Acórdão do Tribunal da Relação do Porto | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JTRP000 | ||
Relator: | NETO DE MOURA | ||
Descritores: | TELEMÓVEL CONDUÇÃO AUTOMÓVEL | ||
Nº do Documento: | RP201411262279/14.1TBMTS.P1 | ||
Data do Acordão: | 11/26/2014 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REC PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO | ||
Área Temática: | . | ||
Sumário: | O manuseamento, pelo condutor de veículo em marcha, de auscultadores sonoros e de aparelhos radiotelefónicos, seja ou não continuado, representa um perigo acrescido para a condução de veículos, proibido nos termos do art. 84.º do Cód. da Estrada. | ||
Reclamações: | |||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 2279/14.1 TBNTS.P1 Tribunal Judicial de Matosinhos (1.º Juízo de Competência Criminal) Recurso em processo de contra-ordenação Relator: Neto de Moura Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto I – Relatório Por decisão de 04.12.2012, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) aplicou a B…, devidamente identificado nos autos, a sanção de inibição de conduzir (veículos a motor) pelo período de 120 dias pela prática de uma contra-ordenação prevista e punível pelas normas conjugadas dos artigos 84.º, n.os 1 e 4, 138.º, 145.º, n.º 1, al. n), e 147.º, n.º 2, todos do Código da Estrada. Irresignado, o arguido impugnou judicialmente tal decisão e, remetido o processo ao Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Matosinhos, que o tornou presente ao juiz para apreciação da impugnação, admitida esta (despacho a fls. 34), realizou-se a audiência, finda a qual foi proferida sentença (fls. 49 e segs.) que negou provimento ao recurso e manteve a decisão impugnada. Ainda inconformado, almejando a sua absolvição, veio o arguido interpor recurso dessa decisão para este Tribunal da Relação, condensando a respectiva motivação nas seguintes conclusões (em transcrição): “1.ª) A conduta proibida prevista no Art°. 84°, n°.1, do Código da Estrada, tem de preencher cumulativamente determinados pressupostos, a saber: a) O condutor tem estar a conduzir o veículo (este tem de estar em marcha); b) Tem de estar a utilizar ou manusear ao mesmo tempo e de forma continuada qualquer tipo de equipamento ou aparelho, designadamente um auscultador sonoro ou um aparelho radiotelefónico; c) Essa utilização ou manuseamento tem de ser susceptível de prejudicar a condução; 2.ª) No caso concreto, relativamente à conduta do ora aqui Recorrente, resultou provado nos autos que “No dia 18.07.2012, pelas 19.45 horas, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-..-VN no local …, Matosinhos, falando uso de telemóvel, utilizando para o efeito uma das mãos. ”. 3.ª) A matéria de facto dada como provada nos autos quanto à conduta em causa do ora aqui Recorrente não permite concluir, de forma clara e inequívoca, que o mesmo tivesse falado ao telemóvel, utilizando uma das suas mãos, de forma continuada, nem tão pouco que essa conduta do mesmo tivesse sido susceptível de prejudicar a condução do veículo ..-..-VN, pelo que não se verificam dois dos três pressupostos legais para que a conduta do ora Recorrente pudesse ser considerada proibida à luz do disposto no Art . 84°, n°.1, do Código da Estrada. 4.ª) Pelo exposto, é manifesto que a sentença ora recorrida, ao julgar o recurso improcedente e ao manter a condenação do ora Recorrente pela prática daquela contra-ordenação, viola o disposto naquela disposição legal, violação que constitui fundamento bastante para o presente recurso de apelação —Art°. 412°, n°.2, al. a), do C.P.P., aplicável por força do disposto no Art°. 74°, n°.4, do D.L. n°. 433/82, de 27/10, e importa a sua alteração no sentido de julgar procedente o recurso de contra-ordenação interposto e da absolvição do ora Recorrente — Art°. 75°, n°.2, al. ), do D.L. n°. 433/82, dc 27/10. * Admitido o recurso (despacho a fls. 79) e notificado o Ministério Público, veio este apresentar a resposta de fls. 82 e segs., concluindo que não merece provimento e por isso deve ser confirmada, “em todas as suas vertentes”, a sentença recorrida.* Nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do art.º 416.º do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, manifestando a sua concordância com o argumentário da resposta do Ministério Público na 1.ª instância, concluiu que o recurso deve ser rejeitado, por manifestamente improcedente.* Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.* Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir. II – Fundamentação Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso (cfr. artigos 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1], sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso. As conclusões formuladas pelo recorrente definem, claramente, o objecto do recurso e a questão que coloca à apreciação do tribunal ad quem é muito simples: consiste em saber se a sua provada conduta no exercício da condução automóvel integra a prática da contra-ordenação prevista no artigo 84.º, n.º 1, do Código da Estrada (CE), o que passa por determinar o sentido e o alcance do seguinte segmento daquela norma: “utilização ou o manuseamento de forma continuada de qualquer tipo de equipamento ou aparelho suscetível de prejudicar a condução”. * A norma em questão, na parte que para o caso releva, estabelece o seguinte:Artigo 84.º Proibição de utilização de certos aparelhos 1 - É proibida ao condutor, durante a marcha do veículo, a utilização ou o manuseamento de forma continuada de qualquer tipo de equipamento ou aparelho susceptível de prejudicar a condução, designadamente auscultadores sonoros e aparelhos radiotelefónicos. 2 – Excetuam-se do número anterior: a) Os aparelhos dotados de um único auricular ou microfone com sistema de alta voz, cuja utilização não implique manuseamento continuado; b) Os aparelhos utilizados durante o ensino da condução e respetivo exame, nos termos fixados em regulamento. 3 - ……………………………………………………. 4 - ……………………………………………………. 5 - ……………………………………………………. O recorrente sustenta que os factos provados não permitem concluir que cometeu a infracção por que foi condenado, porquanto não estariam verificados dois dos seus pressupostos, a saber: - que, durante a marcha do veículo que conduzia, falou ao telemóvel, utilizando uma das suas mãos, de forma continuada; - que essa conduta tivesse sido susceptível de prejudicar a condução do veículo. A factualidade que consubstanciaria a infracção rodoviária em causa vem assim descrita na decisão recorrida: “N0 dia 18.07.2012, pelas 19.45 horas, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-..-VN no local …, Matosinhos, falando uso de telemóvel, utilizando para o efeito uma das mãos. ”. Como é de primeira evidência, a expressão “falando uso de telemóvel” não faz sentido e o que se pretendeu dizer foi uma de duas coisas: que o arguido conduzia o referido veículo automóvel “falando ao telemóvel” (e utilizando, para o efeito, uma das mãos) ou que, nas mesmas circunstâncias, conduzia o veículo “fazendo uso de telemóvel”. Na decisão da autoridade administrativa, os mesmos factos são assim descritos: “O condutor durante a marcha do veículo, utilizava aparelho radiotelefónico fazendo uso continuado de uma das mãos, susceptível de prejudicar a condução”. No auto de notícia da contra-ordenação, o agente de autoridade que o elaborou (depois de mencionar a hora e local da infracção e de identificar o veículo e o seu condutor), consignou o seguinte: “O referido condutor fazia uso do telemóvel durante o exercício da condução usando para o efeito uma das mãos”. Diferentes formulações do mesmo facto e cremos não se oferecer dúvidas de que a Sra. Juiz do tribunal a quo não exprimiu correctamente o seu pensamento. Utilizar o telemóvel é fazer uso dele para os fins a que se destina, sendo certo que uso mais comum é a conversação entre duas pessoas. Como se fez notar no acórdão da Relação de Coimbra, de 20.01.2010 (Des. Alberto Mira), disponível em ww.dgsi.pt, “fazer uso do telemóvel durante o exercício da condução” e (o condutor) “utilizar o telemóvel durante a marcha do veículo” são expressões equivalentes que exprimem, claramente, a mesma realidade factual. É sabido que os agentes policiais, frequentemente, em vez de descreverem no auto de notícia o que, concretamente, presenciaram, reproduzem os termos da lei, transpondo para esse documento, quase na íntegra, o texto da norma que prevê e pune a infracção. Não foi propriamente o que aconteceu neste caso, mas a Sra. Juiz entendeu que a descrição factual, quer no auto de notícia, quer na decisão da autoridade administrativa, carecia de melhor concretização e explicitou o uso que o arguido fazia do telemóvel. Por isso, afigura-se-nos que o facto que o tribunal considerou provado foi que, nas aludidas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conduzia o veículo de matrícula ..