Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
61012/20.0YIPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: RESOLUÇÃO CONTRATUAL
UNILATERAL
Nº do Documento: RP2022051961012/20.0YIPRT.P1
Data do Acordão: 05/19/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A revogação de um contrato pode ser unilateral, quando é reconhecida a uma das partes a faculdade de dar sem efeito o mesmo, ou bilateral, quando a extinção do contrato se dá por mútuo consentimento dos contraentes.
II - A resolução unilateral consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado.
III - O direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência e, como ocorre no universo contratual, a resolução legal do contrato pressupõe uma situação de incumprimento “stricto sensu”.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 61012/20.0YIPRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Porto
Juízo Local Cível do Porto – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
S..., S.A. apresentou contra AA e BB requerimento de injunção, pedindo que os Requeridos sejam condenados a pagar-lhe a quantia de € 8.120,83.
Citado, o Requerido deduziu oposição nos autos.
Foram os autos remetidos à distribuição.
Comunicado ao processo o óbito de AA foram habilitados, na qualidade de sucessores, BB e CC.
Foi elaborado despacho saneador, nele se afirmando a validade e regularidade processuais, e fixado o valor da causa.
Identificou-se o objecto da acção.
Realizou-se o julgamento, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Destarte e, por todo o exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, e em consequência condena-se os Requeridos a pagar à Requerente a quantia de € 7.800,00 (sete mil e oitocentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 22 de novembro de 2019 até integral e efetivo pagamento.
Custas pelos Requeridos.
Registe e Notifique”.
Não se conformando os requeridos com tal sentença, dela interpuseram recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
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A apelada apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se existe erro na apreciação da prova;
- existência ou não de justa causa para a resolução unilateral do contrato.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1. A Requerente tem por objecto, entre outros, a gestão de unidades de lar, residências assistidas, centros de dia, casa de repouso, prestação de serviços gerontogeriátricos.
2. No âmbito da sua actividade, em 28 de Fevereiro de 2019, celebrou um contrato de alojamento e prestação de serviços com os Requeridos, em regime de alojamento suite em uso partilhado, para utilização de AA, sendo que o Requerido marido, que celebrou o contrato a rogo da Requerida mulher, também ali interveio na qualidade de fiador e principal pagador das obrigações assumidas no referido contrato de alojamento.
3. No contrato foi ajustada uma mensalidade de 2.300,00€, a ser paga à Requerente entre o dia 1 e 5 de cada mês.
4. Nos termos do contrato de alojamento (Cláusula VII nº 2), ficou estabelecido que "Fora do período experimental, é conferido aos Primeiros e/ou Segundos Contraentes a possibilidade de denunciar o contrato, desde que o comuniquem, por carta registada ao outro contraente, com a antecedência mínima de 90 (noventa) dias."
5. Em 10/10/2019, foi recebida pela Requerente uma carta do Requerido, a comunicar que "delego a resolução de quaisquer assuntos referentes à minha mulher - AA, na minha filha, CC".
6. A Requerente recebeu igualmente nessa data, carta subscrita pela filha dos Requeridos, da qual consta: “na sequência da reunião tida hoje de tarde com o Sr. Dr. DD e a Sr.ª Dr.ª EE, formalizo desta forma o que já tive oportunidade de comunicar pessoalmente. Dada a incapacidade, até à presente data, da S1... resolver os danos que os seus colaboradores causaram aos meus pais; amolgaram o veículo do meu pai com o portão da residência, a 5 de Ago de 2019 e a 24 de Ago de 2019 colocaram a prótese do maxilar inferior da minha mãe no lixo, as minhas expetativas e confiança na S2... para que cuidem com diligência da minha mãe foram defraudadas. Por conseguinte participo que dia 15 de outubro de 2019 a minha mãe sairá da residência.
