Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1697/17.8T8MTS.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
INCUMPRIMENTO
ABANDONO DA OBRA
VÍCIOS DA OBRA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP202105131697/17.8T8MTS.P2
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A formação de um juízo acerca do incumprimento/recusa de cumprimento das obrigações contratuais do empreiteiro, consubstanciado no abandono da obra, carece de prévia alegação de factos materiais que preencham e traduzam tal conceito, designadamente a retirada de máquinas, material e pessoal do local da obra, em circunstâncias tais que revelem de forma inequívoca a sua intenção de não retomar os trabalhos que ficaram incompletos.
II - O empreiteiro deve realizar a obra em conformidade com o que foi convencionado ou projectado e sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou contratualmente previsto.
III - Apresentando a obra vícios que a afectem, o dono da obra poderá exigir do empreiteiro a reparação dos defeitos, ou a realização de uma obra nova no caso de não ser possível eliminá-los, e caso não seja possível uma ou outra solução, ou recusando-as o empreiteiro, poderá, sequencialmente, obter a redução do preço ou a resolução do contrato.
IV - A resolução de um contrato pressupõe que haja razão para, por esse meio, se proceder à extinção do vínculo obrigacional, não bastando para tal a simples mora do devedor, antes se exigindo o incumprimento definitivo ao mesmo imputável.
V - À partida legítimo, se exercido de forma que ofenda manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, o mesmo é dizer, o sentimento jurídico socialmente dominante, o direito torna-se ilegítimo, implicando tal ilegitimidade a paralisação dos respectivos efeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1697/17.8T8MTS.P2
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO.
1. B…, residente na …, n.º .., ….-… …, Matosinhos, instaurou acção declarativa, com processo comum, contra C…, Lda., com sede na Rua …, n.º …, ….-… …, Matosinhos, peticionando a condenação desta no pagamento da quantia de € 9.840,00, acrescida de juros desde a citação, até efectivo e integral pagamento, e que as decisões proferidas no processo n.º 6620/10.8TBMTS do 3.º Juízo Cível de Matosinhos quanto às obras que faltam concluir e às que carecem de reparação sejam consideradas para efeito de caso julgado fora do processo respectivo.
Para sustentar o seu pedido alega, em síntese, que:
- após a Ré lhe conceder orçamento, lhe adjudicou a construção de um bar/restaurante e apoio de praia;
- posteriormente foi realizado um aditamento ao orçamento original;
- a Ré começou a efectuar os trabalhos e abandonou a obra;
- a Ré lhe moveu uma acção executiva pelo valor de €40.340,37;
- veio a apresentar oposição à execução que foi julgada improcedente;
- nessa sentença consta que na obra ainda há trabalhos não concluídos e defeitos a reparar e que a execução destes trabalhos importa em €8.000,00, acrescidos de IVA;
- esse foi o valor de orçamento que solicitou para reparação dessas anomalias, que perfaz o valor total de €9.840,00;
- nunca aceitou a obra e tem um crédito sobre a Ré nesse montante.
A Ré apresentou contestação impugnando parcialmente os factos invocados pelo Autor, aceitando a existência do contrato invocado por este e a realização dos trabalhos por ele alegados, bem como da acção executiva e da sentença aí proferida e impugnou o demais alegado, contrapondo que o Autor aceitou a obra e defendendo que de acordo com a sentença proferida na oposição à acção executiva é o Autor que é seu devedor, sendo que para evitar tal pagamento o mesmo avançou com processo de revitalização, impondo-lhe um corte de 70% no capital em dívida, perdão total dos juros vencidos e vincendos e pagamento de 30% em 120 prestações mensais iguais e sucessivas, com início em Julho de 2018.
Realizou-se audiência prévia, na qual o Autor alegou que aceitou a obra, mas com reservas.
O tribunal convidou o Autor a esclarecer qual o dano que sofreu em consequência da conduta da Ré, esclarecendo aquele que tal dano já se mostra assente por sentença transitada em julgado e que esse valor é de €9.840,00, já com o IVA incluído.
A Ré não respondeu a esse requerimento.
O tribunal proferiu despacho saneador e seleccionou temas de prova.
Realizou-se audiência de julgamento, após o que, face à prova nela produzida, o tribunal, configurando a possibilidade de enquadramento jurídico da relação entre a presente acção e a que a precedeu, no âmbito da excepção de caso julgado, sobre a qual as partes nada disseram, convidou-as a pronunciarem-se quanto a tal questão.
Ambas as partes acederam a esse convite, tendo o Autor pugnado pela não verificação de tal excepção por não existir identidade de pedido e causa de pedir entre as duas acções, defendendo que o que produz caso julgado é a decisão e não os respetivos fundamentos, adiantando ainda que a sentença proferida não tem eficácia sobre a relação jurídica material controvertida, dado que a sua força se cinge à acção executiva em que foram deduzidos os embargos, sendo insusceptível de relevar como excepção dilatória na acção declarativa de condenação.
Por seu turno, a Ré defendeu que se encontra verificada a excepção de caso julgado material, devendo ser absolvida da acção, uma vez que o Autor sustenta o seu pedido numa sentença que julgou totalmente improcedente a oposição por si deduzida na qual o ora Autor alegou a não execução dos trabalhos quantificados em €8.000,00, valor que é peticionado na presente acção, acrescido de juros, verificando-se a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
Após consulta da acção executiva n.º 6620/10.8TBMTS, o tribunal recorrido convidou as partes a pronunciarem-se quanto ao enquadramento da conduta do Autor nestes autos como abuso de direito, uma vez que peticiona a condenação da Ré a pagar-lhe €8.000,00 por trabalhos que não foram concluídos na obra, tendo no decurso da execução apresentado PER no qual reconheceu o crédito reclamado pela ora Ré na acção executiva e determinou a redução desse crédito a 30%.
Em resposta a Ré defendeu verificar-se abuso de direito na propositura da presente acção e o Autor alegou que não agiu como litigante de má-fé; que não teve qualquer intervenção no valor do PER, tendo o crédito sido reconhecido pela senhora administradora da insolvência; que o valor que peticiona nestes autos é o que consta na sentença executiva; que a Ré assinou o auto de medição provisória onde constam os vícios, defeitos e anomalias e não os debelou e que, consequentemente a sua conduta não pode ser enquadrada como abuso de direito.
Foi então proferida sentença que, julgando verificada a excepção de caso julgado, absolveu da instância a Ré, condenando o Autor nas custas do processo.
O Autor interpôs recurso de apelação para esta Relação, que, por acórdão de 23.04.2020, julgando procedente o recurso, revogou a sentença recorrida, e considerando prejudicado o conhecimento do abuso de direito/litigância de má fé, determinou que a acção prosseguisse termos em primeira instância, para conhecimento do invocado abuso de direito, fixado o quadro factual relevante para o efeito.
Remetidos os autos à primeira instância para os termos ordenados no dito acórdão desta Relação, aí foi proferida sentença que, conhecendo do mérito da acção, julgou a mesma improcedente, absolvendo do pedido a Ré.
2. Inconformado com a sentença proferida, novamente o Autor interpôs recurso de apelação, rematando as alegações com as seguintes conclusões:
1. Os concretos pontos de facto não provados que considera incorrectamente julgados de acordo com o artigo 640º número 1 alínea a) do C.P.C. são os seguintes:
a) a ré abandonou a obra.
c) o autor não procedeu ao pagamento do preço dado que havia vícios, defeitos e anomalias e faltava obra a realizar.
2. Os concretos meios probatórios, constantes do processo, que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, para efeitos do artigo 640º número 1 alínea b) do C.P.C. são os seguintes:
3. A recorrida abandonou a obra.
4. A recorrida ao ter instaurado a acção executiva, ponto 13 dos factos provados, abandonou definitivamente a obra e resolveu o respectivo contrato de empreitada.
5. A recorrida teve uma conduta reveladora de uma intenção firme e definitiva no sentido de não cumprir a obrigação contratual de concluir a respectiva obra, ainda que anterior ao termo do prazo convencionado para a execução desta, está-se perante uma situação de incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro.
6. “O autor/ recorrente recepcionou a obra em 21/06/2010, com reservas por não haver concordância expressa com a obra realizada”. – ponto 10 dos factos provados.
7. “Nessa data o autor acordou com a ré proceder ao pagamento dos montantes em dívida, concretizando parte desse pagamento em falta e titulando por fiança dos seus pais a parte do pagamento ainda em falta”. – ponto 11 dos factos provados.
8. “E a ré retomaria os trabalhos para a concretização do que ficou definido aí concretizar, bem como dos trabalhos suplementares em auto de medição acordados”. – ponto 12 dos factos provados.
9. E não mais retomou.
10. Existe abandono de obra pela recorrida.
11. A paragem dos trabalhos e o subsequente abandono da obra, por parte do empreiteiro ora recorrida, podem e devem, inequivocamente, ser interpretados como manifestação da sua intenção firme e definitiva de não cumprir a sua obrigação contratual de concluir a obra.
12. Assim sendo, ocorreu, in casu, o incumprimento definitivo do contrato, por parte do empreiteiro, estando o dono da obra recorrente dispensado de lhe fazer a interpelação admonitória prevista no artigo 808º número 1 do Código Civil.
13. “O autor não procedeu conforme referido em 12, pelo que a autora instaurou a acção executiva pelo valor de €40 340,37, que correu os seus termos no 3º Juízo Cível de Matosinhos, sob o nº 6620/10.8 TBMTS – cfr. docs. juntos a fls. 102 a 110 e 22 a 24, que aqui se dão por integralmente reproduzidos”.- ponto 13 dos factos provados.
14. A recorrida ao ter instaurado acção executiva resolveu o contrato de empreitada que tinha com o recorrente.
15. Na empreitada, com a resolução do contrato já não há lugar para a aplicação do artigo 1221º do C.C. (eliminação dos defeitos) que, obviamente, pressupõe a manutenção do contrato.
16. Com a resolução do contrato, o dono da obra tem direito de indemnização pelos defeitos verificados, nos termos do artigo 1223º do C.C.
17. Por força da resolução do contrato de empreitada, ficou a recorrida automaticamente constituída na obrigação de indemnizar o dono da obra/ recorrente dos prejuízos que lhe causou, conforme decorre do disposto nos artigos 801º número 2 e 1223º do código civil.
18. Se existem vícios, defeitos e anomalias por parte da recorrida, que estão reconhecidos por sentença devidamente transitada em julgado, tal execução junta nos presentes autos. e que consta o valor, na tal sentença executiva, de igual valor peticionado nos presentes autos, a recorrida deve pagar ao recorrente tal montante.
19. Não estão preenchidos nos presentes autos, salvo melhor opinião em contrário, os pressupostos ora enunciados, pelo que não agiu nem age o recorrente com abuso de direito.
20. A decisão que, no entender da recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, para efeitos do artigo 640º número 1 alínea c) do C.P.C. são as seguintes:
Deve dar-se como provado que a ré abandonou a obra e com a atitude descrita no ponto 12 dos factos provados, resolveu o contrato de empreitada. – ponto 20 dos factos provados.
O autor não procedeu ao pagamento do preço dado que havia vícios, defeitos e anomalias e faltava obra a realizar. – ponto 21 dos factos provados.
21. A sentença proferida ofendeu o disposto nos artigos 1223º, 798º, 808º número 1 e 801º número 2 do Código Civil.
Termos em que, deve ser revogada a sentença, devendo dar como procedente a acção, onde se fará a devida Justiça.
A apelada apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela improcedência da apelação interposta pelo Autor e confirmação do decidido, pedindo ainda que, oficiosamente, se reconheça a existência de abuso de direito em relação ao Autor ao propor a presente acção e se “decida pela condenação do autor, como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da ré, em quantia que compreenda as despesas do processo, inclusive os honorários da mandatária”.
O Autor não respondeu ao pedido de condenação por litigância de má fé, formulado pela ré em sede de contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- Se a matéria de facto foi incorrectamente apreciada;
- Do alegado incumprimento/cumprimento defeituoso por parte da Ré;
- Se a propositura da segunda acção (declarativa) pelo Autor deve ser considerada abusiva, justificando-se que seja condenado como litigante de má fé em multa e indemnização a favor da Ré.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Em primeira instância foram considerados provados os seguintes factos.
A) Factos assentes por força da autoridade de caso julgado de anterior decisão.
- Os factos que foram dados como provados sob os pontos 4, 5 e 6, na sentença proferida na ação executiva que a ora Ré instaurou contra o ora Autor, que correu os seus termos 3.º Juízo Cível de Matosinhos, sob o n.º 6620/10.8 TBMTS, transitada em julgado:
4. D) Na obra falta ainda concluir:
a. Revestimento a tela de toda a zona superior das fachadas.
b. Instalação eléctrica global na zona da esplanada e nos pilares interiores.
c. Endireitar as caleiras e dar caimento devido para a condução das águas;
d. Fixar a fachada “falsa” que está solta.
5. E) A referida obra carece de:
a. A reparação e vedação da entrada da água no telhado da entrada;
b. Substituição de 3 vidros partidos;
c. Substituição das tábuas da fachada já deterioradas devido à falta de revestimento;
d. Algumas das fechaduras das portas, nomeadamente, pelo menos a porta de entrada, a porta do balneário dos funcionários e a porta da esplanada necessitam de ser afinadas, bem como a janela de acesso à esplanada;
e. Alterar a ligação de gás que está mal feita e não permite a ligação autónoma do esquentador.
6. A execução dos trabalhos referidos sob os pontos 4 e 5 importa o valor total de 8.000,00€, a que acrescerá o IVA à taxa legal”.
B) Factos Provados
1 – O Autor é comerciante em nome individual.
2 – A Ré tem como objecto a construção e montagem de pré-fabricados e reparações gerais em prédios – cfr. doc. junto a fls. 13, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3 – O Autor precisou de pedir preços e orçamentos a várias empresas da especialidade para a construção de um bar restaurante e apoio de praia, na D….
4 – Da empresa a quem consultou preço, a escolha do Autor recaiu sobre a Ré.
5 – A construção a efectuar foi uma construção nova.
6 – A Ré deu ao Autor um orçamento com a referência n.º ……../2008, em Dezembro de 2008, no valor de €166 325,20, com as seguintes condições de pagamento: 30% na adjudicação; 30% no início da obra; 30% aquando da cobertura e o restante no final – cfr. doc. junto a fls. 14, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
7 – A Ré apresentou ao Autor em 16 de Abril de 2009 a memória descritiva e justificativa para a proposta da construção de Bar/Restaurante e apoio de praia na D… – cfr. doc. junto a fls. 14 verso a 17, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
8 – Houve posteriormente um aditamento ao orçamento original, com acréscimos aos valores anteriores, mormente ao nível do lacado, a aplicação de vidro laminado, a aplicação de vidro 3,3 gris, na zona do restaurante, a diferença de cor dos vidros 4 mm incolor para 4 mm gris, aplicação da chapa de alumínio totalmente liso pelo exterior das portas - cfr. doc. junto a fls. 18, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
9 – A Ré começou a efectuar os trabalhos.
10 - O Autor recepcionou a obra em 21/06/2010, com reservas por não haver concordância expressa com a obra realizada.
11 – Nessa data o Autor acordou com a Ré proceder ao pagamento dos montantes em dívida, concretizando parte desse pagamento em falta e titulando por fiança dos seus pais a parte do pagamento ainda em falta,
12 – E a Ré retomaria os trabalhos para a concretização do que ficou definido aí concretizar, bem como dos trabalhos suplementares em auto de medição acordados.
13 – O Autor não procedeu conforme referido em 11[1], pelo que a Ré[2] instaurou a acção executiva pelo valor de €40.340,37, que correu os seus termos no 3.º Juízo Cível de Matosinhos, sob o n.º 6620/10.8 TBMTS – cfr. docs. juntos a fls. 102 a 110 e 22 a 24, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
14 – O Autor não pagou o preço final.
15 – Foi realizado auto de medição provisório em 21/06/2010, conforme documento junto a fls. 10 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
16 – Para evitar pagamentos, designadamente à Ré, o Autor avançou com um processo de revitalização impondo-lhe um corte de 70% do capital em dívida; perdão total de juros vencidos e vincendos e pagamento de 30% em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com início em julho de 2018 – cfr. doc. junto a fls. 124 a 131 que aqui se dá por integralmente reproduzido.
17 – Esse plano veio a ser homologado por sentença de 30/05/2016 – cfr. doc. junto a fls. 132 a 136, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
18 – No plano homologado, reconheceu-se à aqui Ré um crédito desta sobre o Autor, no valor de €48 301,56.
19 – O Autor encontra-se a pagar à Ré nos termos do plano homologado o valor a que o crédito desta ficou reduzido.
C. E na mesma instância foram julgados não provados os seguintes factos:
a) A Ré abandonou a obra.
b) Foi aditado o revestimento em chapa para a zona do restaurante.
c) O Autor não procedeu ao pagamento do preço dado que havia vícios, defeitos e anomalias e faltava obra a realizar.
d) O Autor não quis o revestimento em chapa para a zona do restaurante.
e) O Autor introduziu alterações na obra.
f) Quando a instalação de gás estava já certificada, conforme certificado de inspecção emitido, e que o mesmo estava de acordo com o projecto apresentado, foi instalado um esquentador pelo Autor na área de serviço, em violação do projecto de gás.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
1. Reapreciação da matéria de facto.
Não se conformou o Autor com a decisão proferida em primeira instância quanto à matéria de facto submetida a julgamento, pelo que reclama desta instância o reexame da mesma.
Dispõe hoje o n.º 1 do artigo 662.º do Código de Processo Civil que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:
“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Como refere A. Abrantes Geraldes[3], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa notar que a sindicância cometida à Relação quanto ao julgamento da matéria de facto efectuado na primeira instância não poderá pôr em causa regras basilares do ordenamento jurídico português, como o princípio da livre apreciação da prova[4] e o princípio da imediação, tendo sempre presente que o tribunal de 1ª instância encontra-se em situação privilegiada para apreciar e avaliar os depoimentos prestados em audiência.
Na perspectiva do apelante foi incorrectamente apreciada a matéria constante das alíneas a) e c) dos factos não provados.
Pugna o mesmo para se considere a matéria em causa provada nos seguintes termos:
- A RÉ abandonou a obra e com a atitude descrita no ponto 12 dos factos provados, resolveu o contrato de empreitada. – PONTO 20 DOS FACTOS PROVADOS.
- O Autor não procedeu ao pagamento do preço dado que havia vícios, defeitos e anomalias e faltava obra a realizar. – PONTO 21 DOS FACTOS PROVADOS.
De acordo com o n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Como esclarece Abrantes Geraldes[5], “a rejeição do recurso, na parte respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conc1usões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda, quando tenha sido correctamente executada pela secretaria a identificação precisa e separada dos depoimentos;
e) Falta de apresentação da transcrição dos depoimentos oralmente produzidos e constantes de gravação quando esta tenha sido feita através de mecanismo que não permita a identificação precisa e separada dos mesmos;
f) Falta de especificação dos concretos meios probatórios oralmente produzidos e constantes de gravação quando, tendo esta sido efectuada por meio de equipamento que permitia a indicação precisa e separada, não tenha sido cumprida essa exigência por parte do tribunal;
g) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos para que possa afirmar-se a exigência de algum dos elementos referidos nas anteriores alíneas b) e c)”.
E acrescenta o mesmo autor: “importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[6].
Já no preâmbulo do Decreto - Lei n.º 39/95, de 15/02, que introduziu o artigo 690º-A do Código de Processo Civil, na versão anterior à do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, se fazia constar: a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto não deverá redundar na criação de factores de agravamento da morosidade na administração da justiça civil. Importava, pois, ao consagrar tão inovadora garantia, prevenir e minimizar os riscos de perturbação do andamento do processo, procurando adoptar um sistema que realizasse o melhor possível o sempre delicado equilíbrio entre as garantias das partes e as exigências de eficácia e celeridade do processo... A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido.
A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.
Tal orientação foi claramente reafirmada na reforma legislativa de 2007, como expressamente decorre do artigo 685º-B, já referido, tendo sido até reforçada pelo novo Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho[7].
Como é afirmado por Abrantes Geraldes[8], “com o art. 640º do novo CPC o legislador visou dois objectivos: sanar dúvidas que o anterior preceito suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova”.
O ónus específico que o anterior artigo 685.º-B do Código de Processo Civil e actualmente o artigo 640.º do NCPC faz recair sobre o recorrente mais não é do que uma manifestação de princípios processuais fundamentais como o da cooperação, da lealdade e da boa-fé, assegurando a seriedade do próprio recurso interposto, evitando que o mesmo seja usado com fins meramente dilatórios, com o único propósito de protelar o trânsito da decisão[9].
De acordo com as “linhas orientadoras da nova legislação processual civil”[10], um dos objectivos essenciais da reforma do processo civil consistia em assegurar a “efectiva existência de um segundo grau de jurisdição na apreciação de questões de facto, em articulação com o princípio do registo das audiências e da prova nela produzida”, mas para que tal não constituísse um factor de acentuada morosidade na segunda instância, ressalva-se a necessidade de alteração do “ónus de alegação e formulação de conclusões pelo recorrente que impugne a matéria de facto, incumbindo-lhe a indicação precisa, clara e determinada dos concretos pontos de facto em que diverge da apreciação do tribunal, devendo fundamentar a sua divergência com expressa advertência às provas produzidas - procurando-se, por esta via, tornar praticável uma verdadeira reapreciação dos concretos pontos de facto controvertidos, sem custos desmedidos em termos de morosidade na apreciação dos recursos”.
E conforme assinala o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2015[11]: “para além de sempre ter vigorado um rigoroso ónus de delimitação do objecto da impugnação deduzida pelo apelante e de fundamentação minimamente concludente de tal impugnação (traduzido na necessária e cabal indicação dos pontos de facto questionados e dos meios probatórios que imponham decisão diversa sobre eles, complementado entretanto pela vinculação do recorrente a indicar qual o exacto sentido decisório que decorreria da correcta apreciação dos meios probatórios em causa, assim mostrando claramente onde estava situado o invocado erro de julgamento), estabelecia ainda o regime originário, emergente do DL 329-A/95 um ónus de transcrição das passagens da gravação em que o recorrente se fundava para demonstrar a existência do erro na apreciação das provas gravadas ou registadas (facultando-se assim ao Tribunal da Relação um suporte físico escrito, tendente a facilitar grandemente a tarefa de reapreciação dos depoimentos e, pela onerosidade da tarefa de transcrição, inteiramente a cargo do recorrente, desmotivando impugnações manifestamente infundadas e ostensivamente inviáveis).
Por outro lado, procurou inviabilizar-se a possibilidade de formulação de convites ao aperfeiçoamento, geradores de incidentes dilatórios, no que se refere ao adequado cumprimento dos ónus a cargo do apelante, cabal e claramente definidos pela lei de processo, por se considerar tal possibilidade geradora de possíveis abusos e potenciadora de atrasos processuais: a falta de cumprimento adequado pelo recorrente dos ónus, claramente definidos na lei, seria, pois, indício de uma falta de consistência e seriedade na impugnação da matéria de facto que, sem mais, deveria ditar o imediato insucesso do recurso, nessa parte.
[...] O actual CPC não trouxe consigo alteração relevante no ónus de delimitação e fundamentação do recurso em sede de matéria de facto, já que o nº 1 do artigo 640º:
– manteve, sob pena de rejeição do recurso quanto à matéria de facto, o ónus de indicação obrigatória dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (al. a) e de especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos de facto impugnados diversa da recorrida (al. b), exigindo ainda ao recorrente que especifique expressamente a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c);
- e à mesma rejeição imediata conduz, no actual CPC, a falta de indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de o recorrente poder apresentar a “transcrição dos excertos” relevantes.
Percorrendo, deste modo, os regimes processuais que têm vigorado quanto a este tema, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes; e um ónus secundário – tendente, não tanto a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida – que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas – indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização das passagens da gravação relevantes”.
O legislador fulmina com a rejeição do recurso, relativamente à impugnação da matéria de facto, a falta de cumprimento de qualquer dos ónus impostos pelos nºs 1 e 2 do artigo 640.º da lei processual civil, sem possibilidade sequer de correcção dessa omissão na sequência de despacho de aperfeiçoamento, que não tem de ser proferido para sanar tais situações[12].
O recorrente individualiza, com precisão, os segmentos decisórios de cuja apreciação diverge.
Também indica a decisão que, quanto à matéria impugnada, deve, na perspectiva que defende, ser proferida.
Mas terá o recorrente cumprido o ónus imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil?
Embora indicando o que qualifica como “concretos meios probatórios que impõem decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, para efeitos do artigo 640º número 1 alínea B) do C.P.C.”, o recorrente não satisfaz tal ónus já que, limitando-se a extrair ilações de factos dados por assentes na sentença sob recurso e a convocar jurisprudência diversa versada sobre incumprimento do contrato pelo empreiteiro e noção de abandono da obra, não enumera um único meio de prova que permita sustentar decisão diversa da proferida em primeira instância na parte em que é objecto de impugnação.
O incumprimento deste ónus alegatório é, só por si, fundamento para rejeição do recurso quanto à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, sem possibilidade de recurso a qualquer solução paliativa, como já se adiantou.
Assim, de acordo com o disposto no artigo 640.º, n.º 1, b) do Código de Processo Civil, impõe-se a rejeição do recurso na parte em que impugna a decisão relativa à matéria de facto.
Não obstante tal rejeição, entende-se conveniente o seguinte esclarecimento:
Tal como se acha redigida, a alínea a) dos factos não provados encerra um juízo conclusivo.
O juízo acerca do incumprimento/recusa de cumprimento das obrigações contratuais do empreiteiro, consubstanciado no abandono da obra, carece de alegação de factos que preencham e traduzam tal conceito, designadamente a retirada de máquinas, material e pessoal do local da obra, em circunstâncias tais que revelem de forma inequívoca a sua intenção de não retomar os trabalhos da obra incompleta – como, de resto, resulta categoricamente sustentado na jurisprudência convocada pelo próprio recorrente, por ele inserida no que designa por “meios probatórios” para demonstrar que “a Ré abandonou a obra”.
Os factos passíveis de integrarem tal juízo conclusivo, não tendo sido alegados, não podem ser objecto de prova.
Vai mais longe ainda o recorrente ao pretender que seja incluído no referido segmento decisório - e com a atitude descrita no ponto 12 dos factos provados, resolveu o contrato de empreitada - um outro juízo conclusivo, com expressa referência a conceitos de direito.
Como é entendido de forma pacífica pela doutrina e jurisprudência, só os factos, concretos e objectivos, podem ser escrutinados através da produção de prova, indicada pelas partes, ou sob impulso oficioso do tribunal, nas circunstâncias em que tal lhe é consentido.
Com esses factos não se confundem juízos conclusivos/valorativos ou conceitos de direito, que, sendo distintos daqueles, haverão de ser extraídos dos primeiros a partir da sua análise, ponderação e subsunção às normas jurídicas aplicáveis.
Por conseguinte, o eventual incumprimento da Ré teria de ser indagado a partir de factualidade concreta dele indiciador, que o Autor devia ter alegado, mas cujo ónus alegatório também não cumpriu.
Assim, mesmo que razões não existissem para rejeitar o recurso na parte em que visa o reexame da matéria de facto, nunca o mesmo poderia proceder nos termos reclamados pelo recorrente.
2. Do mérito do recurso.
2.1. Do alegado incumprimento/cumprimento defeituoso da Ré, invocado pelo Autor para fundamentar o pedido contra ela deduzido.
Conforme resulta do acervo factual recolhido, Autor e Ré estabeleceram entre si negociações com vista à construção, pela segunda, de um bar/restaurante e apoio de praia, e tendo o Autor aceite as condições contratuais fixadas pela Ré, através dos orçamentos que para o efeito elaborou e lhe apresentou, com o preços e condições de pagamento, o acordo quanto à realização da empreitada - porque assim se caracteriza o contrato projectado e concluído – foi concretizado, tendo a Ré dado início aos trabalhos, após o que o Autor recepcionou a obra em 21.06.2010, “com reserva por não haver concordância expressa com a obra realizada” – ponto 10.º dos factos provados.
Segundo o n.º 1 do artigo 406.º do Código Civil, que consagra o princípio pacta sunt servanda, traduzido no reconhecimento da força vinculativa dos contratos, tal como foram concluídos, em relação aos contratantes “o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratantes ou nos casos admitidos na lei”.
E de acordo com o artigo 762º do Código Civil, “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”.
O cumprimento deve, pois, ter por objecto a coisa ou o facto sobre os quais versa a obrigação.
No contrato de empreitada, tendo como contrapartida o preço acordado, o empreiteiro obriga-se à realização da obra, que constitui a prestação principal a seu cargo. É o que resulta do artigo 1207º do Código Civil.
Deste modo, “…a obrigação do empreiteiro é uma obrigação de resultado, em que este assume a obrigação de realização de uma determinada obra, de acordo com o convencionado e sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato (art.º 1208.º do C.C.), não sendo responsável pela não obtenção deste resultado, quando esse fracasso é imputável a causas que não possa dominar”[13].
Tal pressupõe que deva o empreiteiro realizar a obra sem defeitos, isto é, em conformidade com o que foi convencionado ou projectado e sem vícios que excluam ou reduzam o seu valor, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou contratualmente previsto[14].
No âmbito da inexecução do contrato, além da mora e do incumprimento definitivo, destaca-se também a execução defeituosa do contrato, ou cumprimento defeituoso do contrato, na designação acolhida pelo artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil. Ou seja: o devedor executa materialmente a prestação, mas em desconformidade com o convencionado com a outra parte – “a prestação realizada pelo devedor não corresponde, pela falta de qualidades ou requisitos dela, ao objecto da obrigação a que ele estava adstrito”[15].
Poder-se-á, assim, considerar que ocorre cumprimento defeituoso da obrigação quando a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, podendo o defeito ser quantitativo ou qualitativo[16].
O mesmo é dizer, “no cumprimento defeituoso, o devedor cumpre a obrigação que lhe estava imposta, mas não como lhe estava imposta, isto é, cumpre mas de forma defeituosa, com vícios ou deficiências”[17].
Vícios são, no esclarecimento de João Cura Mariano[18], “anomalias objectivas da obra, traduzindo-se em estados patológicos desta, independentemente das características convencionadas”.
Revertendo à situação em discussão nos autos: o Autor pede que seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de €9.840,00 (além de juros desde a citação), alegando que, conforme consta da sentença proferida no âmbito do processo n.º 6620/10.8TBMTS, que correu termos pelo 3.º Juízo Cível de Matosinhos, existem trabalhos que não foram concluídos pela demandada e outros que apresentam defeitos a reparar, importando em € 8.000,00, acrescidos de IVA, a execução de tais trabalhos, valor correspondente ao orçamento que para o efeito solicitou.
Os artigos 1221.º a 1225.º do Código Civil preveem e regulam vários direitos reconhecidos ao dono da obra em reacção a um cumprimento defeituoso da prestação a cargo do empreiteiro.
Existindo defeitos que afectem a obra, traduzem-se esses direitos/deveres, a incidirem, respectivamente, na esfera jurídica do dono da obra e na do empreiteiro, na eliminação dos defeitos, redução do preço, resolução do contrato e indemnização.
Os mesmos não podem, todavia, ser exercidos de uma forma aleatória ou discricionária, antes tendo de se subordinar à ordem estabelecida nos preceitos legais referidos, podendo, embora, a indemnização cumular-se com os demais.
Ou seja: apresentando a obra vícios que a afectem o dono da obra poderá exigir do empreiteiro a reparação dos defeitos, ou a realização de uma obra nova no caso de não ser possível eliminá-los, e caso não seja possível uma ou outra solução, ou recusando-as o empreiteiro, poderá, sequencialmente, obter a redução do preço ou a resolução do contrato.
Esclarece, a propósito, o acórdão da Relação do Porto de 26.06.2012[19] que “…tal como é jurisprudência pacífica, a lei concede ao dono da obra, cinco meios jurídicos de actuação, no sentido de por cobro aos aludidos defeitos, que a R., na qualidade de empreiteira, tem a obrigação de eliminar, e que se enquadram nos seguintes grupos, segundo um esquema de prioridade ou precedência de direitos:
A)- O de exigir a reparação das deficiências, se puderem ser eliminadas, ou a realização de obra nova, salvo se as respectivas despesas forem desproporcionadas em relação ao proveito a obter - artigo 1221, n.ºs 1 e 2 do C. Civil -, com carácter precípuo sobre os demais, como melhor forma de alcançar a reconstituição natural, consagrada pelos artigos 562º e 566º, do C. Civil;
B)- O de pedir a redução do preço ou a resolução do contrato, se não forem eliminados os defeitos ou construída de novo a obra, e aqueles a tornarem inadequada aos fins a que se destina – artigo 1222º, n.º1 do C. Civil;
C)- O de requerer uma indemnização, nos termos gerais dos artigos 562º e seguintes – artigo 1223º do C. Civil.
No entanto, os direitos supra enunciados, que a lei coloca ao dispor do dono da obra, com vista a obter do empreiteiro a eliminação dos defeitos, não podem ser exercidos arbitrariamente, mas sim sucessivamente e pela ordem supra indicada. De onde decorre que, no nosso direito, o cumprimento defeituoso pelo empreiteiro não confere ao dono da obra o direito de, per si ou por intermédio de terceiro, eliminar os defeitos ou reconstruir a obra à custa daquele. Tal como se escreve no Acórdão do STJ, de 04.12.2007, Proc. 06B4505, in www.dgsi.pt, “o dono da obra não pode por si proceder à reparação, sem dar primeiro ao empreiteiro o conhecimento dos defeitos e a oportunidade de os eliminar”. Mesmo após a condenação do empreiteiro, se este não eliminar os defeitos ou executar a obra nova no prazo que lhe foi fixado, o dono da obra não pode executá-la directamente. Tem de recorrer ao tribunal para a sua execução (art. 828º do C. Civil; Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao artigo 1221.º, in "Código Civil Anotado", vol. II). Só assim não será nos casos de manifesta urgência em que, para evitar maiores danos, é admissível que o dono da obra, por si ou por terceiro, proceda à eliminação dos defeitos, exigindo o reembolso das respectivas despesas - neste sentido, cfr. Pedro Romano Martinez, obra citada, pág. 389; Ac. do STJ, de 04.12.2007, supra citado, e Ac. desta Relação de 22.1.1996, in CJ, ano XXI, tomo I, pág. 202). Ou ainda na hipótese de se verificar um incumprimento definitivo daquelas obrigações, imputável ao empreiteiro - neste sentido cfr. J. Cura Mariano, in "Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra", 3.ª ed., pág. 147 e ss.”.
A obra executada pela Ré, e recepcionada sob reservas pelo Autor, apresenta as anomalias descritas no ponto 5-E. da sentença proferida no âmbito do processo n.º 6620/10.8 TBMTS, que carecem de rectificação.
Como dá conta a sentença aqui sindicada, “o empreiteiro é responsável por todos os defeitos relativos à execução dos trabalhos ou à qualidade, forma e características dos materiais utilizados, quer quando o contrato não fixe as regras de execução, quer quando as efetivamente usadas não correspondam às aprovadas, incumbindo ao dono da obra a prova da existência dos mesmos.
Acresce que não basta a prova do defeito, pois a lei igualmente exige a demonstração da sua gravidade, de modo a afetar o respetivo uso ou diminuir atendivelmente o seu valor.
Além disso, para que se possa fazer valer qualquer direito em virtude da verificação de defeitos, o dono da obra tem que provar a precedência de denúncia dos mesmos ao empreiteiro”.
Note-se que “a possibilidade de ser exigida ao empreiteiro a eliminação dos defeitos satisfaz não só o interesse do dono da obra em ver a prestação a que tem direito fielmente cumprida, mas também o interesse do empreiteiro em ser ele a efectuar essa obra de reparação, permitindo-lhe o controlo dos seus custos e evitar o agravamento dos prejuízos causados pelo defeito”[20].
Para que o empreiteiro possa proceder à eliminação dos defeitos da obra e ser contratualmente responsabilizado, caso o não faça, deverá o dono da obra exercer o dever de denúncia desses defeitos, no prazo fixado no artigo 1220.º do Código Civil.
Não resulta dos autos que o Autor o haja feito.
Para que o Autor pudesse substituir-se à Ré na eliminação dos defeitos detectados na obra, por si próprio ou por intermédio de terceiro, ficando aquela obrigada a suportar o reembolso dos respectivos custos, exigia-se não só a denúncia dos defeitos, como ainda a não eliminação dos mesmos pela Ré, no prazo para o efeito fixado pelo Autor, ou manifestação de recusa daquela em promover tal eliminação.
Condição que também, no caso, não se mostra preenchida.
No valor peticionado pelo Autor inclui-se também o montante necessário para a execução dos trabalhos em falta.
O retardamento da prestação não constitui fundamento bastante para a resolução do contrato.
A resolução de um contrato pressupõe que haja razão para, por esse meio, se proceder à extinção do vínculo obrigacional, não bastando para tal a simples mora do devedor, antes se exigindo o incumprimento definitivo ao mesmo imputável.
Esse incumprimento definitivo pode revelar-se por diversos meios, entre os quais:
a) A perda de interesse do credor na prestação, em consequência da mora do devedor, ou a sua inexecução dentro do prazo razoável que lhe for fixado por aquele (cfr. artigo 808.º, n.º 1 do Código Civil);
b) Pelo decurso do prazo fixado contratualmente como absoluto ou improrrogável, o que equivale àquela perda de interesse; ou
c) Pela recusa peremptória do devedor em cumprir, comunicada ao credor, não se justificando então a necessidade de nova interpelação ou de fixação de prazo suplementar[21].
Para além destas situações expressamente contempladas na lei, existe uma outra que a doutrina e a jurisprudência equiparam ao incumprimento definitivo e que se traduz na declaração expressa ou tácita do devedor de não querer cumprir.
Assim, quando se esteja face a uma tal declaração expressa ou perante determinada conduta ou omissão que revele manifestamente a intenção de não cumprir a prestação, o credor não tem de esperar pelo respectivo vencimento (se ainda não tiver ocorrido), nem tem de alegar e provar a perda de interesse na prestação ou efectuar interpelação admonitória ao devedor para cumprir.
Perante uma declaração do tipo referido ou perante conduta ou omissão com o aludido significado, o credor pode, desde logo, ter por não cumprida definitivamente a obrigação.
No caso aqui em debate, como sublinha a sentença ora sindicada, “no que concerne aos trabalhos em falta, não se mostram provados quaisquer factos que permitam concluir que a Ré se encontre em incumprimento definitivo, de forma a sustentar o pedido de indemnização formulado pelo Autor, designadamente tenha perdido o interesse na obra ou que a Ré não tenha realizado os trabalhos em falta no prazo que para o efeito lhe fixou – art. 808º, nº 1 ambos do C.Civil, nem que a execução desses trabalhos se tornou impossível por causa imputável à Ré – art. 801º, nº 2, do C.Civil -, nem sequer que perdeu a confiança na Ré para os realizar.
Não se verificando nenhuma destas situações, não tendo a Ré cumprido a obrigação de realizar todos os trabalhos a que se obrigou e havendo apenas um retardamento no cumprimento dessa obrigação, assiste ao Autor, unicamente o direito de exigir daquela o cumprimento da mesma e indemnização dos danos decorrentes da mora”.
A circunstância de terem ficado trabalhos por executar não significa, por si só, como sustenta o Autor, que a Ré haja abandonado a obra.
De resto, tal abandono apenas é susceptível de traduzir um incumprimento definitivo por parte do empreiteiro se for reveladora, de forma inequívoca, de uma vontade de este não cumprir a prestação em falta, como reconhece, sem grandes oscilações, a jurisprudência, parte da qual citada pelo próprio recorrente nas suas alegações de recurso.
Ora, no caso dos autos, embora se comprovando que a Ré não concluiu todos os trabalhos, não se pode ignorar o acordo alcançado entre as partes a 21.06.2010, quando o Autor recepcionou a obra, embora com reservas.
Nessa ocasião o Autor comprometeu-se perante a Ré a proceder ao pagamento das quantias em dívida, concretizando parte desse pagamento em falta e titulando por fiança dos seus pais a parte do pagamento ainda em falta, acordando a Ré, por sua vez, em retomar os trabalhos para a concretização do que ficou definido aí concretizar, bem como dos trabalhos suplementares em auto de medição acordados – pontos 11.º e 12.º dos factos provados.
E porque o Autor não procedeu ao pagamento a que se obrigara, conforme consta do ponto 11.º, - facto merecedor da maior relevância, mas que o Autor convenientemente ignora nas suas alegações de recurso - a Ré instaurou a acção executiva pelo valor de €40.340,37, que correu os seus termos no 3.º Juízo Cível de Matosinhos, sob o n.º 6620/10.8TBMTS – ponto 13.º dos factos provados.
Ao contrário do que sustenta o recorrente, a instauração da referida acção executiva não equivale a uma resolução, por parte da Ré, do contrato de empreitada celebrado com o Autor. A instauração da referida acção executiva não comporta outra leitura que não seja a tentativa de obtenção do cumprimento coactivo da prestação que o Autor, apesar de a tal se haver comprometido, não satisfez.
Não se mostrando comprovada situação de incumprimento definitivo por parte da Ré, quer quanto à eliminação dos defeitos da obra, quer quanto à execução dos trabalhos que ficaram por terminar, a pretensão que judicialmente formula contra a Ré, nos termos em que a deduz, não pode ter outro desfecho que não o seu insucesso.
2.2. Do invocado abuso de direito.
Na sequência do despacho de 6.02.2019, onde se dá conta que a “conduta do Autor poderá ser enquadrada como abuso de direito”, e se determinou a notificação das partes para sobre isso se pronunciarem, exercendo, assim, o contraditório ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil, veio a Ré alegar que a conduta do Autor preenche todos os requisitos legais que configuram o abuso de direito, referindo ser “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”, rematando com pedido de condenação do Autor “como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da ré, em quantia que compreenda as despesas do processo, inclusive os honorários da mandatária”, respondendo o Autor que não agiu com abuso de direito.
Desta vez a sentença, conhecendo da questão suscitada oficiosamente pelo próprio tribunal recorrido, pronunciou-se no sentido da existência de abuso de direito na pretensão formulada pelo Autor contra a Ré na acção judicial contra ela proposta, concluindo não poder o Autor exigir da Ré o pagamento da quantia peticionada.
A mesma decisão, reconhecendo embora o referido abuso de direito, conclui que “não obstante não se reconhecer o direito invocado pelo Autor, não se configura que a conduta deste na presente ação seja subsumível na previsão de nenhuma das alíneas do nº 2, do art. 542º, do C.P.Civil, não sendo possível, assim, concluir que o mesmo tenha litigado de má-fé”.
Em sede de contra-alegações, pede a recorrida que oficiosamente [se] conclua pela verificação do abuso de direito exercido pelo autor ao intentar a presente acção e consequentemente decida pela condenação do autor, como litigante de má-fé, em multa e indemnização a favor da ré, em quantia que compreenda as despesas do processo, inclusive os honorários da mandatária”.
O direito fundamental de acesso aos tribunais, incorporando o direito de acção, e o princípio da sua efectiva tutela judicial, é garantido constitucionalmente.
Dispõe, com efeito, o artigo 20.º, n.º 1, da Constituição da República que “a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”, determinando o seu n.º 5 que “para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Segundo Lebre de Freitas[22], o direito de acção exerce-se mediante a dedução de pretensões (ou pedidos, na terminologia legal), por meio das quais o autor (ou o réu reconvinte, ou ainda o terceiro interveniente principal activo ou oponente) se afirma titular dum direito ou outro interesse legítimo e, consequentemente, solicita uma providência processual para a respectiva tutela.
O direito de acção, como vertente fundamental do direito à jurisdição, é, pois, o direito de recorrer aos tribunais pedindo a tutela de um interesse protegido pelo direito material. Ao mesmo tempo que um ónus, no sentido decorrente do texto, a acção traduz um direito do particular (que se considera lesado e não pode agir por sua força): o de provocar a actividade dos tribunais para que, reconhecendo o seu direito, lhe conceda a tutela judiciária adequada.[23]
Tal direito não se confunde, todavia, com o direito que através dela se pretende acautelar. Aquele é necessariamente exercido sem averiguação prévia sobre existência do segundo. Uma coisa é o direito de poder provocar a atividade jurisdicional do Estado, para que este aprecie os direitos concretos ou incertos entre as partes, mediante uma decisão fundamentada, e outro é o direito substantivo que, por exemplo, o autor se arroga contra o réu e pretende que lhe seja reconhecido pelo tribunal. Direito este material, que pode existir ou não, no momento da propositura da acção. Nunca pode a demonstração da sua existência ser um requisito prévio para o exercício do direito de acção, sob pena de se cair num absurdo, pois que só quando o tribunal emite a sentença é que se pode saber se a pretensão do autor era ou não fundada, ou, correlativamente, se a defesa do réu era ou não conforme o Direito[24].
Decorre deste entendimento que sendo o direito de acção, com tutela constitucional, inerente ao Estado de direito e um veículo para a discussão do direito subjectivo, o facto de se vir a constatar na acção que o direito subjectivo que, através dela se pretendia acautelar ou ver reconhecido, afinal não existe, não deve conduzir necessariamente à conclusão que o direito de acção foi indevida ou incorrectamente exercido. O exercício do direito de acção não está dependente de qualquer requisito prévio de demonstração da existência do direito substancial. Exigir isso, seria fechar a porta a todos os interessados: aos que não têm razão e aos que têm.[25]
Tal não significa, porém, que não ocorram situações excepcionais em que o exercício do direito de acção se processe de forma ilícita ou abusiva.
Prevendo a possibilidade desse direito ser exercido contra a lei, a doutrina e a jurisprudência mais recentes têm agrupado tais situações sob duas perspectivas essenciais:
a) O exercício abusivo dentro dos contornos da cláusula geral do abuso de direito previsto no artigo 334.º do Código Civil): é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito - de que a litigância de má fé é um afloramento; e
b) Responsabilidade civil nos termos gerais, no âmbito da denominada culpa in agendo, pressupondo que a atuação processual ilícita sancionada tenha efeitos que transcendam os autos em que o problema se coloque, destacando-se a culpa por danos patrimoniais prolongados (de que é exemplo o artigo 374º, n.º 1), por danos morais e por actuações processuais complexas ou com intervenção de terceiros.
À partida legítimo, se exercido de forma que ofenda manifestamente a boa fé, os bons costumes ou o seu fim social ou económico, o mesmo é dizer, o sentimento jurídico socialmente dominante, o direito torna-se ilegítimo, implicando tal ilegitimidade a paralisação dos respectivos efeitos, tudo se passando como se não existisse na esfera patrimonial do titular, sobrando apenas a sua aparência.
Pode entender-se, juridicamente, por exercício abusivo do direito “um comportamento que tenha a aparência de licitude jurídica --- por não contrariar a estrutura formal-definidora (legal ou conceitualmente) de um direito, à qual mesmo externamente corresponde --- e, no entanto, viole ou não cumpra, no seu sentido concreto-materialmente realizado, a intenção normativa que materialmente fundamenta e constitui o direito invocado, ou de que o comportamento realizado se diz exercício”[26].
A parte que abusa do direito actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
O exercício do direito de acção, em concreto, deve obedecer a uma exigência de ordem moral: é necessário que o litigante esteja de boa fé ou admita ter razão. Se litiga com má fé, exerce uma actividade ilícita e, como tal, incorre em responsabilidade civil processual subjectiva com base na culpa - artigo 542° do Código de Processo Civil -, por um exercício abusivo do direito de acção ou de defesa.
A litigância de má fé não constitui uma expressão de responsabilidade civil, visando a reparação de danos, ilícita e culposamente causados a terceiros através de certas actuações processuais, tratando-se antes de um mecanismo sancionatório específico, de âmbito limitado, visando assegurar o uso regular e leal dos mecanismos processuais postos ao dispor dos que pretendam exercer o direito de acção que a lei a todos garante.
Os pressupostos da litigância de má fé encontram-se regulados no artigo 542.º do Código de Processo Civil, podendo distinguir-se aqueles que têm natureza subjectiva daqueles que têm natureza objectiva. Há litigância de má fé quando estão simultaneamente reunidos pressupostos das duas mencionadas naturezas.
Para o preenchimento do instituto em causa não relevam todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as actuações tipificadas nas diversas alíneas do n.º 2 do referido normativo; não se exige dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; exige-se, sim, dolo ou grave negligência, e não culpa lato sensu, em moldes civis; as consequências sancionatórias resumem-se à multa e, em alguns casos, a indemnização calculada em moldes especiais[27].
A litigância de má fé visa punir a instrumentalização do direito processual em diversas vertentes, quando os litigantes pretendam alcançar um objectivo considerado ilegítimo pelo direito substantivo, quando a sua actuação constitua um meio de impedir a descoberta da verdade, como forma de obstruir a actividade da máquina judiciária, com a colocação de obstáculos ou com a promoção de expedientes meramente dilatórios, ou com o objectivo de impedir o trânsito em julgado da decisão e, deste modo, prejudicar a parte contrária na tutela ou na realização do direito substantivo que através da decisão lhe seja reconhecido.[28]
A responsabilidade pela conduta processual deve sempre ser objecto de análise casuística, ponderando-se o princípio da culpa na actuação dos litigantes, não podendo essa ponderação obedecer a critérios rígidos e puramente formais, sob pena de com isso criar nos interessados temor no recurso aos tribunais para fazerem valer os direitos de que se julgam titulares, sem esquecer que a incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem até levar consciências honestas a afirmarem um direito de que não são titulares ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir.[29]
Como esclarece Pedro Albuquerque[30], “a proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. Também não se circunscreve a uma violação sem mais do dever geral de actuar de boa fé. A virtualidade específica da má fé processual é outra diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial”.
Uma lide temerária e a ousadia de uma construção jurídica manifestamente errada não revelam, por si só, que o seu autor delas se serviu como simples cortina de fumo da inanidade da sua posição processual. Aconselha-se, por isso, o uso de critérios de prudência na avaliação do juízo sobre a má fé processual, apenas devendo ser sancionada a actuação processual da parte, como litigante de má fé, quando, em concreto, surja com clamorosa evidência a natureza dolosa ou gravemente negligente dessa actuação, pois como refere o acórdão desta Relação de 7.6.2011[31], “não obstante as alterações introduzidas ao art.º 456° do Código de Processo Civil pelo Decreto-Lei n° 180/96, de 25/09, que visaram alargar o conceito de litigância de má fé e o âmbito da sua aplicação, sobretudo como reflexo do princípio da cooperação e dos inerentes deveres impostos às partes (art.º 266° do C. P. Civil[32]) permanece válido o entendimento de que a condenação por litigância de má fé tem por pressuposto uma actuação consciente das partes contrárias à verdade material e/ou obstrutiva da realização da justiça”.
No caso aqui em debate, o Autor recorreu a tribunal, demandando a Ré, reclamando que fosse esta condenada a pagar-lhe a quantia de € 9.840,00, acrescida de juros desde a citação, até efectivo e integral pagamento, valor orçamentado para a conclusão dos trabalhos que a Ré deixou inacabados e para a eliminação de anomalias que alguns dos trabalhos por esta executados apresentavam.
Resulta do ponto 16.º dos factos provados que “para evitar pagamentos, designadamente à Ré, o Autor avançou com um processo de revitalização impondo-lhe um corte de 70% do capital em dívida; perdão total de juros vencidos e vincendos e pagamento de 30% em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com início em julho de 2018”.
Assim, como sublinha a sentença recorrida, “...o Autor avançou com um processo de revitalização, que veio a ser homologado por sentença de 30/05/2016, impondo um corte nos créditos de que o mesmo era devedor de 70% do capital em dívida; perdão total de juros vencidos e vincendos e pagamento de 30% em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas, com carência de 24 meses.
Nesse plano foi reconhecido à aqui Ré um crédito sobre o Autor, no valor de €48301,56, sendo que a quantia em execução no processo no 6620/10.8TBMTS-A, com vista ao pagamento, de pelo menos, parte do preço da obra era de €39 239,51, acrescida de juros de mora já vencidos à data da propositura da execução, valor que então se computava no total de €40.340,37.
Por força da decisão proferida no referido plano de revitalização, o crédito aí reconhecido que à ora Ré mostra-se reduzido a €16.100,52, tendo ficado, assim, o aqui Autor desonerado, sem qualquer outra contrapartida para a aqui Ré, do pagamento a esta da quantia de €32 201,04, bem como de quaisquer juros de mora.
Tal redução do crédito que a Ré detinha sobre o Autor introduz um desequilíbrio nas prestações estabelecidas entre as partes no contrato de empreitada”.
Há, assim, claro abuso de direito do Autor ao reclamar judicialmente da Ré a quantia peticionada, correspondente ao valor necessário para execução dos trabalhos inacabados e para correcção das deficiências existentes na obra, tendo aquele, por força da decisão proferida no aludido PER, logrado desonerar-se, para além de juros, do pagamento, da quantia de € 32.201,04, referente a parte do preço que devia à Ré pelos trabalhos por esta executados no âmbito do contrato de empreitada entre ambos celebrado, suportando esta o correspondente prejuízo.
Daí que, se outra razão não houvesse, nunca a pretensão do Autor poderia vingar por conduzir a um clamoroso desequilíbrio nas prestações decorrentes da celebração do contrato de empreitada, sendo, nestas circunstâncias, abusivo o direito de acção exercido pelo Autor contra a Ré.
Já quanto aos pressupostos da litigância de má fé, continuam a não se vislumbrarem em sede de recurso, tal como não foram detectados no procedimento desenvolvido em primeira instância.
Não merendo reparo a decisão recorrida, deve a mesma ser mantida, assim improcedendo o recurso.
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Síntese conclusiva:
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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas: pelo apelante.

[Acórdão elaborado pela primeira signatária com recurso a meios informáticos]

Porto, 13.05.2021
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
Paulo Dias da Silva
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[1] A alusão ao ponto 12.º apenas pode constituir erro de escrita, pois nesse segmento apenas é contemplado o compromisso assumido pela Ré, enquanto o ponto 11.º respeita ao do Autor.
[2] A referência a Autora na sentença recorrida constitui flagrante lapso de escrita que aqui se deixa corrigido.
[3] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[4] Artigos 396º do C.C. e 607º, nº5 do Novo Código de Processo Civil.
[5] “Recursos em Processo Civil, Novo Regime”, págs. 146, 147.
[6] Cfr. ainda acórdão da Relação de Coimbra de 11.07.2012, processo nº 781/09.6TMMGR.C1, www.dgsi.pt.
[7] Artigo 640º do novo diploma; cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2013, pág. 123 a 130 e Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, apresentada à Assembleia da República, de cuja aprovação veio a resultar o referido Código, disponível em www.parlamento.pt.
[8] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 126.
[9] Cfr. citado Preâmbulo.
[10] Ministério da Justiça e revista Sub Judice, 1992, IV.
[11] Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, www.dgsi.pt.
[12] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 142, Amâncio Ferreira, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 3ª ed., pág. 466, Lopes do Rego, ob. cit., pág. 150; cfr. ainda, entre outros, acórdãos da Relação de Coimbra de 14.02.2012, processo nº 1110/08.1TBILH.C1, de 20.03.2012, processo nº 21/09.8TBSRE.C1, de 15.05.2012, processo nº 285/09.7TBAVR.C1, todos em www.dgsi.pt.
[13] Cura Mariano, “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro Pelos Defeitos da Obra”, 2ª ed. revista e aumentada, Almedina, pág. 56.
[14] Artigos 1208º e 1218º do Código Civil.
[15] Antunes Varela, parecer publicado na “Colectânea de Jurisprudência”, Ano XII, 1987, Tomo 4, págs. 22 a 35.
[16] Baptista Machado, “Obra Dispersa”, I, pág. 169.
[17] Armando Braga, “Contrato de Compra e Venda”, pág. 174.
[18] “Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra”, 2ª ed. revista e aumentada, pág. 64.
[19] Processo nº 329/09.2TBESP.P1, www.dgsi.pt.
[20] Cura Mariano, ob. cit., pág. 115.
[21] Cfr. Prof. Antunes Varela, RLJ nº. 121, pág. 223.
[22] “Código de Processo Civil anotado”, Coimbra, 1999, Vol. 1º, pág. 3 (anotação ao art.º 2º).
[23] A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, Coimbra, 1985, pág. 5, nota 1.
[24] Neste sentido, cfr. Vaz Serra, Abuso de Direito em matéria de responsabilidade civil, BMJ 85º/271, citado no acórdão da Relação de Lisboa de 16.12.2003, proc. 8263/2003-7, www.dgsi.pt.
[25] Referido acórdão da Relação de Lisboa de 16.12.2003, citando Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. II, 3ª edição, 1981, pág. 259.
[26] Castanheira Neves, “Lições de Introdução ao Estudo do Direito”, edição copiografada, Coimbra, 1968/69, pág. 391, citado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.1.2003, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. I, pág. 64.
[27] Artigos 542.º, n.º 1 e 543.º, ambos do Código de Processo Civil.
[28] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.9.2013, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, T. III, pág. 71.
[29] Castanheira Neves, ob. e vol. cit., pág. 263.
[30] “Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo”, Almedina, pág. 56.
[31] Proc. n.º 73/07.5TBBGC.P1, www.dgsi.pt.
[32] Então em vigor.