-..-VN e falava ao telemóvel, utilizando, para o efeito, uma das mãos. Aliás, o recorrente admite isso mesmo e o que contesta é que tenha feito essa utilização (falar ao telemóvel) de forma continuada. Textualmente: “Com efeito, ainda que resulte demonstrado que o Recorrente conduzia o veículo ..-..-VN falando ao telemóvel, para o que utilizava uma das mãos, a verdade é que não resultou demonstrado que o fizesse de forma continuada…”. No entanto, salvo o devido respeito por opinião adversa, a expressão “de forma continuada” qualifica, apenas, o manuseamento (de qualquer tipo de equipamento ou aparelho) e não, também, a utilização. Esta tem ínsita a ideia de uso prolongado no tempo, ou melhor, de algo que não é instantâneo, momentâneo. Naturalmente, esse uso pode ser mais ou menos prolongado, pode durar largos minutos ou, apenas, escassos segundos. O jurista que interpreta uma disposição normativa há-de ter sempre em vista o escopo da lei, ou seja, o resultado prático que com ela se almeja. É a isso que se chama a “teleologia da norma” ou “ratio legis”, o fundamento racional objectivo da norma, factor hermenêutico geralmente considerado decisivo na determinação do sentido da norma. Se a lei é um ordenamento de relações que visa satisfazer certas necessidades, deve interpretar-se no sentido que melhor responda à consecução do resultado que quer e, portanto, em toda a plenitude que assegure tal tutela. Para se determinar essa finalidade prática da norma, é preciso atender às relações da vida (às exigências económico-sociais que delas brotam), para cuja regulamentação a norma foi criada. Estudos demonstram que demorar, apenas, mais meio segundo a reagir na condução, face a condições normais e por se estar a falar ao telemóvel, pode significar, a uma velocidade de 112 Kms/hora, avançar mais 14 metros. Em muitos casos, o suficiente, por exemplo, para embater no veículo que está na cauda da fila de trânsito. Como se pode ler num texto disponível no site da ANSR, “telefonar é uma actividade cognitiva que requer a atenção do condutor, que fica, em situação de condução, confrontado com uma dupla tarefa e quanto mais complexa for a situação de trânsito mais a comunicação telefónica interfere no bom desempenho do condutor”. As consequências dessa duplicação de actividade são múltiplas e podemos, facilmente, constatar algumas delas quando circulamos na via pública: - diminuição da capacidade de vigilância do condutor e dispersão da atenção; - aumento exponencial da probabilidade de acidente; - aumento considerável do tempo de reacção do condutor perante uma dada situação de trânsito; - não manutenção da distância de segurança em relação ao veículo da frente; - não sinalização da manobra de mudança de direcção; - tendência para não parar nas passadeiras para peões; - dificuldade em manter o veículo na mesma via de trânsito quando a faixa de rodagem tem mais que uma. Antes da actual redacção, que lhe foi dada pela Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro, o n.º 1 do artigo 84.º do Código da Estrada rezava assim: “1 - É proibido ao condutor utilizar, durante a marcha do veículo, qualquer tipo de equipamento ou aparelho susceptível de prejudicar a condução, nomeadamente auscultadores sonoros e aparelhos radiotelefónicos”. O “manuseamento de forma continuada” foi acrescentado com as alterações ao Código da Estrada introduzidas pelo referido diploma legal. Tais alterações, além de superar o juízo de inconstitucionalidade dirigido pelo Tribunal Constitucional a algumas das normas (artigos 138.º, n.º 2, 153.º, n.º 6, e 175.º, n.