Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7928/11.0TAVNG
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ PIEDADE
Descritores: CRIME DE DENÚNCIA CALUNIOSA
CRIME DE DIFAMAÇÃO
DIREITO DE DENÚNCIA
DIREITO À HONRA E BOM NOME
CAUSA DE EXCLUSÃO DA CULPA
Nº do Documento: RP201503047928/11.0TAVNG
Data do Acordão: 03/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Ocorre a causa de exclusão da ilicitude do artº 31º 2 b) CP se os arguidos ao participaram criminalmente contra os ofendidos agiram no exercício de um justificado direito de denúncia, sem extravasarem as finalidades do mesmo ou atingirem de modo abusivo o núcleo essencial do direito à honra e bom nome do denunciado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. Nº 7928/11.0TAVNG
3º Juízo – A do Tribunal de Instrução Criminal do Porto

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No 3º Juízo – A do Tribunal de Instrução Criminal do Porto, processo supra referido, em que são arguidos B… e C…, foi proferida Decisão Instrutória de Não Pronúncia com o seguinte teor:
“D… participou criminalmente contra B… e mulher C…, imputando-lhes a prática dos factos descritos a fls. 3 a 10.
Realizado o inquérito, o M°P° encerrou-o com o despacho de arquivamento de fls. 168 a 172, nos termos do art. 277° nº 1 do C.P.P. quanto aos eventuais crimes de denúncia caluniosa p. e p. pelo art. 365° nº 1 (do C.P.) por não se indiciar, da prova recolhida, que os arguidos, ao terem apresentado queixa crime contra o aqui denunciante no NUIPC nº 5343/10.2TAVNG, sabiam que as imputações que lhe faziam eram falsas, e de difamação agravada p. e p. pelos arts. 180º nº 1 e 184° por referência ao art. 132° nº 2 l) todos do Cód. Penal, porque da mesma prova indiciária resulta que os arguidos ao apresentarem a dita queixa crime contra o aqui ofendido, agiram no legítimo exercício de um direito nos termos do art. 31° nº 2 do Cód. Penal, nomeadamente o de verem esclarecidas as razões que levaram à morte da sua filha E….
Inconformado com esta decisão, veio o assistente a fls. 192 a 200, requerer a abertura da instrução, nos termos ali melhor expostos e aqui dados por reproduzidos.
Termina concluindo pela Pronúncia dos arguidos como autores de um crime de difamação agravado p. e p. pelos arts. 180º nº 1 e 184º do Cód. Penal.
Aberta a instrução, efectuaram-se as diligências tidas por necessárias.
Foi realizado o debate instrutório.
Com interesse para a decisão a proferir, este tribunal considera suficientemente indiciados os seguintes factos:
1) O assistente D… é médico especialista de Cirurgia Geral do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, com a categoria profissional de Assistente Graduado Sénior de Cirurgia Geral desde 11/7/2001, onde também desempenha as funções de Director do referido Serviço desde 5/12/2002, e, paralelamente, é Professor titular de Cirurgia da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade F… e Presidente do Conselho Científico dessa Universidade, é Chefe de Serviço de Carreira Médica Hospitalar e Vice-Presidente da G… – cfr. fls. 166;
2) Os arguidos eram pais de E…, nascida em 30 de Outubro de 1981 – cfr. fls. 82;
3) O arguido B… é funcionário administrativo, actualmente desempregado – cfr. fls. 136 e 741;
4) A arguida C… é auxiliar de acção educativa (empregada da limpeza) – cfr. fls. 143 e 743;
5) A E… era montadora de circuitos eléctricos, sofria de asma profissional e alergia a ácaros – cfr. fls. 254;
6) Era fumadora, e medicada com broncodilatadores e corticoides, tendo sido observada pelo médico de Medicina do Trabalho no contexto de episódios repetidos de parestesias peri-orais pós pandriais – cfr. fls. 254;
7) Foi-lhe detectada uma hipoglicemia de 28gr/dl e, após consulta externa de Endocrinologia no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, foi sujeita a uma avaliação profunda da sua situação clínica, tendo realizado por 3 vezes o teste de intolerância à glicose com resultados positivos – cfr. fls. 254;
8) Após uma T.A.C. abdominal realizada a 16/12/2008, foi detectada a existência de um tumor de natureza desconhecida, localizado no retroperitoneu superior, no território do tronco celíaco, estendendo-se inferiormente pelo espaço porto-cava, entrando em contacto íntimo com a região cefálica do pâncreas e estendendo-se para o hilo hepático – cfr. fls. 19 a 21, 325 a 328;
9) Foi orientada para a consulta de Cirurgia Geral do mesmo Centro Hospitalar, tendo sido observada a 23/1/2009, e foi-lhe proposta cirurgia de exérese (vulgo, remoção) dessa lesão descrita na T.A.C. por suspeita clínica e imagiológica de insulinoma (cancro do pâncreas), a qual poderia acarretar ressecção major do pâncreas – cfr. fls. 21 in fine e 20 (“...podendo estes aspectos corroborar a suspeita clínica de lesão pancreática, nomeadamente insulinoma”) cfr. fls. 254;
10) O caso da doente E… foi discutido em reunião do corpo clínico do Serviço de Cirurgia, antes da marcação da cirurgia e nessa reunião, não foi apresentado nenhum diagnóstico alternativo ao do insulinoma – cfr. fls. 779;
11) Pela gravidade da doença, a E… foi inscrita na lista de espera de cirurgia com carácter prioritário, tendo sido internada no dia 2 de Fevereiro de 2009 e submetida a laparotomia (vulgo, barriga aberta) no dia 3 de Fevereiro de 2009 – cfr. fls. 22, 23 e 308;
12) A equipa cirúrgica foi constituída pelo Dr. H… como cirurgião principal e Dra. I… e pelo aqui assistente, D…, como cirurgiões assistentes/ajudantes – cfr. fls. 22;
13) Nessa cirurgia, foi efectuada ecografia intra-operatória à E…, observando-se uma massa (vulgo, tumor) irregular, dura, em posição supra cefalopancreática e atingindo o hilo hepático – cfr. fls. 22;
14) E iniciou-se a remoção da referida massa, que se encontrava adjacente à veia porta, local particularmente melindroso – cfr. fls. 22, 325 a 328;
15) Após a identificação da artéria hepática e via biliar, iniciou-se a remoção da referida massa, que se encontrava adjacente à veia porta, a qual estava incluída na referida massa tumoral – cfr. fls. 22;
16) E, enquanto o Dr. H…, com os instrumentos cirúrgicos, procedia à dissecação periportal (vulgo, em redor da veia porta) daquela massa e tentava separá-la da veia porta, ao laquear a veia gástrica esquerda, involuntariamente, provocou uma laceração da veia porta na sua porção posterior, cuja hemóstase se revelou particularmente difícil – cfr. fls. 22, 309, 314, 321 e 254;
17) Foi efectuada clampagem da veia porta acima e abaixo e foi efectuada sutura da laceração com rafia (azul) com prolene 4/0, com o apoio da Cirurgia Vascular – cfr. fls. 22 e 308;
18) Apesar das manobras, a hemorragia persiste, embora em menor quantidade, optando-se pela colocação de Tissucol e compressão – cfr. fls. 22;
19) Apesar de tais manobras e das transfusões de GR e plaquetas, a hemorragia persiste em toalha e sem foco identificável, pelo que foi colocado packing com 13 compressas – cfr. fls. 22;
20) A porção de massa retirada à E… nessa cirurgia, foi enviada para análise histológica pelo serviço de Anatomia Patológica a fim de se fazer o diagnóstico da doença de que ela padecia – cfr. fls. 24;
21) Revelando tratar-se de uma linfadenopatia granulamatosa necrosante, sem sinais de malignidade – cfr. fls. 24, 29 e 312;
22) A PCR ulterior veio confirmar o diagnóstico de tuberculose ganglionar – cfr. fls. 255 e 312;
23) No pós-operatório imediato a doente foi internada na U.C.C.I. (Unidade de Cuidados Intensivos) em coma induzido, tendo sido intensamente medicada, incluindo a administração de concentrados eritrocitários, plasma e plaquetas – cfr. fls. 255;
24) As análises do dia da intervenção revelam, nomeadamente através de valores muito elevados, das amino-transferoses (TGO 2.185, TGP 2.665), que teria existido uma intensa citólise hepática – cfr. fls. 255;
25) No dia 6 de Fevereiro (3° dia do pós-operatório) a melhoria do estado clínico da E… tornou possível à mesma equipa cirúrgica reoperar a doente, extraindo, sem qualquer complicação, o packing de compressas referido em 19) e, quando foi retirado tal packing, foram visualizados vestígios de bílis no hilo hepático – cfr. fls. 25 e 255;
26) Após esta intervenção, a doente permaneceu sob vigilância e terapêutica intensivas na U.C.I., dado persistirem alterações clínicas (sinais sugestivos de uma pneumopatia e de insuficiência hepática) e laboratoriais relevante – cfr. fls. 255;
27) Iniciou tuberculostáticos em 12/2/2009 (tratamento para a tuberculose ganglionar) – cfr. fls. 780;
28) No relatório da T.A.C. efectuada no dia 12/2/2009 refere-se “que não foi visualizado o ramo esquerdo da veia porta; veia porta e ramo direito permeáveis e de normal calibre. As três veias supra-hepáticas encontram-se permeáveis e com fluxo. O conjunto é compatível com múltiplos enfartes hepáticos, já com extensas áreas de necrose” – (vulgo, morte) – “no lobo esquerdo....; ascite livre de moderado volume distribuída pelos diversos recessos peritoneais, derrame pleural livre de médio volume, bilateralmente; no parênquima pulmonar observam-se ténues opacidades mal definidas, com distribuição bilateral e difusa, sugestivas de complicação inflamatória/infecciosa” – cfr. fls. 28;
29) O tratamento anti-tuberculoso referido em 27) teve que ser modificado devido a toxicidade hepática, mas a melhoria progressiva da sua situação clínica permitiu que fosse extubada no dia 18/2/2009 – cfr. fls. 255;
30) No dia 18/2/2009 foi efectuada outra T.A.C. à E…, revelando “...derrame pleural bilateral de médio volume, ...associado a atelectasia do pulmão adjacente... Fígado ...exibindo extensas áreas hipodensas e não captantes, com atingimento sub-total do lobo esquerdo, com áreas de enfarte cuja dimensão e disposição é sobreponível ao estudo anterior. Não é possível definir a artéria hepática desde a origem do tronco celíaco. Os ramos esquerdos da porta têm calibre reduzido mas estão permeáveis. (...)” – cfr. fls. 30;
31) Submetida a terapêutica intensiva, observou-se uma melhoria no estado geral que permitiu que a doente regressasse ao Serviço de Cirurgia no dia 20 de Fevereiro de 2009 – cfr. fls. 255;
32) Foi realizada outra T.A.C. à E… no dia 26/2/2009 revelando que “persiste derrame pleural de médio volume à direita e de pequeno volume à esquerda, com atelectasia subsegmentar do parênquima pulmonar do lobo inferior adjacente. Fígado com dimensões normais, apresentando extensas áreas hipodensas, ...compatíveis com áreas de enfarte, com atingimento de praticamente todo o lobo esquerdo e com algumas áreas nodulares dispersas no lobo direito (...). Veia porta e ramos esquerdo e direito permeáveis e com calibre normal, sem evidência de trombose. (...)” – cfr. fls. 31;
33) No dia 6/3/2009, durante a injecção de contraste nas vias biliares da E…, observou-se pronto extravasamento do mesmo a nível do hilo, tendo sido colocada prótese recta de tipo Amsterdam de 19Fr e 7 cm entre “flaps” –cfr. fls. 33;
