Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
982/07.1TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP00043132
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: CONVENÇÃO CMR
RESPONSABILIDADE
RESSARCIMENTO INTEGRAL
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP20091029982/07.1TVPRT.P1
Data do Acordão: 10/29/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO - LIVRO 815 - FLS 25.
Área Temática: .
Sumário: I – No âmbito da aplicação da CMR, demonstrada a demora na entrega da mercadoria, presume-se que o transportador agiu com culpa (art. 17º, nº1).
II – O transportador só não será responsabilizado se elidir aquela presunção, provando que a demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (art. 17º, º2).
III – O nº5 do art. 23º da CMR acolhe um desvio limitativo do princípio de direito comum em matéria de responsabilidade, que é o da reparação integral dos danos, ao prever, em caso de demora na entrega da mercadoria, uma responsabilidade limitada correspondente a uma indemnização que não pode ultrapassar o preço do transporte, desde que esteja provada a existência de prejuízo.
IV – Só se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável; neste caso, se, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, tal falta for considerada equivalente ao dolo, não poderá aquele aproveitar-se da referida limitação da sua responsabilidade (art. 29º, nº1).
V – O ónus da prova da existência de dolo ou de falta equivalente imputável ao transportador é do interessado expedidor.
VI – Para o efeito da aplicação do referido nº1 do art. 29º, o sistema jurídico privado português não equipara nenhuma situação de negligência ao dolo, ainda que de negligência grave ou grosseira se trate e, por maioria de razão, quando o grau de culpa não vai além da negligência consciente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 982/07.1TVPRT.P1 – 3ª Secção (Apelação)
Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Teixeira Ribeiro
Adj. Desemb. Pinto de Almeida


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
“B………., LDA ”, com sede na Rua ………, …, ……, ….-… Lisboa, intentou acção declarativa, com processo ordinário, contra “C………., LDA. ”, com sede no Porto, alegando, no essencial que, tendo celebrado com ela um contrato de transporte internacional de mercadorias (para calçado), da ………. para dois determinados clientes, na Alemanha, a demandada não cumpriu esse negócio no prazo previsto, e quando fez o transporte a mercadoria foi recusada e não foi paga por não ser já susceptível de comercialização.
Como consequência desse incumprimento, a A. pretende que a R. a indemnize pelo valor da mercadoria objecto do transporte (e de duas facturas) e pela perda de novas encomendas daqueles e de outros clientes.
Assim, pediu a condenação da R. a pagar-lhe:
«a) a título de indemnização pelos prejuízos por ela sofridos, a quantia de Eur. 19.189,98, à qual deve acrescer os juros à taxa de 5%, desde a data da reclamação escrita endereçada à D., ou seja 11/07/2006, que até à data de 25/06/2007 se computam em Eur. 917,43, nos termos dos art. 17°, nºs 1 e 3, 23°, n.° 5, 29° e 27° da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte de Mercadorias por Estrada celebrada em Genebra em 19/5/1956, aprovada para adesão pelo Decreto-Lei 46.235, de 18/03/65, e alterada pelo Protocolo de Genebra de 05/07/78, aprovado para adesão pelo Decreto-Lei 28/88, de 06/09;
b) além dos lucros cessantes que vierem a apurar-se em execução de sentença, com juros, contados desde a citação até integral pagamento;
c) bem como as custas e condigna procuradoria.»

Regularmente citada, a R. contestou impugnando parcialmente os factos e deduzindo reconvenção.
Na contestação, a R. negou a existência de um prazo para a entrega da mercadoria, recorrendo ao que chamou de prazo normal de 15 a 20 dias que cumpriu, através do seu agente, acrescentando que foram os clientes da A. que não aceitaram os sapatos.
E quando, posteriormente, a A. autorizou a entrega livre da mercadoria ao seu agente na Alemanha, com novas condições, também não foi possível fazê-la por o seu agente ter então invocado que os clientes finais já não estariam interessados em tais produtos.
Acrescentou que agiu com a diligência e o zelo que lhe eram exigíveis, sem qualquer falha operacional e que a situação teve origem em falha do próprio interessado (recusa inicial de recebimento por parte dos destinatários) ou em circunstâncias que o transportador não poderia evitar e a cujas consequências não dominava.
Invocou ainda a prescrição do crédito da A. nos termos do art.º 32º da CMR.
E, por via da reconvenção, pediu a condenação da A. a pagar-lhe determinados serviços de transportes anteriores e facturados que discriminou, pelo montante total de € 10.047,89 sobre o qual incidem juros de mora, num total, à data da reconvenção, de € 11.888,96 (€ 10.047,89 + € 1.841,47).
Caso a R., por mera hipótese, venha a ser condenada em alguma quantia, deve operar-se a compensação com o crédito que tem sobre a demandante, acrescentou.
E terminou no sentido de:
«a) A excepção de prescrição invocada ser declarada procedente, e a R. absolvida do pedido, a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a R. absolvida do pedido;
b) Se assim não se entender, deverá a acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, e a R. absolvida do pedido;

c) Se assim não se entender deve ser julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional e, consequentemente, ser a Autora condenada a pagar à R. a quantia de € 11.888,96.»

Notificada, a A. reconvinda replicou opondo-se à excepção da prescrição.
Quanto à matéria da reconvenção, embora reconhecendo o valor pretendido, entende que não o tinha que pagar porque a A. pretendia ser indemnizada pelos prejuízos por ela sofridos, objecto da presente acção. Como tal invocou a excepção do não cumprimento do contrato.
Defendeu a improcedência da excepção e a inadmissibilidade da reconvenção, mantendo a versão da petição inicial.
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Teve lugar a audiência de julgamento, na sequência da qual, respondida que foi a matéria da base instrutória, foi proferida sentença que julgou:

- parcialmente procedente a acção e condenou a R. a pagar à Autora a quantia, a liquidar em execução de sentença, equivalente ao preço acordado no âmbito do contrato de transporte a que se reportam os autos, acrescida de juros de mora, à taxa de 5%, ao ano, desde a decisão definitiva de liquidação do crédito da Autora até integral pagamento.
- parcialmente procedente a reconvenção e condenou a Autora “B………, Lda.” a pagar à R. “C………., Lda.” a quantia de € 11.888,96.
Mais determinou que a compensação entre os acima referidos créditos da R. e da A. deverá ser efectuada em posterior liquidação de sentença, atenta a natureza ilíquida do crédito desta última.

Da sentença recorreu apenas a A. “B………., L.da”, formulando as seguintes conclusões:

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Respondeu a recorrida em contra-alegações que, por ter formulado também conclusões, se transcrevem, ipsis verbis:

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As questões a decidir.
No intróito das suas alegações de recurso a recorrente refere expressamente o seguinte: “Assim, salvo melhor opinião e em nosso modesto entendimento, a solução encontrada não está em conformidade com a factualidade que ao caso respeita, entendendo a recorrente ter havido uma incorrecta decisão sobre a matéria de facto que, por isso, pretende impugnar.”
Mas, percorrendo todas as suas alegações e conclusões de recurso não se vislumbra qualquer discordância relativamente à matéria que foi dada como assente na 1ª instância e, designadamente, na sequência da discussão da causa, nas respostas à matéria da base instrutória. Aliás, todo o raciocínio desenvolvido pela recorrente deixa claro que apenas discorda da aplicação do Direito. E, discorrendo a recorrente sobre o ónus da prova, apenas o invoca --- não para fundamentar qualquer discordância relativamente a eventual uso indevido das regras do ónus da prova na matéria dada como provada ou não provado --- para concluir que competia à R. demonstrar factos que não logrou provar, aproveitando isso à A.
Bem se vê, pois, que a A. não quis mais do que impugnar a aplicação do Direito, circunscrevendo a sua impugnação apenas a uma parte determinada do enquadramento jurídico efectuado na 1ª instância, o que se extrai do ponto que a recorrente denominou “II- Do mérito do recurso”, onde escreveu, em perfeita contextualização: «A questão, objecto do presente recurso, apenas se prende com um, fazendo nossa a expressão usada pelo Exmo. Senhor Subscritor da decisão ora impugnada, “segundo momento”, designadamente o que aconteceu – e o que não aconteceu – no dia 03/04/2006, durante todo o mês de Abril, e, ainda, os meses de Maio, Junho e Julho de 2006».
De resto, sempre teria que ser rejeitada a impugnação da matéria de facto --- que, em nosso entendimento, nem sequer esteve no plano intencional da recorrente --- por inobservância, mínima que fosse, dos requisitos do art.º 690º-A, do Código de Processo Civil (na redacção anterior à que foi introduzida pelo Decreto-lei nº 303/2007, de 24 de Agosto).

Com efeito, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, excepção feita para o que for do conhecimento oficioso, sendo que se apreciam questões apenas invocadas e relacionadas com o conteúdo do acto recorrido e não sobre matéria nova [cf. art.ºs 660º, nº 2 e 684º e 690º, do Código de Processo Civil (v.d. Cardona Ferreira, Guia de Recursos em Processo Civil, Coimbra, 4ª edição, p.s 103 e 113 e seg.s)].

Assim sendo, cumpre-nos apenas apreciar o incumprimento da obrigação contratual assumida pela R. na execução do contrato de transporte que celebrou com a A., qualificando e graduando, à luz dos factos assentes, a sua culpa e retirando daí as devidas ilações, designadamente para efeitos da sua responsabilidade civil e determinação da indemnização a que a recorrente possa ter direito no âmbito da aplicação da CMR (CONVENÇÃO RELATIVA AO CONTRATO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA).

III.
São os seguintes os factos provados e a considerar:
- A Autora é uma empresa que se dedica ao comércio de calçado (alín. A).
- A Ré é uma empresa comercial que se dedica ao transporte de mercadorias (alín. B).
- No exercício da sua actividade, a Autora vendeu 117 pares de sapatos à “D……….”, pelo preço de € 4.302,45 - cfr. factura n.º …. junta sob doc. n.º 1 – e 447 pares de sapatos à “E……….”, pela quantia de € 14.887,63 – cfr. factura n.º …. junta sob o doc. n.º 2 (alín. C).
- Para concretizar tal fornecimento e entrega, a Autora encarregou a Ré de efectuar o transporte daquela mercadoria, por via terrestre, das suas instalações, localizadas em ………., até às clientes destinatárias, ambas sitas na Alemanha, conforme moradas constantes das facturas supra identificadas (alín. D).
- Assim, após emitir as facturas n.ºs …. e …., indispensáveis ao transporte além fronteiras da mercadoria, entregou-as à Ré no dia 10.03.2006, data em que a mercadoria foi recolhida nas instalações da Autora e carregada num camião para, supostamente, seguir para a Alemanha (alín. E).
- Tratando-se de mercadoria da colecção Primavera/Verão 2006, esta deveria ser entregue de Janeiro a finais de Março do ano a que respeita (alín. F).
- No dia 3.04.2006, às 13 h e 41 m, a Ré comunicou à Autora a recusa da mercadoria devido à falta de encomenda por parte dos clientes destinatários e que o representante da Autora na Alemanha, Exmº Sr. F………., pediu que a mercadoria lhe fosse entregue na condição de entrega livre, para a sua morada e sem qualquer pagamento, o que lhe permitiria negociar e convencer os clientes destinatários a aceitarem os sapatos – cfr. fax da Ré junto sob o doc. n.º 5 (alín. G).
- Confrontada com o sucedido e dada a urgência na sua resolução, a Autora não só acedeu ao pedido, como o fez no próprio dia, passados menos de 40 minutos, às 14 h e 31 m, autorizando a entrega livre da mercadoria, designadamente os sapatos objecto das facturas n.ºs …. e …., conforme fax da Autora e comprovativo de envio juntos sob o doc. n.º 6 (alín. H ).
- Assim, a mercadoria não deveria ser entregue às clientes destinatárias, antes ao representante da Autora na Alemanha, com as reservas supra expostas (alín. I).
- Tal não aconteceu, pois não só em Abril, mas também em Maio, o Exmº Sr. F………. comunicou à Autora não ter recebido as mercadorias referentes às facturas n.ºs …. e …. (alín. J).