Agradeço que me seja entregue, o mais breve possível, uma declaração médica referente ao estado de saúde da minha mãe, qual a medicação que está a ser prescrita, bem como a atestar que atualmente a minha mãe não padece de qualquer doença infecto – contagiosa. (…)”.
7. A Requerente mantém um seguro de responsabilidade civil, com uma Companhia de Seguros, para onde transferiu o risco de eventuais danos que pudesse causar – X..., S.A., Apólice nº ....
8. Houve um acidente com o veículo do requerido ocasionado com o mecanismo que acciona o portão automático, e que fez com que este embatesse naquele.
9. A Requerente accionou o seguro de responsabilidade civil, sendo que a Companhia de Seguros assumiu os danos causados na viatura.
10. A Requerente activou igualmente o seguro de responsabilidade civil relativamente à prótese dentária não tendo a Companhia assumido o “sinistro”.
11. A Requerente emitiu a factura nº ... de 20/11/2020, relativa às mensalidades correspondentes ao aviso prévio no valor de 6.900,00€.
12. Não foi paga a mensalidade correspondente ao mês de outubro de 2019, no montante 2.300,00€ constante da factura nº ... de 03/10/2019.
13. Através de carta de 22 de Novembro de 2019, a Requerente enviou aos Requeridos as facturas, uma nota de crédito e a decisão da Companhia de Seguros quanto aos sinistros participados, para se proceder ao fecho de contas.
14. O Réu ia visitar a sua mulher AA todos os dias à residência sénior gerida pela Autora.
15. Por vezes os colaboradores da Autora trocavam a roupa de AA com os pertences de outra pessoa que se encontrava alojada no seu quarto.
16. AA tinha um sinal/quisto na testa e tinha que andar ao ar, para que pudesse recuperar do mesmo.
17. Os colaboradores da residência gerida pela Autora taparam o sinal/quisto referida em 18.
18. A Autora debitou ao Réu despesas extra, tendo originado queixas e reclamações junto da gestão da residência.
19. O valor de aquisição de uma nova prótese dentária é de € 760,00.
20. Num dos dias que o Réu foi visitar a esposa (dia 5 de Agosto de 2019, pelas 19.40h) os funcionários da Autora, deixaram o portão de entrada embater no veículo automóvel do Réu, tendo provocado danos no valor de € 589,68.
III.2. A mesma instância considerou não provados os seguintes factos:
a) A alimentação fornecida pela Autora era sempre a mesma, não existindo variedade nos produtos e cozinhados entregues a AA.
b) Todos os dias que o Réu ia visitar a sua esposa existia um cheiro a urina na residência gerida pela Autora e no quarto ocupado por AA, em virtude da falta de limpeza e cuidado na colocação das fraldas nos locais de resíduos.
c) Os colaboradores da Autora espalhavam pelo chão da suite ocupada por AA, as fraldas sujas e a roupa suja.
d) As fraldas eram depositadas no chão com fezes em lugar de serem deitadas no lixo, longe dos quartos e nos depósitos que tinham para o efeito.
e) Os colaboradores da Autora tinham instruções para não tapar o sinal/quisto referido em 16.
f) A prótese dentária do maxilar inferior de AA foi deitada no lixo pelos colaboradores da Autora.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Não se conformando os recorrentes com a decisão proferida em primeira instância quanto à matéria de facto submetida a julgamento, reclamam desta instância o reexame da mesma.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[1], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[2] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência. O registo da prova, pelo menos nos moldes em que é processado actualmente nos nossos tribunais – mero registo fonográfico –, “não garante a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e dos quais é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”[3].
Também é certo que, como em qualquer actividade humana, sempre a actuação jurisdicional comportará uma certa margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto. Mas o que importa é que se minimize tanto quanto possível tal margem de erro, porquanto nesta apreciação livre o tribunal não pode desrespeitar as máximas da experiência, advindas da observação das coisas da vida, os princípios da lógica, ou as regras científicas[4].
De todo o modo, a construção da realidade fáctica submetida à discussão não se poderá efectuar de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinado meio de prova, ou a parte dele, e ignorando todos os demais, ainda que expressem realidade distinta, a menos que razões de credibilidade desacreditem estes.
Ou seja: nessa tarefa não pode o julgador conformar-se com a análise parcelar e parcial transmitida pelos litigantes, mas antes submetê-la a uma ponderação dialéctica, avaliando a força probatória do conjunto dos meios de prova destinados à demonstração da realidade submetida a debate.
Assinale-se que a construção – ou, melhor dizendo, a reconstrução, pois que é dela que se deve falar quando, como no caso, se procede à ponderação dos factos que por outros foram apreendidos e transmitidos com o filtro da interpretação própria de quem processa essa apreensão – da realidade fáctica não pode efectuar-se de forma parcelar e desconexa, antes reclamando o contributo conjunto de todos os elementos que a integram.
Quer isto dizer que a realidade surge de um conjunto coeso de factos, entre si ligados por elos de interdependência lógica e de coerência.
A realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.
Como se escreveu no acórdão da Relação de Lisboa de 21.12.2012[5], “…a verdade judicial traduz-se na correspondência entre as afirmações de facto controvertidas, relevantes e pertinentes, aduzidas pelas partes no processo e a realidade empírica, extraprocessual, que tais afirmações contemplam, revelada pelos meios de prova produzidos, de forma a lograr uma decisão oportuna do litígio. Sobre as doutrinas da verdade judicial como mera coerência persuasiva ou como correspondência com a realidade empírica, vide Michele Taruffo, La Prueba, Marcial Pons, Madrid, 2008, pag. 26-29. Quanto à configuração do objecto da prova e a sua relação com o thema probandum, vide Eduardo Gambi, A Prova Civil – Admissibilidade e relevância, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, Brasil, 2006, pag. 295 e seguintes; LLuís Muñoz Sabaté, Fundamentos de Prueba Judicial Civil L.E.C. 1/2000, J. M. Bosch Editor, Barcelona, 2001, pag. 101 e seguintes.
Por isso mesmo, a “reconstrução” cognitiva da verdade, por via judicial, não tem, nem jamais poderia ter, a finalidade exclusiva de obter uma explicação exaustiva e porventura quase irrefragável do acontecido, como sucede, de certo modo, nos domínios da verdade história ou da verdade científica, muito menos pode repousar sobre uma crença inabalável na intuição pessoal e íntima do julgador. Diversamente, tem como objectivo conseguir uma compreensão altamente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso (…)”.
Como decorre do artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, a prova testemunhal é livremente apreciada pelo tribunal, solução que emana do artigo 396.º do Código Civil.
Livre apreciação que, todavia, não se confunde com arbítrio na apreciação desse meio de prova[6], “mas antes a ausência de critérios rígidos que determinam uma aplicação tarifada da prova, traduzindo-se tal livre apreciação numa apreciação racional e criticamente fundamentada das provas de acordo com as regras da experiência comum e com corroboração pelos dados objectivos existentes, quando se trate de questão em que tais dados existam”[7].
Trata-se de um meio probatório de particular importância[8], pela amplitude da sua produção, sendo o mais frequentemente usado em instrução, mas também por ser o único existente ou o único praticável.
Paralelamente, é também o meio probatório que reúne maiores riscos de falibilidade: por perigo de infidelidade da percepção e da memória da testemunha, por perigo de parcialidade da mesma, designadamente[9].
Por isso, e sem pôr em causa a liberdade de julgamento, deve o julgador colocar especial cuidado na avaliação e ponderação dos testemunhos prestados em audiência, valorando-os com um prudente senso crítico, pesando não apenas o seu sentido objectivo, mas ainda a forma como se manifestam.
1.1. Discordam os apelantes da decisão proferida em primeira instância, considerando incorrectamente julgada a matéria constante dos pontos e) e f) dos factos considerados não provados.
Indicam expressamente a matéria factual que consideram erradamente apreciada pelo tribunal de primeira instância, esclarecem o sentido em que, na sua perspectiva, devia ter sido julgada, apontando os meios probatórios em que amparam essa sua conclusão (depoimento da testemunha FF).
Mostram-se, deste modo, minimamente preenchidos os requisitos exigíveis para esta instância proceder à sindicância da decisão que apreciou a matéria de facto, na parte em que foi objecto de impugnação.
Ouviu-se a gravação que regista os depoimentos prestados em audiência e que revelaram contornos relevantes quanto à matéria cuja apreciação é recursivamente questionada.
- A testemunha FF, que foi casado com a requerida CC, refere ser médico dentista, tendo, nessa qualidade se deslocado às instalações da requerente, para realizar uma prótese dentária para a sua ex-sogra, D. AA, tendo, para o efeito, lhe sido autorizado o acesso ao quarto que esta partilhava com uma outra utente da instituição.
Quanto à matéria questionada pelos recorrentes, precisou a identificada testemunha que a D. AA tinha um melanoma na cabeça, encontrando-a com a lesão tapada com o que disse ser um tampão, quando havia indicações do dermatologista, um colega seu, que “aquilo tinha de estar sem tampão nenhum, porque ia fazer necrose”.
Quanto à prótese da D. AA, mencionou que esta não tinha capacidade para a atirar para o lixo, pois os braços não mexiam, sendo necessário darem-lhe de comer, e andava em cadeira de rodas, sendo necessário empurrá-la para se deslocar.
O depoente relatou, de forma indignada, a circunstância de a D. AA ter a tapar a lesão, que ele trata por melanoma, com um “tampão” – as fotografias que documentam os autos mostram a colocação de um penso -, o que considera ser má prática médica. O depoente é médico dentista, exercendo a sua actividade profissional nesta área de especialidade (como ele próprio esclareceu, deslocou-se às instalações da requerente com o objectivo de realização de trabalhos inerentes ao fabrico de uma prótese dentária para a D. AA).
Quanto ao dermatologista que, segundo afirmou, terá dado indicações para a lesão ser mantida a descoberto, não existem nos autos quaisquer documentos que atestem tal indicação, e, menos ainda, que, a ter existido, haja sido transmitida aos serviços competentes da requerente, não identificando o depoente sequer tal dermatologista.
Existindo várias comunicações escritas enviadas pela requerida CC, com críticas assertivas e reclamações a concretos procedimentos dos serviços da requerente, designadamente, com despesas consideradas extra, resultantes de facturação de fraldas, cremes, espessantes e medicamentos, que deviam ser entregues pelos requeridos à instituição, nenhuma dessas comunicações menciona a circunstância de ser mantida tapada a lesão que a D. AA apresentava na testa, facto que o requerido, seu marido, não poderia deixar de notar, visitando-a diariamente.
Quanto à prótese dentária do maxilar inferior de AA, nenhuma prova foi produzida quanto ao facto de ter a mesma sido deitada no lixo pelos colaboradores da Autora. Da circunstância da D. AA carecer então da colaboração de terceiros para se alimentar ou para se deslocar, fazendo-o em cadeira de rodas, não se pode, sem outro contributo probatório, retirar que o desaparecimento da prótese tenha resultado de qualquer acto de algum dos colaboradores da requerente e, muito menos, que tenha sido deitada no lixo, não traduzindo a participação à seguradora qualquer assunção de responsabilidade nesse sentido.
Assim, não revelando o depoimento da testemunha FF virtualidade suficiente para conferir suporte probatório à matéria indicada nas alíneas e) e f) dos factos não provados, e inexistindo outro meio probatório confirmador da matéria em causa, mantém-se, quanto aos referidos segmentos, inalterada a decisão que julgou a respectiva factualidade, improcedendo, nessa parte, a impugnação deduzida pelos recorrentes à referida decisão.
2. Do mérito do julgado.
Entre a requerente, que tem por objecto social o descrito no ponto 1) dos factos provados, e os requeridos foi celebrado, em 28 de Fevereiro de 2019, um contrato de alojamento e prestação de serviços, em regime de alojamento suite em uso partilhado, para utilização de AA, mediante a contrapartida mensal de € 2.300,00, tendo o requerido marido, que celebrou o contrato a rogo da requerida mulher, também nele tendo intervindo na qualidade de fiador e principal pagador das obrigações assumidas no referido contrato de alojamento.
Tal como o caracteriza a sentença recorrida, amparando-se, para o efeito, no acórdão desta Relação de 14.07.2020[10], trata-se de um contrato misto, muito semelhante ao contrato de hospedagem, em que coexistem elementos do contrato de locação e do contrato de prestação de serviços.
Nos termos do aludido contrato (Cláusula VII, nº 2), foi acordado entre as partes que "Fora do período experimental, é conferido aos Primeiros e/ou Segundos Contraentes a possibilidade de denunciar o contrato, desde que o comuniquem, por carta registada ao outro contraente, com a antecedência mínima de 90 (noventa) dias."
Em 10.10.2019, foi recebida pela requerente uma carta do requerido, a comunicar que "delego a resolução de quaisquer assuntos referentes à minha mulher - AA, na minha filha, CC".
A requerente recebeu igualmente nessa data, carta subscrita pela filha do Requerido, da qual consta: “na sequência da reunião tida hoje de tarde com o Sr. Dr. DD e a Sr.ª Dr.ª EE, formalizo desta forma o que já tive oportunidade de comunicar pessoalmente. Dada a incapacidade, até à presente data, da S1... resolver os danos que os seus colaboradores causaram aos meus pais; amolgaram o veículo do meu pai com o portão da residência, a 5 de Ago de 2019 e a 24 de Ago de 2019 colocaram a prótese do maxilar inferior da minha mãe no lixo, as minhas expetativas e confiança na S2... para que cuidem com diligência da minha mãe foram defraudadas. Por conseguinte participo que dia 15 de outubro de 2019 a minha mãe sairá da residência.
Agradeço que me seja entregue, o mais breve possível, uma declaração médica referente ao estado de saúde da minha mãe, qual a medicação que está a ser prescrita, bem como a atestar que atualmente a minha mãe não padece de qualquer doença infecto – contagiosa. (…)”.
A requerente emitiu a factura n.º ... de 20.11.2020, relativa às mensalidades correspondentes ao aviso prévio no valor de 6.900,00€.
Não foi paga a mensalidade correspondente ao mês de Outubro de 2019, no montante 2.300,00€ constante da factura n.º ... de 03.10.2019.
O artigo 432.°, n.º 1 do Código Civil admite a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção, operando mediante declaração duma parte à outra, nos termos do artigo 436.° do mesmo Código.
A revogação pode ser unilateral, quando é reconhecida a uma das partes a faculdade de dar sem efeito o contrato, ou bilateral, quando a extinção do contrato se dá por mútuo consentimento dos contraentes.
A resolução consiste na destruição da relação contratual, validamente constituída, operada por um acto posterior de vontade de um dos contraentes, que pretende fazer regressar as partes à situação em que elas se encontrariam se o contrato não tivesse sido celebrado[11].
O direito de resolução é um direito potestativo extintivo, que depende de um fundamento: exige a verificação de um facto que crie esse direito, isto é, tem de ocorrer um facto ou situação – no caso, o incumprimento ou inadimplência - a que a lei atribua como consequência o desencadeamento desse direito potestativo[12].
Assim, o direito de resolução está sempre condicionado a uma situação de inadimplência e, como ocorre no universo contratual, a resolução legal do contrato pressupõe uma situação de incumprimento “stricto sensu”.
A 10.10.2019 os requeridos comunicaram à requerente a resolução unilateral do contrato que com esta haviam celebrado, com efeitos a partir de 15.10.2019, comunicando à mesma que nessa data a esposa e mãe daqueles sairia das instalações da requerente, invocando nessa missiva, como fundamento para tal resolução, os danos causados no veículo do requerido, a 5 de Agosto e 24 de Agosto de 2019. com o portão da residência da requerente, e a circunstância de colaboradores da requerente haverem colocado no lixo a prótese do maxilar inferior da utente AA.
Na comunicação da resolução unilateral do contrato invocam os requeridos, como justa causa para a cessação do mesmo, a circunstância dos colaboradores da requerente haverem causado, com o portão das instalações desta, estragos no veículo do requerido.
Tal circunstancialismo, pese embora possa ser gerador de responsabilidade e do consequente dever de indemnizar por parte da requerente, em nada se correlaciona com o cumprimento do contrato objecto de resolução por parte dos requeridos. E, de todo o modo, os danos no veículo foram reparados pela seguradora para a qual a requerente transferira a responsabilidade civil por danos causados a terceiros – cfr. pontos 7.º, 8.º e 9.º dos factos provados.
E quanto à prótese dentária da utente AA, nenhuma prova se logrou obter que tenha sido colocada no lixo por funcionários ou colaboradores da requerente.
Os factos constantes dos pontos 15.º, 16.º e 17.º, só foram invocados posteriormente à resolução do contrato. De todo o modo, os mesmos não assumem gravidade bastante para constituírem fundamento de justa causa para a cessação da relação negocial fundada em incumprimento, não resultando, nomeadamente quanto aos factos mencionados em 16.º e 17.º, que a requerente, através de algum dos seus funcionários ou colaboradores, hajam desrespeitado ordens ou instruções, dos requeridos ou que existisse prescrição médica para adoptarem procedimento diferente do adoptado.
Por conseguinte, é de manter a decisão recorrida, improcedendo totalmente o recurso.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso dos apelantes, confirmando a sentença recorrida.

Custas da apelação: pelos apelantes.

Porto, 19.05.2022
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Francisca Mota Vieira
______________
[1] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[2] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[3] Abrantes Geraldes, “Temas da Reforma do Processo Civil”, vol. II, 1997, pág. 258. Cfr. ainda, o Ac. desta Relação de Coimbra de 11/03/2003, C.J., Ano XXVIII, T.V., pág. 63 e o Ac. do STJ de 20/09/2005, proferido no processo 05A2007, www.dgsi.pt, podendo extrair-se deste último: “De salientar a este propósito, como se faz no acórdão recorrido, que o controlo de facto em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Na verdade, a convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "olhares de súplica" para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência do raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos (sobre a comunicação interpessoal, RICCI BOTTI/BRUNA ZANI, A Comunicação como Processo Social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997)”.
[4] Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil”, Vol. 3º, pág. 173 e L. Freitas, “Introdução ao Processo Civil”, 1ª Ed., pág. 15 7.ve
[5] Processo nº 5797/04.2TVLSB.L1-7, l1-7, www.dgsi.pt.
[6] Até porque sobre o julgador recai, como já se mencionou, o dever de fundamentar a sua convicção no que concerne ao julgamento da matéria de facto.
[7] Acórdão da Relação de Coimbra, 19.01.2010, processo nº 495/04.3TBOBR.C1, www.dgsi.pt
[8] Na expressão de Bentham, é na prova testemunhal que estão os olhos e os ouvidos da justiça…
[9] Cf. Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, págs. 614, 615; Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, págs. 276, 277; Anselmo de Castro, “Direito Processual Civil Declaratório”, vol. III, pág. 342.
[10] Processo n.º 214/16.1T8VGS.P1, www.dgsi.pt.
[11] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, 2.ª edição, 1974, pág. 238.
[12] Cfr. João Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, Scientia Ivridica, Braga, 1991, págs. 130 e seguintes.