deles.
Coerentemente, atribuiu ao juiz a possibilidade de, nesse segundo momento, ainda declarar aberto o incidente.
Para tal, previu que lhe cabe “conhecer dos factos alegados” - não refere outros - e, “se o considerar oportuno” declarar aberto o incidente “nos 10 dias subsequentes”.
Daqui se retiram duas consequências incontornáveis:
– a primeira é de que, caso o prazo de 15 dias previsto no nº 1, do art.º 188º, ou o de 45 dias previsto na alínea a), do nº 1, do art.º 191º, decorram sem que o administrador ou qualquer interessado aleguem, fica precludido o direito de o fazerem;
– a segunda é de que, caso o juiz, na referida oportunidade e prazo, face ao requerido, não declare aberto o incidente, jamais, depois, poderá fazê-lo.
A lei não contempla outros.
Assim, ao contrário do que acontece com o parecer previsto no nº 3 do citado art. 188º - que, por corresponder a um ato obrigatório da tramitação do incidente já aberto e em curso, deve ser entendido como um dever funcional do administrador que não se extingue pelo decurso do prazo legalmente fixado para a sua apresentação – o requerimento/alegações a que alude o nº 1 da citada norma, através do qual se pretende desencadear a abertura do incidente de qualificação, apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo administrador – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo.
No caso vertente, analisados os autos constata-se que a concreta apresentação de observações para efeitos de incidente de qualificação da insolvência como culposa é extemporânea e, consequentemente, não dará lugar à apreciação dos respetivos factos alegados para o efeito de decisão de abertura do respetivo incidente.
Pelo exposto, dada a intempestividade do requerimento apresentado, não declaro aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Registe e notifique.”
Inconformado com o seu teor, veio o MINISTÉRIO PÚBLICO interpor o presente recurso de Apelação, pugnando pela sua revogação, tendo apresentado as seguintes CONCLUSÕES:
“1 – Foi declarada a insolvência da requerida “B…, Lda.” E declarado: «não há elementos suficientes nos autos que justifiquem, por ora, a abertura do incidente de qualificação de insolvência – art. 36.º, al. g) e 149.º, n.ºs 1, al. a) e b) e n.º 2, do CIRE; cfr. art. 150.º do CIRE»
2 – O Ministério Público promoveu que se autuasse a cópia dos requerimentos do credor C1… por apenso, abrindo-se incidente de qualificação de insolvência, notificando-se o A.I. para apresentar parecer, nos termos do art. 188.º do CIRE, o que foi deferido por despacho de 21.10.2019.
3 – Mas por despacho de 29.10.2019, o Tribunal «dada a intempestividade do requerimento apresentado, não declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência.»
4 – É desta decisão que se recorre, por duas ordens de razões.
5 – Quando esta decisão foi proferida já estava esgotado o poder jurisdicional sobre tal questão, que não fora “reaberto”, pois já havia sido aberto o incidente de qualificação de insolvência, pelo despacho de 21.10.2019, que determinando “Proceda nos exatos termos promovidos”, aderiu expressamente ao que havia sido promovido e determinou se procedesse naqueles termos.
6 – Aliás, o requerido credor, não chegou a vir requerer, sequer, a abertura do incidente de qualificação de insolvência. Antes se dirigiu ao apenso de apreensão e deu nota de factos que o MP teve por suscetíveis de configurar não só crime como insolvência dolosa, posição à qual o Tribunal aderiu, determinando a abertura do incidente de qualificação de insolvência.
7 – Considerando as datas dois despachos, quando foi proferido o segundo despacho (ainda não transitado, porque recorrido), não transitara em julgado o primeiro despacho, mas o certo é que este último despacho não foi impugnado e entretanto já decorreu o prazo para a sua impugnação.
8 – Não se ignora que o segundo despacho, proferido posteriormente tem sentido divergente do primeiro, mas não teve em consideração aquele primeiro despacho e não tomou qualquer posição sobre ele, quando o mesmo juiz, no mesmo processo já conhecera da mesma questão, esgotando assim o seu poder jurisdicional sobre ela, pois não tomou posição sobre aquele primeiro despacho e respetiva decisão revogando-o ou anulando a respetiva decisão, assim recuperando (se admissível no caso) o seu poder jurisdicional.
9 – Não o tendo feito, não se podia pronunciar novamente sobre a mesma questão por se ter pronunciado sobre ela, numa decisão que não fora, nem foi impugnada.
10 – Tendo já transitado em julgado aquele primeiro despacho é o mesmo que, a nosso ver, deve ser cumprido.
