Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
302/15.1PFVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: INSTRUÇÃO
SOCIEDADE PORTUGUESA DE AUTORES
TAXA DE JUSTIÇA
Nº do Documento: RP20170614302/15.1PFVNG.P1
Data do Acordão: 06/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º34/2017, FLS.192-196)
Área Temática: .
Sumário: A B... está isenta do pagamento de taxa de justiça pela abertura da Instrução, ao abrigo do disposto na alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP, enquanto pessoa colectiva de direito privado, sem fins lucrativos, se estiver a actuar exclusivamente no âmbito da suas especiais atribuições ou a defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhe seja aplicável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 302/15.1PFVNG.P1
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório
Nos autos de processo comum que, sob o n.º 302/15.1PFVNG, correm termos pela 1.ª Secção de Instrução Criminal (J5) da Instância Central da Comarca do Porto, em que são arguidos a sociedade “E…, Unipessoal, L.da” e F…, ambos devidamente identificados nos autos, e nos quais intervém como assistente a “B…, CRL”, por esta foi requerida a abertura de instrução em reacção ao despacho do Ministério Público que se absteve de acusar.
Porém, por despacho de 24.05.2016 (fls. 78-80 dos autos), o requerimento de abertura de instrução foi indeferido.
Contra essa decisão reagiu a assistente, dela interpondo recurso (requerimento de interposição e respectiva motivação a fls. 92 e segs.) para esta Relação, com os fundamentos que explanou na respectiva motivação e que condensou nas seguintes “conclusões”:
“a) O presente recurso tem fundamento no indeferimento do pedido de abertura de instrução alicerçado no facto de a ora Recorrente não ter procedido ao pagamento da taxa de justiça.
b) A Recorrente é uma Cooperativa de direito privado, sem fins lucrativos criada para a gestão colectiva dos direitos de propriedade intelectual e a defesa e a promoção dos bens culturais, reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública por despacho ministerial de 28 de Junho de 1984, que exerce a sua actividade de harmonia com o Código Cooperativo, o Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e respectiva legislação complementar (cfr. n.º 1 do art.º 4º dos Estatutos publicados na III Série do D.R. n.º 219, de 21.09.82, n.º 288, de 14.12.84, n.º 73, de 29.03.86, n.º 228, de 03.10.91, n.º 282, de 07.12.91, n.º 263, de 13.11.92, n.º 115, de 18.05.94, n.º 286, de 13.12.94 e n.º 1, de 02.01.98 e certidão permanente com o código de acesso 7331-5012-7674, disponível em www.portaldaempresa.pt).
c) A Recorrente apenas procedeu ao pagamento da taxa de justiça relativa à sua constituição como Assistente.
d) A Recorrente foi posteriormente notificada, para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela abertura de instrução, pagamento que não efectuou, motivo pelo qual foi posteriormente notificada, a 30 de Maio de 2016, do despacho de indeferimento do pedido de abertura de instrução.
e) O artigo 4.º do RCP contempla as isenções objectivas e subjectivas.
f) A aplicação de uma destas isenções implica o afastamento completo do dever de pagar custas.
g) Resulta dos seus Estatutos que a ora Recorrente deve “agir, em representação dos seus cooperadores e beneficiários, assim como dos autores e outros detentores de direitos estrangeiros que represente, perante as autoridades judiciais, policiais e administrativas competentes, no exercício e na defesa dos direitos de propriedade intelectual de que eles sejam titulares, tanto de carácter patrimonial como moral, nos casos de usurpação, contrafacção ou todos aqueles em que esses direitos hajam sido violados ou se mostrem ameaçados, requerendo a adopção de todas as medidas conducentes à sua eficiente protecção e ao sei integral respeito, designadamente através da propositura e acompanhamento de acções judiciais, providências cautelares, processos de natureza criminal, recursos administrativos ou quaisquer outros adequados, para o que goza de capacidade judiciária activa e legitimidade processual”.
h) Do Regulamento das Custas Processuais (D.L. n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro), resulta, do art.º 4., n.º1, al. f), que a Recorrente está isenta de custas, já que, de acordo com essa disposição legal estão isentas de custas “As pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
i) O Tribunal da Relação do Porto, no Proc. 558/11.9TNCBR-A.C1, decidiu que "As especiais atribuições das pessoas colectivas são os fins ou as finalidades para a realização das quais foi formada a pessoa colectiva e que lhe conferem identidade e que as distinguem de outras pessoas no mundo das pessoas colectivas.
Tendo a recorrente sido formada com a finalidade de “facultar serviços ou prestações de segurança social no âmbito da população idosa na região centro do país e prioritariamente à residente no concelho de Coimbra, é esta que deve considerar-se a sua “especial atribuição” para efeitos do artigo 4º, n.º 1, alínea f), do Regulamento das Custas Processuais”.
j) Estando demonstrada a isenção subjectiva da Recorrente, nos termos do art.º 4, n.º 1 do RCP, deverá o despacho de indeferimento do requerimento de abertura de instrução ser substituído por outro que o admita, devendo ser posteriormente designada data para a realização do respectivo debate instrutório”.
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O recurso foi admitido por despacho de 30.06.2016, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo (despacho a fls. 98) e, notificado o Ministério Público, veio apresentar a resposta de fls. 101 e segs., assim sintetizada:
“1. Dispõe o art. 50º, nº1, do CPP, a propósito da legitimidade em procedimento dependente de acusação particular, que "Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular".
2. Por isso, nos crimes de natureza procedimental pública ou semipública, não é condição do procedimento a constituição do ofendido ou de outras pessoas como assistente.
3·Em processo penal, a constituição como assistente, obrigatória ou facultativa, e a abertura de instrução, consoante a natureza procedimental do crime depende, entre outras condições ou requisitos, do pagamento de taxa de justiça que, nos termos do art. 8º nºs 1 e 2, do Regulamento das Custas Processuais "é auto liquidada no montante de 1 UC, podendo -ser corrigida, a final, pelo juiz, para um valor entre 1 UC e 10 UC, tendo em consideração o desfecho do processo e a concreta actividade processual do assistente".
4. Sendo que o não pagamento da taxa de justiça devida pela constituição como assistente e da abertura de instrução, determina que o requerimento para essa finalidade processual seja considerado sem efeito - n.º 5 do art. 8º do RCP.
5. O crime em causa nos autos, não tem natureza procedimental particular, pelo que a constituição da B…, como assistente, não é obrigatória, dado que, como resulta da Conclusão 1, a ser deduzida acusação, tal compete ao Ministério Público- artigos 48ºe 49º, nº1, ambos do CPP - no caso, por se tratar de crime público.
6. Como entende C…, do ponto de vista cronológico as pessoas que normalmente integram o estatuto processual de assistente pertencem à categoria das vítimas, sendo ofendidos, grosso modo, no domínio processual penal. O estatuto de assistente é essencialmente o de mero colaborador, de auxiliar subordinado do Ministério Público enquanto titular do direito de procedimento penal.
7. O art. 4º, nº1, f), do RCP concede a isenção de pagamento de custas processuais, que abarcam a taxa de justiça, as entidades colectivas privadas sem fins lucrativos quando atuem exclusivamente no âmbito das suas atribuições para defesa dos direitos fundamentais do cidadão ou de interesses difusos que lhes estão especialmente conferidos pelos estatutos.
8. É duvidoso que a B…, ao requerer a sua constituição como assistente e pedido de abertura de instrução em crime de natureza procedimental pública, esteja a atuar exclusivamente no campo das suas atribuições de defesa de algum direito fundamental do cidadão, mormente algum dos direitos os consagrados nos artºs. 12º a 79º, da CRP.
9. Aplicando, mutatis mutandis a jurisprudência dos Acs. da RP de 26.09.2012 (proc. nºs 1764/10.9TAVNG); de 03.10.2012 (proc. nºs..s 686/10.6TAVNG); de 20.06.2012 (proc. nºs. 1038/10.5TASTS) e de 28.09.2011 (proc. nº.s 1008/09.6TAPRD), e da RE de 28.12.2012 (proc, nº.s 3892/11.9TBPTM), que decidiram que a entidade pública Instituto da Segurança Social e as Instituições de Solidariedade Social, respectivamente, não estão isentas do pagamento de custas judiciais (nas quais se inclui a taxa de justiça - art. art. 3º, nº 1, do RCP
10. Não parece que a recorrente, que visa obter a concessão do estatuto de sujeito processual – assistente e requerer a abertura de instrução, esteja a actuar, no processo penal, na exclusiva defesa dos direitos fundamentais do cidadão, já que aqui surge, isso sim, na defesa de interesses dos cooperantes.
Por isso, a pretensão da recorrente não difere em nada da do particular ofendido com a comissão de crime de furto, de burla, ou outro em relação ao qual a lei lhe confere legitimidade para se constituir assistente, mas não prevê a isenção de pagamento da respectiva taxa de justiça, ou a vem a recusar, pela via do indeferimento da concessão do apoio judiciário (artº 16º, nº 1, aI. a), da Lei nº 34/2004, de 29/07).
11. Por conseguinte, afigura-se-nos que o despacho sob censura andou bem, ao não conceder a imunidade da recorrente no pagamento de taxa de justiça devida pela abertura de instrução, e impor o seu pagamento, sendo a interpretação que melhor se harmoniza com a norma da aI. f) do nº 1 do art. 4º do RCP.
12.
Epítome conclusivo:
«No crime de usurpação, de natureza procedimental pública, a pretensão da B… em intervir no processo na qualidade de assistente, não difere da do particular ofendido por crime relativamente ao qual a lei lhe confere essa faculdade, isto é, não se propõe defender um direito fundamental do cidadão, pelo que não é entidade elencada na alínea f) do nº 1 do art. 4º do Regulamento das Custas Processuais, não gozando da imunidade de pagamento de taxa de justiça».
13. Nesta senda, propendemos pela manutenção total do despacho em crise, que não violou a norma do art. 4º, nº 1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais, devendo ser negado provimento ao recurso, e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida”.
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Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que sufraga, inteiramente, a posição do Ministério Público no tribunal recorrido.
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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, com resposta da recorrente a reproduzir os fundamentos do recurso já explanados na respectiva motivação.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II - Fundamentação
São as conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj)[1] e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso.
É fácil de enunciar, mas de difícil resposta, a (única) questão posta à apreciação deste tribunal com a interposição do presente recurso: goza, ou não, a assistente “B…, CRL” de isenção de custas e devia, ou não, ter liquidado e pago taxa de justiça pela abertura de instrução que requereu?
Na primeira instância entendeu-se que tinha de pagar e, depois de se transcrever o artigo 8.º, n.os 1 a 5, do Regulamento das Custas Processuais (RCP) justificou-se assim a decisão (de 24.05.2016, a fls. 78 e segs.):
«No presente caso a assistente autoliquidou o pagamento da taxa de justiça devida pela constituição de assistente (cfr. fls. 72 e 73), mas não autoliquidou o pagamento da taxa de justiça devida pela abertura de instrução apesar de a secretaria ter procedido à notificação nos termos do disposto no n.º 4, do art. 8.º, do RCP, ou seja, para juntar, nos autos, no prazo de 10 dias, documento comprovativo do pagamento de taxa de justiça devida pela abertura de instrução, acrescida de taxa de justiça de igual montante como se verifica de fls. 76. Como tal e de acordo com o citado n.º 5 do art.º 8 do RCP “o não pagamento das quantias referidas no número anterior determina que o requerimento para constituição de assistente ou abertura de instrução seja considerado sem efeito”».
Como se constata, neste despacho, o(a) Sr(a). Juiz de instrução deu por adquirido que a assistente teria de autoliquidar e pagar taxa de justiça por ter requerido a abertura de instrução, sem se pronunciar sobre uma eventual isenção de custas, e por isso limitou-se a aplicar o n.º 5 do artigo 8.º do RCP que dispõe sobre a consequência do não pagamento.
No entanto, em anterior despacho havia sido abordada essa questão, pois que, através do requerimento de fls. 55, a “B…, CRL”, invocando o disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. f), do RCP, reivindicou isenção de custas e, portanto, não teria que pagar taxa de justiça pela abertura de instrução.
Sobre esse requerimento recaiu o despacho datado de 31.03.2016 (de fls. 58 e segs.), que, na parte que interessa, diz o seguinte:
“Do exposto pode-se concluir que, face à letra da lei é de considerar que estão abrangidos pela isenção subjectiva prevista na al. f) do n.º 1 do artº 4 do RCP as associações de utilidade Pública legalmente constituídas e registadas como a B…. Assim, no âmbito das acções relativas a direitos de autor e de direitos conexos estas associações beneficiam de isenção subjectiva de custas (quando actuam exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos da legislação que lhes seja aplicável). No entanto, estando em causa (quando a sua atuação) visa a defesa de direitos patrimoniais destinados a garantir aos seus associados a exploração económica das obras, já esta isenção não estará prevista no espírito do legislador.
Pelo exposto deverá a B… proceder ao pagamento de taxa de justiça devida pela constituição como assistente”.
Porventura porque havia reivindicado isenção de custas pela abertura de instrução e foi-lhe ordenado que procedesse ao pagamento de taxa de justiça pela constituição como assistente, a B…. não liquidou nem pagou a taxa de justiça pela abertura de instrução. Daí a necessidade de novo despacho em que, se bem que só implicitamente, se nega a pretendida isenção.
Mas, como assinala o magistrado do Ministério Público na sua resposta, a posição da assistente é incongruente, pois não se compreende que venha, por via de recurso, defender que goza de isenção de custas, reagindo contra o despacho de 24.05.2016, mas tenha pago a taxa de justiça pela constituição de assistente, aceitando a decisão de 31.03.2016: a beneficiar de isenção de custas, seria no processo e não para algum daqueles actos do processo.
Mas não é essa incongruência que poderá justificar a improcedência da pretensão da recorrente.
Depreende-se do trecho citado do despacho de 31.03.2016 que o Sr. Juiz de instrução considerou que a intervenção da “B…, CRL” neste processo visa a defesa de direitos patrimoniais destinados a garantir aos seus associados a exploração económica das obras e não estaria no “espírito do legislador” isentar de custas nessas situações.
Em abono do decidido é citado o acórdão desta Relação de 16.12.2015 (Processo n.º 1269/13.3 T3AVR-A.P1), mas essa decisão analisou e julgou recurso em que a questão a decidir era diversa: saber se a recorrente (Câmara dos Solicitadores) beneficiava da isenção estabelecida na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP que isenta de custas:
g) As entidades públicas quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto, e a quem a lei especialmente atribua legitimidade processual nestas matérias”
No nosso caso, a recorrente pretende que a reclamada isenção está prevista na al. f) que atribui esse benefício:
“f) Às pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
Não havendo quaisquer dúvidas quanto à natureza da B… (pessoa colectiva privada sem fins lucrativos) nem quanto às suas atribuições (gestão colectiva dos direitos de propriedade intelectual e a defesa e a promoção dos bens culturais, tendo como atribuições especiais “agir, em representação dos seus cooperadores e beneficiários, assim como dos autores e outros detentores de direitos estrangeiros que represente, perante as autoridades judiciais, policiais e administrativas competentes, no exercício e na defesa dos direitos de propriedade intelectual de que eles sejam titulares, tanto de carácter patrimonial como moral, nos casos de usurpação, contrafacção ou todos aqueles em que esses direitos hajam sido violados ou se mostrem ameaçados, requerendo a adopção de todas as medidas conducentes à sua eficiente protecção e ao seu integral respeito, designadamente através da propositura e acompanhamento de acções judiciais, providências cautelares, processos de natureza criminal, recursos administrativos ou quaisquer outros adequados”), a questão está em saber se, ao intervir como assistente neste processo, a recorrente.
- actua, exclusivamente, no âmbito das suas especiais atribuições ou
- para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhe seja aplicável.
Para tanto, importa conhecer o que está aqui em causa, o possível objecto do processo.
Processo que se iniciou com um auto de notícia em que a PSP comunica que, no dia 26.09.2015, no estabelecimento comercial denominado “D…”, sito na Avenida …, …, V.N. de Gaia, explorado por “E…, Unipessoal, L.da”, de que é gerente F…, estava a ser reproduzida a música gravada em disco vinil “G…” com o título “G1…” dos artistas “I…”.
De acordo com informação fornecida pela “J…”, o estabelecimento em causa “possuía licença “PassMúsica” válida, no dia 26 de Setembro de 2015, para proceder à execução pública de música gravada constante de reportório entregue à sua gestão”, informando ainda que “os direitos sobre a obra/música/fonograma «G1…», dos artistas «I…», pertencem para território nacional à editora K… (associada da ora requerente)”.
Perante tal informação, o Ministério Publico, considerando que o estabelecimento estava autorizado a reproduzir aquele tema musical, concluiu que estava reunida prova bastante de não se ter verificado o crime de usurpação previsto e punível pelos artigos 195.º, n.º 1, e 197.º do CDADC e por isso determinou o arquivamento dos autos (despacho a fls. 27).
Foi contra esse despacho que a assistente B… reagiu requerendo a abertura de instrução, e argumenta, no essencial, que uma coisa são os direitos dos produtores de fonogramas (cuja gestão, neste caso, cabe à “J…”) e outra coisa, bem diversa, são os direitos de autor sobre a obra literário-musical “G1…”.
Os titulares desses direitos de autor são representados, em Portugal, pela B… e é a protecção desses direitos que a assistente visa com a sua intervenção no processo.
Vejamos.
O direito do produtor de fonogramas e/ou de videogramas é um direito conexo (do direito de autor) que engloba as faculdades de autorizar a reprodução, a distribuição (incluindo venda, aluguer e comodato) e a comunicação pública dos seus registos.
O direito de autor é um direito de propriedade intelectual que confere ao titular de criações intelectuais do domínio literário, científico e artístico o direito exclusivo de dispor da sua obra e utilizá-la, ou autorizar a sua utilização por terceiros, total ou parcialmente.
Este direito tem uma componente moral ou pessoal que se concretiza no direito do autor de reivindicar a paternidade da sua obra, bem como assegurar a genuinidade e integridade desta (direito que persiste mesmo depois da sua transmissão ou extinção) e uma componente patrimonial que se traduz no já referido direito exclusivo de dispor da sua obra e de utilizá-la, ou autorizar a sua utilização por terceiros.
Comete o crime de usurpação tipificado no artigo 195.º, n.º 1, do CDADC, não só aquele que, sem autorização do produtor de fonograma e videograma ou do organismo de radiodifusão, utilizar uma obra ou prestação por qualquer das formas previstas no referido Código, mas também aquele que, sem autorização do(s) autor(es) de uma obra literário-musical (como é a obra “G1…” interpretada pelo grupo “I…”) a divulga a partir de um CD ou de um disco de vinil na exploração de um estabelecimento de bar.
Se bem vemos as coisas, foi essa diferenciação que o Ministério Público, no despacho de arquivamento do inquérito, e o Sr. Juiz de instrução, nos despachos em que não reconheceu o benefício da isenção de custas à B…, não tiveram na devida conta.
Com efeito, ao constituir-se assistente neste processo, a B… está, manifestamente, a actuar na defesa de direitos de propriedade intelectual e em representação dos seus membros (os autores da obra literário-musical “G1…” interpretada pelo grupo “I…”) e por isso não se vislumbra por que não há-de concluir-se que está a agir, exclusivamente, “no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto” (citada al. f) do n.º 1 do artigo 4.º do CDADC).
Cremos que aponta nesse sentido o comentário que, a propósito desta norma, elaborou aquele que é, reconhecidamente, o grande especialista na matéria (Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado, 5.ª Edição, Almedina, 2013, págs. 157-158):
«Esta isenção é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar, pelo que lhe subjaz o desiderato de tutela do interesse público.
É subjetiva, condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de aquelas entidades atuarem nos processos judiciais, do lado ativo ou do lado passivo, no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses comunitários que lhe estão especialmente conferidos.
Dada a sua estrutura e fins, essas associações e fundações beneficiam da isenção de custas a que se reporta este normativo nas ações relativas à defesa e promoção dos seus interesses específicos, naturalmente sob a envolvência do interesse público.
É uma isenção de custas restrita, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo respetivo estatuto, ou pela própria lei, que coincidam com o bem comum.
Considerando a história deste preceito, reportado às instituições particulares de solidariedade social e às pessoas coletivas de utilidade pública administrativa, reponderando, propendemos em considerar que esta isenção não abrange as ações que não tenham por fim direto a defesa dos interesses que lhe estão especialmente confiados pela lei ou pelos seus estatutos».
Na sua resposta, o Ministério Público advoga a aplicação, mutatis mutandis, da “jurisprudência dos Acs. da RP de 26.09.2012 (proc. nº 1764/10.9TAVNG); de 03.10.2012 (proc. nº 686/10.6TAVNG); de 20.06.2012 (proc. nº 1038/10.5TASTS) e de 28.09.2011 (proc. nº 1008/09.6TAPRD) - estes quando consideraram que o Instituto da Segurança Social não está isento de custas”.
Importa, no entanto, precisar que a mencionada jurisprudência não defende que o Instituto da Segurança Social não beneficia da isenção prevista na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do CDADC.
Com a Lei n.º 4/2007, de 16 de Janeiro (Lei de Bases da Segurança Social) visou-se instituir um sistema de protecção social de cidadania, de modo a garantir os direitos básicos dos cidadãos e a igualdade de oportunidades, promovendo o bem-estar e a coesão sociais, bem como um sistema previdencial.
Quando age em defesa desses direitos e desses interesses, o ISS, I.P. actua “no âmbito das suas especiais atribuições para defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto” e não há razão para lhe negar o benefício da isenção de custas.
O que se tem discutido é se, quando deduz pedido de indemnização civil em processo crime, designadamente por abuso de confiança contra a segurança social, aquele instituto está isento do pagamento de taxa de justiça, podendo considerar-se uniforme a jurisprudência no sentido de que, nessa situação, está, simplesmente, a diligenciar pela cobrança das prestações sociais em dívida e, portanto, não actua exclusivamente “no âmbito de especiais atribuições de defesa de direitos fundamentais dos cidadãos ou de interesses difusos que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto”, pelo que não está isento do pagamento de taxa de justiça[2].
Por isso concluímos que a B… se inscreve no círculo das pessoas colectivas de direito privado que gozam da isenção de custas prevista na norma do artigo 4.º, n.º 1, al. f), do RCP e que aqui está a actuar, exclusivamente, “no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto”.
Embora se reconheça que a solução não é linear, não se antolha razão válida para afastar a aplicação da citada norma, pelo que a decisão recorrida não deve manter-se.
IIIDispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto por “B…, CRL” e, em consequência, revogar a decisão recorrida que será substituída por outra que admita o requerimento de abertura de instrução, sem prejuízo da sua rejeição liminar caso exista fundamento legal para tanto.
Sem tributação.

(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 14/06/2017
Neto de Moura
Ana Bacelar
___
[1] Cfr., ainda, o acórdão do Plenário das Secções Criminais do STJ n.º 7/95, de 19.10.95, DR, I-A, de 28.12.1995.
[2] Cfr., por todos, o acórdão da Relação de Lisboa de 07.05.2013 (Des. Luís Gominho), acessível em www.dgsi.pt.