34) No dia 10 de Março de 2009, nova T.A.C. realizada A E… revelou “persiste derrame pleural de médio volume à direita e de pequeno volume à esquerda (...). Fígado com dimensões normais, continuando a identificar-se extensas áreas de enfarte envolvendo o lobo esquerdo e com algumas áreas nodulares dispersas no lobo direito, alterações sensivelmente sobreponíveis às evidenciadas em estudos prévios, actualmente esboçando-se ligeira atrofia do lobo esquerdo; …continuando a não se definir a artéria hepática desde a sua origem no tronco celíaco. Veia porta e ramos direito e esquerdo permeáveis, permeabilidade preservada das veias supra-hepáticas” – cfr. fls. 33;
35) A 12 de Março de 2009 a doente pode ter alta com evidenciada melhoria do seu estado clínico, embora medicada (incluindo tuberculoestáticos), sendo orientada para a consulta externa de Cirurgia Geral, Medicina e CDP (Centro de Diagnóstico Pneumológico). Os exames analíticos da altura não apresentavam alterações significativas, nomeadamente, leucocitose; e a função hepática seria normal – cfr. fls. 238 e 256;
36) Em 2/4/2009 a doente foi novamente internada e sujeita a intervenção cirúrgica no Serviço de Cirurgia Geral do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, realizada pela Dra. I… como cirurgiã principal e pelo Dr. H… como cirurgião assistente – cfr. fls. 36;
37) Por ter apresentado abcessos da parede abdominal na cicatriz da laparotomia subcostal esquerda, tendo-se verificado a saída de quantidade moderada de conteúdo purulento com conteúdo biliar? – cfr. fls. 36;
38) Para esclarecer a origem deste abcesso, realizou-se CPRE a 8/4/2009, que revelou fuga biliar no hepático esquerdo tendo sido retirada a prótese externa – cfr. fls. 256;
39) A T.A.C. realizada no mesmo dia revelou entre outras patologias, “... densificação da gordura peri-hepática (lobo esquerdo) por extensão do processo inflamatório. Discreta proeminência das vias biliares intra-hepáticas. (...). Hepatomegalia ligeira com 17 cm, apresentando, para além do aspecto dismórfico e hipocaptante do lobo esquerdo, áreas hipocaptantes periféricas de enfarte, sobreponíveis ao exame anterior. (...) Veia porta permeável (12 mm), com laminação do hilo hepático. (...)” – cfr. fls. 32;
40) Submetida a intensos cuidados assistenciais, incluindo pensos e antibioterapia, a doente teve alta no dia 10/4/2009 – cfr. fls. 242, 243 e 256;
41) A drenagem biliar persistiu embora de forma inconstante, variando o débito da fístula de forma marcada. Começou a notar-se também, uma elevação da Gama GT e da fostase alcalina – cfr. fls. 781.
42) A 29 de Abril de 2009 foi feita uma CPRM nos serviços do J…, que mostrou “dilatação das vias biliares intra-hepáticas, mais acentuada à esquerda, com sinais de colangite à direita, uma indefinição da VB extra-hepática e a existência de uma massa mal definida entre o hilo hepático e a parte inicial do colédoco” – cfr. fls. 781;
43) No dia 12/5/2009 a E… foi submetida a ecografia abdominal que revelou “persistência de moderada ectasia (dilatação) das vias biliares intra-hepáticas. (...) Marcada estenose” (estreitamento) “da veia porta no seu terço médio (…). Na avaliação do fígado observa-se atrofia do lobo esquerdo e lobo direito com dimensão e estrutura preservada” – cfr. fls. 40;
44) A 27 de Maio de 2009, a E… foi readmitida no Serviço de Cirurgia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho para extracção programada da prótese (CPRE). Contudo, veio a observar-se ulteriormente icterícia que se foi agravando e aumento da drenagem biliar – cfr. fls. 781;
45) A ecografia abdominal superior realizada à E… em 9/6/2009, demonstrou “persistência da ectasia (dilatação) das vias biliares intra-hepáticas, sendo que à direita a maior mantém 3 mm de diâmetro. À direita as ectasias são segmentares, provavelmente condicionadas por fibrose peri-portal central” – cfr. fls. 43 e 246;
46) Os médicos decidiram pedir a colaboração do Serviço de Hepatologia e Transplantação Hepática do Hospital de Santo António, pelo que a E… teve alta do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho em 15/6/2009 – cfr. fls. 150, 151, 247, 248 e 256;
47) E foi examinada a 17/6/2009 no Hospital de St° António – cfr. fls. 256 e 781;
48) Em 22/6/2009, já no Centro Hospitalar do Porto (Hospital de Stº António) foi realizado um Angio-TC Abdómen Superior à E…, cujo teor consta de fls. 694 e que aqui se dá por reproduzido;
49) No Hospital de St° António, a E… continuou a ser assistida e medicada – continuava ictérica – o que obrigou a diversos períodos de internamento e fez múltiplos exames complementares para avaliar da probabilidade de ser submetida a transplante hepático – cfr. fls. 256, 781;
50) Realizou ainda um eco-doppler que mostrou “um fígado de dimensões normais, como heterogeneidade do lobo esquerdo, moderada dilatação das vias biliares intra-hepáticas com VBP normal, uma espienomegalia...veia porta de calibre normal com fluxo hépato-portal...ramo direito identificado, tendo havido dificuldades de identificação do ramo esquerdo...artéria hepática de calibre normal e funcional...supra hepáticos de calibre normal com fluxo hépato-fugal” – cfr. fls. 257;
51) A doente perdeu cerca de 15 kg após a intervenção inicial e continuou a realizar terapêutica para a tuberculose ganglionar – cfr. fls. 781;
52) Em 1/10/2009, a médica Dra. K… do Centro Hospitalar do Porto redigiu a informação de fls. 216 sobre a E…, do seguinte teor: “Doente referenciada à consulta de Hepatologia para avaliação de indicação de transplante hepático. Foi chamada pela 1ª vez em Julho de 2009. A indicação de transplante é por lesão iatrogénica (leia-se, lesão por acto médico) da veia porta e via biliar de acordo com discussão clínica e tentativas de solução não conseguidas. Tem como contra-indicação temporária uma tuberculose ganglionar em tratamento”;