11 – No segundo despacho o Tribunal a quo decidiu não declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, por ser por intempestivo o requerimento apresentado, dado que o prazo de 15 dias previsto no nº 1, do art.º 188º, ou o de 45 dias previsto na alínea a), do nº 1, do art.º 191º, decorram sem que o administrador ou qualquer interessado aleguem, fica precludido o direito de o fazerem; e que o juiz, na referida oportunidade e prazo, face ao requerido, não declare aberto o incidente, jamais, depois, poderá fazê-lo.
12 – Mas, salvo o devido respeito, esta decisão enferma de erro de facto e de direito, pelo que, com ele se não conforma o Ministério Público, para além das razões já adiantadas nas conclusões anteriores.
13 – Não podia, pois, o mesmo Tribunal, já após ter declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência recusar-se a abrir o mesmo incidente, estando esgotado o seu poder poder jurisdicional.
14 – Quanto à tempestividade do parecer do Administrador da Insolvência, importa sublinhar que o mesmo foi prestado nos termos do n.º 3 do art. 188.º do CIRE (e não nos temos do n.º 1) que dispõe: “3 - Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.”
15 – Ora, desta redação resulta, sem margem de dúvida que tal prazo que pode ser alongado livremente pelo juiz não é perentório.
16 – Mas, no entender do Ministério Público, também o prazo do n.º 1 do art. 188.º não é perentório, como foi entendido na sentença recorrida e como o entende maioritariamente a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores.
17 – O AI é interveniente necessário no incidente de qualificação da insolvência (vide artigo 188.º, n.º 1, 3 e 4, do CIRE), órgão da insolvência (cfr. art. 52.º do CIRE, integrado no capítulo intitulado “órgãos da insolvência”, na seção I), colaborador essencial da justiça do âmbito do processo de insolvência cujo dever funcional importa uma atuação no interesse alheio, o dos credores.
18 – O seu parecer é um elemento relevante na decisão do incidente de qualificação da insolvência – e na sua própria tramitação –, pelo que o AI não pode deixar de observar a obrigação que lhe compete sem incorrer em violação dos seus deveres funcionais, devendo o juiz garantir a sua junção, mesmo para além daquele prazo, o que é processualmente justificado, quer pela necessidade de realizar diligências necessariamente impossíveis de concretizar em tal prazo, até porque é frequente (por exemplo) a venda de bens após a declaração da insolvência e, em conformidade, existem atos jurídicos a valorar para qualificar a insolvência como culposa que não são tempestivamente detetados; ao que a acresce que uma das circunstâncias que legitima a tipificação da insolvência como culposa ocorre obrigatoriamente após a declaração de insolvência (a violação do dever de colaborar com o administrador da insolvência) e a sua constatação pode ocorrer fora do âmbito temporal a que alude o art. 188.°, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;
19 – Aliás, no caso como se viu, já fora aberto o incidente de qualificação da insolvência e veio a ser proferida decisão pelo Tribunal, levando então à notificação do AI para apresentar o seu parecer, na sequência da prévia abertura do incidente de qualificação de insolvência, nos termos do art. 188.º, n.º 3 do CIRE.
20 – Não há qualquer prazo de caducidade ou de prescrição, pois que uma e outra respeitam à extinção de direitos quando estes não são exercidos durante certo tempo - segundo um critério tradicional, clássico, a prescrição (extintiva, claro está) respeita aos direitos subjetivos propriamente ditos, enquanto a caducidade visa os direitos potestativos, sendo certo que a nossa lei optou por um critério formal, afirmando no art. 282.°, n.º 2, do C. C. que quando um direito deva ser exercido durante um certo prazo se aplicam as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente à prescrição.
21 – É que vem posta em causa uma pretensa intempestividade do parecer (caducidade), importando dizer que resulta claro que este instituto, reflexo do decurso do tempo nas relações jurídicas, corporiza o fundamento que lhe subjaz: o aspeto objetivo da certeza e segurança do direito, devendo lembrar-se que neste âmbito (da caducidade) estão em causa relações jurídicas do mais diverso tipo (direitos e obrigações) mas não direitos ou deveres de índole estritamente processual (estabelecidas na relação processual existente entre o Tribunal e as partes), em que está presente um ónus.
22 – Mas nos processos em que os administradores são nomeados administradores da insolvência não são aplicáveis os institutos da extinção dos direitos ou obrigações reguladas no direito civil, pois, na qualidade de servidor da justiça e do direito, juntam aos autos os elementos tidos por pertinentes não no exercício de qualquer direito ou obrigação, advindos de qualquer relação obrigacional, mas sim no escrupuloso cumprimento de deveres funcionais que exerce no âmbito do processo da insolvência (art. 12.º, n.º 2 do Estatuto do administrador judicial).
