Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
245/09.8GCVRL.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA LEONOR ESTEVES
Descritores: FOTOGRAFIA ILÍCITA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RP20120104245/09.8GCVRL.P1
Data do Acordão: 01/04/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Pratica 6 crimes de Gravações e fotografias ilícitas, do art. 199º, n.º 2, al. a), do CP, o agente que, contra a vontade de 6 menores e dos respetivos representantes legais, os fotografou e/ou filmou, em traje de banho, de forma individualizada e destacada do espaço em que se encontravam – atuação demonstrativa de que a sua intenção era retratar os corpos dos menores e não a paisagem por onde eles se movimentavam.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso Penal nº 245/09.8GCVRL.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

1.Relatório
No 1º juízo do Tribunal Judicial de Vila Real, em processo comum com intervenção do tribunal singular, foi submetido a julgamento o arguido B…, devidamente identificado nos autos, tendo no final sido proferida sentença, na qual se decidiu condená-lo, pela prática de seis crimes de devassa da vida privada, ps. e ps. pelo art.º 192º nº 1 al. b) do C. Penal, em outras tantas penas parcelares de 100 dias de multa e, em cúmulo jurídico, na pena única de 400 dias de multa à taxa diária de 7€.
Inconformado com a sentença, dela interpôs recurso a arguido, pugnando pela alteração da matéria de facto provada e a sua consequente absolvição ou, assim se não entendendo, pelo reenvio do processo para novo julgamento, para o que apresentou as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida nos autos por se entender que se impõe a modificação da decisão do tribunal “quo” sobre a matéria de facto e de direito a qual se impugna.
2. Impugna a decisão recorrida por duas razões distintas:
a) Matéria de facto erradamente julgada;
b) A errada subsunção jurídica dos factos.

PONTOS DE FACTO QUE O RECORRENTE CONSIDERA INCORRECTAMENTE JULGADO (art. 412°., n° 3, al. a), do CPP):
3. Da prova produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento, resulta que o Arguido não praticou os seis crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192.°, n.° l, do C.P., pelos quais foi condenado.
4. A factualidade dada como provada não encontra suporte na prova produzida em Audiência de Discussão e Julgamento, não decorrendo, da mesma, a prática de qualquer acto, pelo ora recorrente, subsumível no tipo legal de crime pelo qual foi condenado.
5. Compulsada a prova produzida, entende o recorrente que a mesma impunha a sua absolvição, pois que não existe prova suficiente que permitisse ao Tribunal a quo dar como provado que o ora recorrente teve a intenção de devassar exigida pelo artigo 192.°, n.° l, do C.P., nem praticou os factos tal como vêm descritos nos pontos 2), 4), 6), 7) e 8) da sentença, pelos quais foi condenado.
6. Da análise integral dos depoimentos prestados pelas testemunhas em Audiência de Discussão e Julgamento (e nos quais assentou a convicção do Tribunal) não se vislumbra de que parte dos mesmos o Tribunal a quo se socorreu para dar como provado que o ora recorrente agiu com intenção de devassar a vida privada das crianças, uma vez que nenhum deles conseguiu demonstrar essa intenção.
7. O arguido foi vítima de uma efabulação elaborada pelas denunciantes, que pretenderam fazer do arguido uma pessoa que ele não é, criando uma personagem à medida da história que construíram, na qual o arguido surge como um “caçador furtivo” que tirava fotografias às crianças “para supostamente as colocar na Internet”.
8. As testemunhas revelaram animosidade em relação à pessoa do arguido.
9. A acusação deduzida pelo Ministério Público não foi elaborada de forma objectiva e imparcial, antes denota uma tendência para fazer juízos de valor sobre o comportamento do arguido, dotando-o de uma forte carga negativa.
10. O Ministério Público deduziu acusação estribando-se em boatos completamente desfasados da realidade e em convicções pessoais de testemunhas inebriadas por um fundamentalismo justiceiro com o qual a verdadeira Justiça não pode compactuar.
11. As testemunhas não podem arrogar-se da faculdade de presumir o que se passou na mente do arguido e as fotografias juntas aos autos não são elucidativas de qualquer intenção de devassar.
12. Intenção é o acto de escolher mentalmente um plano de acção a seguir, sendo, portanto, um pensamento reservado apenas ao sujeito, um elemento subjectivo.
13. Sendo um elemento subjectivo e reservado, e não sendo possível aferi-la de forma directa, a intenção do indivíduo tem necessariamente de ser deduzida da exteriorização de actos, gestos ou palavras que indiciem uma vontade de agir em determinado sentido.
14. A convicção do Tribunal a quo, relativamente à matéria fáctica dada como provada - nomeadamente, a intenção de devassar -, em tudo assentou nos depoimentos e nas fotografias juntas com os autos.
15. As fotografias, da forma que se encontram registadas - desfocadas e captadas ao longe -, objectivamente consideradas, analisadas de uma forma livre de preconceitos, não revelam qualquer intenção de devassar quem quer que seja, nem se vislumbra como se pode defender que as mesmas mostram uma intenção de captar imagens de crianças de uma forma “furtiva”.
16. Para além do mais, resulta dos depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento que a intenção do arguido nunca foi esconder-se.
17. A prova que resultou da Audiência é muito reduzida, e mesmo inexistente no que diz respeito ao que aqui nos interessa - intenção de devassar a vida privada das crianças.
18. Da análise dos depoimentos prestados em Audiência, é inequívoca e incontestável a conclusão que não existe prova que permitia sustentar a condenação do recorrente.
19. O Tribunal a quo formou a sua convicção no facto de as fotografias terem sido tiradas a crianças.
20. Sendo certo que nada se sabe acerca das circunstâncias ou motivações que estão por detrás da captação dessas imagens.
21. Esse facto, por si só, não é suficiente para condenar o arguido ora recorrente como autor material de seis crimes de devassa da vida privada.
22. Do facto do recorrente ter tirado fotografias a crianças, não se pode presumir, como erradamente fez o Tribunal a quo, que ele tinha intenção de devassar a sua vida privada.
23. O Tribunal a quo não só não dá o benefício da dúvida, aplicando o princípio in dubio pro reo, como ainda parte de uma presunção para condenar o recorrente.
24. O arguido deve beneficiar do princípio in dubio pro reo, interpretado no sentido de que a persistência de uma dúvida razoável após a produção de prova tem de conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido.
25. O Tribunal a quo sobrevalorizou o facto de as fotografias terem captado a imagem de crianças.
26. O Tribunal a quo deu como assente a factualidade ora impugnada mediante um rebuscado raciocínio de índole persecutória, inequivocamente sustentado numa presunção de culpa, inaceitável face à Constituição da República Portuguesa, cujo art. 32.° n.° 2 há muito baniu do Processo Penal.
27. Entende o recorrente que a decisão de que ora se recorre padece, pois, de flagrante erro notório na apreciação da prova, pelo que estamos na presença de um vício da decisão recorrida nos termos do art. 410.°, n.° 2 al. c) do Código de Processo Penal.

