Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
370/14.3TVPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: DEVER DE SIGILO BANCÁRIO
SIGILO BANCÁRIO
QUEBRA
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20220404370/14.3TVPRT.P2
Data do Acordão: 04/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: LEVANTAMENTO/ QUEBRA DE SIGILO
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Deve determinar-se a quebra do sigilo bancário, quando tal se mostre adequado, necessário e proporcional para o exercício do direito à contraprova por uma parte e para a realização da justiça, e quando o segredo a quebrar não ofenda significativamente a intimidade privada.
(da responsabilidade do relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 370/14.3TVPRT.P2
Levantamento/quebra de sigilo
Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Mendes Coelho.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Relatório
A 2.05.2014, as sociedades G..., Limitada [substituída por decisão de 10.09.2019, no apenso de habilitação, por AA] e H..., Lda. [substituída por decisão de 10.09.2021, no apenso de habilitação, por BB] demandaram o réu Banco ..., SA, e pediram, a final, que “a) Deve ser julgada admissível a coligação entre as primeira e segunda autoras. b) Deve ser resolvido o contrato de swap de taxa de juro, celebrado entre a ré e o G..., Lda., por alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, condenando-se a ré a indemnizar o autor na quantia de 140.052,67 euros, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento. c) Deve ser declarada nula e de nenhum efeito a cláusula 3.ª alínea c) do contrato de swap de taxa de juro, assinado pelo G..., Lda. em causa nestes autos, por ser uma cláusula, cujo conteúdo é falso e contrário à verdade. d) Deve ser resolvido o contrato de swap de taxa de juro, celebrado entre a ré e a H..., Lda., por alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, condenando-se a ré a indemnizar o autor na quantia de 124.913,56 euros, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento. e) Deve ser declarada nula e de nenhum efeito a cláusula 3.ª alínea c) do contrato de swap de taxa de juro, assinado pela H..., Lda., em causa nestes autos, por ser uma cláusula, cujo conteúdo é falso e contrário à verdade”. Pediram, ainda, agora subsidiariamente: “f) Deve ser declarado nulo, por usura, o contrato de swap de taxa de juro, celebrado entre a ré e o G..., Lda., condenando-se a ré a indemnizar o autor na quantia de 140.052,67 euros, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento. g) Deve ser declarado nulo, por usura, o contrato de swap de taxa de juro, celebrado entre a ré e a H..., Lda., condenando-se a ré a indemnizar o autor na quantia de 124.913,56 euros, acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento”. Subsidiariamente: “h) por violação do princípio da boa fé, dever de informação e das regras constantes das cláusulas contratuais gerais deve ser declarado nulo e de nenhum efeito o contrato celebrado com o G..., Lda. objeto desta ação - swap de taxa de juro -, condenando-se a ré a restituir a quantia de 140.052,67 euros, acrescida dos juros de mora que se vencerem a partir da citação. i) por violação do princípio da boa-fé, dever de informação e das regras constantes das cláusulas contratuais gerais deve ser declarado nulo e de nenhum efeito o contrato celebrado com a H..., Lda., objeto desta ação, - swap de taxa de juro -, condenando-se a ré a restituir a quantia de 124.913,56 euros, acrescida dos juros de mora que se vencerem a partir da citação”. Subsidiariamente: “j) Deve a ré ser condenada a pagar ao autor a quantia global de 140.052,67 euros, a título de danos patrimoniais sofridos e decorrentes da celebração do contrato com a sociedade G..., Lda., decorrente da violação dos seus deveres, designadamente de informação e de boa fé, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento. l) Deve a ré ser condenada a pagar ao autor a quantia global de 124.913,56 euros, a título de danos patrimoniais sofridos e decorrentes da celebração do contrato com a sociedade H..., Lda., decorrente da violação dos seus deveres, designadamente de informação e de boa-fé, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento”.