23 – O prazo, previsto no n.º 1 do art. 188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo perentório mas meramente ordenador ou regulador.
24 – Se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz poderá determinar ex officio a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não vemos, por maioria de razão, que o mesmo esteja impedido de o fazer, a requerimento fundamentado de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art. 188º, n.º 1, do CIRE.
Termos em que estando o poder jurisdicional do Tribunal e tendo-se entretanto formado caso julgado formal, art. 620.º do CPC e não sendo perentório o prazo para apresentação, pelo AI, do parecer que qualificação de insolvência, deverá o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que não se pronuncie sobre a abertura do incidente de qualificação de insolvência – porque já aberto – e se pronuncie sobre o promovido.”
Não houve contra-alegações.
Admitido o recurso, cumpre decidir.

II-OBJETO DO RECURSO:
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso.
Assim sendo, as questões decidendas, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes:
-saber se se esgotou o poder jurisdicional do tribunal sobre a questão e se ocorreu violação do caso julgado; e,
-tempestividade do requerimento para abertura do incidente de qualificação, a que alude o nº 1 do art. 188 do CIRE.

III-FUNDAMENTAÇÃO (dão-se por reproduzidos os atos processuais acima descritos).

IV-O DIREITO APLICÁVEL
Da violação do caso julgado.
Defende o Ministério Público em suma que, o tribunal não podia ter decidido no despacho sob recurso, como não aberto o incidente de qualificação da insolvência, porquanto e desde logo, independentemente do fundamento invocado apreciou uma questão já por si anteriormente apreciada, através do despacho de 21.10.2019, através do qual havia já declarado aberto o incidente de qualificação de insolvência, pelo que se encontrava esgotado o poder jurisdicional nessa matéria.
Vejamos.
Decorre do disposto no art.º 185.º do CIRE que a insolvência pode ser qualificada como culposa ou fortuita.
Esta dicotomia tem como pressuposto a consideração de que a situação de insolvência pode resultar de fatores alheios à vontade do Insolvente, tais como contingências económico-financeiras inesperadas ou situações de desemprego, divórcio ou doença.
Por inerência, o incidente de qualificação da insolvência tem por objeto a apreciação da conduta do devedor e como finalidade a responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência.
O incidente de qualificação constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e consequentemente se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor.
O art.º 186.º do CIRE define como insolvência culposa aquela em que a “situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.”
A regra é, pois, a de que a atuação do devedor, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tem que ser apta à criação ou agravação do estado de insolvência, em termos de nexo de causalidade, e levada a cabo com dolo ou culpa grave.
Na versão originária do CIRE, a sentença de insolvência determinava, imperativamente, a abertura de um incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado, nos termos previstos no então art.º 36.º. Com as alterações decorrentes da Lei n.º 16/2012, de 20/04, este incidente deixou de ter cariz oficioso e obrigatório, abrindo-se apenas quando existam indícios de culpa pela criação ou agravação de situação de insolvência.
Quanto às regras relativas á tramitação deste incidente, o art.º 36.º, n.º 1, alínea i), dispõe que:
Na sentença que declarar a insolvência o juiz: (…)
i) Caso disponha de elementos que justifiquem a abertura do incidente de qualificação da insolvência, declara aberto o incidente de qualificação, com carácter pleno ou limitado, sem prejuízo do disposto no artigo 187.º”
Para os casos em que o juiz não tenha determinado, neste momento inicial, a abertura deste incidente, determina o art.º 188.º, n.º 1, do CIRE o seguinte:
Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência nos 10 dias subsequentes.”
Temos portanto que, o incidente será declarado aberto na sentença se o juiz dispuser de elementos que apontem no sentido da insolvência culposa. Se não o for, deverá ser declarado aberto em momento posterior, a requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, da mesma forma, se o processo dispuser de elementos que o justifiquem. Deve, por fim, entender-se que o juiz poderá, neste segundo momento, oficiosamente decidir a abertura do incidente de qualificação, baseando-se, uma vez mais, em elementos probatórios carreados para os autos.
A oportunidade para o juiz apreciar a abertura do incidente, estará na apreciação dos factos que constam da sentença de declaração de insolvência, ou posteriormente, nos termos do art. 188º nº 1 do CIRE, isto é apreciando os fundamentos de factos e de direito que venham a ser alegados pelo administrador de insolvência ou por qualquer interessado.
Se o juiz declara aberto o incidente, tal despacho é irrecorrível, nos termos do que dispõe o art. 188º do CIRE e é imediatamente publicado no CITIUS. Já se o juiz recusar o incidente, tal despache recorrível nos termos gerais.