DO RECURSO DA MATÉRIA DE DIREITO - A ERRADA SUBSUNCÂO JURÍDICA DOS FACTOS (art. 412°., n° 2, do CPP):
a) Do enquadramento jurídico penal:
28. O recorrente foi condenado como autor material e em concurso real, de seis crimes de devassa da vida privada, p. e p. pelo artigo 192.°, n.° l, al. b), do Código Penal, porquanto o Tribunal a quo considera encontrarem-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do mencionado tipo legal de crime.
29. Para que o ora recorrente fosse condenado pela prática dos seis crimes de devassa da vida privada, necessário era provar que ele teve ilegítima intenção de devassar a vida privada das pessoas, tendo, com tal intuito, captado as fotografias das crianças.
30. Contudo, a inexistência de prova da prática do crime em análise pelo aqui recorrente impunha a sua absolvição, pois que, o recorrente foi condenado sem que do decorrer da Audiência de Discussão e Julgamento se tivesse feito prova de qualquer acto susceptível de preencher o referido tipo legal de crime.
31. Violou, assim, o Tribunal a quo, o disposto no artigo 192.° do C. Penal.
b) Da livre apreciação da prova:
32. A valoração da prova cabe exclusivamente ao julgador, que goza da prerrogativa da livre apreciação da prova consagrada no art. 127.° do Código de Processo Penal, contudo tal não se pode confundir com apreciação arbitrária da prova, e muito menos com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
33. No caso sub judice, os factos dados como provados na sentença não têm correspondência com os depoimentos prestados perante o Tribunal a quo (e que não poderiam deixar de ser considerados determinantes para a formação da sua convicção), resultando exclusivamente de um juízo iminentemente presuntivo e impregnado de subjectivismo.
34. Ora, face à lei processual penal, é absolutamente inadmissível aceitar a fundamentação repetida pelo Tribunal a quo no que respeita às regras da experiência comum, com o intuito de conceder alguma, embora muito débil, fundamentação à sua decisão, pois com base nessas alegadas regras da experiência sustenta um juízo de prognose desfavorável ao arguido. A livre apreciação da prova não pode atingir tal magnitude, que ultrapassa indubitavelmente os limites do razoável, do permitido, do legal.
35. O único facto inabalável é que: as testemunhas não conseguiram demonstrar a intenção de devassar do arguido.
36. Como tal, e porque a Lei não permite que se presuma uma conduta prejudicial ao arguido, outra solução não resta que não seja dar como não provada a participação do ora recorrente nos factos de que se recorre e pelos quais foi acusado, julgado e, a final, condenado.
37. Impõe-se, assim, que o Tribunal ad quem afira da arbitrariedade da decisão claramente violadora dos critérios legais impostos ao julgador na valoração da prova, que não se pode bastar com “regras da experiência comum”.
38. Ao inexistir correspondência lógica entre os factos dados como provados e a prova produzida, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 127.° do Código de Processo Penal.
c) Do princípio in dúbio pro reo:
39. Sempre que o julgador tenha dúvidas quanto à responsabilidade criminal do agente, deverá decidir no sentido mais favorável àquele, aplicando o princípio in dúbio pró reo, que deve ser aplicado sem qualquer restrição, não só nos elementos fundamentadores da incriminação, mas também na prova de quaisquer factos cuja fixação prévia seja condição indispensável de uma decisão susceptível de desfavorecer, objectivamente, o arguido.
40. Qualquer caso de dúvida no espírito do Tribunal deve dar lugar a uma absolvição por falta de prova inequívoca, este é, de resto, o conteúdo com que se afirma o princípio da presunção de inocência do arguido até prova irrefutável em contrário.
41. Ao não ter aplicado o principio in dubio pro reo, o Tribunal a quo violou o preceituado no art. 32.°, n.° 2 da Lei Fundamental.
42. O Tribunal a quo condenou o ora recorrente apenas por convicção, com base, unicamente, numa presunção de culpa, subjectivamente considerada que, à revelia dos princípios supra enunciados, valorou prova objectivamente inexistente.
43. De facto, o Tribunal a quo, acreditando ab initio na culpa do arguido, sindicou a sua decisão através de um juízo presuntivo, discricionário e inelutavelmente carecido de suporte factual.
44. A insuficiência da prova produzida para a decisão, indicia a verificação do vício previsto no art. 410.°, n.° 2, al. a), do C.P.P., ou seja, o Tribunal a quo fundamenta a condenação do recorrente em prova insuficiente para alcançar a decisão dos presentes autos, bem como a verificação do vício previsto na al. c) do mesmo preceito legal - erro notório na apreciação da prova.
45. Tudo visto, e em conclusão, nunca o recorrente poderia ter sido condenado pela prática dos seis crimes de devassa da vida privada.
46. Assim sendo, o Tribunal a quo violou, não só o art. 192.°, n.° l, do Código Penal, ao ter proferido decisão condenatória sem que o tipo legal de crime se encontrasse preenchido, como também o artigo 127.° do C. P. Penal, e ainda o art. 32.°, n.° 2 da Lei Fundamental.

Na resposta, o MºPº defendeu a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, concluindo como segue:

1 - O recorrente tem o ónus de explicar e demonstrar ao Tribunal ad quem em que medida é que determinados meios de prova contribuem para a decisão, em sede de matéria de facto, que pretende ver acolhida, e o local próprio é a motivação onde deveria individualizar, ponto por ponto, os factos que entende terem sido mal julgados pelo Juiz a quo devendo ser muito específico e concreto na enunciação e qual a tese que deveria ter sido perfilhada.
2 - Resulta, manifestamente, da motivação apresentada pelo recorrente, uma deficiente, em termos substantivos, motivação, uma vez que não houve a mínima preocupação de observar os formalismos prescritos na lei, a que alude o art.° 410°, n.° 2 do Código de Processo Penal.
3 - Não deve ser formulado ao recorrente um convite para aperfeiçoar, nesta parte, a motivação de recurso uma vez que não estamos perante uma mera deficiência na formulação das conclusões mas sim a uma reformulação dos próprios termos da motivação de recurso
4 - Deve, nesta parte, o presente recurso ser rejeitado nos termos do art. 420°, do Código de Processo Penal, por violação do art. 412°, n.° 3 e n.° 4, do Código de Processo Penal.
5 - O recurso intentado pelo arguido descontextualizou completamente a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e apenas fez verter na motivação as partes que interessam ao recorrente, olvidando-se e dissimulando toda a outra prova produzida.
6 - Para existir erro notório na apreciação da prova terá que ocorrer uma falha grosseira e ostensiva na análise da mesma, percepcionada pelo cidadão comum, atestando de que se deram provados factos incompatíveis entre si.
7 - Falece qualquer tipo de razão ao recorrente em ver sindicada a forma com o tribunal recorrido valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência, valoração que é livre de fazer, em harmonia com o art. 127°, do Código de Processo Penal, conjugado com o princípio da imediação e oralidade, pedras basilares enformadoras do processo penal.
8 - A douta sentença recorrida não evidencia qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do recorrente. Evidentemente não concretiza tal situação a circunstância de, havendo duas versões dos factos, o tribunal ter optado por uma delas.
9 - Inexiste a necessária notoriedade que qualifica o erro na apreciação da prova a que se refere o art. 410°, n.° 2, al. c) do Código de Processo Penal.
10 - Porque não há dúvida razoável, não há aplicação do princípio in dubio pro reo.
11 - A matéria de facto está definitivamente assente, encontram-se preenchidos os elementos constitutivos do tipo de crime de devassa da vida privada p. e p. no art. 192°, n,° l, al. b), do Código Penal.
12 - Pelo facto das imagens serem captadas em lugar público, entendido este no sentido de lugar de livre acesso ao público, as imagens foram captadas de forma oculta, sendo que os menores foram captados de forma individualizada, imagens essas que ficaram registadas em suporte físico passível de ser visualizado, o cartão de memória da máquina fotográfica, o que atentam com o núcleo essencial do direito à imagem e à reserva da vida privada desses mesmos menores.
13 - O elemento subjectivo, o dolo específico que se consubstancia na intenção de devassar, o recorrente ao ter esse comportamento actuou com esse específico propósito, assim, dolo específico, a prova é essencialmente documental, as fotos, e basta visualiza-las e ter em conta o depoimento do fotógrafo perito, que desde logo se conclui pela prática por parte do arguido do ilícito que foi acusado, isto é, bastou o arguido tê-las captado como captou, no local e nos trajes em que os menores se encontravam e tê-las guardado.
14 - Existe intenção de devassar provada.
15 - Não há errada subsunção jurídica dos factos, nem há violação do art. 192°, n.° l, al. b), do Código Penal.
16 - Não há insuficiência da prova, art. 410°, n.° 2, al. a), do Código de Processo Penal.

O recurso foi admitido.
Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer no qual, considerando que dos factos dados como provados não é possível deduzir, sem mais, que as fotografias feitas pelo recorrente tinham por objectivo devassar a vida privada dos menores fotografados e que o crime p. e p. pelo art. 192º nº 1 do C. Penal exige um dolo específico, entendeu não ser possível considerar preenchida a previsão de tal ilícito criminal, mas eventualmente a do art. 199º do mesmo diploma legal. De qualquer modo, porque ambos os crimes são de natureza semi-pública e, estando em causa um bem jurídico eminentemente pessoal, existem tantos crimes quantas as crianças que viram a sua intimidade posta em causa, não é possível determinar quantos os menores cujos direitos foram violados já que vem referido na decisão recorrida que “os pais das crianças visadas a fls. 49 e 50, não estiveram presentes, por não desejarem procedimento criminal”, e não se especificou quais os que desistiram da queixa e em que momento o fizeram. Por isso, considerando verificado o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, pronunciou-se no sentido da anulação do julgamento e do reenvio do processo para novo julgamento.
Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º C.P.P., sem que tivesse havido resposta.
Colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre decidir.

2.Fundamentação
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos:

1) No dia 19 de Julho de 2009, pelas 14.30 h, o arguido B… dirigiu-se para o rio …, na …, em Vila Real, onde sabia porque já lá tinha ido noutras ocasiões, que diversas crianças ali se encontravam a tomar banho.
2) Como pretendia fotografar e filmar as crianças em fato de banho, levou consigo uma máquina fotográfica, que também realiza pequenas filmagens, que grava num cartão de memória, no caso de marca Panasonic, Modelo … e capacidade de 1 GB.
3) Para melhor arquivar as imagens, o arguido criava várias pastas no cartão, umas com fotografias e outras com vídeo.
4) Quando se aproximou do rio e para não ser visto pelas crianças e pelos pais delas, que também estavam junto ao rio, o arguido escondeu-se atrás de uns arbustos e começou a fotografar e filmar as crianças.
5) Entre outras crianças que se encontravam no local, fotografou, filmou e gravou no cartão de memória da máquina fotográfica que trazia, os irmãos, C…, de 16 anos de idade, D…, de 12 anos de idade e E…, de 9 anos de idade, filhos de F…; G…, de 9 anos de idade, filho de H…; I…, de 11 anos de idade, filha de J… e K…, de 11 anos de idade, filha de L….
6) Quando se preparava para tirar outras fotografias e imagens de vídeo às crianças, o arguido foi abordado pela mãe de uma das menores, a L…, que lhe retirou o cartão de memória da máquina fotográfica e o entregou à GNR, que foi chamada ao local.
7) O arguido sabia que as seis crianças e os pais não autorizavam que as fotografasse e filmasse a tomar banho e em fatos de banho, assim como as outras crianças que se encontravam no local e também fotografou e filmou, mas mesmo assim, e sabendo que não tinha autorização, filmou e fotografou as crianças perturbando-lhes o descanso e convívio que estavam a ter no rio …., contra a sua vontade e dos seus pais.
8) Agiu o arguido livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
9) O arguido tem os antecedentes criminais que constam do seu CRC que pela sua extensão não se discrimina quanto ao processo, data dos factos e condenação, referindo-se apenas que já foi condenado por furto, furto de viatura e ofensas corporais, furto de veículo e detenção e uso de estupefacientes, furto qualificado, deserção, crime frustrado de furto qualificado, vários furtos qualificados, condução de veículo sem carta, dano, violação de proibições, e várias conduções de veículo em estado de embriaguez.
10) O arguido encontra-se a residir e trabalhar no Luxemburgo como emigrante.
11) M… faleceu em 30 de Setembro de 1991, no estado de casada com B…, conforme assento de fls. 122.