53) Em 6/11/2009, a E… foi internada no Serviço de cirurgia 3 do Hospital de Santo António por agravamento da colestase e durante esse internamento ocorreu reabertura espontânea de duas fístilas biliares para a pele, fez episódio febril, foi medicada e completou estudo pré-transplante hepático, tendo entrado em lista activa – cfr. fls. 249 e 689 a 693;
54) Teve alta em 18/11/2009 – cfr. fls. 249;
55) A doente foi submetida a transplante hepático no Hospital de Stº António em 23/3/2010, mas existiram graves problemas na hemóstase, com choque per-operatório persistente e refractário e anúria, a intervenção terminou sem que se tivesse realizado a anastomose biliar – cfr. fls. 257, 696 e 697;
56) Esta situação grave persistiu na Unidade de Cuidados Intensivos, pelo que a E… faleceu às 21.30 horas do dia 24 de Março de 2010 – cfr. fls. 257, 267, 269;
57) A causa da morte foi devida a disfunção primária de enxerto hepático e choque hipovolémico – cfr. fls. 82, 85, 86, 251 e 252;
58) Foi requisitada autópsia ao corpo da E… em 24/3/2010 – cfr. fls. 269;
59) Cujo relatório consta de fls. 250 a 252;
60) “colangiopatia isquémica pós lesão latrogénica da veia porta”, significa falta de irrigação do fígado e “lesão iatrogénica” significa lesão por acto médico, ou seja um dos dados de interesse para a autópsia a realizar, de acordo com a informação clínica fornecida – cfr. fls. 247, 250, 310 e 323;
61) O fígado doente retirado do corpo da E… foi examinado no Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de St° António e revelou trombose vascular do hilo hepático – cfr. fls. 268 e 695;
62) O Conselho Médico-Legal do I.N.M.L. em 30/9/2013 e 9/1/2014, emitiu os Pareceres de fls. 704 a 709 e 713 a 716, sobre a doença e tratamentos efectuados à E… nos hospitais de Vila Nova de Gaia e Stº António, no Porto, concluindo que “...os médicos que a operaram no dia 3/2/2009, bem como todas as equipas médicas que dela se ocuparam ao longo do pós-operatório desta intervenção e, antes, durante e após o transplante hepático a que foi submetida, não executaram quaisquer gestos ou procedimentos contrários às leges artis”;
63) Em 16/7/2010, os arguidos participaram criminalmente contra o aqui assistente D…, imputando-lhe os factos descritos a fls. 69 a 78, alegando em síntese, que a morte da E… poderia ter sido evitada se o arguido D… não lhe tivesse cortado a veia porta na intervenção cirúrgica que realizou em 3/2/2009 e ainda se, logo após essa cirurgia, a tivesse transferido para tratamento, no Hospital de St° António, no Porto, ter-se-ia evitado o transplante do fígado;
64) Essa queixa-crime deu origem ao NUIPC n° 5343/10.2TAVNG – cfr. fls. 68 a 96, 153 a 157;
65) Realizada a investigação, o M°P° encerrou esse inquérito com o despacho de arquivamento nos termos do art. 277º n° 1 do C.P.P., por ter concluído não existirem indícios suficientes da prática pelo arguido D…, de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137º nº 1 do C.P. – cfr. fls. 116 a 127;
66) Inconformado com essa decisão, o aqui arguido B… requereu a abertura da instrução, imputando ao aqui assistente D… a prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137° nº 1 do C.P. – cfr. fls. 153 e 750 a 769;
67) Nessa instrução, foi proferido despacho de Não Pronúncia do ali arguido D… – cfr. fls. 750 a 769;
68) O ali assistente B… interpôs recurso dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto, o qual, por Acórdão proferido em 29/1/2014 negou provimento ao recurso e confirmou o despacho de Não Pronúncia de D… – cfr. fls. 750 a 769.
Este tribunal considera como não indiciados os seguintes factos:
A) Que foi o assistente D… quem, na intervenção cirúrgica realizada no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, em 3/2/2009, à E…, involuntariamente, cortou a face posterior da veia porta;
B) Que a morte da E… foi causada por essa laceração posterior da veia porta e pelo facto de não ter sido transferida de imediato a essa intervenção cirúrgica, para tratamento, no Hospital de St° António, o que evitaria o transplante hepático;
C) Que os arguidos, quando apresentaram a queixa-crime referida em 63) contra o assistente D…, tinham conhecimento de que tinha sido o Dr. H… quem, como cirurgião principal, procedeu à intervenção cirúrgica à E… em 3/2/2009, e que por isso, os actos cirúrgicos nela praticados, nomeadamente a laceração da face posterior da veia porta, difícil de reparar e controlar, foram da autoria do dito médico;
D) Que os arguidos por antipatizarem com o aqui assistente, sem previamente se informarem sobre a constituição das equipas cirúrgicas dos Hospitais de Vila Nova de Gaia e de St° António, no Porto, e funções e actos praticados por cada elemento dessa equipa no corpo e órgãos da E… decidiram e quiseram atingir o assistente D… com a queixa-crime referida em 63), inventando e afirmando peremptoriamente, que foi em virtude dos actos praticados pelo assistente no corpo e órgãos da E…, inadequados à sua doença e lesivos da sua integridade física, que a doente faleceu.
O Direito.
Comete o crime de difamação “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, (...).” – art. 180° n° 1 do C.P.
Á difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão – art. 182° do C.P.
Difamar, significa desacreditar, diminuir a reputação, o conceito público em que alguém é tido.
“É atribuir a alguém a prática de determinado facto, que lhe ofende a reputação ou o bom nome, considerada essa reputação como a estima que se goza na sociedade, em virtude do próprio engenho ou de qualidades morais, da habilidade em uma arte, profissão ou disciplina (...)” – carregado nosso.
No caso dos autos, o assistente D… é médico especialista em Cirurgia Geral, tem a categoria profissional de Assistente Graduado Sénior de Cirurgia Geral desde 11/7/2001, exercendo funções no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gala/Espinho como Director de Serviço de Cirurgia Geral desde 5/12/2002, exerceu funções de Presidente do Conselho Directivo do Bloco Operatório de 10/1/2008 até 15/12/2010 (cfr. fls. 166) e é Vice-Presidente da G….
O assistente integrou a equipa médica que realizou uma intervenção cirúrgica, por laparotomia, à filha dos arguidos, E…, em 3/2/2009 no Hospital de Vila Nova de Gaia, como cirurgião ajudante do cirurgião principal, Dr. H….
A dita doente, E…, padecia de doença que se manifestou, entre outros sintomas, pelo aparecimento de uma massa/tumor, de natureza desconhecida, localizada/o no retroperitoneu superior, no território do tronco celíaco, estendendo-se inferiormente pelo espaço porto-cava, entrando em contacto íntimo com a região cefálica do pâncreas e estendendo-se para o hilo hepático.
Nessa cirurgia, o cirurgião Dr. H… ao tentar remover a massa que se encontrava adjacente à veia porta, e tentava separá-la dessa veia, involuntariamente, provocou uma laceração na referida veia porta, na sua porção posterior, cuja hemóstase se revelou particularmente difícil.
Em consequência, no final da cirurgia, a E… foi conduzida para a Unidade de Cuidados Intensivos do mesmo hospital, onde se manteve em coma induzido durante 3 dias.
O estudo anátomo-patológico da porção de tumor retirado do corpo da E…, revelou que a mesma padecia de uma tuberculose ganglionar, pelo que foi medicada com tubercoloestáticos.
Porém, o fígado da doente foi-se deteriorando progressivamente de forma incontrolável, pelo que após a realização de diversos exames auxiliares de diagnóstico e medicação intensiva, em 4/6/2009, os médicos decidiram pedir a colaboração do Serviço de Hepatologia e Transplantação hepática do Hospital de St° António, no Porto, para onde foi transferida em 15/6/2009, e aí seguida e tratada até ao transplante hepático realizado no dia 23/3/2010, vindo a falecer por choque hipovolémico no dia seguinte, 24/3/2010.
Posteriormente, os pais da E…, aqui arguidos, participaram criminalmente contra o assistente, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137° nº 1 do Cód. Penal, afirmando, em síntese, que a morte da E… poderia ter sido evitada se o arguido D… não lhe tivesse cortado a veia porta na intervenção cirúrgica que realizou em 3/2/2009 e ainda se, logo após essa cirurgia, a tivesse transferido para tratamento, no Hospital de Stº António, no Porto, evitando dessa forma o transplante do fígado e a subsequente morte da filha.
Ora, o assistente, perante os conhecimentos científicos e qualificações profissionais de que é dotado, por não corresponder à verdade ter sido ele o cirurgião que, ao manobrar os instrumentos cirúrgicos para remover a massa tumoral que envolvia a veia porta da E…, involuntariamente lacerou a parte posterior dessa veia porta, e porque esteve fora do seu controlo a progressão da degradação do fígado da E…, que conduziu à necessidade do transplante hepático realizado no dia 23/3/2010 no Hospital de St° António, no Porto, e na sequência do qual adveio a morte da doente, sente-se ofendido na sua honra e consideração com a apresentação da dita queixa-crime contra ele formulada.
Concorda-se que a formulação de uma participação criminal contra um médico especialista onde se lhe imputa a morte de um doente por má prática profissional, lhe diminui a reputação, a honra profissional, o conceito em que é tido pelos seus pares em virtude dos especiais conhecimentos científicos e habilidade técnica que pressupõem que é dotado, tanto no meio hospitalar onde exerce funções e é conhecido, quer junto dos demais colegas de outros estabelecimentos hospitalares, quer pelo público em geral.
Como assinala J. Faria Costa, o ordenamento jurídico-penal português alarga a tutela da honra também à consideração ou reputação exteriores.
Para a consumação do crime de difamação, basta o dolo genérico em qualquer das modalidades definidas no art. 14° do Cód. Penal.
Trata-se de um crime que não exige um dolo específico, a consciência e vontade de ofender a honra alheia, mediante a linguagem falada, mímica ou escrita.
Na verdade, o crime de difamação tem sido considerado pela doutrina e jurisprudência, como um crime de perigo, porque a lei não exige um dano ou lesão efectiva da honra ou consideração de outrem (mas apenas de factos que ofendam ou possam ofender), bastando à sua consumação o perigo de que aquele dano possa verificar-se.
Daí que o legislador na incriminação do art. 180° do C.P., teve em conta a genérica aptidão da acção para produzir o evento danoso: a imputação de factos, juízos ou palavras ofensivos da honra ou da consideração.
Por isso, o dolo basta-se apenas com a consciência ou previsão da genérica perigosidade da conduta ou do meio de acção previsto na norma incriminatória, levando o agente a cabo a conduta ou a acção nela prevista, ou seja, que o agente haja aderido conscientemente à situação de perigo, ou se haja conformado com tal situação minimamente consciente da possibilidade de ocorrência do dano.
Vejamos agora qual foi o motivo que conduziu os arguidos a apresentarem a dita queixa crime contra o assistente, tomando com assente que a um agente, colocado na situação dos arguidos e dotado das mesmas características, não escapa a representação de que tal conduta é susceptível de acarretar perigo para a reputação profissional do médico visado.