Feito este enquadramento analisemos agora a primeira questão suscitada neste recurso que é a de saber se em face do despacho anteriormente proferido, o tribunal estava impedido de proferir o despacho sob recurso, por se encontrar esgotado o seu poder jurisdicional quanto a essa questão, por força do que dispõe o art. 613º do C.P.C. ocorrendo ainda violação do caso julgado, como defende o aqui Apelante.
O despacho em causa datado de 21.10.2019, tem o seguinte teor: “Proceda nos exatos termos promovidos”.
A promoção do Ministério Público é a seguinte:
“P. se extraia e me seja entregue certidão integral do presente apenso, acompanhada de certidão, dos autos principais, do requerimento inicial (fls. 3 a 5), da douta sentença que declarou a insolvência, com menção do trânsito em julgado, de fls. 95 a 115, 142 a 155, 158, 175, para efeitos de instauração de inquérito para a averiguação de ilícito criminal, nomeadamente insolvência dolosa.
Mais se p. se extraia cópia dos requerimentos do credor C1… (de fls. 35 e ss e de fls. 70 e 71) e se autue por apenso, abrindo-se incidente de qualificação de insolvência, notificando-se o A.I. para apresentar parecer, nos termos do art. 188.º do CIRE.”
Finalmente, p. se notifique o AI para averiguar e informar, nos termos já requeridos, junto da conservatória de registo automóvel, qual o percurso dos veículos a que se refere o credor C1… e o douto despacho de fls. 60, nomeadamente nos 3 anos que antecederam a declaração de insolvência.”
O despacho em causa – “Proceda nos exatos termos promovidos” - contém uma ordem dada á seção de processos para proceder em conformidade com a promoção do Ministério Público.
Na promoção em causa, entre outras, o Ministério Público promove que seja extraída cópia dos requerimentos do credor C1…, que os mesmos sejam autuados por apenso, abrindo-se incidente de qualificação de insolvência e notificando-se o A.I. para apresentar parecer, nos termos do art. 188.º do CIRE.”
O despacho judicial em causa é um despacho dirigido á seção de processos, pelo que tem necessariamente de entender-se que, essa ordem judicial/funcional dada pelo Juiz á secção apenas contém no seu objeto aquilo que, da promoção do Ministério Pública, pode “caber” na competência da secretaria judicial.
De acordo com o disposto no art. 157º do CPC nº 1 “as secretarias judiciais asseguram o expediente, autuação e regular tramitação dos processos pendentes, nos termos estabelecidos na respetiva lei de organização judiciária, em conformidade com a lei do processo e na dependência funcional do magistrado competente.
E no nº 2 estabelece: “Incumbe á secretaria a execução dos despachos judiciais e o cumprimento das orientações de serviço emitidas pelo juiz, bem como a prática dos atos que lhe sejam por este delegados, no âmbito dos processos de que é titular e nos termos da lei, cumprindo-lhe realizar oficiosamente as diligências necessárias para que o fim daqueles possa ser prontamente alcançado”.
Significa isto que na ordem dada á secretaria para execução não pode ser incluída a segunda parte da promoção “(…) abrindo-se incidente de qualificação de insolvência” –no sentido de se declarar aberto tal incidente - a qual só pode ser observada pelo Juiz.
A secretaria, visada no despacho judicial sob análise não tem poderes, manifestamente para declarar a abertura do incidente qualificação de insolvência, que é da competência do juiz titular do processo nos termos do disposto no art. 188º do CIRE, pelo que ao contrário do entendimento do Recorrente não se pode entender que o despacho proferido tenha de alguma forma declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência.
Posto isto, estamos na presença de um despacho processual de mero expediente dirigido á seção de processos.
Despacho processual ou que recai sobre a relação processual é aquele que, em qualquer momento do processo aprecia e decide uma questão que não seja de mérito (cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC Anotado, vol III, 3º ed, pg 735.).
Em termos de efeitos do caso julgado, as regras estruturantes do processo civil são as constantes dos artigos 619.º, n.º 1, e 621.º do CP Civil, nos termos das quais “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.”e “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.”
Estas normas processuais citadas respeitam o chamado “caso julgado material”, isto é o caso julgado que se constitui sobre uma sentença ou despacho saneador que aprecie o mérito da causa (cfr. art. 619º do CPC), dele emergindo não apenas a eficácia intraprocessual, mas ainda extraprocessual.
O conceito de caso julgado consagrado na lei acolheu a chamada teoria da substanciação nos termos da qual a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, o que implica uma identidade de sujeitos, de causa de pedir e de pedido—cfr. arts. 580.º, n.º 1 e 581.º, n.º 1 do C.P.Civil.