Considerou-se como não provado tudo o mais que consta da contestação.
A motivação da decisão de facto foi explicada como segue:

A convicção do tribunal quanto aos factos provados teve como suporte a apreciação crítica de toda a prova produzida em audiência de julgamento, seja a documental composta pelas fotografias existentes em inquérito – fls. 47 a 50 – várias vezes analisadas ao longo do julgamento, pois com as mesmas foram confrontadas peritos e testemunhas; além de outras, estas fotografias foram visualizadas e analisadas pelo tribunal logo no início da audiência de julgamento, em computador existente na sala de audiências (o do oficial de diligências) no respectivo suporte, isto é o cartão de memória que de igual modo se encontra apreendido à ordem destes autos, consoante consta do respectivo auto de fls. 5.
De igual modo se ponderou ao assento de óbito junto com a contestação, cujo original se mostra a fls. 122, para dar como provado o único facto da contestação que se deu como provado e que consta do ponto 11), bem como as fotografias juntas com a contestação.
Assinale-se que inicialmente o tribunal nomeou como perito um fotógrafo, com vasta experiência profissional e especiais conhecimentos técnicos para lidar com a leitura do cartão de memória, mas também prestar esclarecimentos que se mostram gravados, sendo que o mesmo de forma objectiva e imparcial (por apelo à sua experiência profissional e especiais conhecimentos técnicos como se impõe ao perito na prova pericial) e quanto ao plano ou ângulo em que as imagens do vídeo e fotografias foram colhidas, emitiu um parecer objectivo no sentido que as imagens foram colhidas por um “caçador furtivo” tendo fundamentado de forma clarividente e lógica tal conclusão, nomeadamente considerando que as imagens foram feitas a partir de “pontos estratégicos”, onde o arguido se encontrava escondido, sendo tal forma de fotografar “anormal” para quem se quer limitar a fotografar paisagens, como foi a versão do arguido na sua contestação escrita.
E a tal respeito, diga-se desde já o seguinte: o arguido autorizou que o julgamento se fizesse na sua ausência e não querendo estar presente como é óbvio não prestou quaisquer declarações; nessa medida, fica o tribunal sem saber a sua versão dos factos, sendo certo que aquela que se encontra escrita sob a pena do seu ilustre defensor, ou que foi apresentada no escrito de fls. 141 e 141 verso, não integra o conceito de “declarações do arguido” e como tal não tem qualquer validade probatória, não devendo ser valorado ou ponderado (falta entre o mais, a imediação probatória princípio básico da produção de prova em audiência e a possibilidade do tribunal colocar muitas questões ao arguido, quer respondendo, melhor poderia permitir compreender a sua versão dos acontecimentos ou a falta de lógica dessa mesma versão, hipótese esta que se nos apresenta mais realista face a toda a prova produzida).
Isto posto e ante a falta de qualquer declaração do arguido que possa ser valorada, teve o tribunal que analisar de forma crítica, ponderada e de harmonia com as regras da lógica e da experiência de vida o que foi dito pelo perito e testemunhas ouvidas em audiência e o que se pode constatar nas fotografias e vídeo visualizado em audiência e, dessa análise, ficou plenamente convencido dos factos constantes da acusação: diga-se desde já que as testemunhas não revelaram qualquer especial animosidade em relação à pessoa do arguido, revelando, isso sim, desconforto por saberem/aperceberem que o arguido se encontrava naquele dia, hora e naquele concreto local a tirar fotografias aos seus filhos (o que já não era a primeira vez), considerando que as testemunhas são os pais das crianças visadas em duas das fotografias – a 49 e 50 – já que os pais dos menores que estão fotografados em 47 e 48 não estiveram presentes, por não desejarem procedimento criminal; todavia, este aspecto processual não invalida a ponderação probatória lógica que se impõe a respeito destas fotografias 47 e 48, impondo-se analisar as 4 fotografias no contexto geral que o que o arguido se encontrava a actuar e no sentido de demonstrar ao tribunal que o aquele pretendeu foi fotografar crianças sem o seu consentimento e ou dos seus pais, enquanto estavam em calções e “biquíni” a tomar banho no rio; nem se diga que o arguido pretendeu fotografar a paisagem e casualmente as crianças foram “integradas na fotografia”, pois tal não é o que revelam as fotografias, nem o que esclareceu o perito a respeito de tal questão – isto dentro da tal apreciação segundo um critério de lógica da vida; veja-se a título de exemplo que a fotografia 48 mais não é do que um plano mais aproximado dos mesmos menores antes fotografados (casualmente???) na fotografia de fls. 47, pelo que sendo intenção do arguido de fotografar a paisagem, não deveria focar em maior pormenor os referidos dois menores, mas fazer precisamente o contrário, isto é abrir mais o plano à paisagem e menos aos menores, que se lembre e sublinhe nada lhe pertencem ou qualquer relacionamento com o mesmo têm (numa relação de amizade ou familiar ainda se admite em tese e sem consentimento dos visados (porque se pode considerar tácito e não expresso) a fotografia contemplar os menores, mas não é o caso); o mesmo raciocínio é válido em relação às fotos 49 e 50: a foto da pág. 50 aproxima o plano dos menores e não o afasta; tal “técnica” de fotografia, aliado ao local escondido de onde foram tiradas as fotografias – o que é bastante claro quando se visualiza o vídeo, e não pela simples análise das fotos constantes em sede de inquérito - revelam a intencionalidade do arguido que se deu como provada.
O vídeo é elucidativo da dificuldade do arguido em estagnar a imagem, e que tal se prende com o local onde o mesmo o está a realizar, escondido nos arbustos.
E com todo o respeito, a procura de sombra alegada em 15 não colhe, não se tratava de uma situação premente fazer a foto ou vídeo naquele concreto momento de sol, pois que a paisagem é estática e não dinâmica… dinâmicas são as pessoas e não as pedras, as árvores, ou os rios (nestes a água corre, mas não desaparece em poucos minutos) …
E sublinhe-se uma vez mais que não existe ligação pessoal, familiar do arguido aos visados que justifique a conduta de o arguido aproximar o plano dos menores, sendo certo o que também é importante que passando o arguido várias horas e vários dias nessa actividade de fotografar – o que foi salientado por várias testemunhas e ouça-se com atenção os depoimentos que referem que o arguido era useiro e vezeiro em estar naquele concreto local e com a máquina fotográfica – sempre as poderia tirar em momentos – que também existem certamente – em que as crianças não se encontrassem na mira da máquina fotográfica.
Saliente-se que o comportamento do arguido no dia dos factos não foi único, sendo antes o continuar de vários dias iguais e que a sua conduta já tinha causado estranheza a algumas das testemunhas e mesmo dos menores visados na máquina; uma das testemunhas refere ter visto o arguido em várias ocasiões na proximidade, que estranhou como por vezes ele estava no local, sem nada fazer e depois se escondia nos arbustos para fazer fotografias, tendo uma das vezes visto a câmara fotográfica tapada com uma toalha (para a esconder e não para a proteger).
Mas mais.
Analisado todo o demais cartão de memória verifica-se a inexistência de qualquer outras fotografias apenas a paisagens naquele local, como eventualmente poderia ser a intenção do arguido – como se bateu a sua defesa; salvo o devido respeito, tem pouco sustentáculo – e não teve qualquer elemento de prova – que a morte da mulher do arguido ocorrida em 1991 – isto é, há quase 20 anos, justifique o comportamento do arguido de escolher o local, mas também o momento em que crianças se estão a banhar para tirar as fotografias; e se “há mais de 20 anos tem o hábito de tirar fotografias ao local, por se tratar de um lugar aprazível e belo”, onde estão as fotografias recentes, efectuadas após a morte da esposa tiradas nesse mesmo local????, se corresponde à verdade, poderia e deveria o arguido para sustentar a sua alegação escrita juntar fotografias – só de paisagens – e não com pessoas (como o fez quando juntou 4 fotografias e que se mostram a fls. 123 e 124.
Por tudo o exposto, não teve o tribunal dúvidas em julgar provados e não provados os factos do modo que o fez.
Em relação aos antecedentes criminais do arguido B1… teve-se em conta o constante do respectivo certificado de registo criminal junto aos autos.

3. O Direito
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
No caso dos autos, face às conclusões da motivação do recurso, as questões essenciais que foram suscitadas são:
- erro de julgamento, violação do princípio in dubio pro reo, erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- falta de preenchimento do elemento subjectivo do tipo;

Antes, porém, de entrarmos no conhecimento destas questões, vamos tratar da questão suscitada pela Emª Srª PGA no seu parecer a partir da referência, feita na sentença recorrida, a que “os pais das crianças visadas a fls. 49 e 50, não estiveram presentes, por não desejarem procedimento criminal” e que a levou a considerar verificado o vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito em virtude de ter considerado não resultar, sem dúvidas, quantos os menores cujos direitos foram violados com a actuação do recorrente já que os pais de dois deles teriam desistido da queixa.
A perplexidade manifestada no referido parecer decorre, no entanto, de um lapso na interpretação da sentença recorrida que os próprios termos desta, conjugados com os elementos constantes dos autos, esclarecem devidamente.
De facto, o que se fez constar dessa decisão não corresponde exactamente ao que vem referido no parecer, pois o que se mencionou na motivação da decisão de facto foi que “as testemunhas não revelaram qualquer especial animosidade em relação à pessoa do arguido, revelando, isso sim, desconforto por saberem/aperceberem que o arguido se encontrava naquele dia, hora e naquele concreto local a tirar fotografias aos seus filhos (o que já não era a primeira vez), considerando que as testemunhas são os pais das crianças visadas em duas das fotografias – a 49 e 50 – já que os pais dos menores que estão fotografados em 47 e 48 não estiveram presentes, por não desejarem procedimento criminal”.
Ora, as testemunhas aludidas, as que estiveram presentes no julgamento, L…, J…, H… e F…, são mães dos seis menores ofendidos (tantos quantos os crimes imputados ao recorrente, por o bem jurídico protegido pela incriminação ser eminentemente pessoal), a saber, K… (filha da primeira), I… (filha da segunda), G… (filho da terceira) e C…, D… e E… (estes três filhos da última), como também ficou assente no ponto 5. dos factos provados, menores estes que figuram na fotografia a fls. 49 e/ou na imagem retirada de um filme, a fls. 50.
O que sucede é que os pais de outros menores, estes também presentes no local e fotografados (veja-se que, dos pontos 5. e 7. dos factos provados, decorre que, para além dos seis menores acima aludidos, outras crianças que se encontravam no local também foram fotografadas e/ou filmadas pelo recorrente), mais precisamente os que figuram nas fotografias a fls. 47 e 48, não apresentaram queixa contra o recorrente e também não estiveram presentes na audiência de julgamento desde logo porque nem sequer foram identificados nos autos e arrolados como testemunhas, o que bem se compreende dada a natureza semi-pública do ilícito criminal que àquele foi imputado.
E, assim sendo, concluímos pela não verificação do vício apontado e pela consequente improcedência desta questão.

3.1. Todas as questões que agrupámos no primeiro fundamento do recurso têm como denominador comum e exclusivo a discordância do recorrente em relação à intenção de devassar que, na fundamentação jurídica da decisão recorrida, se considerou ter ficado provada.
Sucede, porém, que o confronto entre a matéria de facto considerada como provada e a fundamentação jurídica, especificamente na parte relativa à subsunção jurídica dos factos, evidencia um erro de direito que nos reconduz ao segundo fundamento do recurso e tem como consequência que este primeiro fique prejudicado.
Razão pela qual nos dispensamos de o conhecer.

3.2. O recorrente contesta o enquadramento jurídico da sua conduta nos crimes de devassa da vida privada pelos quais foi condenado, defendendo que, para tal, era necessário provar que teve a ilegítima intenção de devassar a vida das pessoas, tendo, com tal intuito, captado as fotografias dos menores ofendidos, e que tal prova não foi feita.

A questão não reside, no entanto, na prova que foi ou não feita, mas sim na própria insuficiência dos factos considerados como provados para considerar preenchida a previsão legal do tipo legal do crime de devassa da vida privada p. e p. na al. b) do nº 1 do art. 192º do C. Penal, em concreto no que concerne ao respectivo elemento subjectivo.
O nº 1 desta norma comina com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 240 dias “Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual: (…) b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos; (…)”.
A punibilidade das várias modalidades de conduta previstas nas várias als. do referido nº 1, de que apenas transcrevemos a que nos interessa para o caso em análise, depende, pois, da intenção de devassar a vida privada das pessoas, do direcionamento da vontade do agente para atingir o bem jurídico protegido pela norma - a privacidade/intimidade, cujo fundamento constitucional reside no art. 26.º n.º 1 da CRP. “O tipo refere a “intenção de devassar a vida privada”, mas este elemento subjectivo típico não acrescenta nada ao tipo objectivo, cobrindo-o por completo e, desse modo, identificando-se com o próprio dolo. O efeito prático da sua inclusão no tipo é o de restringir as formas de dolo necessário e eventual. Trata-se, pois, de um crime de dolo específico e não de um crime de intenção”[3],[4].
Ora, conferindo os factos considerados como provados – aliás foram-no todos aqueles cuja prática já lhe tinha sido imputada na acusação contra ele deduzida, que vêm transcritos ipsis verbis nos pontos 1. a 8. – e mormente os que foram vertidos nos pontos 7. e 8., que respeitam ao elemento subjectivo, é inquestionável que os mesmos não preenchem o dolo específico exigido pois, para além da prática voluntária dos factos e do conhecimento da respectiva ilicitude, nada consta relativamente ao motivo que presidiu à conduta, o concreto propósito de devassar aspectos da vida privada dos menores fotografados e/ou filmados. O que, desde logo, e sem necessidade de entramos em considerações sobre se os factos, eventos ou dados objecto das condutas praticadas pelo recorrente pertencem concretamente à área de reserva abrangida pela tutela da incriminação, tem como implicação o afastamento, por incompletude de preenchimento da previsão legal, do(s) crimes de devassa da vida privada e a consequente claudicação da condenação do recorrente pela prática dos ilícitos dessa natureza.

Com o que não se pode dar por encerrada a questão e absolver, sem mais, o recorrente, pois há, ainda, que indagar se a matéria de facto provada se reveste de relevância criminal, nomeadamente se preenche o tipo legal do crime de fotografias ilícitas, p. e p. pela al. a) do nº 2 do art. 199º do C. Penal, que, em número de seis ( de acordo com as regras estabelecidas nos nºs 1 e 3 do art. 30º do C. Penal, por tantos serem os menores ofendidos e por, tal como o de devassa da vida privada, proteger um bem jurídico eminentemente pessoal ), logo foram feitos constar, e bem, da acusação contra ele deduzida como encontrando-se em concurso aparente[5],[6] com os de devassa da vida privada que ali lhe foram imputados. Facto este que sempre dispensaria que se desse agora cumprimento ao disposto no art. 358º nº 3 do C.P.P. ainda que considerássemos tratar-se de uma alteração da qualificação jurídica relevante[7].

Começaremos, então, por fazer uma breve delimitação dos contornos do tipo legal agora em foco.
O nº 2 do art. 199º comina com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 240 dias quem “contra vontade: a) Fotografar ou filmar outra pessoa, mesmo em eventos em que tenha legitimamente participado; ou b) (…)”
O bem jurídico tutelado por esta incriminação é o direito à imagem – reconhecido como um dos direitos fundamentais da personalidade no nº 1 do art. 26º da CRP -, independentemente de esta respeitar ou não à privacidade[8] do ofendido, só sendo ilícita a fotografia ou filmagem de outrem quando captada contra a vontade, expressa ou presumida[9], do visado.
Trata-se de “um bem jurídico eminentemente pessoal com a estrutura de uma liberdade fundamental e que reconhece à pessoa o domínio exclusivo sobre a sua própria imagem. (…) Isto em consonância com o disposto no art. 79º, nº 1, do CC (Direito à imagem): “O retrato de uma pessoa não pode ser exposto, reproduzido ou lançado no comércio sem o seu consentimento”, cujo nº 2, ao dispensar o consentimento da pessoa retratada “- quando assim o justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de justiça, finalidades científicas, didácticas ou culturais, ou -quando a reprodução da imagem vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam decorrido publicamente”, “reduz significativamente a tipicidade ou, ao menos, a ilicitude dos atentados à imagem (…)[10]”. Deve ser assim, quanto ao segundo destes dois grupos de casos, único que agora nos interessa, “na medida em que a imagem da pessoa resulte inequivocamente integrada na “imagem” daqueles espaços ou eventos e neles se dissolva. Já será diferente à medida que o destaque concedido à imagem pessoal resultar em individualização e subtracção (não querida) ao anonimato.”[11]
Trata-se de um crime comum, de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de mera actividade (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção)[12].
“O tipo objectivo das fotografias ilícitas consiste no registo fotográfico ou audiovisual da imagem de qualquer parte do corpo de outra pessoa[13] ou na utilização ou permissão de utilização dessas imagens por terceiros (…)”[14], estando a tutela penal da imagem “vinculada à utilização de processos técnicos (fotografia, vídeo, cinema, televisão, etc.) de captação ou divulgação. Nestes termos, a incriminação não abrange formas (arbitrárias) de captação, registo ou exposição (…)[15]”. Quanto às acções típicas, a norma prevê duas modalidades fundamentais: fotografar ou filmar e utilizar ou permitir a utilização das fotografias ou filmes.
“O tipo subjectivo dos crimes admite qualquer modalidade de dolo. Não se exige a intenção adicional de devassa da privacidade (…)”[16]; “a punição das gravações ou fotografias ilícitas não depende de qualquer elemento subjectivo adicional. Não depende, nomeadamente, da intenção de devassa do segredo ou da privacidade. O que significa que no delito consumado se dá a total congruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo. Uma solução consonante com (e exigida pela) a ideia de que o que está em causa é apenas a tutela (…) da imagem, sem mais.”[17].
Tal como o crime de devassa da vida privada, também o de fotografias ilícitas é de natureza semi-pública ( cfr. arts. 199º nº 3 e 198º do C. Penal ).

Transpondo estas noções para o caso concreto, a conclusão apresenta-se como incontornável: afastada a intenção de devassar a vida privada dos menores ofendidos, que era o “cavalo de batalha” do recorrente – e com toda a razão -, e, decorrentemente, a incriminação acolhida na decisão recorrida, ainda assim a conduta do recorrente, tal como emerge dos factos considerados como provados, preenche todos os elementos típicos do crime de fotografias ilícitas ( incluindo o dolo que, como é sabido, na ausência de prova directa, se extrai de todo o conjunto de circunstâncias que rodearam a prática dos factos ), sendo-o por 6 vezes por ser esse o número de ofendidos que, contra a vontade, deles e dos respectivos representantes legais, fotografou e/ou filmou, em traje de banho, de forma individualizada e destacada da do espaço em que se encontravam, demonstrativa de que o objecto querido retratar pelo recorrente eram os corpos dos menores em questão e não a paisagem por onde eles se movimentavam, como o evidenciam as fotografias juntas aos autos e também foi salientado na motivação da decisão de facto.
Em consequência da requalificação jurídica dos factos agora operada, há que proceder novamente à determinação da medida das penas, parcelares e única.
A moldura penal abstracta do crime de fotografias ilícitas é idêntica à do de devassa da vida privada: prisão de 1 mês a 1 ano ou multa de 10 a 240 dias.
Pese embora os antecedentes criminais do recorrente, certo é que nenhum deles é da natureza dos ilícitos criminais cuja prática ora se aprecia e, de todo o modo, sempre haveria que levar em linha de conta a proibição da reformatio in pejus, razões pelas quais a opção por penas de multa se aceita.
Ponderando todas as circunstâncias relevantes para a determinação da medida concreta das penas, nomeadamente o grau de ilicitude médio (tendo em conta que os ofendidos eram menores, pessoas naturalmente mais vulneráveis, que as fotografias e as filmagens os retratam parcialmente desnudados, e que a anterior frequência do local indicia alguma premeditação por parte do recorrente) o grau de culpa (dolo directo) e as exigências de prevenção especial (não despiciendas), sem circunstâncias atenuantes a contrabalançar este quadro, consideramos que devem ser mantidas as penas que haviam sido fixadas na sentença recorrida, aplicando-as agora aos crimes de fotografias ilícitas. Ou seja, fazendo corresponder a cada um deles a pena de 100 dias de multa e, em cúmulo jurídico, depois de ponderados os factos na sua globalidade e a personalidade do recorrente tal como por aqueles e pelo seu passado criminal vem revelada, fixando a pena em 400 dias de multa à taxa diária de 7 €, a qual, porque pouco se eleva acima do limite mínimo fixado na lei, se mostra consonante com a exiguidade do que a respeito das suas condições de vida se apurou.

4 Decisão
Em face do exposto, julgam o recurso improcedente, sem prejuízo da alteração da qualificação jurídica dos crimes pelos quais o recorrente vai condenado, de 6 crimes de devassa da vida privada para 6 (seis) crimes de fotografias ilícitas, ps. e ps. pelo art. 199º nº 2 al. a) do C. Penal, mantendo-se as seis penas parcelares de 100 (cem) dias de multa cada, e a fixação da pena única em 400 (quatrocentos) dias de multa à taxa diária de 7 (sete) €.
Vai o recorrente condenado em 4 UC de taxa de justiça.
Honorários da tabela.

Porto, 4 de Janeiro de 2012
Maria Leonor de Campos Vasconcelos Esteves
Vasco Rui Gonçalves Pinhão Martins de Freitas
_____________
[1] (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] cfr. P. Pinto de Abuquerque, Comentário do Código Penal, pág. 521, que defende que o tipo subjectivo só admite o dolo directo.
Costa Andrade, no Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, a págs. 734-735, reconhecendo tratar-se de “um particular elemento subjectivo do ilícito típico que suscita difíceis problemas de arrumação sistemática, com reflexos prático-jurídicos, nomeadamente em matéria de dolo”, pronuncia-se no sentido de não se tratar de um crime de resultado cortado “porquanto, tratando-se de um crime de dano, (…), não se verifica aqui a incongruência entre o tipo objectivo e o tipo subjectivo que, na observação de JAKOBS (…), constitui a marca desta tipologia de crimes”. Em seu entender, “A infracção deve antes ser levada à categoria dos delitos de tendência. Em que a acção típica “está subordinada à direcção da vontade do agente, que é o que lhe confere o seu particular carácter ou especial perigosidade (JESCHEK 287). Trata-se, em qualquer caso, de um daqueles crimes em que a lesão do bem jurídico só é punida enquanto consequência “de uma direcção da vontade hostil ao bem jurídico” (JAKOBS 337. No mesmo sentido, ZIELISNKI…). E, embora refira que “nem sempre a pertinência duma infracção à categoria dos crimes de resultado cortado ou dos delitos de tendência equivale necessariamente à exigência de uma forma qualificada de dolo, nomeadamente à exclusão da punibilidade do dolo eventual”, conclui que “No que a este crime especificamente concerne, tudo parece abonar em favor da doutrina claramente maioritária, que afasta a punibilidade do dolo eventual”.
[4] A propósito da distinção entre estas duas categorias, cfr. P. Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 92: “A intenção enquanto elemento subjectivo do tipo nos crimes de intenção não deve ser confundida com a “intenção” como elemento constitutivo da forma mais grave do dolo. Os crimes de intenção podem ser cometidos em qualquer forma de dolo, precisamente porque a intenção é um elemento subjectivo adicional ao dolo. (…) Ao invés, nos crimes de dolo específico a conduta só é relevante tipicamente se o agente actuar com a forma de dolo exigida pela lei, cobrindo este dolo inteiramente o tipo objectivo.
Portanto, deve distinguir-se entre os crimes de intenção e os crimes com dolo específico. Nestes, o tipo subjectivo esgota-se na particular forma de dolo exigida pela lei. Naqueles, o tipo subjectivo inclui o dolo (em regra, as três formas de dolo) e ainda um elemento subjectivo adicional, que tem por objecto um resultado exterior ao tipo objectivo.”
[5] “O crime de gravações (ou fotografias) ilícitas é subsidiário em relação ao crime de devassa da vida privada” cfr. P. Pinto de Albuquerque, ob. cit, pág. 522.
[6] “Os factos subsumíveis na previsão típica da Devassa da vida privada poderão – será mesmo normal que tal aconteça – preencher ao mesmo tempo a factualidade típica de qualquer das incriminações preordenadas à tutela da privacidade / intimidade em sentido formal. Poderão, concretamente, configurar também um caso de Devassa por meio de informática (art. 193º), Violação de correspondência ou de telecomunicações (art. 194º) ou Violação de segredo (art. 195º). O mesmo podendo adiantar-se em relação ao crime de Gravações e fotografias ilícitas (art. 199º). Apesar de tudo – sc., da autonomia dos bens jurídicos coenvolvidos, autonomia particularmente evidente em se tratando do crime de Gravações e fotografias ilícitas – cremos que tais casos hão-de, em princípio solucionar-se em termos da unidade de infracções. Hão-de, noutros termos, levar-se à conta de concurso legal ou aparente, pelo menos em nome da consunção impura.” cfr. Comentário Conimbricense…, t. I, pág. 741.
[7] Entendemos que o caso assume contornos muito semelhantes aos referidos no Ac. RP 15/6/11, proc. nº 101/10.7PRPRT.P1, de que transcrevemos, porque pertinente para a compreensão da questão, o seguinte trecho:
“A propósito da alteração não substancial dos factos tem-se entendido que a comunicação apenas se efectuará quando se tratar de uma modificação relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa [Ac. T. C. n.º 330/97 (DR II 1997/Jul./03), 387/2005, (DR II 2005/Out./19); Ac. STJ de 1991/Abr./03, 1992/Nov./11, 1995/Out./16, 2006/Abr./06 (BMJ 406/287, 421/309, www.dgsi.pt, CJ II(S), 161)].
No que concerne à alteração da qualificação jurídica, encontra-se actualmente ultrapassado aquele posicionamento de plena liberdade de qualificação jurídica sem haver comunicação prévia(10), pois impõe-se que esta se realize [Ac. TC 173/92; 279/95; 16/97, 445/97], tanto em 1.ª instância, aqui em audiência de julgamento, [Ac. TC 518/98; Ac STJ n.º 3/2000, de 1999/Dez./15], como nos tribunais superiores.
E isto porque actualmente a lei é expressa nesse sentido [358.º, n.º 3, 424.º, n.º 3].
Afigura-se-nos, no entanto, que, a par da alteração não substancial dos factos, a alteração da qualificação jurídica que impõe a obrigatoriedade dessa comunicação deverá ser igualmente relevante, pois só estas são susceptíveis de integrar situações de “indefesa constitucionalmente relevante”.
Retomando a jurisprudência anteriormente traçada que conduziu à consagração expressa do dever de comunicação da alteração da qualificação jurídica, temos como denominador comum de todas elas que se tratava sempre de incriminações cuja moldura penal abstracta da condenação era sempre mais grave do que aquela pela qual o arguido tinha sido acusado.
Nestes casos a inobservância do contraditório resultava num manifesto e grave prejuízo para a defesa.
O mesmo não se passa se persistir uma homogeneidade da factualidade, o que sucede sempre que esta permanece integra, ou então se ocorrer uma homogeneidade descendente, em que aquela se vê amputada de circunstâncias agravativas da conduta do arguido, que permitem uma mais benevolente qualificação jurídica dos factos, em virtude destes passarem a integrar um tipo de crime menos grave.(11)
Nestas situações não surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido, na vertente do princípio do contraditório, porquanto não existe uma heterogeneidade da qualificação jurídica que o apanhe de surpresa e lhe cause um prejuízo grave.
E isto porque o núcleo essencial do tipo base persiste, havendo antes um deslizamento da qualificação jurídica para um tipo legal de crime “inferior”, tendo sempre a sua defesa abrangido o centro irredutível da qualificação jurídica que identifica o tipo base.
A ideia do “favor defensionis” não fica assim atingida quando se mantém a prática do mesmíssimo tipo de crime, passando-se apenas do seu cometimento em co-autoria para autoria [Ac. STJ 2005/Nov./09 CJ (S) III/205] ou então, estando-se numa relação de hierarquia no âmbito da tutela do mesmo bem jurídico, se desce de um crime mais grave para um outro menos grave [Ac. STJ de 1991/Abr./03, CJ II/17; Ac. TC 330/97; Ac. R. P. 2011/Jan./12, 2011/Mar./02(12)].”
[8] Bem jurídico matricial em relação se foi autonomizando até ao desentranhamento, com a Reforma do C. Penal de 1995, do capítulo “Dos crimes contra a reserva da vida privada” e à sua inserção sistemática no “Dos crimes contra outros bens jurídicos pessoais”. As modificações introduzidas no tipo são bem patentes pela mera comparação com a norma incriminatória anterior com a mesma epígrafe, o art. 179º, cuja redacção, na parte que para aqui interessa, era a seguinte:
1 – Quem, sem justa causa e sem consentimento de quem de direito:
a) (…);
b) (…)
c) Fotografar, filmar ou registar aspectos da vida particular de outrem, mesmo que neles tenha legitimamente participado;
d) (…)
será punido com prisão até 1 ano e multa até 60 dias.
2 – (…).
[9] “O acordo (expresso ou presumido) do portador do bem jurídico afasta a tipicidade da conduta do agente (…)”. Há acordo presumido quando o portador do bem jurídico sabe que a sua imagem está a ser fotografada ou filmada e não se opõe a esse registo. cfr. P. Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 537.
[10] cfr. Comentário Conimbricense…, t. I, págs.823 e 817.
[11] Idem, pág. 834
[12] Assim o refere P. Pinto de Albuquerque, ob. cit., págs. 536 e 538.
[13] A substituição da expressão “aspectos da vida particular de outrem” pela fórmula “outra pessoa” (…) tornou claro que o objecto da acção é a imagem física da pessoa susceptível de ser captada e registada de forma estática (pela câmara fotográfica) ou em movimento (vídeo, cinema, etc.). Na imagem prevalece, naturalmente o rosto (…) mas integra todo o corpo.” cfr. Comentário Conimbricense…, t. I, pág. 829.
[14] cfr. P. Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 537.
[15] cfr. Comentário Conimbricense…, t. I, pág. 825.
[16] cfr. P. Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 537.
[17] cfr. Comentário Conimbricense…, t. I, pág. 836.