Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
216/22.9YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: SEGURO AUTOMÓVEL
DANOS PRÓPRIOS
PRIVAÇÃO DE USO
EQUIDADE
Nº do Documento: RP20220913216/22.9YRPRT
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE/SENTENÇA ALTERADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - No âmbito de um contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, mesmo não estando contratada a cobertura de “Privação de Uso”, a seguradora é responsável pela indemnização dos danos que advierem ao segurado em razão da privação do uso do seu veículo quando esta se prolonga no tempo, por injustificado atraso no procedimento de regularização do sinistro.
II - Essa responsabilidade funda-se na infracção de deveres de diligência e probidade, acessórios da obrigação contratual principal, de indemnização dos danos do sinistro.
III - Não se tratando de uma pura obrigação pecuniária, designadamente quando compete ao segurador ordenar a reparação do veículo, a indemnização não corresponde apenas aos juros de mora, mas à compensação pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais ocorridos, a determinar segundo juízos de equidade, se se verificarem os correspondentes pressupostos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 216/22.9YRPRT

Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros

REL. N.º 704
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: João Diogo Rodrigues
Anabela Andrade Miranda

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I - RELATÓRIO

Recorrente: K..., Companhia de Seguros, S.A.
Recorridos: AA
*****
Na sequência de reclamação de indemnização, subsequente a acidente de viação e no âmbito de um contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, apresentada por
- AA
contra
- K..., Companhia de Seguros, S.A.
decorreu processo de arbitragem junto do Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros (CIMPAS), tendo por objecto a pretensão indemnizatória do reclamante, respeitante (na parte que resta decidir) ao dano de privação de uso do seu veículo, à razão de 30,00€ por dia, o qual ascendia a 5.790,00€ à data da entrada da reclamação, a acrescer com o valor correspondente aos dias que decorram até à efectiva entrega do veículo reparado. Tal pedido foi formulado na sequência de um acidente de viação de que o reclamante foi vítima e por cuja produção foi responsável o condutor do outro veículo ali interveniente, mas cuja regularização a sua própria seguradora providenciou por aplicação da convenção IDS, mas sob a invocação do contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios que entre ambos havia sido celebrado.
A reclamada K... Seguros rejeitou a sua responsabilidade, em suma e no que agora importa, por no âmbito do contrato de seguro celebrado com o reclamante não ter sido prevista a cobertura do dano de privação de uso do veículo seguro.
*
Foi proferida sentença, da qual foi interposto recurso que determinou a respectiva anulação e devolução ao tribunal arbitral recorrido, para ampliação da matéria de facto.
Foi, sucessivamente, proferida nova sentença, condenado a reclamada K… a pagar ao reclamante a quantia de 9.720,00€, a título de privação de uso do seu veículo, sendo que, deste valor, 5.640,00€ correspondem ao período decorrido entre a data do acidente e a da entrada da reclamação no CIMPAS (5/6/2019); e 3.930,00€ correspondem ao período entre essa data e a da efectiva reparação do veículo, suportada pela reclamada (15/10/2019).
Considerou o tribunal arbitral que, apesar de o contrato de seguro de danos próprios que integra a causa de pedir nesta acção não incluir a cobertura de “privação do uso”, a reclamada, vinculada à obrigação de indemnização ao seu próprio segurado, violou deveres de boa fé, diligência, lealdade, consideração e respeito pelos interesses deste, ao demorar mais que o razoável no apuramento e pagamento da indemnização devida.
É desta sentença que vem interposto recurso, pela reclamada K..., discordando da sua condenação, por entender não poder ser responsabilizada por prejuízos resultantes da privação do uso do veículo, porquanto esse risco não se mostra coberto pelo contrato de seguro celebrado entre ambos. Em qualquer caso, alega que nenhuma demonstração foi feita sobre a efectiva existência de prejuízos decorrentes da privação de uso do veículo do reclamante ou, pelo menos, que o prejuízo não deve ser computado no valor definido na decisão recorrida.
Concluiu as suas alegações nos termos seguintes:
“1. Entendeu, o douto Tribunal a quo condenar a ora Recorrente, "(, . .) a pagar ao Reclamante, nos termos dos artigos 562°, 563° e 566º do C. C. a quantia de 9.720,00€, o que equivale à soma das quantias de 5.640,00€ (5.790,00(-)150,00€ (5dias) e 3.930,00€, a título de privação do uso do QQ, conforme ponto 1 AA e 1 BB da sentença.".
2. Sendo que, é contra a condenação no montante indemnizatório arbitrado na douta sentença recorrida que a ora Recorrente agora se insurge, nomeadamente por considerar que a responsabilidade da mesma, no presente litigio, se trata de uma responsabilidade exclusivamente contratual, não podendo, por isso, haver lugar à condenação da mesma no pagamento de uma indemnização por alegados danos a título de privação de uso, porquanto se trata de uma cobertura que não se encontrava contratada.
3. Acresce que, se consideramos que estamos no âmbito de uma responsabilidade civil extracontratual, não pode a ora Recorrente concordar com o montante indemnizatório arbitrado atribuído ao Reclamante a título de privação do uso porquanto se afigura manifestamente desajustado, por excessivo, atenta a factualidade julgada provada (e não provada) nos autos, e bem assim os critérios jurisprudenciais atualmente seguidos pela nossa jurisprudência, encontrando-se, nessa medida, incorretamente interpretadas e/ou aplicadas as normas legais previstas nos artigos 483.º ,562.º ,566.º, nºs 2 e 3 do Código Civil.
4. A Reclamação formulada pelo Reclamante, parece resultar que a mesma se funda no instituto da responsabilidade civil extracontratual.
5. Tanto assim é que, o douto tribunal a quo, veio oficiosamente solicitar os seguintes esclarecimentos junto do Reclamante, através do despacho de fls._, proferido em 27.11.2019: "- O Reclamante, consequência do acidente dos autos, acionou, na participação do acidente ou no seguimento do processo de regularização do acidente, o seguro automóvel celebrado com a Reclamada K..., na modalidade "Danos Próprios"?
- É intenção do Reclamante que a assunção da responsabilidade do acidente seja assumida pela Reclamada K... no âmbito do mesmo contrato e seguro "Danos Próprios" em vigor?".
6. Nesta sequência, o Recorrido sob requerimento junto aos autos a fls._, em 12.12.2019, confirma que "acionou o seguro de "danos próprios" subscrito junto da Reclamada", e bem assim que "É intenção que a assunção da responsabilidade do acidente seja assumida pela Reclamada no âmbito do contrato de seguro "danos próprios" em viqor", (negrito nosso)
7. Não estando em discussão nos presentes autos, um direito emergente da responsabilidade civil extracontratual, o qual, admitindo-se, poderia eventualmente comportar o ressarcimento do dano decorrente da paralisação do veículo, haverá sempre que se atender ao conteúdo do contrato celebrado entre as partes, e bem assim aos correspondentes direitos e deveres emergentes desse contrato.
8. Nos termos do contrato de seguro objeto de discussão nos autos, não foi contratada qualquer cobertura facultativa de "privação do uso" por parte do Reclamante, aqui Recorrido.
9. Sendo certo que, caso tivesse sido contratada a referida cobertura facultativa, a mesma conduziria inevitavelmente a um agravamento do prémio de seguro pago pelo Recorrido, o que, in casu, não sucedeu.
10. Ora, ressalvando naturalmente o devido respeito por melhor opinião, existindo a possibilidade no contrato celebrado entre as partes, a contratação de uma cobertura de "privação de uso", a qual visa precisamente garantir ao tomador, os prejuízos decorrentes da paralisação do veículo seguro, no âmbito das coberturas facultativas de danos próprios, e não tendo o Reclamante, por mero ato de sua vontade, contratado tal cobertura, nunca poderá a agora Recorrente ser condenada a pagar ao Reclamante os alegados prejuízos decorrentes daquela privação.
11. E nesta medida, ressalvando novamente o devido respeito, que é muito, a douta sentença recorrida, ao condenar a Reclamada, aqui Recorrente, no pagamento dos montantes indemnizatórios supra referidos, viola claramente o equilíbrio contratual das partes, na medida em que tal cobertura não foi, voluntariamente, contratada pelo Recorrido.