Porém quando está em causa em apreciação pelo tribunal de matérias de caracter adjetivo, que produzem efeitos apenas dentro do processo estamos perante o “caso julgado formal”.
Rege a este propósito o art. 620º que dispõe no sue nº 1 que: “As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm forma obrigatória dentro do processo.”
O nº 2 exclui apenas os despachos previstos no art. 630º (despachos de mero expediente; os proferidos no uso legal de um poder discricionário; decisões de simplificação e agilização processual, decisões sobre as nulidades do art. 195º e decisões de adequação formal aí previstas).
Esta norma merce ainda a exceção especialmente prevista no art. 595º nº 3 do CPC que estende o caso julgado formal quando o tribunal aprecia as questões previstas nº nº1 al a) (quando conhece de exceções dilatórias e nulidades processuais).
O n.º 2 do art. 620º do CPC é expresso ao excluir das decisões que formam caso julgado formal «os despachos previstos no artigo 630.º». Entre estes despachos contam-se «os despachos de mero expediente» e «os proferidos no uso legal de um poder discricionário».
Nos termos do artigo 152.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, «os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes; consideram-se proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador».
Temos assim que os despachos em que o juiz se limita a ordenar a prática de atos processuais previstos na normal tramitação do processo, a fazer prosseguir o processo de acordo com a sua configuração legal, são despachos de mero expediente e não formam sequer caso julgado formal.
O despacho sub judice que determinou que a seção procedesse em conformidade com a promoção do Ministério Público é um despacho de mero expediente e não forma por isso sequer caso julgado formal.
Em interpretação do art.º 188.º do CIRE, afirma Menezes Leitão, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2018. 10.ª Edição, Almedina, pág. 238, que “O administrador da insolvência e os interessados na qualificação da insolvência como culposa têm 15 dias, após a realização da assembleia de apreciação do relatório, para alegar os fundamentos que possuem para o efeito (n.º 1), sendo então emitido despacho a declarar aberto o incidente, o qual é irrecorrível (n.º 2).”
Também sobre o mesmo preceito Alexandre de Soveral Martins in Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, 2.ª Edição, Almedina, pág. 402, defende que “Tendo sido apresentado o requerimento previsto no art.º 188.º, n.º 1, num processo de insolvência em que ainda não tinha sido aberto o incidente de qualificação de insolvência, o juiz deve conhecer os factos ali alegados, e «se considerar oportuno», declara aberto o incidente. Não parece, no entanto, que o juiz deva apreciar o requerimento apenas de acordo com critérios de oportunidade. Também aqui, o juiz abre o incidente se considerar que dispõe de elementos que o justifiquem. A analogia com o disposto no art.º 36.º, 1, i), assim o impõe.”
Neste despacho é feita uma apreciação liminar dos fundamentos invocados. Não podemos ainda esquecer que, tal como ocorre relativamente à Petição Inicial no processo de insolvência, o requerimento inicial do incidente de qualificação da insolvência terá que conter os factos que integram os pressupostos do incidente (cf. art.º 23.º do CIRE). Estes factos são essenciais para o juiz poder apreciar da oportunidade de declarar aberto o incidente.
Ora, no despacho em causa - que apenas contém uma ordem dada á secção de processos - o tribunal não proferiu qualquer apreciação liminar que fosse, dos fundamentos invocados pelo credor, inexistindo pois qualquer declaração prévia do tribunal, no sentido de ter declarado abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Podemos assim concluir que, o incidente de qualificação da insolvência não foi declarado aberto na sentença nem no despacho datado de 21.9.2019, pelo que, nada impedia o Juiz de, uma vez cumprida a sua ordem pela secretaria judicial apreciar a oportunidade e decidir a abertura do incidente de qualificação, baseando-se nos elementos probatórios carreados para os autos.
Improcede pois a primeira questão apreciada.
Da tempestividade do requerimento.
Analisemos agora a segunda questão, a questão da tempestividade do requerimento, através do qual se pretendeu desencadear a abertura do incidente de qualificação.
Como já tivemos oportunidade de referir, o incidente será declarado aberto na sentença se o juiz dispuser de elementos que apontem no sentido da insolvência culposa. Se não o for, deverá ser declarado aberto em momento posterior, a requerimento do administrador da insolvência ou de qualquer interessado, da mesma forma, se o processo dispuser de elementos que o justifiquem.
No caso em apreço, o incidente foi iniciado, (mediante promoção do Ministério), com o requerimento que o credor C… juntou ao apenso “A” - Apreensão de Bens - em 28.10.2019.
Através de despacho proferido já no Apenso C – Incidente de Qualificação de Insolvência - iniciado com tal requerimento, o tribunal proferiu o despacho ora sob recurso, em que considerou ser o mesmo extemporâneo por se mostrar esgotado o prazo estabelecido no art. 188º nº 1 do CIRE, dizendo que, “tal requerimento, previsto no nº 1 do art. 188º do CIRE, apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo administrador – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo.”
Dispõe o Artigo 188.º nº 1 do CIRE o seguinte:
“Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.”
O prazo em discussão nesta ação é o prazo fixado para o administrador da insolvência ou qualquer interessado vir alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação.
Esse prazo, por força da norma legal citada é o prazo de 15 dias, contado dos seguintes momentos:
- da assembleia de apreciação do relatório;
- da junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE.
No caso em apreço sabemos, através da sentença de insolvência que foi dispensada a realização da assembleia de apreciação do relatório, pelo que o prazo terá de contar-se necessariamente da data de junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE.
Haverá pois que ter em consideração a data em que tal relatório foi junto aos autos.
Da sentença de insolvência datada de 21.4.2016 resulta que foi proferido o seguinte despacho: “Notifique a/o A.I. para em 45 dias juntar o relatório do artº 155º do CIRE, devendo ainda deste notificar os credores para se pronunciarem sobre o mesmo, bem como da exoneração do passivo, sob pena de nada dizendo se entender como não oposição. Mais deve o/a A.I. comprovar nos autos tais notificações.”
Da consulta do processo eletrónico (processo principal de insolvência) consta que por despacho de 23-06-2016 foi admitido o relatório do artº 155º do CIRE, junto a fls. 95 e ss, o que significa que tal relatório foi junto pelo menos até àquela data.
Significa isto que, até 15 dias após a junção aos autos daquele relatório (o relatório a que se refere o artigo 155.º do CIRE), que teve lugar pelo menos em data anterior a 23-06-2016, podiam o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
Aquele prazo terminou assim em Julho de 2016.
Estando em causa aferir a tempestividade do requerimento do credor datada de 28.10.2019, verifica-se que, o requerimento em apreço, tal como entendeu o tribunal a quo é extemporâneo, no sentido que foi apresentado decorridos mais de três anos do prazo estabelecido no art. 188º nº 1 do CIRE.
Uma vez que a lei não estabelece uma cominação para o incumprimento do prazo, coloca-se a questão, que vem sendo debatida na jurisprudência da natureza do prazo, isto é saber se se trata de um prazo meramente “ordenador” ou “regulador”, que permite a prática do ato fora daquele prazo, ou se se trata de um prazo perentório cujo decurso que faz precludir o direito de o praticar.
O entendimento do tribunal a quo foi o de que : “o prazo de 15 dias previsto no nº 1, do art.º 188º, ou o de 45 dias previsto na alínea a), do nº 1, do art.º 191º, decorram sem que o administrador ou qualquer interessado aleguem, fica precludido o direito de o fazerem;
Já o Ministério Público defende neste recurso que “ O prazo, previsto no n.º 1 do art. 188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo perentório mas meramente ordenador ou regulador” e “Se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz poderá determinar ex officio a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não vemos, por maioria de razão, que o mesmo esteja impedido de o fazer, a requerimento fundamentado de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art. 188º, n.º 1, do CIRE.”.
Antes de mais convirá efetuarmos desde já uma precisão.
O que está em causa neste recurso é aferir as consequências de ter sido ultrapassado o prazo estabelecido no art. 188º nº 1 do CIRE para o credor alegar, mediante requerimento escrito, fundadamente o que tiver por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa.
Esta questão não se confunde, a nosso ver, com uma outra que vem sendo debatida jurisprudencialmente que é a da natureza do prazo fixado para o administrador da insolvência apresentar o seu parecer.
Com efeito, estabelece o nº 3 do art. 188º do CIRE o seguinte:
“3 - Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.”
Estamos aqui num momento processual distinto da situação prevista no número 1, em que o incidente foi já declarado aberto e na sua tramitação é prevista a emissão de parecer pela Administrador de Insolvência.
Trata-se da prática de um ato obrigatório da tramitação do incidente já aberto e em curso e deve ser entendido como um dever funcional do administrador que não se extingue pelo decurso do prazo legalmente fixado para a sua apresentação, tal como vem sendo entendido pela melhor jurisprudência.
Considera-se, com efeito, a este propósito que a obrigação de apresentação desse parecer corresponde a um dever funcional do administrador e que, sendo um elemento relevante para a decisão, não pode deixar de ser admitido em momento posterior, devendo mesmo o juiz providenciar junto do administrador pela emissão e junção do parecer e, persistindo o administrador na sua omissão, podendo até haver lugar à sua destituição por justa causa na medida em que está em causa um incumprimento reiterado dos seus deveres funcionais.