Interrogados os arguidos a fls. 136 a 138, 143 a 145, 314, 315, 330 e 331, afirmaram que apresentaram a dita queixa contra o aqui assistente “por ter sido ele o médico que consultou a E… em 23/1/2009, que propôs à doente e à arguida C… que a acompanhava, a realização da cirurgia para remoção do tumor pancreático do qual suspeitava em face dos exames realizados, disse-lhe que seria ele que a iria operar, o arguido B… desconhecia que o Dr. H… também integrava a equipa cirúrgica e operou a sua filha E…, era o aqui assistente Dr. D… o Director do Serviço de Cirurgia do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gala/Espinho, porque no decurso da cirurgia realizada em 3/2/2009, o Dr. D… dirigiu-se à sala de espera, perguntou aos ali presentes quem eram os pais da E… e afirmou-lhes o seguinte: “nós estamos a perder a vossa filha, não sabemos qual é a razão, por tal rezem, ela não tinha um tumor mas sim uma tuberculose ganglionar”, ficando eles convencidos de que era o assistente o chefe da equipa cirúrgica que efectuava a dita intervenção; pelas 20.00 horas do mesmo dia, altura em que a E… se encontrava em como induzido na U.C.I., uma médica cujo nome desconhece, disse aos arguidos que no decurso da operação tinha sido cortada a veia porta (não identificando o médico que, inadvertidamente, lacerou essa veia) e que o aqui assistente lhe pedira para lhes transmitir tal informação, que a Dra. I… que fazia parte daquela equipa cirúrgica, informou-os de que o Dr. D… ao utilizar a máquina eléctrica para remover o tumor, cortou a veia porta da E…, que o assistente quis continuar a operação apesar da oposição do anestesista, que ela, Dra. I…, e o Dr. H…, quiseram transferir mais cedo, a E… para uma unidade hospitalar especializada em transplantes de fígado, nomeadamente para o hospital Curry Cabral onde a Dra. I… tinha um conhecimento, mas o assistente opôs-se a tal, porque no certificado de óbito da E… consta como uma das causas da morte, a “colangiopatia isquémica e iatrogénica”, ou seja, falta de irrigação do fígado pela veia porta, por causa de acto médico, e no relatório da autópsia consta que a veia porta foi suturada com linha (rafia) azul”.
O legislador prevê expressamente uma causa de justificação especial definido nos n°s 2 a 4 do art. 180º do C.P. que no caso dos autos não se aplica e que não prejudica nem colide com a norma geral prevista no art. 31º, e por isso a ela alude expressamente no n° 3 daquele art. 180°.
O art. 31º n° 2 b), estipula que o facto não é ilícito se for praticado no exercício de um direito.
Nesta parte entende o assistente que os arguidos poderiam ter-se limitado a solicitar um inquérito interno no Hospital de Vila Nova de Gaia ou junto da Inspecção Geral de Saúde, para melhor serem informados da causa da morte da sua filha, e absterem-se de participarem criminalmente contra ele.
Sucede porém, que os assistentes acreditaram, em face das conversas e informações que lhes foram fornecidas nos hospitais de Vila Nova de Gaia e Santo António, no Porto, que a morte da sua filha E… poderia ter sido evitada se não tivesse ocorrido o referido acidente cirúrgico e/ou se ela tivesse
sido, logo após a cirurgia de 3/2/2009, transferida para um Serviço de Hepatologia, e, para além do sugerido pedido de inquérito interno no Hospital de Vila Nova de Gala ou junto da Inspecção Geral de Saúde, os assistentes também têm o direito de participar criminalmente contra o médico que lhes foi indicado como o autor daqueles factos e de comunicar o sucedido ao Ministério Público para que promova o correspondente procedimento criminal, sem que o exercício deste direito envolva para eles, enquanto denunciantes, necessária responsabilidade criminal.
O art. 244º do C.P.P. estabelece que “Qualquer pessoa que tiver notícia de um crime pode denunciá-lo ao Ministério Público (…) saIvo se o procedimento respectivo depender de queixa ou de acusação particular”.
Por sua vez o art. 246º nº 3 dispõe que “A denúncia contém, na medida do possível, a indicação dos elementos referidos nas alíneas do nº 1 do artigo 243°”, ou seja, “Os factos que constituem crime, o dia, hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido e tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes (...)” – cfr. art. 243° nº 1 a) a c) do C.P.P. – carregado nosso.
A causa do decesso da filha dos arguidos envolve matéria muito específica, que exige especiais conhecimentos académicos e científicos que nem o comum cidadão, nem os tribunais possuem, e que só o Conselho Médico-Legal do I.N.M.L. poderia fornecer, no decurso do procedimento criminal instaurado, em ordem à decisão sobre a acusação – cfr. arts. 262° nº 1, 151° e 159° do C.P.P. em conjugação com as normas da Lei nº 45/2004 de 19/8 e art. 6° nº 2 a) do D.L. nº 131/2007 de 10/4.
Conforme já decidiu o Ac. da R.C. de 17/1/2001, “Não integra a prática do crime de difamação o facto do arguido, ao apresentar queixa-crime perante autoridade policial, indicar como suspeito o assistente”.
No mesmo sentido decidiu o Ac. do S.TJ. de 21/4/2010 no proc. nº 1/09.3YGLSB.S2 citado pela defesa dos arguidos no debate instrutório, dizendo que “I - Toda a participação ou queixa criminal contém, em regra, objectivamente, uma ofensa à honra, por comunicar a prática de factos configuradores de um comportamento criminoso. A denúncia de um crime, quando identificado o seu autor ou o suspeito de o ter cometido, objectivamente, atinge a honra do denunciado. Apesar disso, é evidente que ninguém pode ser impedido de participar um facto delituoso. II - Ao direito à honra do denunciado contrapõe-se o direito à denúncia como via necessária de acesso à justiça e aos tribunais para defesa dos interesses legalmente protegidos do denunciante, direito constitucionalmente consagrado – art. 20.º da CRP. Num Estado de direito é impensável, pois, impedir quem quer que seja de participar um facto delituoso, com a justificação de que em consequência da participação ir-se-á lesar a honra do participado” – carregado nosso.
Em suma entendemos que no caso dos autos, a conduta dos arguidos ficou aquém da anti-juridicidade arts. 20° nº 1 da C.R.P. e 31° n° 2 b) do C.P..
Pelo exposto, nos termos da segunda parte do n° 1 do art. 308° do C.P.P., este Tribunal decide Não Pronunciar os arguidos B… e C… pelo crime que o assistente lhes quer ver imputado e, consequentemente, ordenar o oportuno arquivamento dos autos.”
*
*
Desta decisão de Não Pronúncia recorreu o assistente D…, formulando as seguintes conclusões:
“1ª- O despacho recorrido rejeitou a acusação deduzida pelo Assistente, considerando-a infundada, por no seu entender os factos imputados pelos arguidos não constituírem um crime, mas antes o “exercício de um direito”, por, segundo ele despacho, não ter havido da parte deles «intenção de injuriar», mas tão-só «saber o que se passou».
2ª- Do ponto de vista doutrinário, «difamação» é a atribuição a alguém de facto ou conduta, ainda que não criminosos, que encerrem em si uma reprovação ético-social, que sejam ofensivos da reputação do visado; “honra” será a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui, respeitando ao património pessoal e intenso de cada um e “consideração” o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, a forma como a sociedade vê cada cidadão, a opinião pública (Leal e Simas Santos, Cód. Penal Anot., 2° Vol, 1996, p. 317).
3ª- Para o preenchimento do tipo legal do crime em questão, o legislador bastou-se com o chamado dolo genérico, não sendo necessário aquilo que se denomina de animus injuriandi vel difamandi, isto é, a intenção expressa de difamar – pelo que o despacho recorrido labora em inexactidão ao sustentar o inverso.
4ª- Mas mesmo que se entenda esse requisito como necessário, sempre se deveria ter concluído que os arguidos decidiram efectivamente atingir, de forma directa, o Assistente, tanto assim que (e em primeiro lugar), como consta dos autos, não foi ele quem procedeu directamente à intervenção cirúrgica em causa, mas sim o Sr. Dr. H…, Cirurgião Principal.
5ª- Os arguidos sabiam, tinham consciência do carácter falso dos factos que imputavam ao Assistente, não havendo assim qualquer causa de exclusão de ilicitude e, mesmo após eles estarem na posse de elementos que atestavam a não culpa do Assistente, continuaram a pugnar pela sua condenação, escudando-se no seu suposto “direito”.
6ª- Outrossim, era dever dos arguidos, antes de imputar seja o que seja, de se munirem de todas as informações possíveis, em ordem a saberem quem fora o autor da prática do acto que imputaram e, mesmo nessa impossibilidade, a Lei permitia-lhes ainda, fazerem a denúncia contra desconhecidos se, como eles dizem, queriam unicamente saber «o que se passou».
7ª- Os arguidos mais poderiam ter participado contra toda a equipa cirúrgica, ou apenas contra o cirurgião principal e/ou contra a equipe que procedeu ao transplante do fígado à paciente, durante a qual esta veio a falecer – mas centraram-se unicamente na pessoa do Assistente e mais ninguém, com o intuito claro e objectivo de ofender e vexar a sua reputação e honra.
8ª- Os arguidos não actuaram por qualquer dessas formas lícitas, antes enveredaram pelas ilícitas, ao afirmarem peremptoriamente que fora em virtude de actos supostamente praticados pelo aqui Assistente que a paciente teria falecido.
9ª- Quando a honra do denunciado foi desnecessária (!) e gratuitamente (!) lesada, o direito de denúncia dos arguidos cede perante o direito à honra e torna-se assim na prática de um crime – dos dois direitos em colisão, aquele prevalece.
10ª- Em Direito, a proporcionalidade é tida como o “bom senso”, a medida de equilíbrio, a política responsável que delimita a fronteira entre o que é razoável fazer-se e o que o não é, para que se não possa lançar mão de um direito para camuflar um crime.
11ª- Ao contrário do que os arguidos afirmam e o despacho recorrido subscreveu, eles não pretenderam «saber o que aconteceu», antes quiseram (e conseguiram) difamar o Assistente, atribuindo-lhe factos e condutas ofensivos da sua reputação.
12ª- Tanto assim que, mesmo depois de todas as perícias juntas aos autos terem demonstrado a sua sem-razão e a inocência do Assistente, continuaram os arguidos a pugnar pela sua condenação, tendo recorrido do despacho de arquivamento – recurso que aliás não teve provimento.
13ª- Em conclusão, os factos e juízos imputados e formulados pelos arguidos, as condutas desonrosas dos deveres profissionais do Médico aqui Assistente que maldosamente lhe atribuíram, no exercício da sua profissão e funções e por causa destas, assume inegável gravidade na ofensa ao bom nome, à honra e consideração deste.
14ª- Ao contrário do afirmado no despacho de arquivamento, mostra-se preenchido o tipo legal do crime de difamação, p. e p. no art. 180° n° 1 com a agravação do art. 184°, ambos do Cód. Penal imputado aos arguidos e praticado na pessoa do Assistente e não subsiste qualquer causa de exclusão de ilicitude – pelo que estes preceitos se encontram aplicados de forma inexacta no referido despacho.
Termos em que, no provimento do recurso, deverá ser revogado o despacho recorrido e decretada a pronúncia dos arguidos, em conformidade com a minuta constante do requerimento de abertura de Instrução e com as conclusões que antecedem.”
*
Em 1ª Instância, o MºPº defendeu a improcedência do recurso.
*
Em resposta ao recurso do D…, os arguidos B… e C… defenderam a sua improcedência.
*
Neste Tribunal, o Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se, igualmente, pela improcedência do recurso.
*
*
*
Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o recorrente D… pretende a revogação da decisão recorrida e que seja determinada a sua substituição por outra que pronuncie os arguidos, por se mostrar «preenchido o tipo legal do crime de difamação, p. e p. no art. 180° n° 1 com a agravação do art. 184°, ambos do Cód. Penal».
*
De acordo com o constante dos autos, os aqui arguidos, pais da falecida E…, participaram criminalmente contra o aqui recorrente, D… – médico especialista de Medicina Geral do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e Director do Serviço de Cirurgia –, “alegando em síntese, que a morte da E… poderia ter sido evitada se o arguido D… não lhe tivesse cortado a veia porta na intervenção cirúrgica que realizou em 3/2/2009 e ainda se, logo após essa cirurgia, a tivesse transferido para tratamento, no Hospital de St° António, no Porto, ter-se-ia evitado o transplante do fígado”.
Realizado o Inquérito, pelo MºPº foi proferido Despacho de arquivamento, “quanto aos eventuais crimes de denúncia caluniosa (…) por não se indiciar, da prova recolhida, que os arguidos, ao terem apresentado queixa crime contra o aqui denunciante (…), sabiam que as imputações que lhe faziam eram falsas, e de difamação agravada (…), porque da mesma prova indiciária resulta que os arguidos ao apresentarem a dita queixa crime contra o aqui ofendido, agiram no legítimo exercício de um direito nos termos do art. 31° nº 2 do Cód. Penal, nomeadamente o de verem esclarecidas as razões que levaram à morte da sua filha E…”.
O assistente requereu a abertura de Instrução, pedindo a pronúncia dos arguidos pela prática do crime de difamação agravada (abdicando da imputação pela prática do crime de denúncia caluniosa).
No despacho de não pronúncia sob reexame, reconhecendo-se que “a formulação de uma participação criminal contra um médico especialista onde se lhe imputa a morte de um doente por má prática profissional, lhe diminui a reputação, a honra profissional”, entende-se que os arguidos o fizeram no exercício do seu direito de denúncia, acreditando que a morte da sua filha poderia “ter sido evitada se não tivesse ocorrido o referido acidente cirúrgico e/ou se ela tivesse sido, logo após a cirurgia de 3/2/2009, transferida para um Serviço de Hepatologia”, tendo-lhes sido indicado o recorrente como “o autor dos factos”.
Conclui-se ser aplicável o art. 31º, nº 2, do CP, que exclui a ilicitude se o facto for praticado no exercício de um direito.
No recurso argumenta-se que os arguidos «tinham consciência do carácter falso dos factos que imputavam ao Assistente, não havendo assim qualquer causa de exclusão de ilicitude» e que «poderiam ter participado contra toda a equipa cirúrgica, ou apenas contra o cirurgião principal e/ou contra a equipe que procedeu ao transplante do fígado à paciente, durante a qual esta veio a falecer – mas centraram-se unicamente na pessoa do Assistente e mais ninguém, com o intuito claro e objectivo de ofender e vexar a sua reputação e honra».
*
Não tem razão o recorrente.
Comece-se, no entanto, por se se referir que entendemos ser errado perfilhar, por princípio, a concepção de que o direito de denúncia prevalece sob o direito à honra e bom nome do denunciado.
Pelo contrário, ambos os direitos revestem – face à comum fonte constitucional de onde emanam: direito de denúncia como via de acesso à Justiça (art. 20º da CRP); direito à honra e bom nome (art. 26º, nº 1, da CRP) – igual valor na nossa Ordem Jurídica.
Tal impõe a sua compatibilização de acordo com as circunstâncias do caso, de modo a que o primeiro não atinja por forma desnecessária e inaceitável o núcleo essencial do segundo (assim o impõe o art. 18º, nº 2, da CRP).
No caso, era direito dos arguidos – face a toda a sequência de actos médicos que antecederam e culminaram no falecimento da sua filha – verem esclarecidas as suas causas e apurada a existência de eventual responsabilidade penal.
Assim, a denúncia efectuada pelos arguidos foi exercida numa situação e perante interesses que razoavelmente o justificavam.
O facto de terem formulado a queixa apenas contra o aqui recorrente, não significa, por si só, uma actuação com o único ou principal objectivo de ofender a sua honra e bom nome profissional.
Com efeito, o assistente era o Director do Serviço de Cirurgia do Hospital e fez parte da equipa médica que realizou a intervenção cirúrgica em causa, tendo – de acordo com a decisão (não infirmada nessa parte) – os arguidos afirmado que foi ele quem consultou a filha e propôs a realização da intervenção cirúrgica.
Por outro lado, tratando-se de factos susceptíveis de integrarem um crime de natureza pública, a circunstância de a denúncia ter sido formulada apenas contra o recorrente não impediria que os outros participantes na intervenção cirúrgica viessem a ser responsabilizados penalmente, caso se apurassem factos nesse sentido.
A este propósito mostra-se, aliás, apropriado referir-se que no domínio das intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos, “na actuação em equipa” é possível falar-se em co-autoria negligente ou “comportamento negligente conjunto” (defendendo, no entanto, outros a existência apenas de autorias paralelas), cfr. Sónia Fidalgo, “Responsabilidade Penal por Negligência no Exercício da Medicina em Equipa”, Coimbra Editora, p. 254 a 257.
Em complemento, dos factos considerados indiciados não resulta que os arguidos tivessem consciência da falsidade dos factos que imputavam ao assistente, ao contrário do que indemonstradamente é alegado no recurso (argumento que, para além disso, seria mais apropriado à imputação da prática do crime de denúncia caluniosa).
Em conclusão, tendo os arguidos agido no exercício de um justificado direito de denúncia, sem extravasarem as finalidades do mesmo ou atingirem abusivamente o núcleo essencial do direito à honra e bom nome do denunciado, verifica-se a causa de exclusão da ilicitude prevista no art. 31º, nº 2, al. b), do CP, tal como decidido no despacho de não pronúncia sob reexame, que deve, assim, ser mantido.
*
Nos termos relatados, decide-se julgar improcedente o recurso, mantendo-se a Decisão Instrutória de não pronúncia recorrida.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a Taxa de Justiça em 3 UC’s.
*
Porto, 04/03/2015
José Piedade
Airisa Caldinho