º 4, do CE) e de clarificar o estatuto do peão e da utilização das bicicletas na via pública, tiveram como objectivo introduzir aperfeiçoamentos e ajustamentos em matéria de regulação de trânsito visando o reforço da segurança na circulação rodoviária e, por conseguinte, a diminuição da sinistralidade. Pretender que a utilização do telemóvel pelo condutor de um veículo em marcha só consubstanciará a prática da contra-ordenação ali prevista se for prolongada no tempo é introduzir um factor de incerteza e de, praticamente, insuperável dificuldade de a provar, o que faria com que a grande maioria dessas infracções ficasse sem punição. Uma tal interpretação está em manifesta dessintonia com a ratio legis da norma e teria, precisamente, o efeito contrário ao pretendido. Note-se que, na generalidade dos casos, o que o agente de autoridade presencia é o veículo em marcha que passa por si e, como aqui aconteceu, o seu condutor a falar ao telemóvel, utilizando uma das mãos para o segurar. Por regra, não está em condições de afirmar se essa utilização foi por 10 segundos ou por 10 minutos, se foi curta ou prolongada no tempo. Foi pela incerteza e pela controvérsia que a norma podia gerar que a Ordem dos Advogados propugnou a proibição pura e simples do manuseamento de auscultadores sonoros e de aparelhos radiotelefónicos. Com efeito, no parecer que emitiu sobre a Proposta de Lei n.º 131/XII (2.ª), que esteve na origem da Lei n.º 72/2013, de 3 de Setembro, aquela instituição manifestou reservas e discordância em relação à formulação proposta para o artigo 84.º, n.º 1, do CE por considerar que “o manuseamento de auscultadores sonoros e de aparelhos radiotelefónicos, seja ou não continuado, representa sempre um perigo acrescido para a condução de veículos, pelo que deve ser proibido, pura e simplesmente”. E, prosseguindo na sua apreciação crítica, discreteou assim: “Por exemplo, um manuseamento durante 30 segundos é continuado? Ou só o será se o manuseamento tiver excedido um mínimo de duração? Por outro lado, no momento em que for detectado a manusear auscultadores sonoros ou aparelho radiotelefónico, o condutor também poderá alegar que tal manuseamento não era continuado, dando-se assim origem a controvérsia sobre se o manuseamento era ou não continuado”. Temos para nós que o escopo visado pela norma é proibir todos os comportamentos que ponham em causa a segurança na circulação rodoviária e isso tanto pode acontecer quando se fala ao telemóvel por breves instantes como quando se envia uma mensagem que exige o manuseamento do aparelho durante uns minutos. Assim, contrariamente ao que defende o recorrente, é nosso entendimento que quem, conduzindo um veículo automóvel em marcha, atende uma chamada, mesmo que só para dizer que não pode falar porque vai a conduzir, ou que faz uma chamada só para dizer ao destinatário que vai chegar atrasado ao encontro, está a utilizar (a fazer uso) do telemóvel e, portanto, a violar a proibição legal e a cometer a contra-ordenação prevista no artigo 84.º, n.º 1, do CE. O recorrente alega, ainda, que, para que pudesse ser-lhe imputada a prática daquela contra-ordenação, necessário seria que se demonstrasse que a sua conduta de falar ao telemóvel quando estava no exercício da condução da sua viatura era susceptível de prejudicar a condução (do veículo). Porém, s.d.r., é manifesto que não lhe assiste razão. A lei fala em “qualquer tipo de equipamento ou aparelho susceptível de prejudicar a condução” e exemplifica (“designadamente”) com os auscultadores sonoros e aparelhos radiotelefónicos. Ou seja, o que o legislador consagrou em lei foi que utilizar um telemóvel ou auscultadores sonoros prejudica a condução e por isso proíbe tal conduta. Só assim não será se e quando ocorrer a excepção prevista na alínea a) do n.º 2 do citado artigo 84.º do CE. Improcedem, assim, as conclusões do recurso. III – Dispositivo Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida. O recorrente pagará taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais). (Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas). Porto, 26-11-2014 Neto de Moura Maria Luísa Arantes ___________ [1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995. |