Tendo em consideração o carácter essencial e obrigatório do aludido parecer e o facto de estar em causa um dever funcional, entende-se que o aludido prazo é meramente “ordenador” e sem carácter preclusivo do dever de apresentar o parecer, ainda que tardiamente.
Citamos, a título de exemplo os acórdãos desta Relação de 14 de março de 2017 (relator José Carvalho); Ac. Rel. Porto de 9.10.2018, (relator Estelita de Mendonça), todos disponíveis in www.dgsi.pt. e da Rel. Porto de 23.2.2012, (relator Pinto de Almeida), Ac. Rel. Porto de 29.10.2009, (relator Filipe Caroço); Ac. Rel. Guimarães de 2.6.2011, (relator António Sobrinho); Ac. Rel. Guimarães de 14.11.2011, (relator Manso Rainho), estes últimos citados apesar de terem sido proferidos antes das alterações introduzidas no CIRE pelo DL nº 16/2012, de 20-04 – e o artigo 188º foi um dos alterados por este diploma – porquanto versam sobre a mesma questão.
Diferente é, porém a questão em apreço, já que não está em causa o prazo para o administrador de Insolvência apresentar o relatório, prazo fixado no nº 3 do art. 188º do CIRE, mas sim o prazo estabelecido no nº 1 da mesma norma, através do qual se pretende desencadear a abertura do incidente de qualificação, cumprindo averiguar se tal requerimento apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei e se não poderá ser atendido, para esse efeito, o requerimento (alegações) apresentado pelo administrador – ou por qualquer interessado – após o decurso desse prazo.
O prazo em causa fixa o período temporal de 15 dias a quem, nos termos da norma citada norma, tem legitimidade, para dar início ao incidente.
Como vimos, não tendo o juiz declarado na sentença a abertura do incidente de qualificação da insolvência (o que deve ocorrer quando disponha de elementos que justifiquem a sua abertura- art. 36º do CIRE), não fica ainda assim precludida a possibilidade do incidente vir a ser aberto mais tarde, pois o administrador de insolvência e qualquer interessado poderão alegar, mediante requerimento escrito, fundadamente o que tiverem por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa. Dispõe para o efeito, como vimos, do prazo de 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, ou no caso da mesma não ter lugar, após a junção daquele relatório.
Também o art. 191.º do CIRE estabelece idêntico prazo para a dedução do incidente limitado de qualificação de insolvência, aplicável nas situações previstas no n.º 1 do artigo 39.º e no n.º 5 do artigo 232.º do CIRE ao estabelecer que:
“O prazo para o administrador da insolvência ou qualquer interessado alegar o que tiver por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa é, nos casos do n.º 1 do artigo 39.º, de 45 dias contados da data da sentença de declaração de insolvência e, quando aplicável, o prazo para o administrador de insolvência apresentar o seu parecer é de 15 dias”.
Trata-se do estabelecimento de um prazo que reflete uma mudança do paradigma deste incidente introduzido pela Lei 16/2012 de 20/04, que alterou a abertura oficiosa do incidente com a declaração de insolvência em todos os processos (exceto no caso de apresentação de plano de pagamentos aos credores – art. 259º nº 1).
Com efeito, como se pode ler, desde logo, na exposição de motivos da proposta de Lei n.º 39/XII (que veio dar origem à Lei 16/2012): “outra das novidades consiste na transformação do atual incidente de qualificação da insolvência de carácter obrigatório num incidente cuja tramitação só terá de ser iniciada nas situações em que haja indícios carreados para o processos de que a insolvência foi criada de forma culposa pelo devedor ou pelos seus administradores de direito ou de facto, quando se trate de pessoa coletiva (artigos 36.º, 39.º, 188.º, 232.º e 233.º)”.
Assim sendo, e ao contrário do que acontece com o parecer do Administrador de Insolvência a que alude o nº 3 do art. 188º do CIRE, o nº 1 do art. 188º não prevê um prazo para a prática de um ato que seja obrigatório, por fazer parte de um procedimento ou incidente já em curso, mas sim um prazo de iniciativa processual – que pode ou não ser exercida – tendo em vista a eventual abertura do incidente de qualificação da insolvência.