12. Neste mesmo sentido, concluíram, designadamente, os seguintes Acórdãos:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 06.02.2018, no âmbito do processo n.? 446/15.0T8AMT.P1;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02.11.2017, no âmbito do processo n." 2936/15.5T8BRG.G1.
13. Resultando ainda nos termos do disposto no artigo 130.°, n.º 2 e 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (cf. DL n.? 72/2008, de 16 de abril) que a Recorrente apenas responderia pela privação do uso do veículo do Recorrido, caso se encontrasse contratada essa cobertura, o que, como já se disse, não sucedeu.
14. Pelo exposto, forçoso será concluir que o contrato de seguro em questão não responde pelos danos alegados e peticionados pelo Reclamante, aqui Recorrido, a título de privação de uso do veículo.
15. Face a tudo o que supra se expos, não poderá a Recorrente absolutamente concordar com o teor da decisão proferida pelo Tribunal a quo, porquanto, salvo o devido respeito que lhe é muito, extravasa as condições acordadas entre as partes, condenando a Recorrente numa quantia que simplesmente não se encontra garantida pelo contrato de seguro em apreço.
16. Nestes termos, e pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente aceitar, salvo o devido respeito, o teor da douta sentença proferida, na medida em que a interpreta e aplica de forma incorreta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos artigos 483.°, 562.°, 566.°, n.os 2 e 3, 762.°, n.º 2 do Código Civil e o artigo 130.° do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
17. Devendo, assim, a douta sentença recorrida ser revogada e alterada, absolvendo-se a ora Recorrente do pagamento dos danos reclamados pelo Reclamante a título de privação do uso, pelos motivos supra expostos.
Por sua vez, no que respeita aos valores arbitrados a título de privação do uso, sempre se concluiu o seguinte:
18. Repare-se que, a sentença de que se recorre, no que respeita à matéria de facto dada como provada e que sustenta o valor da indemnização arbitrado a título de privação do uso, concluiu o seguinte:
"I. O QQ, com o acidente deixou de poder circular.
J. Sendo utilizado no quotidiano pelo Reclamante para os seus afazeres, quer profissionais, quer pessoais.
K. Nomeadamente nas deslocações diárias que era obrigado a realizar, entre a ..., onde residia e o Porto onde estudava.
L. Não existindo, sequer, no local da sua residência acesso direto a transportes públicos.
M. Pelo que a sua privação, acarretou-lhe muitos incómodos e prejuízos.".
19. Da matéria de facto dada como provada, no que respeita à alegada privação do uso do veículo do Reclamante, não decorre o meio de transporte utilizado pelo mesmo durante o período em que esteve, alegadamente, privado do uso do seu veículo, nem tão pouco qual o prejuízo efetivo que essa privação veio causar na sua esfera jurídica.
20. Apenas ficando ali vertido que o Reclamante ficou privado do uso do seu veículo e que necessitava do mesmo para a suas deslocações diárias, designadamente, para estudar.
21. Ora, tendo em conta, a matéria de facto dada como provada, não poderá a ora Recorrente deixar de insurgir-se contra a compensação de €9.720,00 arbitrada ao Reclamante a título de privação do uso, a que corresponde uma taxa diária de €30,00, porquanto a mesma, afigura-se manifestamente excessiva, extravasando assim os padrões comuns da nossa jurisprudência.
22. O valor da indemnização deveria fazer face aos alegados transtornos e prejuízos sofridos pelo Reclamante em consequência da privação do uso do seu veículo, e não atribuir-lhe um valor indemnizatório que consubstancia, salvo o devido respeito, um enriquecimento sem causa.
23. Não tendo sido feita qualquer prova por parte do Reclamante que justifique o valor arbitrado, atribuindo a sentença recorrida um valor que nos parece desadequado tendo em conta os valores que têm vindo a ser arbitrados pela jurisprudência nacional.
24. O n.º 3, do artigo 566.° do Código Civil, confere ao tribunal a faculdade de recorrer à equidade quando não for possível, face, mormente à imprecisão dos elementos de cálculo a atender, fixar o valor exacto dos danos.
25. Tanto assim é que, a maioria da jurisprudência nacional tem arbitrado um valor diário de € 10,00, conforme é bom de ver, a título de exemplo, pela leitura dos seguintes Acórdãos:
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12.07.2018, no âmbito do processo n.? 3.664/15.T8VFX.L 1-6;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08.05.2019, no âmbito do processo n.? 43/18.8T8TBU.C1;
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28-05-2020, no âmbito do processo n.? 289/19.1T8MCN.P1;
- Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21-03-2019, proferido no âmbito do processo n.º 1106/17.2T8FAF.G1.
26. Perante tudo o que acaba de se expor, no entender da Recorrente, o montante arbitrado encontra-se fora das margens definidas pela Jurisprudência proferida pelos Tribunais superiores, desrespeitando o padrão referencial que vem sendo seguido pela jurisprudência nacional.
27. Sendo certo que, a manter-se a presente decisão nos exatos termos em que vem proferida, o valor da condenação da Recorrente a título de privação do uso, encontra-se próximo do valor do veículo à data da contratação da apólice (€11.450,00).
28. Assim, considerando a factual idade descrita, e salvo melhor e douta opinião em contrário não estamos perante danos que justifiquem a atribuição de um valor diário indemnizatório de €30,00.
29. Nestes termos, e pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente concordar com o valor arbitrado, salvo o devido respeito, com a douta sentença proferida, na medida em que a interpreta e aplica de forma incorrecta e/ou imprecisa, as normas legais constantes dos artigos 562.º,563.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil, devendo ser substituída por uma que condene a Recorrente num montante indemnizatório diário a título de privação do uso de €10,00.”
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Não foi oferecida resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
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Na sentença sob recurso, deram-se por provados os factos seguintes:
A. No dia 26/10/2018, cerca das 15,00h, no cruzamento da Rua... com a Circular Regional Interna do Porto, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-QQ-.., conduzido pelo aqui Reclamante e o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-5E-.., conduzido por BB.
B. Após o acidente o mesmo foi assumido pelo condutor do SE, pelo que ambos os condutores decidiram preencher e assinar a DAA, junta aos autos.
C. Neste sentido, o Reclamante participou à Reclamada o acidente dos autos, informando a mesma que o QQ se encontrava na garagem da marca.
D. A Reclamada procedeu à realização da peritagem, tendo a mesma sido efetuada na data de 30/10/2018, conforme relatório de peritagem, junto aos autos, datado de 07/11/2018, com o valor da reparação do QQ em 7.998,32€.
E. Em 15/11/2018, o Reclamante decidiu mudar de garagem reparadora, o qual informou, de imediato, a Reclamada, conforme documento, junto aos autos.
F. Em face desta mudança de garagem reparadora, a Reclamada realizou uma nova peritagem em data de 20/11/2018, da qual resultou o valor definitivo da reparação do QQ em 6.980,43€.
G. Por motivo injustificados por parte da Reclamada, o relatório de peritagem foi elaborado em 17/04/2019.
H. O QQ, com o acidente deixou de poder circular.
I. Sendo utilizado no quotidiano pelo Reclamante para os seus afazeres, quer profissionais, quer pessoais.
J. Pelo que a sua privação, acarretou-lhe incómodos e prejuízos.
K. Nomeadamente nas deslocações diárias que era obrigado a realizar, entre a ..., onde residia e o Porto onde estudava.
L. Não existindo, sequer, no local da sua residência acesso directo a transportes públicos.
M. pelo que a sua privação acarretou-lhe muitos incómodos e prejuízos.
N. À data do acidente vigorava entre o Reclamante e Reclamada um seguro automóvel na modalidade de danos próprios.
O. Accionado pelo reclamante durante o prolongado processo de resolução do sinistro, com a crença que se resolvesse o processo de sinistro e o QQ fosse reparado de imediato.
P. Nos termos do contrato estava contratada, no âmbito da privação do uso, apenas, a cobertura ”veículo de substituição”.
Q. Que nos termos dessa cobertura, garantia ao segurado em caso de privação forçada do veículo, a utilização de um veículo de aluguer, de classe equivalente à do veículo seguro por um máximo de 30 dias por sinistro e anuidade (conforme condições especiais juntas aos autos).
R. O Reclamante solicitou, insistentemente, à Reclamada um veículo de substituição para os incómodos e prejuízos da privação do uso de QQ.
S. Privação esta, da exclusiva responsabilidade da Reclamada, resultante da demora mais razoável na resolução do sinistro, nomeadamente na autorização da reparação do QQ.
T. Sendo-lhe fornecido pela Reclamada um veículo de substituição, apenas, durante 5 dias.
U. Por esse facto, e privado do uso do QQ, sem qualquer explicação por parte da Reclamada, o Reclamante solicitava insistentemente à Reclamada a realização da reparação do QQ.
V. Através de telefonemas, e-mails, cartas, nomeadamente através do seu mandatário.
W. Dos quais, apenas, resultou como resposta o silêncio da Reclamada.
X. O Reclamante nunca foi informado pela Reclamada da sua posição quanto à responsabilidade do acidente, embora consciente que não era responsável pelo mesmo.
Y. O QQ, apenas foi reparado em 15 de Outubro de 2019.
Z. Sendo a reparação liquidada pela Reclamada ao abrigo da Convenção IDS, conforme recibo junto aos autos.
AA. Em consequência desse embate, o Reclamante à data de entrada da presente reclamação peticiona a quantia de 12.436,21€, da qual a quantia de 6.642,21€ (IVA incluído), conforme orçamento de reparação, junto aos autos, a quantia de 5.790,00€ a titulo de paralisação do QQ respeitante a 193 dias calculados à taxa diária de 30,00€, que corresponde ao período entre a data do acidente e a data da entrada da reclamação (5 Junho de 2019).
BB. O Reclamante peticiona, ainda a quantia de 3.930,00€, a título de paralisação do QQ, respeitante a 131 dias calculados à taxa diária de 30,00€, que corresponde ao período entre a data de entrada da reclamação até à data da reparação efectiva do QQ (15 de Outubro de 2019).

2- Factos Não Provados:

A demora na reparação do QQ deveu-se à falta de autorização do Reclamante para a desmontagem do QQ.

II – Delimitação do objecto do recurso
O objecto de cada recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artigo 640º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam.
No caso, sobressaem as seguintes questões:
- se é devida indemnização pela privação do uso, à luz da causa de pedir invocada pelo lesado;
- se o reclamante sofreu efectivos prejuízos em razão da privação do uso do seu veículo;
- se a quantificação de tal dano deve ser inferior ao fixado pelo tribunal arbitral.
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No recurso interposto, não foi posta em causa a decisão proferida sobre a matéria de facto. Será, por isso, por referência à factualidade que acima se transcreveu que se apreciará o objecto de cada recurso.

III - Fundamentação de Direito

Como foi referido em anterior acórdão deste tribunal, que anulou a decisão inicialmente proferida, devolvendo o processo ao tribunal arbitral para ampliação da matéria de facto, a primeira questão a resolver refere-se à ressarcibilidade do dano correspondente à privação do uso do veículo do reclamante, sabendo-se que dele esteve privado entre a data do sinistro – 26/10/2018 – e a da conclusão da sua reparação – 15 de Outubro de 2019 – pois que o mesmo, em resultado do acidente, ficou sem poder circular. Nesse período, apenas por 5 dias lhe foi entregue um veículo de substituição.
Por outro lado, é líquido que a causa de pedir é consubstanciada por um contrato de seguro de danos próprios, celebrado entre o apelado e a ora apelante K.... Com efeito, após interpelação do tribunal, veio expressamente referir que é por efeito do cumprimento de um tal contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios que a sua própria seguradora deve ser responsabilizada pela indemnização dos concretos prejuízos em questão. Foi, de resto, com base nesse pressuposto, que foi aferida a legitimidade da reclamada K..., para o presente procedimento arbitral.
Aliás, como se sabe, a intervenção da seguradora do próprio lesado na regularização do sinistro, ao abrigo da convenção IDS, não configura, sob qualquer fundamento, uma substituição do responsável civil, pelo que a demanda da K..., para efeitos indemnizatórios resultantes do sinistro automóvel em causa, à luz da responsabilidade civil daí decorrente, sempre seria uma pretensão que não poderia prosseguir (cfr. neste sentido, entre outros, ac. do TRL 1209/10.4TJLSB.L1-2, 16-11-2016).
É, pois, por referência aos factos provados, de onde sobressai que a causa de pedir compreende esse contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios e não a responsabilidade civil de um terceiro, que importa apreciar a pretensão do reclamante, ora apelado.
Atenta essa factualidade, que não se mostra em causa, e tal como salienta a apelante, constata-se não se mostrar incluída no objecto do contrato de seguro em questão a cobertura designada por Privação de Uso, com o seguinte conteúdo: “Quando seja contratada, a presente Condição Especial garante ao Segurado o pagamento de uma indemnização diária mencionada nas Condições Particulares, em caso de privação forçada do uso do veículo em consequência de danos garantidos por uma das coberturas contratadas, de danos próprios do veículo seguro.”
Não pode deixar de se reconhecer a diferença entre o conteúdo das duas cláusulas citadas: a referente a “Veículo de Substituição” e a correspondente a “Privação de Uso”.
Por via daquela primeira cobertura, referida na al Q. dos factos provados, o segurado, perante a privação do seu veículo em resultado de um sinistro – como aconteceu no caso dos autos, em que o QQ sofreu danos, num acidente de viação, em razão dos quais deixou de poder circular –tem direito a que lhe seja entregue um veículo de categoria semelhante à do seu, por um período máximo de 30 dias. Ao abrigo desta cláusula, o apelado recebeu um veículo durante 5 dias, mas a frustração do respectivo gozo até ao limite daqueles 30 dias não é o fundamento da reclamação sub judice.
No caso da privação do uso, o direito traduz-se no acesso a uma indemnização por cada dia de privação do veículo. Mas, como se disse, uma tal cláusula não pode ser invocada, por não ter sido incluída no contrato, pelas partes.
Cumprirá, assim, discutir sobre se os termos em que decorreu o procedimento indemnizatório ao reclamante, consubstanciado na reparação dos danos do seu veículo ao abrigo desse contrato de seguro de danos próprios, justificam de per si a responsabilização da seguradora nos termos peticionados, isto é, por via da atribuição de um valor de 30,00€ por cada dia que demorou a reparação do veículo do segurado (descontados os 5 dias em que beneficiou de veículo de substituição).
Como acima se deixou claro, não será por via da simples actuação do próprio contrato de seguro, que poderá ser reconhecido, ao apelado, o direito à indemnização pretendida. Com efeito, é inequívoco que ele não contratou com a K... a cobertura do risco de privação do uso de veículo.
Todavia, no cumprimento de um contrato, as obrigações de cada uma das partes não se esgotam na realização das prestações expressamente previstas. Tal decorre do principio geral da boa fé, imposto a cada uma das partes, na execução das prestações contratualmente previstas, previsto no nº 2 do art. 762º do C.Civil, sem prejuízo daquelas que, previstas em legislação aplicável, especialmente se imponham a cada um dos contraentes.
Como esclarecidamente se refere no Ac. do TRC de 25/1/22 (proc. nº 168/18.0T8FVN.C2) a prestação devida por cada um dos contraentes compreende, além dos deveres primários e secundários de prestação, “… deveres acessórios de conduta; que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação (…) deveres estes cuja violação não dá lugar a uma acção de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.
E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar (…) todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.”
Entre muita jurisprudência sobre a questão, cita-se o Ac. do STJ de 27/11/2018 (proc. nº , em dgsi.pt) onde se refere, identificando tal leque de deveres acessórios: “Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato. (…). (…) deveres de boa-fé e de actuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado. (…)
A actuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”
Neste sentido, entre muitos outros, cfr, também os seguintes acórdãos, todos disponíveis em dgsi.pt: Ac. STJ de 14/12/2016 (proc. nº 2604/ 13.2TBBCL.G1.S1), Ac. do STJ de 23/11/2017 (proc. nº 2884/11.8TBBCL.G1), Ac. do TRG de 9/3/2017 (proc. nº 4076/15.8T8BRG.G1), Ac. do TRP de 23/11/2020 (proc. nº 3571/19.4T8VNG.P1), Ac. do TRC de 7/11/2017 (proc. nº 131/16.5T8SAT.C1).
Como resulta de tudo o que vem de dizer-se, por via do contrato em causa, não resultava para a K... apenas a obrigação de indemnizar o ora apelado pelos danos que lhe advieram do acidente de viação em que interveio. Incumbia-lhe cumprir essa obrigação de boa fé, com probidade e diligência, para que, fazendo-o, realizasse o interesse do credor pela forma e pelo processo mais apto a essa satisfação e prevenindo que desse procedimento resultassem ainda outros danos para ele.
Neste contexto, quer no procedimento do apuramento dos factos fundamentadores da sua responsabilidade, das suas consequências e do conteúdo a que haveria de corresponder a sua prestação, quer na própria execução desta, estava a K... vinculada por tais deveres acessórios, cujo incumprimento não só é apto a prejudicar a consecução do objectivo que motivara o credor a contratar, como ainda lhe pode determinar outros prejuízos que ele não sofreria se a prestação fosse cumprida de boa fé e diligentemente.
Acresce que tais deveres, que não deixam de ter essa fonte contratual, não foram indiferentes ao legislador, como se vê do disposto no art. 36º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto ( Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) ao exigir (como consta da epígrafe da norma) diligência e prontidão da empresa de seguros. Aí se prevêem prazos para as diferentes etapas do procedimento indemnizatório, aplicáveis às hipóteses de seguros de danos próprios por remissão do art. 92º do mesmo diploma. Assim, dispõe essa norma:
“1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:
a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;
b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;
c) Em caso de necessidade de desmontagem, o tomador do seguro e o segurado ou o terceiro lesado devem ser notificados da data da conclusão das peritagens, as quais devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a);
d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão;
e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
(…)”.
No caso em apreço, vem provado que o acidente ocorreu em 26/10/2018, tendo a K... realizado a peritagem a 30/10/2018, com relatório a 7/11/2018.
Porém, por iniciativa do reclamante, ora apelado, em 15/11/2018, foi alterada a garagem reparadora, o que deu azo a nova peritagem, que foi feita em 20/11/2018.
Acontece que o relatório desta peritagem só foi elaborado em 17/4/2019 e o veículo só foi reparado em 15/10/2019, por ordem da própria K.... E, entretanto, nada foi explicado ou justificado perante o reclamante, apesar da sua insistência para que a situação se resolvesse (cfr. als. U a X dos factos provados).
Atentos os prazos fixados naquele art. 36º, não pode imputar-se à K... o atraso de cerca de um mês na concretização da peritagem, (entre o momento do sinistro e a peritagem realizada em 20/11/2018), pois que isso se deveu ao próprio segurado, que mudou a sua vontade quanto à garagem que haveria de ser encarregada da reparação, assim dando azo à necessidade de uma nova peritagem. Porém, realizada esta, no máximo até ao dia 26/11/2018 (data de 20 de Novembro acrescida de 4 dias úteis) deveria ter sido entregue o relatório de peritagem. E não só o não foi, como a K..., sem qualquer razão que o justificasse, nem assumiu a responsabilidade pela reparação do veículo, ordenando a sua realização, nem explicou as razões de qualquer rejeição da sua responsabilidade, em ordem a que o ora apelado pudesse equacionar a hipótese de empreender aquela reparação, a seu cargo.
Atento o que anteriormente se expôs e tal como, em situação semelhantes, a jurisprudência vem decidindo, este procedimento é inequivocamente ofensivo das obrigações de diligência e probidade que, acompanhando a obrigação principal do contrato de seguro, i. é, o pagamento da reparação do veículo, impunham à K... uma conduta radicalmente adversa: a comunicação dos resultados da peritagem até 26/11/2018 e a pronta ordem de reparação do veículo, por sua conta, já que nenhuma razão havia que justificasse o protelamento do cumprimento da sua prestação.
Era nestes termos que era razoável e legitimamente esperada, pelo segurado, a prestação da K..., mas não foi assim que foi realizada, como vimos. Por conseguinte, nos termos do art. 804º do C. Civil, a K... deve responder pelos prejuízos causados ao devedor.
Considerando quer que a K... proporcionou ao reclamante um veículo durante cinco dias (dias que se imputam àqueles primeiros subsequentes ao sinistro e que decorreram até à primeira peritagem), bem como que a necessidade de realização de uma segunda peritagem decorreu da própria vontade do segurado, por ter decidido mudar de oficina reparadora, o que se traduziu num acréscimo de cerca de 15 dias, no procedimento, e, bem assim, os prazos constantes do art. 36º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, temos por adequado, segundo um juízo de equidade, já que é impossível a determinação certa da data em tal contexto, computar o início da mora da K... no dia 17/12/2018 (primeiro dia útil da segunda metade do mês). Pelo menos nesta data, deveria a K... ter terminado o processo relativo à indemnização desse sinistro.
Uma vez que a prestação devida não era uma simples prestação pecuniária, importando, previamente, a assunção de responsabilidade pelo pagamento dos custos de reparação do veículo apurados na peritagem, bem como a concretização dessa reparação na sequência de ordem à oficina reparadora, a indemnização dos danos não pode corresponder a juros moratórios, nos termos do art. 805º do C.Civil.
A indemnização deverá corresponder, pois, à compensação dos danos consubstanciados pela privação do veículo, suportada pelo reclamante.
Entre 17/12/2018 e 15/10/2019 decorreram 304 dias (o tribunal recorrido considerara 324 dias).
Entendeu o tribunal arbitral dever o reclamante ser indemnizado no valor de 30,00€ por cada dia de privação do seu veículo, defendendo a apelante ser exagerado esse valor, que não deveria ultrapassar os 10,00€ por dia.
A esse propósito, apurou-se que o reclamante, vivendo na ... e estudando no Porto, usava o seu veículo para se deslocar entre esses pontos, diariamente, bem como para outros afazeres pessoais. E isso, desde logo, por não ter acesso directo a transportes públicos, na área da sua residência. Sofreu, assim, incómodos e prejuízos.
O processo não proporcionou dados que permitam a quantificação, pelo menos parcial, desses prejuízos, que haveriam de corresponder ao acréscimo de custos em que o segurado incorreu por não ter a disponibilidade do seu veículo. Porém, para além disso, os próprios incómodos constituem danos de ordem não patrimonial, indemnizáveis nos termos do art. 496º, nº 1, do C. Civil, já que, desde logo pelo período prolongado de tempo pelo qual se verificaram, assumem gravidade que justifica tal tutela. A indemnização de uns e outros deverá, pois, ser fixada com recurso a juízos de equidade, nos termos do nº 3 do art. 566º e do nº 4 do art. 496º do C. Civil, respectivamente.
Com os pressupostos de facto e de direito referidos, considerando o custo da disponibilização de um veículo ao segurado, que sempre seria superior a 30,00€ diários, os incómodos inerentes à perda da disponibilidade de um veículo, com os transtornos que isso naturalmente acarreta a quem está acostumado a tê-la e a organizar o seu dia-a-dia nessas condições, bem como o período de tempo por que perdurou essa privação, concluímos ser insusceptível de crítica a decisão arbitral recorrida, quanto a essa quantificação.
Nestes termos, deverá a apelante satisfazer ao apelado a quantia de 9.120,00€ (30,00€ x 304 dias), num total ligeiramente inferior ao fixado na decisão recorrida.
Procederá, pois, nessa medida a apelação, alterando-se em conformidade a decisão em crise.
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Sumário:
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IV) Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta secção do Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente procedente a apelação, alterando a decisão recorrida na parte em que contabilizou o valor da indemnização a pagar pela apelante K..., Companhia de Seguros, S.A. ao apelado AA, que se reduz para 9.120,00€ (nove mil cento e vinte euros).
No mais, na confirmação da decisão apelada, julga-se improcedente a apelação.

Custas pela apelante e pelo apelado, na proporção do decaimento.
Registe e notifique.

Porto, 13/9/2022
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda