Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
585/20.5T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO DE CARVALHO
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
DESPACHO DO NOTÁRIO
DESPACHO DETERMINATIVO DA FORMA À PARTILHA
Nº do Documento: RP20210511585/20.5T8GDM.P1
Data do Acordão: 05/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - As decisões do notário são impugnáveis para o tribunal da 1ª instância que for territorialmente competente, enquanto da sentença homologatória da partilha proferida pelo juiz daquele mesmo tribunal cabe recurso para o Tribunal da Relação, precisamente por se tratar de uma decisão jurisdicional.
II - As decisões interlocutórias que o nº 2 do artigo 76º do RJPI refere são as proferidas pelo juiz da 1ª instância, no âmbito das impugnações apresentadas às tomadas pelo Notário no processo de inventário, sendo apenas daquelas que cabe recurso para a Relação.
III - O recurso de apelação deve versar sobre decisões do tribunal da 1ª instância e não ter por objeto as proferidas por uma entidade não jurisdicional, como é o Notário na veste de titular de um processo de inventário, numa espécie de recurso per saltum para o Tribunal da Relação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 585/20.5T8GDM.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

Procedeu-se a inventário no Cartório Notarial de B…, concelho de Valongo, para realização de partilha na sequência do divórcio de C… e D…, que foram casados sob o regime da comunhão de adquiridos.

Elaborado o mapa da partilha e remetido o processo ao Tribunal Judicial para homologação, nos termos do artigo 66º da Lei nº 23/2013, de 5 de março, foi proferida a seguinte sentença:
«Nestes autos de inventário para partilha de bens comuns do ex-casal, entre C… e D…, homologo a partilha resultante do mapa que antecede, qua aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, adjudicando a cada um dos interessados os bens constantes do mapa nos seus precisos termos, na proporção dos respetivos quinhões.
Custas pelos interessados, na proporção dos respetivos quinhões».

Inconformado, o interessado D… recorreu para esta relação, formulando as seguintes conclusões:
1. O recorrente não pode conformar-se com a sentença homologatória proferida pelo tribunal a quo, sendo que a partilha homologada enferma de vício da vontade, resultante do dolo e má-fé operados pela recorrida e da falta de constituição obrigatória de mandatário que terá de culminar na anulabilidade ou nulidade da partilha.
2. Ao longo do processo de partilha, como se verificará, foram discutidas várias e complexas questões de direito, que obrigariam o recorrente a estar acompanhado de respetivo mandatário, o que não aconteceu, levando o recorrente a aceitar situações de que não teve a menor consciência e que implicam graves prejuízos no seu património, o que conduz a uma nulidade insanável e absoluta, que se invoca para os devidos efeitos legais.
3. O recorrente, desde a separação do casal, mantém um quadro clínico de depressão, que foi explorado e potenciado pelo comportamento da recorrida, levando o recorrente, por excesso de confiança, a manter-se alheado da realidade, e conduzindo, como se verá, a um resultado desastroso e a abdicar do seu património quase integralmente.
4. O recorrente sofre de uma Perturbação de Personalidade Dependente, perfeitamente conhecida da recorrida, que é licenciada em psicologia clínica, o que justifica a junção aos autos de informação clínica, emitida pela Dra. E…, em 5 de Junho de 2020, cuja junção se requer seja admitida por fundamental para a resolução do presente litígio e cujo conteúdo integral se dá por integralmente reproduzido. (Doc. 1).
5. Tal patologia não permitiu ao recorrente ter a mínima consciência do que se passou ao longo do processo de partilha, havendo declaradamente um vício de vontade, mantendo-se o recorrente em erro mesmo após sentença de partilha, o que aqui se invoca para os devidos efeitos legais.
6. Os inventariados foram casados em regime de comunhão de adquiridos, no período de 18.05.1996 a 05.02.2019, data em que se divorciaram por mútuo consentimento, tendo a recorrida requerido o inventário, a fim de se efetuar partilha por divórcio, apresentando enquanto cabeça-de-casal, relação de bens.
7. A recorrida apresentou proposta de adjudicação quanto às verbas 1, 2, 5 a 11 e 57 da relação de bens, pelos valores que apresentou, sendo a verba 1 uma quota que a recorrida possuía no capital social da sociedade denominada F…, Lda., com o valor nominal de €2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) e a verba 2 uma quota que o recorrente possuía no capital social da mesma sociedade com o valor nominal de €1.000,00 (mil euros).
8. As partes decidiram retirar da relação de bens o veículo automóvel, listado como verba 58 e com o valor de €12.500,00, mantendo-se a obrigatoriedade do pagamento do empréstimo, valor que não foi alvo de partilhas por não ter sido considerado haver matéria suficiente para o seu reconhecimento, à semelhança de outras dívidas, decisão tomada em sede de conferência preparatória sem a presença do recorrente.
9. Procedeu-se à partilha do património conjugal, somando-se o valor dos bens comuns, abatendo-se o valor da verba reconhecida, verba 1, dividindo-se o total em duas partes que constitui a meação de cada um dos interessados, sendo discutidas questões de direito que exigiam obrigatoriamente a presença de mandatário, o que não aconteceu, violando o disposto no artigo 13º do RJPI que “é obrigatória a constituição de advogado no inventário se forem suscitadas ou discutidas questões de direito”.
10. A adjudicação da verba 2 à recorrida, quota que o recorrente possuía no capital social da sociedade denominada F…, Lda., com o valor nominal de €1.000,00 (mil euros), resultou na perda total de qualquer quota na sociedade por parte do recorrente, sendo que todas as decisões que envolvem a partilha e a forma de partilha são questões de direito de difícil compreensão para um homem médio.
11. O recorrente, sem mandatário constituído, não conseguia, de maneira nenhuma, ter condições para arguir qualquer nulidade ou vício; impugnar decisões; saber que podia solicitar a avaliação comercial do património; perceber que ao vender a quota renunciaria ao imóvel (casa de campo com piscina e quintal, totalmente mobilada e equipada), pertença do casal mas colocado em nome da sociedade; que os veículos em nome da sociedade também foram transmitidos, tudo por 1000 euros; que ficou sem emprego; perceber que parte de um depósito a prazo a si adjudicado ficou como garantia da sociedade que afinal “vendeu”.
12. Somente através de mandatário e representação poderia o recorrente ter conhecimento de todas as faculdades e direitos que lhe assistiam, promovendo uma partilha justa e equitativa, o que não aconteceu pois a recorrida ficou altamente beneficiada devido a artificio utilizado.
13. O caso em apreço configura uma situação de falta absoluta de constituição de advogado, ou seja, uma falta de advogado ab initio, sendo este patrocínio obrigatório, o que se traduz numa violação do direito de defesa e do princípio da igualdade das partes, bem como os de um processo equitativo e de tutela jurisdicional efectiva, consagrados nos artigos 3º, nº 3 e 4º, ambos do C.P.C., e artigo 20º da C.R.P.
14. O artigo 20º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente que esse direito se efetive através de um processo equitativo (nº 4), ou seja, nenhuma questão poderá ser decidida sem que seja dada oportunidade às partes para se pronunciarem, sendo aqui imperativo o acompanhamento de advogado.
15. O recorrente, desde a separação do casal, manteve um quadro clínico de depressão, acabando por passar longos períodos de tempo fechado em casa, sem qualquer contacto com o exterior, encontrando-se à data da partilha num estado de absoluto de alienação guiando-se sempre pela premissa que o acompanhou em todo o relacionamento, de plena confiança na recorrida.
16. Como tal, em todo o processo nunca o recorrente se apercebeu do que implicavam os actos levados a cabo pela recorrida, a licitação de bens, a forma da partilha e as consequências que daí resultaram.
17. A sociedade denominada F…, Lda., à data da partilha, tinha três sócios, a recorrida, o recorrente e a filha do casal, tendo sido sempre a recorrida a tratar de todos os registos atinentes à sociedade, cedendo quotas, retirando inclusive o recorrente do cargo de gerente, sem que este se apercebesse, movimentando de forma livre todas as contas, limitando-se o papel do recorrente à assinatura da documentação apresentada, confiando em absoluto na gestão levada a cabo pela recorrida.
18. O recorrente só após a sentença e depois da intervenção da ora mandatária, entendeu que já não era nem gerente, nem sócio da sociedade e que como resultado dos valores conferidos aos bens, das adjudicações efectuadas e da forma à partilha, resultou a perda absoluta de qualquer papel activo na sociedade, que construiu de raiz com a cabeça-de-casal; que ficou sem emprego; que ficou com encargo de pagamento de um veículo automóvel que não é seu; bem como de que ficou proprietário dos bens móveis (recheio casa morada de família) e de um depósito a prazo (que serve de garantia à sociedade) numa percentagem maior para complementar as respectivas meações.
19. Nunca poderia o recorrente, pela quantia de €1000 (mil euros) ceder em absoluto a sua participação numa sociedade que construi, na qual prestava serviços como tradutor, uma sociedade com património superior a 200 mil euros (duzentos mil euros), se tivesse consciência do que isso representava e sem ter feito qualquer contrato-promessa de partilha ou acordo parassocial.
20. Mesmo após a partilha a recorrida manteve o recorrente neste erro, continuando a dar a entender que a empresa também era sua, que simplesmente havia problemas com acesso a contas bancárias ou decisões que se encontrava a tomar.
21. Conforme dispõe o artigo 251º do C.C., o erro que atinja os motivos determinantes da vontade quando se refira ao objeto do negócio torna este anulável nos termos do artigo 247º.
22. O dolo é um vício na formação da vontade, entendendo-se “por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante”, conforme estipulado no artigo 253º do C.C.
23. A recorrida pretendeu enganar o recorrente, mantê-lo enganado, sabendo que o recorrente se mantinha neste engano, não pretendendo a recorrida, em nenhuma medida, clarificar a situação.
24. A recorrida socorreu-se da dependência e da confiança que sabia o recorrente nela sempre depositara, explorou o facto de o recorrente jamais ter posto em questão as suas decisões e apercebendo-se que o recorrente não sabia o que estava a acontecer, as consequências das licitações que promoveu, da falta de congruência do valor atribuído à quota que em nada representa o efetivo valor da quota e acima de tudo do efectivo valor da sociedade, para conseguir uma verdadeira lotaria, afinal um verdadeiro enriquecimento sem causa, prejudicando intencionalmente o recorrente, instituto que aqui também se invoca igualmente, para os devidos efeitos legais, nos termos e para os feitos do artº 473º do CC.
25. A atuação da recorrida viciou a vontade do recorrente, deformando-a, mantendo o recorrente neste erro, mesmo após a decisão final, traduzindo-se em má-fé e dolo que resultam na deformação da vontade do recorrente e por conseguinte na anulação da partilha.
26. Outra não poderá ser a decisão deste tribunal que fazer justiça sancionando o comportamento da recorrida, verificando as nulidades e vícios deste processo e declarando a nulidade da partilha, atendendo à falta de constituição obrigatória de mandatário, para discussão das questões de direito nele inerentes bem como reconhecer o vício na formação da vontade do recorrente, resultante directamente da má-fé e dolo da recorrida no processo de partilha.

A apelada apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do C.P.C.
A questão a decidir consiste em saber se as questões levantadas pelo apelante no recurso da sentença judicial de homologação do mapa de partilha podem ser conhecidas pela Relação.

I. Com exceção da decisão homologatória da partilha, estamos perante um inventário todo processado perante a Notária e em que nenhuma das decisões tomadas por si foi objeto de impugnação ou recurso para o tribunal da 1ª instância.
Dispõe o artigo 16º, nº 4, da Lei nº 23/2013, de 5 de março, que da decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios comuns cabe recurso para o tribunal competente, no prazo de 15 dias a partir da notificação da decisão, o qual deve incluir a alegação do recorrente.
O artigo 57º, nº 4, da mesma lei, regula a impugnação do despacho do notário determinativo da forma da partilha para o tribunal da 1ª instância competente.
E o artigo 66º, nº 3, prevê a possibilidade de interposição de recurso da decisão homologatória da partilha, como de apelação, para o Tribunal da Relação territorialmente competente.
Finalmente, o artigo 76º, nº 2, estabelece que, salvo nos casos em que cabe recurso de apelação nos termos do C.P.C., as decisões interlocutórias proferidas no âmbito dos mesmos processos devem ser impugnadas no recurso que vier a ser interposto da decisão da partilha.
As decisões interlocutórias referidas neste último preceito são as proferidas pelo juiz da 1ª instância no decurso do processo de inventário e não as do notário, uma vez que estas são impugnáveis para o tribunal.
É nesse sentido que o artigo 67º do C.P.C. estipula que compete aos tribunais de 1ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos.
Ou seja, as decisões do notário são impugnáveis para o tribunal da 1ª instância que for territorialmente competente, enquanto da sentença homologatória da partilha proferida pelo juiz daquele mesmo tribunal cabe recurso para o Tribunal da Relação, precisamente por se tratar de uma decisão jurisdicional.
É neste sentido que se pronuncia Lopes Cardoso: «Dir-se-á, pois, que – muito mais do que um paralelismo excessivo com o Contencioso Administrativo, a despeito da natureza jurídica dos atos decisórios do Notário – deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do citado artigo 82º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através de um requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (C.P.C., artigo 637º- 1).
Do exposto deve deduzir-se que, não estando previsto que a impugnação das «decisões interlocutórias» que não são autónomas suspendam o andamento do processo de inventário, também não se justifica que subam imediatamente ao juiz do processo, pelo que, preparada a impugnação com a respetiva alegação, aquela irá aguardar o momento em que o processo seja remetido a Tribunal para a prolação da decisão homologatória da partilha». Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, 6ª edição, 2015, págs. 82/85.
As decisões interlocutórias que o nº 2 do artigo 76º do RJPI refere são as proferidas pelo juiz da 1ª instância, no âmbito das impugnações apresentadas às tomadas pelo Notário no processo de inventário, sendo apenas daquelas que cabe recurso para a Relação.
Do citado artigo 76º, nº 2, RJPI, tal como do artigo 644º, nº 2, do C.P.C., decorre que o recurso de apelação deve versar sobre decisões do tribunal da 1ª instância e não ter por objeto as proferidas por uma entidade não jurisdicional, como é o Notário na veste de titular de um processo de inventário, numa espécie de recurso per saltum para o Tribunal da Relação.
Tomé D’Almeida Ramião defende isso mesmo, referindo que «não é admissível uma espécie de recurso per saltum para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objeto uma decisão jurisdicional». O Novo Regime do Processo de Inventário, págs. 198/199.
Como se demonstra dos autos de inventário, o interessado/apelante esteve presente na conferência de interessados, como consta da ata de fls. 18 e, sendo notificado de todas as decisões da Notária, das mesmas não apresentou qualquer impugnação para o tribunal da 1ª instância.
Neste contexto em que, por ausência total de impugnação das várias decisões tomadas pela Notária no decurso do inventário, o juiz da 1ª instância não teve oportunidade de proferir qualquer decisão interlocutória, prevista no nº 2 do artigo 76º do RJPI, nada há no recurso da sentença judicial de homologação do mapa de partilha que possa ser conhecido por esta Relação.
Improcede, deste modo, o recurso do interessado D….

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo apelante.

Sumário:
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Porto, 10.5.2021
Augusto de Carvalho
José Eusébio Almeida
Carlos Gil