- A Ré, através de fax enviado à Autora a 14.09.2006 e reiterando o teor de comunicações anteriores, declinou qualquer responsabilidade no pagamento da indemnização de € 19.189,98 (alín. K).
- No exercício da sua actividade comercial, a Ré prestou à Autora, a pedido desta, diversos serviços de transporte, tendo, para o efeito, emitido as facturas constantes sob os n.ºs 1 a 90 da contestação, cujo teor se dá por reproduzido (alín. L).
- As aludidas facturas totalizam o montante de € 10. 047, 89 (alín. M).
- Os valores ora reclamados pela Ré só não foram pagos porque a Autora pretendia ser indemnizada pelos prejuízos por ela sofridos, objecto da presente acção (alín. N).
- A mercadoria entregue pela Autora à Ré foi por esta transportada para o Porto, sem o acordo ou o conhecimento da Autora, onde permaneceu até ao dia 16.03.2006 (art. 1).
- Em condições de normalidade, o transporte, por via terrestre, de mercadorias de Portugal para a Alemanha demora, no máximo, entre 7 a 10 dias (art. 2).
- Por via dos factos referidos na alínea J) dos factos assentes, a funcionária da Autora, G………., efectuou vários telefonemas para a Ré, solicitando o comprovativo da entrega da mercadoria, pedido este que, em face da ausência de respostas, formulou, depois, por escrito e através do fax de 26.05.2006, constante de fls. 26 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (art. 4).
- Na falta de resposta, a Autora reenviou o fax, anteriormente destinado à Exmª Srª Dª H………., a outra funcionária da Ré, à atenção da Exmª Srª Dª I………., em 6.06.2006, conforme documento n.º 7 - junto com a p.i – ( art. 5).
- Assim, no dia seguinte, aquela funcionária da Ré não só reconheceu perante o sócio da Autora, Exmº Sr. Dr. J………., como confirmou à Autora que a carga referente à factura n.º …. ainda se encontrava no agente da Ré na Alemanha e a mercadoria referente à factura n.º …. em Paris, conforme doc. n.ºs 8 e 9 juntos com a p.i. (art. 6).
- O representante da Autora, Sr. F………., veio a ser contactado posteriormente pelo agente da aqui Ré, em data não exactamente apurada, mas sempre posterior a 7.06.2006, para receber as mercadorias em apreço (art. 7).
- A 8.07.2006, por fax recebido pela Autora a 10.07.2006, o aludido agente da Autora na Alemanha deu conta a esta que os clientes destinatários da mercadoria a tinham recusado e que não lhe era a ele já possível vender as mesmas mercadorias a outros clientes, conforme fax de fls. 31 e 32 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido (art. 8).
- Por via do atraso na entrega da mercadoria, os iniciais destinatários da mercadoria já não tinham interesse, nesta altura - Junho ou Julho de 2006 - na sua aquisição, nem era já possível ao representante da Autora efectuar a sua venda a outros clientes (art. 9)
- Tendo a Autora, logo no dia 11.07.2006, comunicado à Ré a recusa dos clientes destinatárias em receber a mercadoria objecto das facturas n.ºs …. e …., em virtude do atraso observado ( art. 10 ).
- Além de responsabilizar a Ré pelos prejuízos por ela sofridos, no valor dos sapatos por ela fabricados e não pagos no valor de € 14.887,63 e € 4.302, 35 (art. 11).
- Por via do sucedido, a Autora não vendeu as mercadorias em apreço, sendo certo que auferiria ela, com essa venda, uma margem de lucro de cerca de 15 a 20% do seu valor (art. 13).
- Após os factos acima narrados, os clientes destinatários não voltaram a ter negócios com a aqui Autora (art. 14).
- A Autora tinha a expectativa de vir a ter outros negócios com as empresas destinatárias da mercadoria em apreço (arts. 16 e 17).
- A mercadoria em apreço foi entregue à Ré para ser transportada e entregue aos seus destinatários, com sede na Alemanha, contra o pagamento imediato das mesmas através de cheque pré-datado a 10 dias, condições que o transportador deveria cumprir (arts. 18 e 19).
- A Ré trabalha, em regime de agenciamento, com a “K……….”, empresa sedeada em Paris – França (art. 20).
- Na Alemanha, os destinatários da mercadoria, inicialmente, recusaram recebê-la contra o imediato pagamento por cheque pré-datado a 10 dias (art. 23).
- Por via dessa recusa, uma parte da mercadoria (atinente à factura ….) regressou a Paris, ao agente da Ré, e outra parte (atinente à factura ….) ficou na Alemanha no agente da aqui Ré (art. 24).
- A mercadoria chegou à Alemanha em meados ou finais de Março, mas sempre após o dia 17.03.1006 (art. 25).
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As partes não discutem no recurso a qualificação do contrato celebrado entre elas como sendo um contrato de transporte internacional, com aplicação da CMR. Foi, aliás, esta a qualificação que o tribunal a quo lhe conferiu na sentença.
Está em causa o transporte de mercadorias (calçado) de Portugal (……….) para a Alemanha, países diferentes, por estrada e mediante o pagamento de um preço, por via do qual a recorrida, na qualidade de transportadora, assumiu uma obrigação de resultado: entregar o calçado da A. na Alemanha; circunstâncias que nos remetem para o direito interno de origem internacional. O contrato tem natureza comercial (cf. art.ºs 2º, 13º, nº 2, e 366º, proémio, do Código Comercial).
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, in www.dgsi.pt, o contrato internacional de transporte de mercadorias por estrada traduz-se na convenção por via da qual uma pessoa se obriga perante outra, mediante um preço, a realizar a deslocação de uma determinada mercadoria desde um ponto de partida situado num dado país até outro ponto de destino localizado noutro país (cf. art.º 1º da CMR).
Nas circunstâncias em causa é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), de 19 de Maio de 1956, inserida no direito interno português pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março de 1965, alterada pelo Protocolo de Genebra de 5 de Julho de 1978, aprovado em Portugal para a sua adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro.
Mais do que na aplicação dos art.ºs 487º, nº 2, e 799º, nºs 1 e 2, Código Civil, é na Convenção referida que se encontra regulada, por forma especial ou particular, a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato em questão.
Concordamos, pois, com as partes e com o tribunal recorrido no que respeita à qualificação do negócio e aplicação da CMR. Com efeito, a referida Convenção aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada, a título oneroso, em veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante, independentemente do domicílio e nacionalidade das partes (artigo 1º, n.º 1, daquele diploma e ao qual pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem).
A execução material da prestação de facto a que o transportador se obriga desdobra-se em três operações: a recepção da mercadoria, a sua deslocação (ou transporte em sentido estrito) e a sua entrega ao destinatário no local de destino. O transportador obriga-se a entregar a mercadoria no local de destino, na mesma quantidade e estado em que a recebeu (a obrigação de resultado), sendo responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega (art.º 17º, nº 1, que consagra uma verdadeira presunção de culpa).
Em caso de demora na entrega da mercadoria --- a situação que aqui nos interessa ---, o transportador fica desobrigado desta responsabilidade se ela teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (nº 2 do art.º 17º).
Sendo ao expedidor que compete demonstrar a demora, é do transportador o ónus da prova de que a demora teve por causa um dos factos previstos no art.º 17º, nº 2, designadamente que ocorreram “circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”, elidindo a presunção de culpa que emerge do nº 1 (cf. nº 1 do art.º 18º, aliás, em consonância com o art.º 342º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Segundo o art.º 19º, há demora na entrega quando a mercadoria não foi entregue no prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, quando a duração efectiva do transporte, tendo em conta as circunstâncias, e em especial, no caso de um carregamento parcial, o tempo necessário para juntar um carregamento completo em condições normais, ultrapassar o tempo que é razoável atribuir a transportadores diligentes.
No caso de demora, se o interessado provar que dela resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte. É o que se prevê no nº 5 do art.º 23º que acolhe uma limitação da responsabilidade do transportador. A CMR estabelece, no seu art.º 23º, um desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos.
Porém, essa limitação não ocorre, dela não aproveita o transportador, se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo (art.º 29º, nº 1).
Aqui chegados e aceitando a própria recorrida a demora e a sua negligência na entrega da mercadoria transportada, encontramo-nos com a essência do recurso e perguntamos: será que os factos provados revelam um grau de negligência que, segundo a nossa lei, é equiparável ao dolo?
O dolo do transportador ou do pessoal respectivo é facto constitutivo do direito à indemnização plena que a lei geral assegura em sede de responsabilidade civil contratual (como decorre dos art.ºs 494º, a contrario sensu, e 562º do Código Civil).
Para obter indemnização não sujeita aos limites estabelecidos no art.º 23º da CMR, é, por conseguinte, o interessado com direito à indemnização que, conforme o art.º 342º, nº 1º, do Código Civil, terá que provar que o atraso na entrega da mercadoria se deveu a acto voluntário do transportador ou do pessoal ao seu serviço (art.º 3º).

Situemo-nos nos factos mais relevantes e relativamente aos quais a sentença andou bem em separar dois conjuntos de circunstâncias que, estando interligadas no âmbito do mesmo contrato de transporte, revelam também dois tipos de conduta da parte da Recorrida.
Na fase inicial da execução do contrato nada se pode imputar à Recorrida a título de negligência. Agiu com zelo e respeito pelos interesses da recorrente. Carregou a mercadoria nas instalações da A. no dia 10.3.2006, a mercadoria deveria chegar ao seu destino, na Alemanha, até ao final do mês de Março e fê-la chegar ainda nesse mês. O problema foi não ter sido recebida pelos seus destinatários contra o imediato pagamento por cheque pré-datado a 10 dias, condição que a R. deveria cumprir.
Continuando a cumprir, por via daquela recusa de aceitação dos sapatos, a R. não os descarregou, mas transportou-os em dois lotes (um por factura), para Paris e ainda na Alemanha, mas ambos para agentes da própria Recorrida.
Contudo, pelo menos desde 26.5.2006 e através de fax dessa mesma data, a Recorrente revelou à Recorrida que o seu (da Recorrente) agente L………. ainda não recebera a mercadoria, devendo ser-lhe entregue, referindo-se a uma das facturas.
Não teve resposta da R. Daí que a A. lhe tenha reenviado o fax, mas agora ao cuidado de outra sua funcionária, com data de 6.6.2006. Logo no dia seguinte a Ré não só reconheceu, como confirmou à Autora que a carga referente à factura n.° …. ainda se encontrava no agente da R. na Alemanha e a mercadoria referente à factura n.° …., em Paris.
O representante da Autora, Sr. F………, veio a ser contactado posteriormente pelo agente da aqui R., em data não exactamente apurada, mas sempre posterior a 7.06.2006, para receber as mercadorias em apreço. Mas a 8.07.2006, por fax recebido pela Autora a 10.07.2006, o aludido agente da Autora na Alemanha deu conta a esta que os clientes destinatários da mercadoria a tinham recusado e que já não lhe era possível vender as mesmas mercadorias a outros clientes.
Por via do atraso na entrega da mercadoria, os iniciais destinatários da mercadoria já não tinham interesse, nesta altura – Junho ou Julho de 2006 – na sua aquisição, nem era já possível ao representante da Autora efectuar a sua venda a outros clientes. E a A., logo no dia 11.07.2006, comunicou à R. a recusa dos clientes destinatárias em receber a mercadoria objecto das duas facturas, em virtude do atraso observado.
Com base nestes factos, também nós temos como claro haver negligência da Recorrida na entrega da mercadoria. Uma vez inicialmente recusada, sem culpa sua, nem por isso estava dispensada de lhe dar o destino convencionado com o expedidor, pois que logo no dia em que conheceu essa recusa por comunicação da R. (3.4.2006), autorizou a descarga da mercadoria (toda ela) em regime de entrega livre na morada do seu agente, na Alemanha, Sr. F………., conforme pedido deste.
Porém, embora seja compreensível uma possível necessidade da R. em se reajustar ao novo compromisso, nem em Abril, nem em Maio e, pelo menos numa parte do mês de Junho entregou os sapatos a quem devia, contactando o agente da A. na Alemanha, para o efeito, apenas no dia 7 de Junho de 2006. Mas nem em Junho nem em Julho era viável colocar a mercadoria no mercado, por ser uma colecção de primavera/verão e o agente da R. na Alemanha mostrou o inerente desinteresse.
A R. agiu com negligência ao não demonstrar, como lhe competia nos termos do nº 2, do art.º 17º, “qualquer circunstância que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”, assim não elidindo a presunção que emana do nº 1 do mesmo artigo.
Ao contrário do que defende a recorrente e como atrás referimos, só nesta medida vale a disposição do nº 2 do art.º 17º, competindo, no caso, à A. a prova das condições de responsabilização ilimitada previstas no art.º 29º, nº 1.
A questão está em saber se esta negligência foi grosseira e grave e se, sendo-o, pode ser equiparada ao dolo a que se refere o dito art.º 29º, de modo a afastar a limitação da responsabilidade prevista nº 5 do art.º 23º.
A culpa será apreciada, em face das circunstâncias de cada caso pela diligência ou homem médio (in abstracto) e não segundo a diligência habitual do autor do facto ilícito (in concreto) (art.º 487º, nº 2, do Código Civil). A diligência relevante para a determinação da culpa é a que um homem normal (um bom pai de família) teria em face do condicionalismo próprio do caso concreto, e não a diligência que o agente costuma aplicar nos seus actos (diligentia quam suis rebus adhibere solet), de que ele se revela habitualmente capaz (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 5ª edição, Almedina, pág. 526); o que, no caso, conduz, em larga medida, ao desinteresse do facto de, anteriormente, a R. ter efectuado vários transportes internacionais para a Autora e a forma como então terá cumprido as suas obrigações.
Segundo Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, edição da AAUL, 1980, vol II, pág.s 317, a mera culpa ou negligência tem sido entendida como a violação (objectiva) de uma norma por inobservância de deveres de cuidado. No decurso da sua actuação na sociedade, as pessoas devem observar determinadas regras de cuidado, de prudência, de atenção ou de diligência para que não violem, ainda que involuntariamente, normas jurídicas. A não observância desses cuidados elementares pode provocar uma violação, ainda que não incluída, a título directo, necessário ou eventual na actuação do agente.
Na negligência consciente o agente tem conhecimento da existência dos deveres do cuidado mas, não obstante, não os acata, esperando que não haja danos; na negligência inconsciente, o agente não tem conhecimento dos deveres de cuidado.
O dolo é pelo seu teor incisivo, de fácil apreciação: basta constatar a vontade de prevaricar, isto é, de não acatar a norma jurídica cuja violação provoque o dano a imputar. Já a negligência ocorre, não da vontade imediatamente prevaricadora, mas simplesmente dum desrespeito pelos deveres de precaução que acabou por acarretar uma violação danosa. Enquanto no dolo existe um comportamento primariamente dirigido à violação duma norma jurídica; na negligência, a violação é-o, directamente, de deveres de cuidado. Nesta cabem, em primeiro lugar, os casos (excluídos do conceito do dolo) em que o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação, e só por isso não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte psicológico das acções que integram a culpa consciente, e o grau de reprovação ou de censura será tanto maior quanto mais ampla for a possibilidade de a pessoa ter agido de outro modo, e mais forte ou intenso o dever de o ter feito. (cf. Antunes Varela, ob. cit., pág.s 525 e 526). Mas, acrescenta este ilustre professor, a pág.s 350 (t.b. na respectiva nota 1) da mesma obra, que, uma vez apurada a culpa do agente, este é obrigado a indemnizar, devendo o montante da indemnização corresponder, em princípio, ao prejuízo causado. Não se atende, para o efeito, às distinções de sabor escolástico que os autores costumavam estabelecer entre culpa lata (grave ou grosseira), culpa leve e culpa levíssima; e que, só excepcionalmente o Código Civil utiliza ainda algumas destas fórmulas, como acontece no art.º 1323º, nº 4).
E vem de caminho ter presente que a negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar. A negligência assume então foros de verdadeira temeridade, que se traduz num comportamento altamente reprovável, indesculpável e injustificado, à luz do mais elementar sentido de prudência (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2007, in www.dgsi.pt).
No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé (cf. art.º 456º Código de Processo Civil) --- acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.7.2006, in www.dgsi.pt. E, como se refere ainda neste aresto, “incumbe à parte cuja pretensão se apoia em determinada norma alegar e provar que os pressupostos dessa norma se verificam no caso concreto litigado". Cada uma das partes terá de alegar e provar os pressupostos da norma que lhe é favorável. De harmonia com este critério --- voltamos a dizê-lo --- era, claramente, à ora recorrente que cabia a prova dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, no caso, o art.º 29º da CMR, servem de pressuposto ao efeito jurídico por ela pretendido, que é a obtenção duma indemnização como excepção à regra das limitações estabelecidas nos precedentes art.º 23º e seg.s.
Neste enfiamento e dados os factos provados, afastado que se deve considerar o dolo, ainda que na forma eventual (e que a própria recorrente não invocou) a culpa da R. também não pode considerar-se por mais do que uma negligência média/alta; mas não uma culpa grosseira ou grave, pese embora da violação dos seus deveres contratuais tenha resultado a não colocação e a venda do calçado no mercado alemão na época primavera/verão do ano de 2006. Mas esta é uma consequência da violação dos deveres e não um factor de agravação do grau de violação desses deveres. Na verdade, não releva aqui o facto de já anteriormente a R. ter efectuado vários transportes para a A., dado o referido princípio da apreciação da culpa em abstracto e nada nos diz que a causa da violação contratual não está numa desorganização do serviço da R., na falta de zelo dos seus operadores ou outras circunstâncias não apuradas, censuráveis, é certo, até pelo tempo decorrido com retenção da mercadoria, mas nem por isso suficientemente caracterizadoras de uma situação de negligência grave ou grosseira.
Em todo o caso, ainda que tivéssemos este conceito como preenchido, o nosso sistema jurídico, ao contrário do francês --- excepção feita para a caracterização da litigância de má fé --- não consente a equiparação da negligência, em qualquer das suas formas, ao dolo. E se assim é relativamente à negligência grosseira, por maioria de razão essa equiparação não pode ser efectuada relativamente à negligência consciente com que a R. agiu seguramente.
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Resumindo para concluir:
1- No âmbito da aplicação da CMR, demonstrada a demora na entrega da mercadoria, presume-se que o transportador agiu com culpa (art.º 17º, nº 1).
2- O transportador só não será responsabilizado se elidir aquela presunção, provando que a demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (art.º 17º, nº 2).
3- O nº 5 do art.º 23º da CMR acolhe um desvio limitativo do princípio de direito comum em matéria de responsabilidade, que é o da reparação integral dos danos, ao prever, em caso de demora na entrega da mercadoria, uma responsabilidade limitada correspondente a uma indemnização que não pode ultrapassar o preço do transporte, desde que esteja provada a existência de prejuízo.
4- Só se o dano provier de dolo do transportador ou de falta que lhe seja imputável; neste caso se, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, tal falta for considerada equivalente ao dolo, não poderá aquele aproveitar-se da referida limitação da sua responsabilidade (art.º 29º, nº 1). 5- O ónus da prova da existência de dolo ou de falta equivalente imputável ao transportador é do interessado expedidor.
6- Para o efeito de aplicação do referido nº 1 do art.º 29º, o sistema jurídico privado português não equipara nenhuma situação de negligência ao dolo, ainda que de negligência grave ou grosseira se trate e, por maioria de razão, quando o grau de culpa não vai além da negligência consciente.
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Nesta prudencial decorrência, afigurando-se-nos ser de manter a limitação de responsabilidade prevista no art.º 23º, nº 5, da CMR, só nos resta concluir pela improcedência do recurso.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar o recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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Custas pela A. recorrente.
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Porto, 29 de Outubro de 2009
Filipe Manuel Nunes Caroço
Manuel de Sousa Teixeira Ribeiro
Fernando Manuel Pinto de Almeida

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[1] Corrige-se a numeração das conclusões (duas delas têm o mesmo nº XII).