Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
38/19.4PAMAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: REVISTAS
BUSCAS
CIDADÃO ESTRANGEIRO
ADVOGADO
INTÉRPRETE
Nº do Documento: RP2019102338/19.4PAMAI-A.P1
Data do Acordão: 10/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Código de Processo Penal permite e realização de revistas de suspeitos e buscas nos locais onde se encontrem, mesmo antes da abertura do inquérito, sem estarem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente, quando seja iminente a fuga e haja fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime ou susceptíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se.
II - Podem ter lugar mesmo antes de ser aberto um inquérito, o que exclui a sua natureza de acto processual.
III - Não tendo a busca a natureza de acto processual, torna inaplicável a exigência de assistência por defensor no decurso da realização de uma busca domiciliária, nessas circunstâncias.
IV - Igualmente não se exige a nomeação de defensor a arguido estrangeiro, que não domine a língua portuguesa, nessa diligência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 38/19.4PAMAI.P1
Data do acórdão: 23 de Outubro de 2019

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos

Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o arguido B…;
I – RELATÓRIO
1. Em 27 de Junho de 2019 foi proferido nos presentes autos um despacho com o teor seguidamente reproduzido:
"Considero válida a detenção do arguido porque em flagrante delito, ao abrigo no disposto nos artº 254º e 257º do CPP..
Nos termos do artº 174º, nºs 1 e 2 e 5, alíneas a), b, e c) e nº 6 julgo válidas as revistas e buscas efectuadas pela autoridade judiciária e documentadas no auto de notícia por detenção de fls. 65 a 68 bem como nos autos de fls. 41 a 45 por terem sido efectuadas com base em indícios da ocultação de bens e objectos relacionados com tráfico de estupefacientes e por terem sido realizadas, no que toca à busca domiciliária, em acto seguido à detenção por flagrante delito por crime a que corresponde pena de prisão.
De igual modo se verifica o requisito aludido na alínea a) do nº 5 do artº 174º com referência ao artº 1º, alínea m) do CPP.
Em face do exposto consideramos improcedente a invocada nulidade daqueles actos.
Com base nos elementos do processo que nos foram apresentados e com base nas apreensões que foram efectuadas destacando também a confissão do arguido temos como fortemente indiciados os factos que lhe são imputados no despacho do MºPº de fls. 71 a 72 dos autos com referência aos elementos de prova indicados a fls. 72.
Esses factos preenchem a prática pelo arguido de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º do DL 15/93 de 23.01..
Concordamos com o MºPº no que toca à verificação do perigo de continuação da actividade criminosa conhecidas como são as motivações económicas que normalmente são inerentes a este tipo de criminalidade e atendendo ainda aos rendimentos conhecidos relativamente ao arguido e ao ano fiscal de 2017, documento agora apresentado pela defesa.
Consideramos assim justificada, neste momento, a requerida Prisão Preventiva do arguido, sem prejuízo de ulterior melhor apreciação caso a investigação assim o permita.
Pelo exposto e decidindo pelos fortes indícios da prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelos artºs 21º, nº 1 do DL 15/93 de 22/Jan., e pelo justificado receio de continuação da actividade criminosa, determino que o arguido B… aguarde os ulteriores termos do processo em Prisão Preventiva, o que se decide nos termos do disposto nos artºs 191º a 194º, 202º, nº 1, alínea c) e 204º, alínea c) do CPP.
(…)”

2. Inconformado com o despacho, o arguido interpôs recurso do mesmo, formulando as seguintes conclusões:
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3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo em separado e com efeito devolutivo.
4. Na sequência da notificação da motivação do recurso, o Ministério Público respondeu, pugnando pela sua improcedência, nos seguintes termos:
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5. Nesta instância, o Ministério Público[1] emitiu parecer, defendendo a improcedência do recurso, louvando-se na resposta já junta na primeira instância.
6. O recorrente respondeu, reiterando a motivação do recurso.

Questões a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
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Das questões a decidir neste recurso:
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas:
a) Nulidade da busca por ser referente a arguido estrangeiro desconhecedor da língua portuguesa, não se encontrando o mesmo assistido nesse ato por intérprete, nem defensor;
b) Excessividade da medida de coação de prisão preventiva:;
II – FUNDAMENTAÇÃO

§ 1 – Da alegada nulidade da busca.
1. O recorrente argui a nulidade insanável da busca que resultou na apreensão de mais de catorze quilos de haxixe e de diversos bens, entre os quais dois moinhos elétricos e uma balança digital.
Para tanto, refere tratar-se de ato processual do qual resultam meios de obtenção de prova e, sendo o arguido estrangeiro e desconhecedor da língua portuguesa, serão obrigatórias as presenças de intérprete e de defensor, nos termos dos artigos 92º, n.º 2 e 64º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal.
Não tendo o arguido sido assistido por defensor e intérprete na busca realizada ao seu domicílio, tal torna nulo o respetivo meio de obtenção de prova e, por conseguinte, as apreensões que resultaram da mesma.
2. O Ministério Público, no exercício do contraditório, sustenta que tal nulidade não ocorreu, tendo em conta as circunstâncias em que a busca teve lugar:
A busca domiciliária em causa foi realizada pelo órgão de polícia criminal em momento imediatamente posterior ao da detenção do arguido, em flagrante delito pela prática de um crime de tráfico, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro, ao qual corresponde pena de prisão e integra a noção de “criminalidade altamente organizada” à luz do disposto na alínea m) do artigo 1º do Código de Processo Penal.
Nestes termos, a realização imediata da busca domiciliária pelos agentes da Polícia de Segurança Pública não exigia prévia autorização ou despacho judicial, nos termos do artigo 174º, n.º 5, alíneas a) e c), e n.º 3 e 6, “ex vi” do artigo 177º, n.º 3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal, nem consentimento do arguido.
Tal diligência não configura um “ato processual” nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 64º do Código de Processo Penal, mas de uma “medida cautelar e de polícia”, realizada sem prévia autorização judiciária e que foi necessária para acautelar, atentas as circunstâncias da detenção, todos os meios de prova e vestígios de crime, assim como apreender todos os objetos e/ou produtos relacionados com a sua prática, não estando a sua validade dependente da presença nem de juiz de instrução, nem de magistrado do Ministério Público, nem de intérprete, nem de defensor do arguido.
Apreciando.
Encontra-se documentado no auto de notícia que o recorrente foi detido na via pública, em flagrante delito, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo disposto no artigo 21º, 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estando na posse de mais de 5,8 quilos de haxixe.
Por estar fortemente indiciado que o arguido teria retirado esse estupefaciente da residência onde vivia e que lá estaria mais quantidade de droga, o órgão de polícia criminal entendeu realizar uma buscar domiciliária, expressamente, ao abrigo do disposto no artigo 177°, nº 3, alínea a) e 174°, n° 5, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, também presenciada pelo arguido e que resultou na apreensão de mais de 14.4 quilos de haxixe, além de outros bens.
Como a busca foi concretizada logo após a detenção do arguido, em flagrante delito, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo disposto no artigo 21º, 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa ao mesmo diploma, ao qual corresponde pena de prisão superior a três anos, a mesma não carecia autorização ou determinação prévia por despacho pela autoridade judiciária competente, por força do disposto no artigo 174º, nº 5, do Código de Processo Penal, por referência ao número 3 do mesmo preceito legal, podendo ser concretizada por iniciativa do próprio órgão de polícia criminal, nos termos do disposto no artigo 177º, nº 3, alíneas a) e b), ainda do mesmo texto legal.
Porém, o arguido não questiona a legalidade da busca, na perspetiva de quem a ordenou ou realizou, mas da nulidade do ato processual que, no seu entender, integra a busca, da qual resultaram meios de obtenção de prova e, sendo o arguido estrangeiro e desconhecedor da língua portuguesa, sem que se mostrasse assistido no ato por defensor, nem por intérprete, entende que foi violada a exigência formal obrigatória enunciada nos artigos 92º, n.º 2 (quanto à exigência de intérprete) e 64º, n.º 1, alínea c), (relativo à obrigatoriedade de assistência por defensor), ambos do Código de Processo Penal.
No entanto, contrariamente à tese do recorrente, as formalidades da busca domiciliária encontram-se tipificadas nos artigos 176º e 177º do Código de Processo Penal, não constando das mesmas a exigência de assistência por defensor, nem de intérprete.
Uma busca domiciliária não configura um ato processual, tanto mais que a lei processual penal é clara ao admitir as diligências de revista e busca efetuadas por órgão de polícia criminal, enquanto medidas cautelares urgentes admitidas no artigo 251.º, n.º 1, alínea a) do Código Processo Penal, que permite a realização de revistas de suspeitos e buscas nos locais onde se encontrem, mesmo antes da abertura do inquérito, sem estarem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente, quando seja iminente a fuga e haja fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime ou suscetíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se. Podendo ter lugar antes mesmo de ser aberto um inquérito, tal exclui a sua natureza de ato processual que, por definição, pressupõe um processo.
Não tendo a busca a natureza de “ato processual”, tal conclusão torna inaplicável a exigência de assistência por defensor no decurso da realização de uma busca domiciliária, por não se verificar o pressuposto enunciado “ab initio” na alínea d) do nº 1 do artigo 64º do Código de Processo Penal.
A lei processual penal apenas prevê a possibilidade de nomeação de defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido (artigo 64º, nº 2, do Código de Processo Penal), sempre que as conveniências do caso revelarem a necessidade ou a conveniência do arguido ser assistido – o que não sucedeu no caso em apreço -.
Por outro lado, não configurando a busca domiciliária um ato processual “qua tale” e não existindo intervenção processual do arguido no decurso da realização da busca domiciliária efetuada por iniciativa de órgão de polícia criminal, sem consentimento do visado, também não existe a exigência de nomeação de intérprete a arguido estrangeiro que não domine a língua portuguesa nessa diligência, por não se verificar o pressuposto enunciado “ab initio” no nº 2 do artigo 92º, ainda do mesmo Código.
Interessa também recordar que esse artigo diz respeito à língua utilizada nos “atos processuais”. A nomeação de intérprete só se justifica quando um ato processual implica comunicação verbal ou escrita com um suspeito ou arguido que não domine a língua nacional e, por isso mesmo, deverá compreender o que lhe está a ser transmitido.
Não havendo lugar a qualquer intervenção processual do arguido recorrente no decurso da efetivação da busca, percebe-se, imediatamente, a razão pela qual a lei processual penal não exige a presença de defensor, nem de intérprete, podendo o arguido exercer o contraditório em relação à efetivação da busca, já assistido por defensor e intérprete, no decurso do primeiro interrogatório judicial – tal como o fez -.
Conclui-se, pois, que a lei processual penal não exige a assistência de defensor e de intérprete a arguido estrangeiro que não domine a língua portuguesa no decurso de busca realizada por iniciativa de órgão de polícia criminal, nos termos previstos no respetivo quadro legal[4].
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Por conseguinte, impõe-se confirmar a decisão recorrida, julgando o recurso não provido.
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§ 3 - Das custas processuais:
Sendo o recurso julgado não provido, o recorrente deverá ser condenado no pagamento das custas [artigos 513º, nº 1, al. a) do C.P.P. e 8º, nº 9, do R.C.P., tendo por referência a Tabela III anexa a este texto legal], fixando-se a taxa de justiça, de acordo com o grau de complexidade médio/reduzido do recurso, em 4 (quatro) unidades de conta.
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam por unanimidade os juízes subscritores, da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar não provido o recurso interposto pelo arguido B….
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 23 de Outubro de 2019.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
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[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto, Dr. Valério Pinto.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] No mesmo sentido, embora com fundamentação jurídica ligeiramente distinta, veja-se, entre outros, a fundamentação do acórdão deste Tribunal e Secção, de 24 de Janeiro de 2018 (relator, Desembargador Horácio Correia Pinto), proferido no processo nº 4147/16.3JAPRT-C.P1, acessível no seguinte endereço da rede digital global: http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/8dbdea9dd48f4fe7802582340049780b?OpenDocument.