Deparamo-nos nesta matéria, com alguma jurisprudência que será minoritária, que defende que o prazo aludido no art.º188º, n.º 1, do CIRE, por se tratar de um prazo de “iniciativa processual”, quando o incidente de qualificação de insolvência ainda não foi determinado oficiosamente pelo tribunal na sentença que decretou a insolvência, deve ser considerado um prazo perentório. (neste sentido cf. os Acórdãos da Relação de Coimbra de 10.03.2015, processo nº631/13.9-L.C1, e da relação de Guimarães de 25.02.2016, processo nº1857/14.3TBGMR-DG1, ambos em www.dgsi.pt.). Para este entendimento, releva no essencial, a ideia de que, no atual quadro legal, o juiz apenas poderá, oficiosamente, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência na sentença que declara a insolvência, se dispuser então de elementos relevantes; para daí se concluir que, fora desse momento, apenas poderá fazê-lo na sequência de “iniciativa processual” formulada pelo administrador da insolvência ou por qualquer outro interessado, dentro do prazo assinalado na lei.
Uma outra jurisprudência, considera que o prazo, previsto no n.º1 do art.º188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deve ser considerado como um prazo perentório mas meramente “ordenador” ou “regulador”, tal como se decidiu nos Ac. Rel. Porto de 14.3.2017, proc. 2037/14.3 T8VNG-E.P1, (relator José Carvalho), Ac. Rel. Guimarães de 30.5.2018, proc. 616/16.3 T8VNF-E.G1, (relatora Eugénia Cunha), entendimento este que foi acolhido recentemente pelo STJ no acórdão proferido em 13.7.2017, proc. 2037/14.3 T8VNG-E.P1.S2, (relator João Camilo).
A finalidade do processo de insolvência e do propósito de se evitarem insolvências fraudulentas ou dolosas que é prosseguido com o incidente de qualificação da insolvência, permitindo a quem tenha conhecimento de factos que permitam a apreciação da conduta do devedor, com a finalidade da responsabilização do mesmo, caso se prove a culpa no surgimento da situação de insolvência, poderia ser posta em causa com o entendimento que aqueles estão sujeitos a alegar os factos num prazo perentório, que ultrapassado faz precludir o direito de virem dar conhecimento dos mesmos no processo.
Daí que nos inclinemos para a solução que foi recentemente acolhida pelo STJ no acórdão citado.
Porém, isto não quer significar que o requerimento do credor devesse ter sido aceite.
É que mesmo tratando-se dum prazo “regulador”, “ordenador”, de um prazo destinado a disciplinar a tramitação processual, o ato de iniciativa processual por parte do credor de insolvência mostra-se praticado mais de três anos após o decurso do mesmo.
Ora, a lei fixou um prazo concreto e um prazo que se reconhece curto. Não é o mesmo que não ter fixado qualquer prazo, nem equivale a dizer que o ato possa ser praticado em qualquer altura até ao encerramento da insolvência.
Por um lado, não reconhecemos ao credor qualquer dever funcional que se imputa ao administrador de insolvência, o qual tendo conhecimento de elementos relevantes para efeitos de qualificação, terá o dever – decorrente das funções para as quais foi nomeado – de levar esses factos ao conhecimento do juiz para eventual abertura do incidente de qualificação, essa iniciativa não pode ser encarada como um ato obrigatório que deva ser praticado pelo administrador em qualquer circunstância (ele apenas será praticado se existirem factos relevantes para efeitos de qualificação) e que, como tal, possa ser controlado pelo juiz.
Na verdade, sobre o credor da insolvência não incumbem tais deveres.
Por outro lado, admitir a prática do ato do credor da insolvência, atento o tempo entretanto decorrido – mais de três anos - tal implicaria a nosso ver, a violação do princípio decorrente do art. 2º da CRP.
Com efeito, o princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição, postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas.
Os citados princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança assumem-se como princípios classificadores do Estado de Direito Democrático, e implicam um mínimo de certeza e segurança nos direitos das pessoas e nas expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado.
Ora, por razões de segurança e de certeza jurídica, os direitos subjetivos, quando judicialmente invocados, devem ser exercidos dentro de um processo e de acordo com determinadas regras processuais.
Aceitar que um credor da insolvência venha, decorridos mais de três anos e meio do decurso do prazo processual estabelecido no CIRE, invocar factualidade eventualmente relevante para qualificar a insolvência como culposa e eventualmente com tal situação vir a afetar determinadas pessoas, sem sequer, note-se, ter invocado qualquer conhecimento tardio dos factos ou sem sequer invocar qualquer causa justificativa para a prática não atempada do ato, implica violação dos princípios da segurança e de certeza jurídica e nessa perspetiva não deverá ser admitido.
Assim sendo e pelo exposto, não podia o tribunal dar seguimento ao incidente nos moldes suscitados, pelo que, se bem com fundamentação diversa da constante no despacho, deverá a decisão sob recurso ser confirmada.

V-DECISÃO
Pelo exposto e em conclusão acordam os Juízes que compõem este tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Sem custas.

Porto, 24 de Março de 2020
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró