Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
379/19.0PAVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: WILLIAM THEMUDO GILMAN
Descritores: CRIME DE ROUBO
CONVOLAÇÃO
CRIME SEMI-PÚBLICO
INEXISTÊNCIA DE QUEIXA
PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Nº do Documento: RP20221002379/19.0PAVR.P1
Data do Acordão: 11/02/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A existência de queixa nos crimes semipúblicos constitui um autêntico pressuposto processual, sendo, em último termo, também um pressuposto da dignidade punitiva daquele facto concreto em apreciação pelo tribunal, sem o qual o processo e a condenação penal não são admissíveis.
II - No momento da condenação por um crime semipúblico tem de se verificar obrigatoriamente esse pressuposto processual.
III - Assim, ainda que em momento anterior ao da sentença se verificassem todos os pressupostos processuais, em especial a legitimidade do Ministério Público por o processo ter decorrido por um crime público, a alteração dos factos e/ou de qualificação jurídica ocorrida em sede de audiência, operando a convolação para um crime semipúblico, sem que houvesse sido formulada anteriormente queixa no processo, numa altura em que estava extinto o direito de queixa por caducidade, faz com que deixe de estar presente um pressuposto processual, um pressuposto, também ele, embora em último termo, da dignidade punitiva do facto, sem o qual o processo e a condenação penal não são admissíveis, devendo o arguido ser absolvido (da instância) ou extinto o procedimento criminal.

[Sumário da responsabilidade do Relator]
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 379/19.0PAVFR.P1
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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
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1-RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Coletivo) n.º 379/19.0PAVFR do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira - Juiz 1, foi julgado o arguido AA, tendo sido proferida sentença em 19.05.2021, depositada nesse mesmo dia, com o seguinte dispositivo:
«Face ao exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal coletivo em julgar as acusações parcialmente procedentes e os pedidos cíveis procedentes e, consequentemente, decidem:
A) Quanto à parte criminal:
- condenar o arguido AA, com os demais sinais dos autos, pela prática de 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão por cada um deles;
- procedendo ao cúmulo jurídico das penas parcelares referidas, condenar o mencionado arguido na pena única de 1 (um) ano de prisão.
B) Quanto ao pedido cível:
B.1) Condenar o demandado/arguido AA a pagar ao demandante civil Centro Hospitalar ..., E.P.E., com os demais sinais dos autos, a quantia de € 90,91 (noventa euros e noventa e um cêntimos), acrescida de juros, à(s) taxa(s) legal(ais) supletiva(s) para as obrigações civis que vigorar(em), desde a notificação do demandado/arguido, nestes autos do processo n.º 379/19.0PAVFR, para contestar o pedido cível, até integral pagamento.
B.2) Condenar o demandado/arguido AA a pagar ao demandante civil Centro Hospitalar ..., E.P.E., com os demais sinais dos autos, a quantia de € 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimo), acrescida de juros, à(s) taxa(s) legal(ais) supletiva(s) para as obrigações civis que vigorar(em), desde a notificação do demandado/arguido, nos autos do processo apenso n.º 364/18.0PAVFR, para contestar o pedido cível, até integral pagamento.
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Custas na parte criminal pelo arguido, fixando-se em 3 UC´s a taxa de justiça [arts. 374º, nº 4, 513º, 514º, n.º 1 e 524º, todos do Código de Processo Penal, em conjugação com os arts. 1º, n.º 1, 3º, n.º 1, 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais (em conjugação com a Tabela III)].
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Não há lugar a custas quanto aos pedidos cíveis, deduzido pelos Centro Hospitalar ..., E.P.E., atenta a isenção decorrente do art. 4º, n.º 1, al. n) do Reg. das Custas Processuais, uma vez que o valor processual da causa cível s fixa em € 51 (arts. 297º, n.º 1 e 306º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique, sendo o arguido pessoalmente, através de OPC, nos termos e para os efeitos do art. 334º, n.ºs 6 e 7 do Código de Processo Penal.
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Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.
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Após trânsito, mantendo-se inalterada a pena ora decretada, passe mandados de detenção e condução do arguido ao Estabelecimento Prisional.
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Efetue o depósito do presente acórdão, após a sua leitura, nos termos do disposto no art. 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal.»
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Não se conformando com esta sentença, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação, concluindo na sua motivação o seguinte (transcrição):
«CONCLUSÕES:
Primeira: O arguido foi acusado e julgado pelo crime de roubo e acabou condenado por ofensas à integridade física (relativamente ao ofendido BB).
Segunda: Sucede que o ofendido BB não apresentou queixa contra o arguido.
Terceira: Tendo o Tribunal Colectivo entendido, na sua douta sentença que a falta de queixa não implica a perda retroactiva de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal - Sentença, página 25.
Quarta: O arguido tem o entendimento contrário, louvando-se em múltipla jurisprudência que sustenta o entendimento de que o procedimento em causa deveria / deverá ser declarado extinto.
Quinta: É certo que os doutos acórdãos citados na sentença recorrida (página 25- rodapé) consubstanciam o entendimento que aquela veio a sufragar.
Sexta: No entanto, outros entendimentos de tribunais superiores existem, designadamente de tribunais da Relação e até mais recentes do que os citados na sentença recorrida que não alinham pelo mesmo diapasão.
Sétima: E concluem designadamente que
Tendo o Mº Pº acusado e o arguido sido condenado por crime publico de ofensa à integridade física qualificada, e verificado em recurso que aqueles factos integram apenas do crime de ofensa à integridade física simples e o ofendido não havia nunca manifestado a vontade de procedimento criminal, carece o Mº Pº de legitimidade para acusar - acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-03-2018, no processo 3039/16.0T9VNG.P1, relatora: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO.
Oitava: A interpretação que prevaleceu na douta sentença recorrida afecta especialmente a posição do arguido e com consequências especialmente danosas para ele, não podendo dar-se preponderância, nos autos, aos interesses do ofendido face aos direitos do arguido, maxime quando aquele não apresentou queixa, não deduziu pedido de indemnização, nem mostrou interesse no procedimento criminal em causa, quedando-se, no essencial por duas ou três participações processuais para que foi convocado, designadamente pela prestação de testemunho em audiência de Julgamento.
Nona: Mostra-se nítido que resulta em prejuízo do arguido a qualificação indevida efectuada na origem do processo, pois se o procedimento criminal tivesse sido qualificado de forma correcta ab initio, ou em tempo, acabaria por ter que ser arquivado – por falta de queixa.
Décima: O que constitui uma violação do princípio da igualdade, pois é público e bem conhecido que em caso igual qualquer outro arguido é absolvido ou nem chega sequer a ser acusado.
Décima-primeira: Não se podendo sequer sustentar que o Ministério Público foi surpreendido ou não poderia antever que a qualificação devida para o caso era crime de ofensa à integridade física simples e não roubo na forma tentada quando, no interrogatório judicial do arguido, a sra. Juíza de Instrução logo concluiu que « …não permitem considerar fortemente indiciada a factualidade inscrita na acusação atinente ao propósito de ilegítima apropriação de dinheiro pertencente ao ofendido…» e « Resta, assim, apenas fortemente indiciada a agressão…» e « …não temos por fortemente indiciada a prática pelo arguido de mais um crime de roubo, e que poderemos estar perante uma rixa com consequência físicas para o ofendido…».
Décima-segunda: Não existe lei anterior que comine com pena de natureza criminal o crime de ofensa à integridade física simples que não seja precedido da respectiva queixa.
Décima-terceira: Pelo que a interpretação ajuizada, de que não obsta à condenação do arguido AA pelo crime de ofensa à integridade física a falta de exercício do direito de queixa por parte do ofendido BB colide frontalmente com o preceito constitucional artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa que estabelece (no n.º 3) que Não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior.
Décima-quarta: Trata-se de uma interpretação inconstitucional, designadamente dos artigos 115º e 143º, n.º 2 do Código Penal e 49º do Código de Processo Penal.
Décima-quinta: Não só por violação do artigo da Constituição acima referido, mas também por violação do artigo 13.º da lei fundamental, pois o arguido, ao contrário de todo e qualquer cidadão a quem seja imputado o crime de ofensa à integridade física, verificando-se a ausência de queixa vê interrompido e cessado o procedimento criminal, o que não sucedeu ao arguido, por via da interpretação do Tribunal a quo, uma violação do princípio da igualdade ínsito no preceito referido nesta Conclusão.
Décima-sexta: A douta sentença, quanto à medida da pena, teceu doutas considerações e fundamentou os motivos pelos quais entendeu que o arguido deveria cumprir pena de prisão (de um ano),
Décima-sétima: No entanto, será gravoso, excessivo e desajustado que se mantenha tal determinação de pena de prisão, porquanto
Décima-oitava: O arguido trabalha e encontra-se afastado das más companhias com as quais enveredou pelos diversos ilícitos criminais em que incorreu, pois o epicentro dessas condutas criminosas foi a cidade de S. João da Madeira.
Décima-nona: Agora o arguido reside em ... e trabalha em ..., freguesias de Oliveira de Azeméis e suficientemente afastadas de S. João da Madeira para que o arguido pudesse retomar actividades ilícitas e ali prevarique.
Vigésima: O arguido não irá prevaricar, de qualquer modo, atendendo ainda ao medo e pavor que sente de ser encarcerado em estabelecimento prisional e a esse assustador desenlace que isso para si com toda a certeza representaria o cometimento de qualquer ilícito, doravante.
Vigésima-primeira: Sendo certo que é suficiente e necessário para afastar o arguido sequer de qualquer confusão, confronto ou escaramuça, bem saber que isso o conduzirá, inelutavelmente, à prisão.
Vigésima-segunda: Além disso, a sua introdução no meio prisional, com a tenra idade de 26 anos não terá a virtualidade de o corrigir ou emendar, mas pelo contrário, iria força-lo a conviver com uma realidade nefasta, uma verdadeira escola do crime que tem toda a probabilidade de o fazer regredir, reincidir, afastar-se do bom comportamento social e cívico.
Vigésima-terceira: O arguido merece uma nova oportunidade, a derradeira é certo, de continuar a trabalhar, a refazer a sua vida, de se manter um cidadão cumpridor, como já é actualmente, respeitador da sociedade, dos outros, de si próprio – longe de conflitos e do crime.
Vigésima-quarta: Assim, se o arguido for condenado a efectuar trabalho comunitário (e o mais que acessoriamente lhe seja estabelecido) – o que pretende e para o que se dispõe e expressamente requer – complementado pelo facto de que tem pendente, na eventualidade de qualquer desvio, o imediato encarceramento em estabelecimento prisional, interiorizará, ainda mais e de forma plena, o desvalor e a ignomínia das suas condutas para que não mais as repita, assim se assegurando, para ele, a prevenção especial que é cara e indispensável ao nosso sistema penal.
Vigésima-quinta: Se assim não for de entender, o que aqui se acautela por dever de patrocínio, este venerando Tribunal deverá ponderar a aplicação ao arguido de meios de vigilância electrónica no cumprimento da pena que lhe for determinada.
Vigésima-sexta: O arguido e todos os que o rodeiam, maxime o seu defensor, mas sobretudo o arguido, naturalmente, colaborará incondicionalmente e participará activamente e sempre, em tudo o que depender de si e necessário for para o cumprimento estrito e integral da pena no referido regime, vigilância electrónica.
Vigésima-sétima: Não se podendo deixar de salientar que a obrigação de permanência na habitação constitui, imediatamente a seguir à pena de prisão, a segunda medida mais gravosa de entre as previstas na lei penal.
Vigésima-oitava: E ainda que este controlo à distância tem uma forte componente de exigência, rigor e verificação que não suscitam dúvidas nem veleidades sobre o seu cumprimento, o seu carácter punitivo e impeditivo da liberdade do arguido que se verá privado de se movimentar livremente e de tudo o mais, permanecendo em casa – o que constitui uma penalização significativa, séria, digna e fortemente dissuasora para o futuro, também ela cumprindo os obrigatórios requisitos de prevenção especial.
Vigésima-nona: O arguido não pode passar o resto da sua vida a apoiar-se e a querer ilibar-se dos seus actos censuráveis e penalmente puníveis por ter tido a terrível infância, adolescência e início de vida adulta que ninguém merece e que o marcaram profundamente,
Trigésima: Mas, nesta altura e só nesta altura em que se pede a clemência do Tribunal ad quem não pode deixar de dizer-se que a vida do arguido, desde a infância até ao início da vida adulta, foi um circuito desolador e entristecedor de abandono, rejeição, desamparo, solidão, sofrimento, exclusão, ostracismo e opróbrio, pelo que
Trigésima-primeira: E enquanto o seu comportamento actual prevalecer e enquanto o arguido não prevaricar novamente, não deverá ser encarcerado na prisão, mas cumprir uma pena, menos gravosa, mas que possa, ainda assim, cumprir o desiderato da lei penal, da prevenção geral e da prevenção especial – o que se roga e requer a este venerando Tribunal.
Trigésima-segunda: A decisão recorrida violou os artigos 113º, 115º e 143º, n.º2. do Código Penal e o artigo 49.º do Código de Processo Penal e ainda os artigos 13º e 29.º da Constituição da República Portuguesa.
NESTES TERMOS E NOS DO DOUTO SUPRIMENTO DEVE O PRESENTE RECURSO SER PROVIDO E A DECISÃO SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE, NA PROCEDÊNCIA DA MOTIVAÇÃO E CONCLUSÕES DO RECURSO ABSOLVA O ARGUIDO DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA, RESPEITANTE AO OFENDIDO BB, E SEMPRE E EM TODO O CASO, DECIDA PELA SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA PENA DE PRISÃO POR PENA MENOS GRAVOSA, DESIGNADAMENTE TRABALHO COMUNITÁRIO OU VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA, COMPLEMENTANDO-SE COM PENAS ACESSÓRIAS QUE POSSAM SER APLICÁVEIS AO CASO OU OUTRAS QUE ESTE VENERANDO TRIBUNAL CONSIDERE AJUSTADAS A ESTE PROCESSO JUDICIAL E AO ARGUIDO, E MUITO ESPECIALMENTE REQUER SEJA REVOGADA A MEDIDA DE PENA DE PRISÃO QUE PROVÉM DA PRIMEIRA INSTÂNCIA.»
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O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
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Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2 do CPP.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2-FUNDAMENTAÇÃO
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- Saber se o Tribunal, após, nos termos do artigo 358º do CPP, comunicar ao arguido uma alteração de factos e de qualificação jurídica, convolando o crime de roubo pelo qual vinha acusado para o crime de ofensa à integridade física simples, sem que o ofendido tivesse exercido o direito de queixa, o pode vir a condenar por este último crime.
- Substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade ou, subsidiariamente, cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
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2.2- A DECISÃO RECORRIDA E OCORRÊNCIAS PROCESSUAIS
2.2.1-Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar os factos provados (transcrição):
«2 - Fundamentação
2.1 – De Facto
Instruída e discutida a causa, resultaram provados, com relevo para a decisão desta, os seguintes factos:
1. No dia 23 de setembro de 2019, pelas 22.30 horas, BB encontrava-se no Pavilhão Municipal “...”, sito na Rua ..., em São João da Madeira, ali estando a assistir a um treino de basquetebol da sua namorada.
2. Pouco depois, o BB – a hora concretamente não determinada, mas no período entre as 22.30 e as 23.30 horas – saiu para o exterior do pavilhão, para fumar um cigarro.
3. Já no exterior, deslocaram-se até junto do BB três indivíduos, um dos quais o arguido AA.
4. O arguido AA, depois de ter falado com o BB, deu-lhe um empurrão, que fez com que este embatesse na parede que se encontrava atrás de si.
5. O BB, por seu turno, desferiu um soco na face do arguido AA.
6. De imediato, o arguido AA desferiu vários socos na cabeça do BB, designadamente na face, provocando a queda deste último no chão.
7. Estando o BB caído no chão, o arguido AA pontapeou-o, pelo menos por uma vez, atingindo-o na face.
8. De seguida, o arguido AA e os dois acompanhantes abandonaram o local.
9. Não levaram o dinheiro que o ofendido BB trazia, e que ascendia a pelo menos € 50, nem qualquer outro objeto de valor que o mesmo tinha consigo.
10. Devido à atuação do arguido, o BB teve de receber tratamento médico de urgência no Centro Hospitalar ... –Hospital ..., em Santa Maria da Feira.
11. Foi-lhe diagnosticada “contusão ao nível da face”, “mínima fratura de dentes incisivos inferiores” e “hematoma peri-orbitário no olho direito”.
12. Com a atuação supra descrita, o arguido AA provocou em BB, além de dor na face, na região frontal direita e região bucinadora esquerda e dor na língua, as seguintes lesões:
“- na face: hematoma peri orbitário bilateral, derrame subconjuntival no olho direito; edema discreto da região malar direita; edema volumosa da região malar esquerda; sem referencia a a1teração da visão; dor no pavilhão auricular direito com equimose infra centimétrica na região superior da hélice; fratura parciais das coroas dos dentes 3.1 e 4.2”;
“- no membro inferior direito: dor, edema discreto equimose arroxeada muito ténue na região da espinha ilíaca postero superior.”
13. Tais lesões determinaram-lhe, para a sua cura, 5 (cinco) dias de doença, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e com 1 (um) dia de afetação da capacidade de trabalho profissional.
14. Das referidas lesões, provocadas pela conduta do arguido, resultaram para o ofendido BB consequências permanentes, as quais, sob o ponto de vista médico-legal, se traduzem em fraturas parciais da coroa de duas peças dentárias. Não desfiguram gravemente o examinado. Não há perda de órgão ou função relevante.
15. O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, tendo querido atingir, como atingiu, a integridade física do ofendido BB, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
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16. O Centro Hospitalar ..., E.P.E. prestou, em 24/09/2019, a BB os serviços clínicos discriminados na fatura n.º ..., emitida na mesma data, de que se mostra junta cópia a fls. 140.
17. Tais serviços foram prestados na sequência das lesões que aquele ofendido apresentava, as quais foram consequência direta, necessária e imediata da conduta supra descrita do arguido AA, levada a cabo em 23/09/2019.
18. O valor total dos serviços prestados e discriminados na fatura ascendeu, à data em que foram prestados, a € 90,91.
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Apenso A (PCS364/18.0PAVFR)
19. Na noite de 10 para 11 de agosto de 2018, o ofendido CC e DD deslocaram-se, na companhia de EE e respetiva namorada, ao evento Viagem Medieval, em Santa Maria da Feira.
20. Cerca das 02.20 horas, do dia 11 de agosto de 2018, caminhavam os quatro pela Alameda ..., em direção aos respetivos veículos automóveis, que haviam estacionado em local próximo do castelo.
21. Naquela Alameda, encontrava-se o arguido AA, na companhia de alguns amigos, de identidade não apurada.
22. O EE, que já conhecia o arguido AA, deteve-se junto deste, para falarem, enquanto os acompanhantes daquele prosseguiram a marcha apeada.
23. Pouco depois, tendo percorrido cerca de três metros, o ofendido CC virou-se para trás e, dirigindo-se a EE, disse-lhe que viesse embora.
24. Então, subitamente, o arguido AA desatou a correr em direção ao ofendido CC e, quando chegou junto dele, logo lhe desferiu um pontapé, atingindo-o numa das pernas.
25. Envolveram-se ambos em confronto físico, tendo o ofendido CC tentado agarrar o arguido AA, tendo-lhe este nessa altura desferido vários murros no tronco, nomeadamente na zona das costelas.
26. Reagiram os amigos que acompanhavam o arguido AA, rodeando o ofendido CC, tendo então aqueles, arguido e seus amigos, desferido pancadas várias no corpo do ofendido CC, nomeadamente na zona da cabeça.
27. Em virtude das agressões físicas de que foi vítima, o ofendido CC sentiu dores, recebeu tratamento médico-hospitalar e sofreu as seguintes lesões:
“-no crânio – solução de continuidade suturada com um ponto, localizada na região parietal esquerda com 1 cm de comprimento”;
“- no tórax – dor à apalpação na face anterior da linha anterior axilar a esquerda do terço médio, sem lesão externa visível”;
“- no membro superior direito – escoriação com crosta acastanhada, localizada na face posterior do terço médio do antebraço com 3 cm por 0,5 cm de maiores dimensões, com mobilidade reservada”.
28. Tais lesões determinaram ao ofendido CC 10 dias de doença, sem afetação da capacidade de trabalho geral e profissional, tendo resultado como consequência permanente daquelas lesões, uma cicatriz na cabeça, que não é desfigurante.
29. Ao agir do modo supra descrito, o arguido AA quis maltratar fisicamente o ofendido CC, como efetivamente maltratou.
30. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que tal conduta lhe estava vedada e punida por lei, e ainda assim, não se inibiu da sua realização.
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31. O Centro Hospitalar ..., E.P.E. prestou, em 11/08/2018, a CC os serviços clínicos discriminados na fatura n.º ..., emitida na mesma data, de que se mostra junta cópia a fls. 221 do apenso A.
32. Tais serviços foram prestados na sequência das lesões que aquele ofendido apresentava, as quais foram consequência direta, necessária e imediata da conduta supra descrita do arguido AA, levada a cabo em 11/08/2018.
33. O valor total dos serviços prestados e discriminados na fatura ascendeu, à data em que foram prestados, a € 85,91.
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34. O arguido AA viveu, até aos 6 anos de idade, com a progenitora e dois irmãos uterinos, então com 3 anos e 9 meses de idade. O agregado familiar era de baixa condição socioeconómica e cultural.
35. Experienciou junto da mãe uma situação de instabilidade habitacional e de negligência ao nível dos cuidados básicos.
36. Por essa razão, foi decretada a sua institucionalização, tendo sido acolhido, juntamente com a sua irmã de 3 anos, no Centro de Acolhimento de Menores ... de S. João da Madeira.
37. Durante o período de permanência nessa instituição, teve início um processo de adoção de ambos, com desfecho não favorável para o arguido, que regressou ao meio institucional, enquanto a sua irmã foi efetivamente adotada.
38. Aos 9 anos de idade foi transferido para o Centro de Acolhimento ..., em Oliveira de Azeméis, onde permaneceu durante 3 anos.
39. Embora, atualmente, exprima ligação positiva a este período da sua vida, em que terá tido relacionamentos significativos com figuras educativas, o seu percurso na instituição ficou marcado pela instabilidade comportamental, designadamente, agressividade com os pares e relações hostis e comportamento provocador com adultos. Foi, então, avaliado no âmbito da psiquiatria e beneficiou, durante algum tempo, de tratamento medicamentoso, tendo sido acompanhado por psicóloga da instituição.
40. Aos 12 anos de idade foi transferido para o Lar de Infância e Juventude (LIJ masculino) da W..., em ..., passando a frequentar estabelecimento de ensino daquela área geográfica.
41. Aos 16 anos de idade foi acolhido no seio de uma família com quem mantinha um relacionamento muito próximo (realizava visitas e permanecia com a mesma nos períodos de férias), onde permaneceu até por volta dos 19 anos de idade, altura em que foi expulso por não acatar as regras e as rotinas impostas pela família.
42. Por essa altura, frequentava o curso de Técnico Auxiliar de Saúde no Centro de Formação ..., em Oliveira de Azeméis, que lhe permitiria obter equivalência ao 12º ano de escolaridade, mais veio a desistir da sua frequência a partir do 3º ano, estando assim habilitado com o 9º ano de escolaridade.
43. Integrou, então, o núcleo familiar do seu então treinador de futsal, em Oliveira de Azeméis, de onde se viu obrigado a sair decorrido cerca de um ano, na sequência da separação do casal.
44. Foi então acolhido por um amigo em S. João da Madeira, passando por um período de elevado desequilíbrio e instabilidade pessoal, caracterizado por inatividade profissional, consumos excessivos de álcool e haxixe, proximidade com pares com um estilo de vida desregrado, com propensão para vivências noturnas e com envolvimento em práticas desviantes.
45. Em 2017 encetou relação de união de facto com FF, então com 21 anos de idade, solteira, operária, passando a integrar o núcleo familiar desta, constituído pelo pai, operário da construção civil, e pelo irmão, de 16 anos de idade, fixando residência em ..., concelho de Oliveira de Azeméis.
46. Este relacionamento trouxe ao arguido acréscimo de estabilidade pessoal, com integração laboral e passando a adotar um estilo de vida mais regrado, não obstante a ocorrência de conflitos com a companheira, que culminaram na separação de ambos em fevereiro de 2019.
47. O arguido evidenciou então dificuldades em criar condições de vida estáveis, registando frequentes mudanças de trabalho e alterações de residência.
48. Após a separação esteve a viver sozinho, durante alguns meses, num quarto arrendado em habitação sita em S. J. da Madeira. Teve problemas com o subaluguer do espaço que ocupava.
49. A partir de finais de dezembro de 2019, o arguido ficou alojado na casa da ex-companheira.
50. Todavia, na sequência de divergências com a ex-companheira, o arguido AA, em março de 2020, passou a pernoitar temporariamente em casa de amigos, em São João da Madeira, almejando a obtenção de espaço habitacional próprio, tendo, entretanto, voltado a ser acolhido, em maio de 2020.
51. Todavia o relacionamento entre o ex-casal pautava-se pela conflitualidade, agravada pela situação de manutenção de residência do arguido na habitação da ex-companheira, manifestando esta receio pela sua integridade física atento o temperamento intempestivo do próprio. A situação descrita deu azo a apresentação de queixa crime por parte da ex-companheira - NUIPC 351/20.8PASJM.
52. Entretanto, na sequência de desentendimentos e consequente termo da relação afetiva com FF, o arguido, antes do meio de Abril do corrente ano, saiu da casa desta, em S. J. da Madeira, e foi viver para ..., concelho de Oliveira de Azeméis, ocupando um quarto arrendado num apartamento, onde vive um outro indivíduo.
53. No domínio profissional, o arguido trabalhou durante alguns meses na empresa F... e na empresa X... e, de janeiro a março de 2020, na empresa E..., SA. Obteve estas colocações profissionais através de empresas de trabalho temporário.
54. Após um período de inatividade laboral, conseguiu colocação laboral, em julho de 2020, numa empresa do ramo do calçado, onde se manteve até sensivelmente setembro/outubro de 2020. Nos meses de novembro e dezembro de 2020, trabalhou na empresa K... (comercialização de peças e acessórios para automóveis). Posteriormente, entre fevereiro e meados de março de 2021trabalhou numa empresa local, com contrato de trabalho temporário, para fazer face ao volume excecional de trabalho da mesma.
55. Atualmente, e desde o início de abril de 2021, o arguido trabalha como operário na empresa Y..., com contrato de trabalho com a duração de três meses.
56. A condição económica do arguido carateriza-se como escassa e precária, em virtude também das condições de trabalho suprarreferidas. Aufere cerca de € 665 mensais e suporta a renda do quadro no valor de € 200 mensais.
57. No âmbito das medidas de acompanhamento pela DGRSP a que o arguido está sujeito, denota-se um esforço em cumprir com as determinações judiciais. No âmbito dessa intervenção, o arguido foi encaminhado para consultas de psicologia para o projeto “...”, da Santa Casa da Misericórdia ..., estando o arguido a comparecer de uma forma geral às sessões agendadas, revelando, todavia, alguma dificuldade em ser assíduo às mesmas, por causa do seu horário laboral.
58. No âmbito da intervenção psicológica do referido Projeto, o arguido foi encaminhado para consultas relativas à problemática do álcool.
59. No decurso do presente ano, o arguido teve processo contraordenacional por posse de estupefacientes, tendo sido encaminhado para a Comissão de Dissuasão e Toxicodependência de Aveiro. Teve consulta na referida entidade, com decisão de acompanhamento psicológico, situação que está a ser assumido pelo referido Projeto Trilho.
60. No âmbito da intervenção psicossocial realizada por este Projeto, tem manifestado uma postura de adesão à intervenção, verbalizando vontade de alterar o seu quadro vivencial, nomeadamente no que concerne às problemáticas aditivas (álcool e consumo de estupefacientes).
61. O arguido encontra-se em acompanhamento na Equipa de Tratamento Especializado da Feira, CRI ....
62. Segundo informação da PSP de São João da Madeira, o arguido foi: identificado por estar na posse de produto estupefaciente (liamba) em 2020-09-10 (NPP 367505/2020); identificado como suspeito de estar envolvido em agressões com vários indivíduos, assim como por andar a deambular na via pública alcoolizado, causando ruído e desassossego social, em 2020-05-30 (NPP ...); identificado por estar envolvido em agressões físicas com outro cidadão em 2020-05-07 (NPP ...); identificado como denunciado por não abandonar a residência da ex-namorada que lhe terá dado abrigo em (NPP ...), estando ainda em investigação violência doméstica no NUIPC 000351/20.8 PASJM.
63. O arguido manifesta preocupação com eventual decisão condenatória nos presentes autos e consequentes implicações na sua situação jurídico-penal.
64. O arguido AA possui capacidade de autocrítica na análise do seu trajeto vivencial, reconhecendo e assumindo as suas fragilidades ao nível emocional e de autocontrolo.
65. Contudo, denota dificuldades em efetuar as mudanças desejadas, o que justifica com a ausência de apoio e retaguarda familiar e as dificuldades de organização pessoal.
66. Para além das lacunas da matriz familiar, a instabilidade pessoal do arguido foi acentuada pela experiência de consumos aditivos e, sobretudo, pelo álcool, bem como pela ligação a pares desviantes.
67. Apresenta um contexto vivencial frágil e expõe dificuldades em reestruturar sua vida.
68. Mostra-se problemático no seu comportamento e ao nível psíquico-emocional, o que pode condicionar a sua capacidade para organizar um quotidiano conduzido pela norma e a vivência responsável em sociedade.
*
69. O arguido AA foi condenado, por sentença transitada em julgado em 23/04/2018, no processo n.º 1663/17.3T9VFR, do Juízo de Competência Genérica de S. J. da Madeira, pela prática, em 30/10/2016, de 1 (um) crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na respetiva execução por igual período, com regime de prova e de obrigação de entrega à APAV no prazo de 3 meses da quantia de € 100.
70. Foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 09/07/2018, no processo n.º 48/17.6PASJM, do Juízo Central Criminal de S. M. da Feira, pela prática, em 29/01/2017, 19/04/2017 e 17/09/2017, dos seguintes crimes: i) 1 (um) crime de roubo, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 210.º, n.º 1, 22.º e 23.º do Código Penal; ii) 2 (dois) crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 do Código Penal; iii) 2 (dois) crimes de roubo, previstos e punidos pelo artigo 210.º, n.º 1 e n.º 2, al. b), por referência ao disposto no artigo 204.º, n.º 2, al. f) e n.º 4 do Código Penal; iv) 1 (um) crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143º, n.º 1 do Código Penal. Foi imposta ao arguido, em cúmulo jurídico, a pena única de 3 anos e 9 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova.
71. Por acórdão transitado em julgado em 13/12/2018, foi realizado no processo n.º 48/17.6PASJM.1 cúmulo jurídico superveniente de penas, englobando as penas desse processo e a pena do processo n.º 1663/17.3T9VFR, tendo sido imposta ao arguido AA a pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na respetiva execução por igual período, subordinada ao regime de prova.
72. Foi, ainda, condenado, por acórdão transitada em julgado em 06/03/2020, no processo n.º 592/18.8PASJM, do Juízo Central Criminal de S. M. da Feira, pela prática, em 07/12/2018, de 1 (um) crime de roubo, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22º, 23º e 210º, n.º 1 do C. Penal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na respetiva execução por cinco anos, com regime de prova e subordinada à regra de conduta de se submeter a tratamento/acompanhamento psicológico, e se necessário psiquiátrico, durante o período de suspensão da execução da pena.
*
Da discussão da causa, não resultaram provados quaisquer outros factos, tendo designadamente resultado não provado que:
i. O arguido AA disse ao ofendido BB “Dá para cá o dinheiro”, assim pedindo àquele que lhe desses todas as quantias monetárias que o mesmo tivesse consigo.
ii. O arguido AA voltou a repetir aquela expressão, dizendo ao BB: “O dinheiro! Ainda não percebeste que vais ser roubado?”.
iii. Os dois indivíduos, que acompanhavam o arguido AA, cercaram o ofendido BB, segurando-lhe os braços, assim o imobilizando.
iv. O arguido AA desferiu socos e pontapés no ofendido BB, quando este estava assim imobilizado.
v. O ofendido BB foi pontapeado pelos dois indivíduos, de identidade não apurada, que acompanhavam o arguido AA.
vi. O arguido AA agiu com o propósito de, pondo o BB na impossibilidade de resistir, retirar-lhe e fazer seu o montante pecuniário que este trazia consigo, o que apenas não conseguiu porque este a tal se opôs.
*
vii. No dia 11 de agosto de 2018, o arguido AA, antes de atingir a integridade física de CC, teve com ele uma troca de palavras.
2.2.2- Como ocorrências processuais relevantes haverá de se ter em conta que em sede de audiência de julgamento, conforme consta da ata, foi comunicada nos termos e para os efeitos do art.º 358.º, n.º 1, do C. Processo Penal uma alteração não substancial de factos bem como, ao abrigo do disposto nos termos do art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do C. Processo Penal, a seguinte alteração da qualificação jurídica: «O arguido terá incorrido, por referência ao ilícito em que é ofendido BB, na prática de 1 (um) de ofensa à integridade física, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1 do Código Penal (e não de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, n.º 1 do C. Penal)».
2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
2.3.1-Acusação pelo crime de roubo e condenação pelo crime de ofensa à integridade física simples, sem que o ofendido tivesse exercido o direito de queixa.
os presentes autos, o arguido foi acusado pelo Ministério Público do cometimento de um crime de roubo do artigo 210º, n.º 1 do Código Penal e, após comunicação de alteração de factos e de qualificação jurídica, efetuada em sede de audiência, nos termos do artigo 358º, n.º 1 e 3 do CPP, veio a ser condenado pelo cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143º, n.º 1 do Código Penal, sem que o ofendido tivesse apresentado queixa, sendo que o ilícito cometido é de natureza semipública e o direito de queixa, na data da comunicação da alteração já tinha caducado, nos termos do artigo 115º, n.º 1 do Código Penal.
O recorrente pretende a sua absolvição por falta de legitimidade do Ministério Público por inexistência de queixa quanto ao crime para o qual foi convolada a acusação. Cita jurisprudência em favor da sua posição.
Entendeu-se na decisão recorrida que «A falta de queixa do ofendido BB não implica, mercê da referida convolação em julgamento, a perda retroativa de legitimidade do M. Público para o procedimento criminal, argumentando que “Tendo-se o processo iniciado legitimamente, deve entender-se que assim permanece, sob pena de se surpreender agora” o ofendido “com uma exigência que não é razoável, ou seja, que prefigurasse e antecipasse a necessidade de satisfação uma condição de procedibilidade que, ao tempo em que podia ser exigida, enquanto pressuposto para a promoção do processo, não o era.» E citou-se jurisprudência no sentido defendido.
A jurisprudência dos tribunais superiores está dividida quanto à solução da questão, defendendo uns que a convolação em audiência de um crime de público para semipúblico (dependente de queixa) ou particular (dependente de queixa, constituição de assistente e dedução de acusação particular) não afeta retroativamente a legitimidade do Ministério Público nem impede a condenação do arguido[1]. Enquanto outros sustentam que tal convolação impede a condenação pelo crime semipúblico ou particular, faltando uma condição de procedibilidade, devendo ser extinta a instância ou absolvido o arguido[2]. Havendo ainda quem distinga a solução quando sendo a convolação para crime particular, o ofendido se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público. Nesta última situação, a questão altera-se um pouco, pois que o assistente ao aderir à acusação do Ministério faz desta também a sua acusação[3].
Vejamos.
A prolação de uma sentença penal condenatória depende não só da verificação no facto concreto em apreciação do preenchimento dos pressupostos de direito substantivo, mas também da verificação dos pressupostos processuais necessários à apreciação do mérito da causa.
Não se verificando o preenchimento dos pressupostos processuais, o processo e a condenação não são admissíveis.
Como é sabido, de acordo com o princípio da oficialidade, consagrado no artigo 219º, n.º 1 da CRP, é ao Ministério Público que cabe a competência para exercer a ação penal, tendo, nos termos do artigo 48º do CPP, legitimidade para promover o processo penal – competindo-lhe adquirir a notícia do crime, investigá-lo e em caso de indícios suficientes deduzir a respetiva acusação.
Este princípio da oficialidade sofre limitações decorrentes da existência de crimes semipúblicos e exceções derivadas da existência de crimes particulares – cfr. artigos 49º a 52º do CPP[4].
Nos crimes semipúblicos a legitimidade do Ministério Público para por eles proceder depende da pré-existência de queixa, e nos crimes particulares depende de queixa e acusação particular.
A justificação das limitações ao princípio da oficialidade é variada: desde o significado criminal relativamente pequeno do crime não justificar a intervenção do processo penal sem a vontade e o interesse do ofendido (p. ex. no caso da ofensa à integridade física simples do artigo143º do CP); por o processo penal, sem ou contra a vontade do ofendido, poder ser prejudicial a interesses dignos de consideração da vítima processual (v.g. 156º, 180º 203º e 207º do CP); ou por poder gerar um fenómeno de vitimização secundária, tornando-se necessário minimizar o ‘mal do processo’ (v.g. 164º e 178º do CP)[5].
Foi intenção político criminal do legislador, ao consagrar a existência de crimes semipúblicos e particulares, criar uma forma de não-intervenção ou de descriminalização «de facto», abstendo-se de promover o processo e perseguir criminalmente os agentes de crimes quando estejam em causa bagatelas criminais, pequena criminalidade ou determinados interesses relevantes das vítimas, operando uma concordância entre o princípio da oficialidade, o princípio de intervenção em ultima ratio do direito criminal e o princípio da proteção dos interesses das vítimas.
A queixa é um requerimento, não sujeito a formalidades especiais, mas que deve ser reduzida a escrito pela autoridade que a recebe (artigos 49º, 246º do CPP), através do qual o titular do respetivo direito exprime a sua vontade de que se verifique procedimento criminal por um crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada. Assim, a queixa pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto.
Essa manifestação de desejo de procedimento criminal deve ser clara e inequívoca, não havendo lugar a declarações tácitas de queixa.
O exercício do direito de queixa está sujeito a um prazo, extinguindo-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz – artigo 115.º, n.º 1 do CP.
A lei processual penal não prevê causas de interrupção ou suspensão do prazo para o exercício do direito de queixa, ou sequer qualquer possibilidade de renovação desse direito após o decurso do prazo previsto no artigo 115º do CP.
Trata-se de um prazo de caducidade[6], encontrando-se extinto o direito, não há possibilidade de o fazer renascer.
A existência de queixa nos crimes semipúblicos constitui um autêntico pressuposto processual, sendo, em último termo, também um pressuposto da dignidade punitiva[7] daquele facto concreto em apreciação pelo tribunal, sem o qual o processo e a condenação penal não são admissíveis.
No momento da condenação por um crime semipúblico tem de se verificar obrigatoriamente esse pressuposto processual.
Assim, ainda que em momento anterior ao da sentença se verificassem todos os pressupostos processuais, em especial a legitimidade do Ministério Público por o processo ter decorrido por um crime público, a alteração dos factos e/ou de qualificação jurídica ocorrida em sede de audiência, operando a convolação para um crime semipúblico, sem que houvesse sido formulada anteriormente queixa no processo, numa altura em que estava extinto o direito de queixa por caducidade, faz com que deixe de estar presente um pressuposto processual, um pressuposto, também ele, embora em último termo, da dignidade punitiva do facto, sem o qual o processo e a condenação penal não são admissíveis, devendo o arguido ser absolvido (da instância) ou extinto o procedimento criminal.
Não se trata aqui de uma «perda retroativa de legitimidade do M. Público para o procedimento criminal», mas antes e efetivamente da verificação, no momento da prolação da sentença penal, da falta de um pressuposto processual que se tem de verificar durante todo o processo e em especial no momento da sentença, no momento em que se diz o direito do caso, e em que o Tribunal declara se estão verificados ou não todos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, sejam eles de natureza substantiva ou processual, mas todos em conjunto dizendo da dignidade punitiva total daquele concreto facto, se o agente daquele facto concreto deve ser punido.
A condenação por um crime semipúblico, no caso dos autos, o de ofensa à integridade física simples do artigo 143º do Código Penal, sem que exista queixa do ofendido e estando o direito de queixa extinto por caducidade, não é admissível, ainda que o processo se tenha iniciado e tenha sido deduzida acusação por um crime público, o qual não veio a resultar provado, tendo sido operada a convolação para o crime de natureza semipública, pois falta um pressuposto processual: a queixa.
Assim, faltando um pressuposto processual – a apresentação de queixa pelo ofendido - o Tribunal recorrido deveria ter-se abstido de conhecer do mérito da acusação quanto ao crime de ofensa à integridade física simples em que foi ofendido BB e determinado a extinção do procedimento criminal nessa parte.
2.3.2- Substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade ou, subsidiariamente, cumprimento da pena de prisão em regime de permanência na habitação.
Face à extinção do procedimento criminal que acabámos de referir, resta a condenação em 9 meses de prisão pelo crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143º do Código Penal em que foi ofendido CC.
A questão colocada pelo recorrente não diz respeito à medida da pena de prisão aplicada, mas unicamente ao facto de ser efetiva, alegando que é excessivo e que trabalha, não devendo ingressar no meio prisional, pretendendo a sua substituição por prestação de trabalho a favor da comunidade ou, subsidiariamente, que o cumprimento da pena de prisão tenha lugar em regime de permanência na habitação.
Apreciemos.
Começando pela substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Nos termos do art.º 40º, nº 1, do Código Penal as finalidades das sanções penais são a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo nunca a pena ultrapassar a medida da culpa (art.º 40º, nº 2).
Dito de outro modo, a pena visa finalidades exclusivas de prevenção geral e especial, sendo que, dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva (necessidade de manutenção da confiança da comunidade na validade da norma posta em crise pelo cometimento do crime) devem atuar as exigências de prevenção especial (necessidade de preparação do agente para, no futuro, não cometer crimes).
O artigo 70º do Código Penal, por outro lado, estabelece as regras de escolha da pena e dispõe o art.º 71º, nº 1, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Acrescentando-se no nº 2 deste último artigo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente as que aí se encontram elencadas nas alíneas a) a f).
Na primeira instância optou-se pela pena de prisão em detrimento da multa, decisão que não merece qualquer reparo, mostrando-se a justificação dada adequada e conforme ao disposto no artigo 70º, pois que a pena de multa considerando os factos provados não se mostra adequada a realizar as finalidades da punição.
Na decisão recorrida, para a não substituição da pena de prisão e para a não aplicação do regime de permanência na habitação, considerou-se:
«Face à ausência de um critério estabelecido na lei na ponderação e fixação de uma pena de substituição, o tribunal deve aplicar a que melhor realize as finalidades da punição (cfr. artigo 40º, n.º 1 do Código Penal), dando preferência a uma pena substitutiva não privativa da liberdade, considerando nomeadamente as circunstâncias da prevenção especial de ressocialização.
Posto isto, a pena concreta de prisão até um ano deve, em regra, ser substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade.
Esta regra só admite exceção quando finalidades preventivas exijam a aplicação de pena de prisão (cfr. art. 45º, n.º 1 do C. Penal). Ou seja, quando a prevenção especial de socialização ou a prevenção geral obstem à aplicação de pena substitutiva.
Concomitantemente, a pena de prisão não superior a dois anos deve ser substituída por trabalho a favor da comunidade sempre que por esse modo seja possível realizar as finalidades da punição (art. 58º do C. Penal).
Contudo, no presente caso, as finalidades de prevenção especial não ficariam salvaguardas eficazmente com a aplicação das penas indicadas, de substituição por multa ou por trabalho a favor da comunidade, O arguido, com apenas 25 anos de idade, foi já condenado pela prática, entre outubro de 2016 e setembro de 2017, de seis crimes de roubo e de um crime de ofensa à integridade física. E, ainda, pela prática, em dezembro de 2018, de um outro crime de roubo
O arguido evidencia patente inclinação para o cometimento de crimes ofensivos de bens jurídico-pessoais, revelando-se pessoa agressiva e com propensão para o uso de violência sobre as pessoas.
Por isso, as indicadas penas substitutivas não se mostram capazes de debelar o perigo de recidiva de novos ilícitos, nem reflexamente de proporcionar adequada proteção dos bens jurídicos postos em causa (arts. 45º e 58º do C. Penal).
Relativamente à possibilidade de suspensão da execução da pena de prisão, ora imposta, cabe trazer à colação o art. 50º do Código Penal.
Deve, nos termos de tal normativo, ser decretada a suspensão “se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior e às circunstâncias deste” se puder concluir que “a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Faz-se vincar que a premência das finalidades de prevenção especial inviabiliza a suspensão da execução da pena de prisão.
O arguido demonstra falta de preparação e de capacidade pessoal para estruturar a sua vida de forma responsável, assertiva e de acordo com os padrões legais comunitariamente vigentes, no respeito pelos direitos dos seus concidadãos.
Praticou, note-se bem, os factos em apreço nestes autos no período de suspensão da execução de penas de prisão que lhe haviam sido impostas pouco tempo antes. A suspensão da pena de prisão não teve, portanto, no passado o efeito dissuasor desejado da prática de novos crimes. O percurso de vida ulterior do arguido não denota reversão do seu contexto pessoal.
O arguido não repensou adequadamente as suas condutas, não interiorizou suficientemente o desvalor dos seus atos, nem amadureceu o significado de anteriores condenações.
Em tal circunstancialismo, a suspensão da pena de prisão não permitiria a necessária afirmação da validade da norma violada perante a comunidade. Não permitiria, por outras palavras, salvaguardar as necessidades de prevenção geral que os crimes perpetrados convocam.
A suspensão da execução da pena de prisão, por outro lado, não se prefigura como suficiente e bastante para arredar o arguido da prática futura de novos crimes.
Não é, portanto, possível formular um juízo de prognose favorável, de modo a que se possa dizer que a ameaça de prisão é suficiente e bastante para demover o arguido do cometimento de novos crimes.
Em suma: não é viável a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido AA.
Dito isto, não é possível alcançar as finalidades da punição através do cumprimento em regime de permanência na habitação.
O arguido tem uma situação económica precária, não tem suporte familiar ou de outras pessoas com quem tenha proximidade existencial relevante e apresenta instabilidade habitacional.
Ademais, o arguido evidencia falta de capacidade para estruturar e conduzir responsavelmente a sua vida, que se não coadunam com o cumprimento da pena no regime de permanência na habitação (cfr. art. 43º do Código Penal). Nenhuma uma outra pena substitutiva permitiria alcançar as finalidades da punição, nomeadamente de prevenção especial.»

Resulta dos artigos 70º, 50º, n.º 1, 58º, n.º1, 60º, n.º 2 e, também, do artigo 45º, todos do Código Penal, que o legislador estabeleceu um critério geral de escolha da pena: o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade, sempre que, verificados os respetivos pressupostos formais de aplicação, ela realize de forma adequada e suficientes as finalidades da punição – finalidades de prevenção geral positiva e especial de socialização .
Estamos no campo das penas de substituição da pena de prisão.
Uma primeira nota a salientar prende-se com o facto de embora o recorrente se ter apenas referido expressamente nas conclusões à pena de prestação de trabalho a favor da comunidade, a verdade é que não está vedado a este Tribunal de recurso conhecer e eventualmente determinar a aplicação de uma das outras penas de substituição, desde que preenchidos os respetivos pressupostos.
Com efeito, o que resulta do recurso é que se pretende o afastamento da aplicação da pena de prisão efetiva, o que tanto ocorre quer pela sua substituição por multa, por trabalho a favor da comunidade ou por pena suspensa.
Em geral, para efeito de aplicação de uma pena de substituição da pena de prisão, é necessário que o julgador, reportando-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do crime, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.
Concluiu-se na decisão recorrida que as finalidades preventivas não ficam cumpridas com a substituição da pena de prisão (por pena de multa, prestação de trabalho a favor da comunidade ou suspensão da sua execução).
Com efeito e considerando que o arguido, com apenas 25 anos de idade, foi já condenado pela prática, entre outubro de 2016 e setembro de 2017, de seis crimes de roubo e de um crime de ofensa à integridade física, bem como pela prática, em dezembro de 2018, de um outro crime de roubo, revelando-se pessoa agressiva e com propensão para o uso de violência sobre as pessoas, sendo que os factos em causa nos presentes autos apreço foram cometidos no período de suspensão da execução de penas de prisão que lhe haviam sido impostas pouco tempo antes, parece-nos, tudo visto, que bem concluiu o Tribunal recorrido pela impossibilidade de fazer um juízo de prognose favorável à ressocialização do arguido em liberdade, ou seja, de que cumprindo a pena em liberdade é de crer que não volte a delinquir.
São as exigências de prevenção especial e, também, as de prevenção geral positiva que exigem que a pena de prisão aplicada ao recorrente não seja substituída pela suspensão da execução da pena de prisão, por multa ou por prestação de trabalho a favor da comunidade, sob consequência de frustração das finalidades da punição, não só em relação ao comportamento do arguido – que se quer leve uma vida no futuro sem cometer crimes – como também em relação à manutenção e reforço da confiança da comunidade nas normas colocadas em crise pelo comportamento criminoso do arguido.
Vejamos agora do modo de execução da pena de prisão efetiva.
No caso dos autos, entendeu o tribunal recorrido que a pena de prisão fixada ao arguido não fosse cumprida, nos termos do artigo 43º do Código Penal, em regime de permanência na habitação.
Pretende o recorrente que a execução da pena de prisão ocorra em regime de permanência na habitação.
Apreciemos.
Ninguém duvidará que no sistema penal português, por imposição constitucional decorrente dos princípios da necessidade/subsidiariedade da intervenção penal e da proporcionalidade das sanções penais (artigo 18º, n.º 2 da CRP e, entre outros, artigos 70º e 98º do CP), a pena de prisão é a ultima ratio da política criminal[8].
Com a redação atual do artigo 43º do Código Penal, introduzida pela Lei n.º 94/2017, de 23 de agosto, poderemos acrescentar que o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional é a opção derradeira para cumprimento de penas de prisão até dois anos[9].
Com efeito, nos termos do artigo 43º, n.º 1 do Código Penal «Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:
a) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;
b) A pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º;
c) A pena de prisão não superior a dois anos, em caso de revogação de pena não privativa da liberdade ou de não pagamento da multa previsto no n.º 2 do artigo 45.º»
É que o regime de execução de privação da liberdade deve ser, também em obediência ao princípio constitucional da proporcionalidade da restrição dos direitos, o menos restritivo possível do direito à liberdade[10].
Daí o advérbio sempre com que se inicia a norma legal, a confirmar perentoriamente como opção derradeira a execução da prisão intra muros.
Resulta do artigo 43º do Código Penal que são pressupostos da aplicação do regime de permanência na habitação como meio de execução da pena de prisão:
- o consentimento do condenado;
- que a pena de prisão efetiva que o condenado tenha de cumprir não seja superior a dois anos;
- que pelo regime de permanência na habitação se realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão.
Verificando-se estes pressupostos, o Tribunal tem o poder-dever de ordenar a execução da pena pelo regime de permanência na habitação.
Descendo ao caso dos autos, verificamos que os pressupostos formais – consentimento (é o que o condenado pede no recurso) e pena de prisão efetiva não superior a dois anos – estão preenchidos.
Passemos ao pressuposto material – as finalidades da execução da pena de prisão.
As finalidades da execução da pena de prisão, no seguimento do disposto no artigo 40º do Código Penal, são a da prevenção especial de ressocialização e a da satisfação das exigências de prevenção geral positiva.
É o que resulta do disposto no artigo 42º, n.º 1 do Código que dispõe: «A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.»
Ora, para a ressocialização do condenado é preciso desde logo tentar minimizar os efeitos criminógenos da reclusão e tentar aproximá-lo, tanto quanto possível, das condições de vida dos cidadãos em liberdade. Objetivos esses que o regime de permanência na habitação, enquanto meio de execução da pena de prisão, estará decerto melhor apetrechado para atingir.
Voltando ao caso dos autos, perguntemo-nos:
A execução em regime de permanência na habitação da pena de nove meses de prisão efetiva aplicada ao condenado nestes autos servirá, por um lado, para o preparar para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, e, por outro, será suficiente para manter a confiança da generalidade dos cidadãos nas normas que proíbem as ofensas à integridade física de outrem?
Ou, inversamente, só o cumprimento da pena de prisão dentro do estabelecimento prisional servirá para atingir tais fins?
Antes de responder, é preciso que se note de que se trata sempre da execução de uma pena de prisão efetiva – de uma reação criminal privativa da liberdade.
Não falamos de penas alternativas ou de substituição da pena de prisão. A pena de multa, a de prisão suspensa na sua execução, o trabalho a favor da comunidade são realidades bem diversas.
Aqui o que está em causa são apenas dois modos diferentes de execução da pena de prisão efetiva – duma pena privativa da liberdade -, na cadeia ou em casa.
É certo que, como se alude na sentença recorrida, o historial delituoso do arguido, com o cometimento anterior de crimes de roubo (7) e de ofensas à integridade física, e a aplicação ao mesmo de penas de prisão suspensas na sua execução e tendo o arguido praticado o crime sub judice no período da suspensão da execução da pena, condenações essas que não o impediram, efetivamente, de cometer novamente o crime de ofensas à integridade física simples.
E certo é que tudo junto impede a formação de um juízo de prognose favorável à aplicação de uma pena de substituição, exigindo a aplicação duma pena de prisão efetiva, até por razões de prevenção geral positiva.
Mas uma coisa é concordar com a necessidade de aplicação de uma pena de prisão efetiva, algo diferente é rejeitar a possibilidade de a pena de prisão efetiva poder ser executada em regime de permanência na habitação.
Com efeito, começando pelas exigências de prevenção geral, cabe referir que numa situação como a dos autos, em que o grau de ilicitude da conduta é mediano, o são sentimento da comunidade na confiança na validade das normas que proíbem as ofensas à integridade física haverá de ficar satisfeito e reforçado com o cumprimento de uma pena de prisão: seja na cadeia ou em casa.
A perda de liberdade implicada é decerto suficiente para reforçar tal sentimento comunitário.
Passando às exigências de prevenção especial, diremos que também estas serão satisfeitas, dada a liberdade que o condenado nos autos perderá e o controlo apertado que sofrerá.
Acresce que o arguido vive num quarto arrendado num apartamento, onde vive um outro indivíduo; no domínio profissional tem trabalhado através de empresas de trabalho temporário ou com contratos de trabalho de curta duração. Aufere cerca de € 665 mensais e suporta a renda do quadro no valor de € 200 mensais.
Por outro lado, no âmbito das medidas de acompanhamento pela DGRSP a que o arguido está sujeito, denota-se um esforço em cumprir com as determinações judiciais; foi encaminhado para consultas de psicologia, estando a comparecer de uma forma geral às sessões agendadas; foi encaminhado para consultas relativas à problemática do álcool; tem manifestado uma postura de adesão à intervenção, verbalizando vontade de alterar o seu quadro vivencial, nomeadamente no que concerne às problemáticas aditivas (álcool e consumo de estupefacientes) e encontra-se em acompanhamento na Equipa de Tratamento Especializado da Feira, CRI ....
Soma-se ainda o facto de que o regime de permanência na habitação não se limita à mera colocação do condenado na habitação, pois que na individualização da execução tem ainda lugar um plano de reinserção social, o que também contribuirá positivamente para a sua ressocialização.
A única vantagem da execução da pena de prisão em estabelecimento prisional no caso dos autos seria a da chamada ‘prevenção de inocuização’, o que não acreditamos ser imposto na situação. De facto, a natureza do crime cometido, o passado do arguido e as suas condições de vida e personalidade não parecem impor tal solução derradeira. Bastará, cremos nós, o cumprimento de uma pena de prisão efetiva, mas executada em regime de permanência na habitação, nos termos do artigo 43º do Código Penal.
Concluindo, preenchidos que estão os pressupostos de que, nos termos do artigo 43º, n.º 1 do Código Penal, depende a aplicação do regime de permanência na habitação, resta a concretização das questões técnicas para a execução da medida, nomeadamente as relativas à instalação dos meios de vigilância eletrónica, ao consentimento de coabitantes, à agilização dos horários de ausência (para frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado) consoante as necessidades que se forem verificando, bem como eventualmente se necessário a fixação de regras de conduta. Concretização essa que caberá ao Tribunal de primeira instância, realizando as diligências necessárias.
Desde já se afirma que, caso não seja possível a concretização das condições técnicas necessárias à execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação, o condenado terá de cumprir a pena em estabelecimento prisional.
Assim, caberá nesta parte dar parcialmente provimento ao recurso, alterando a decisão recorrida, decretando que a execução da pena de prisão efetiva aplicada ao arguido seja cumprida em regime de permanência na habitação.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
- Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou o arguido pela autoria do crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143º do Código Penal, em que foi ofendido BB, determinando a extinção do procedimento criminal nessa parte.
- Determinar que a pena de nove meses de prisão aplicada ao arguido pela autoria do crime de ofensa à integridade física simples do artigo 143º do Código Penal, em que foi ofendido CC, seja executada em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
- Manter, no mais, a decisão recorrida.
O Tribunal de primeira instância realizará as diligências necessárias à concretização da execução da medida.
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Sem custas.
Notifique.

Porto, 2 de novembro de 2022
William Themudo Gilman
Liliana de Páris Dias
Cláudia Rodrigues
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[1] Cfr., neste sentido, os Acs. TRP de 02-02-2022 (Maria Deolinda Dionísio), TRP de 10-02-2021(Paulo Costa), TRP de 09-03-2020 (Paulo Costa), TRP de 24-10-2007 (Artur Oliveira), TRG de 09-12-2019 (Jorge Bispo), TRC de 03-02-2021 (João Novais), todos em dgsi.pt.
[2] Cfr. neste sentido, os Acs. do entre TRP de 27-04-2022 (Élia São Pedro), TRP de 04-03-2020 (Francisco Mota Ribeiro), TRP de 10-11-2021(João Pedro Nunes Maldonado), TRP de 21-03-2018 (Maria Deolinda Dionísio), TRL de 08-01-2020 (Alfredo Costa), TRP de 11-05-2022 (Pedro Vaz Pato), TRG de 21-03-2022 (Paulo Serafim) , TRE de 12-10-2021 (José Simão), TRE de 24-05-2022 (João Amaro), TRE de 15-12-2016 (Maria Filomena Soares), TRE de 30-09-2014 (Ana Barata Brito), todos em dgsi.pt
[3] Cfr. sobre esta questão da adesão (ou falta de adesão) do assistente à acusação pública o Ac. do TRP de 11-05-2022 (Pedro Vaz Pato), o TRG de 25-09-2017 (Armando Azevedo) e o TRG de 21-03-2022 (Paulo Serafim), todos em dgsi.pt.
[4] Cfr. sobre esta matéria Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 664 e segs. e Direito Processual Penal, 1981 – Vol I, p. 120-122; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2017, p. 60-61; Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 2017, Vol I, p. 251.
[5] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 666 e segs. e Direito Processual Penal, 1981 – Vol I, p. 120-122; Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2017, p. 63-65.
[6] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 673-674.
[7] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1981 – Vol I, p. 122.
[8] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2017, p.17.
[9] Cfr. sobre uma aplicação do Regime de Permanência na Habitação em contexto de crime rodoviário o Ac. TRP de 18-12-2018 (William Themudo Gilman), in dgsi.pt, o qual na exposição desta matéria seguimos de perto.
[10] Cfr. Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2017, p.87.