Alegaram, em síntese e no que ora importa, que a sociedade G... é uma pequena empresa que se dedica à construção civil. No último quadrimestre de 2007 ao seu serviço, os quadros da empresa, incluindo os gerentes, são compostos por um engenheiro civil, quatro desenhadores, um técnico oficial de contas, e todos os restantes são operários de construção civil, com formação específica na área da construção civil e tendo completado no máximo o ensino secundário, na certeza de que na empresa e nos seus quadros ninguém, alguma vez, teve formação na área de mercados financeiros, em derivados, em swaps ou em swaps de taxa de juro, não têm assim quaisquer conhecimentos de instrumentos ou produtos financeiros ou derivados, nem de mercados financeiros e nada percebem de swap de taxa de juro, desconhecem por completo a área de atividade de produtos financeiros e derivados. A ré nunca questionou ou perguntou à sociedade G..., aos seus gerentes ou aos seus quadros sobre os conhecimentos que estes possuíam, as experiências e capacidades dos mesmos para realizarem operações financeiras ou investir em instrumentos derivados. Os sócios e gerente do G... são pessoas simples e até hoje, com exceção dos contratos juntos aos autos, nunca contrataram qualquer operação bancária especial ou complexa, nem nunca contrataram operações com instrumentos financeiros derivados, são assim absolutamente inexperientes nestas matérias desconhecendo as suas regras mais básicas. Por sua vez, a sociedade H... é uma sociedade que se dedica à compra e venda de propriedades, nunca foi um investidor qualificado e, no último quadrimestre de 2007, os quadros da empresa, incluindo os gerentes, são compostos pelo gerente, com bacharelato em arquitetura, por um escriturário, com formação ligada ao comércio e um desenhador que concluiu o ensino secundário, todos com formação ligada à área da construção civil, na certeza de que na empresa e nos seus quadros ninguém, alguma vez, teve formação na área de mercados financeiros, em derivados, em swaps ou em swaps de taxa de juro, não têm assim quaisquer conhecimentos de instrumentos ou produtos financeiros ou derivados, nem de mercados financeiros e nada percebem de swap de taxa de juro, desconhecem por completo a área de atividade de produtos financeiros e derivados. A ré nunca questionou ou perguntou à H..., aos seus sócios ou ao gerente sobre os conhecimentos que estes possuíam, as experiências e capacidades dos mesmos para realizarem operações financeiras ou investir em instrumentos e derivados. O gerente e sócios da H... são pessoas simples e até hoje, com exceção dos contratos juntos aos autos, nunca contrataram qualquer operação bancária especial ou complexa, nem nunca contrataram operações com instrumentos financeiros derivados, são assim absolutamente inexperientes nestas matérias desconhecendo as suas regras mais básicas.

Contestando a ação, o réu veio dizer, além do mais, que os contratos em causa envolviam a prestação de garantias pessoais e reais e que “na negociação e conclusão desses contratos intervinham os dois sócios e, em particular, o Dr. CC. Os sócios das AA., Eng. DD e o Dr. CC, eram pessoas com um património financeiro muito elevado e com participações em diversas empresas” e “tinham já, à data em que os contratos foram negociados e celebrados, grande experiência na negociação e conclusão de contratos financeiros de grande vulto com diversas instituições bancárias e na realização de investimentos em produtos financeiros complexos e de risco, seja no Banco ... seja noutras instituições financeiras”. Refere o réu que o “Dr. CC era e é uma pessoa muito interessada em produtos financeiros e sempre realizou investimentos em produtos sofisticados e de risco, como ações, fundos de investimento de médio e alto risco e aplicações sem garantia de capital”, não apenas junto do contestante, pois referiu “ser titular de uma carteira junto do Banco 1 ... com investimento em produtos de risco”. O Dr. DD era titular de uma carteira de investimento em títulos, objeto de um contrato de gestão discricionária relativamente ao qual optou pela modalidade que importava maior risco, designada “crescimento agressivo”.

Logo na sua contestação, a 8.07.2014, o réu requereu prova documental na posse dos sócios DD e CC, mas apenas em 10.01.2016 estes vêm informar que não têm qualquer investimento em produtos de risco, seja no Banco ..., seja no Banco 1 .... A 25.01.2016, o réu veio requerer, além do mais a notificação dos referidos sócios para informarem se autorizam a junção “pelo réu dos documentos respeitantes a investimentos financeiros (artigo 79.º, n.º 1 do RGICSF). Notificados, vieram, a 19.04.2016, recusar-se a autorizar a junção pretendida – bem como a de qualquer outras entidades financeiras ou bancárias -, alegando, em síntese, que a divulgação constituía uma ilícita e excessiva intromissão nas suas vidas privadas.

Relativamente ao Banco 1 ... – depois da invocação do dever de sigilo por esta instituição – foi suscitado o incidente de levantamento do sigilo e, por decisão singular, proferida a 24.03.2017, veio o mesmo a ser levantado e o Banco 1 ..., depois de várias prorrogações de prazo, veio a juntar os elementos documentais pretendidos pelo réu.

Foi, de seguida, designada a audiência de julgamento, entretanto dada sem efeito, atenta a pendência das habilitações de cessionários. A 8.01.2020 foi novamente designada a audiência de julgamento, mas, entretanto, o réu apresentou requerimento, dando conta de diligências probatórias em falta, e o julgamento voltou a ser dado sem efeito, conforme despacho proferido a 25.05.2020. De entre essas diligências, mantinha-se a questão da pretensão do réu de juntar, ele próprio, os documentos relativos aos investimentos financeiros, conforme esclarecido no requerimento de 27.01.2022 e, na sequência, o tribunal despachou no seguinte sentido:
“Extraia certidão dos requerimentos com a ref.ª Citius 22434821 e 37272874 bem como do presente despacho a fim de ser suscitado junto do Tribunal da Relação do Porto, o incidente de quebra/dispensa do dever de sigilo bancário invocado pelo Banco ..., nos termos e para os efeitos previstos no art. 135.º, n.º 3 do C.P.P.. aplicável “ex vi” do n.º 4 do art. 417.º, do C.P.C., determinando-se, desde já, a remessa do referido incidente ao Venerando Tribunal da Relação do Porto”.

Os requerimentos em causa, que instruem o presente incidente são, com síntese e no que ora importa, do seguinte teor:
A – Requerimento com a referência 22434821:
(...) 2. Vieram os Senhores Dr. CC (sócio gerente das AA.) e Eng. DD declarar, vários dias depois do termo do referido prazo, que “não autorizam a prestação da informação em causa a prestar pelo Banco de Portugal ou por qualquer outra instituição”.
(...)
b)
9. Posto isto, importa agora tomar posição quanto ao requerimento dos Senhores Dr. CC e Eng. DD, na parte em que respondem àquilo para que foram realmente notificados.
10. Ora, a este respeito, devem distinguir-se duas matérias: i) a respeitante às aplicações e produtos financeiros que, segundo um documento junto pelos próprios com o seu requerimento de 11.1.2016, os mesmos terão subscrito junto do Banco 1 ..., por um lado; ii) a respeitante aos investimentos financeiros que aqueles possam ter efetuado junto do R., por outro.
(...)
c)
15. Quanto aos investimentos em produtos financeiros que possam ter efetuado junto do R., os Senhores Dr. CC e Eng. DD, que haviam já rejeitado juntar aos autos informação sobre essa matéria (cfr. o seu requerimento de 11.1.2016), declaram agora que tão-pouco autorizam o R. a fazê-lo.
16. Em face dessa recusa, e por se tratar potencialmente de informação abrangida por segredo profissional, vem o R. requerer que seja suscitado pelo Tribunal, e submetido à apreciação do Venerando Tribunal da Relação do Porto, um incidente de levantamento de sigilo bancário, nos termos e com os fundamentos de seguida expostos.
II. INCIDENTE DE LEVANTAMENTO DE SIGILO BANCÁRIO RELATIVAMENTE AO R.
17. O presente incidente é deduzido nos termos do disposto no art. 135.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, por remissão do art. 417.º, n.º 4 do CPC.
a) Dos pedidos deduzidos pelas AA. na acção e da causa de pedir
18. Na presente acção, as AA. pedem, a título subsidiário, que se declare nulos dois contratos de swap de taxa de juro celebrados, respetivamente, entre o R. e a 1.ª A. (G..., Lda., doravante G...) e o R. e 2.ª A. (H..., Lda., doravante H...), seja por usura seja por violação do princípio da boa fé, de deveres de informação e das regras sobre cláusulas contratuais gerais, e que o R. seja condenado em indemnização.
19. Novamente a título subsidiário, as AA. pedem ainda a condenação autónoma do R. em indemnização, por violação de deveres de informação e de boa-fé.
20. Para suportar estes pedidos, as AA., maxime sob os arts. 1.º a 29.º da p. i., tentam fazer passar a imagem de estarmos perante pequenas empresas comandadas por pessoas simples e impreparadas, sem quaisquer conhecimentos nem experiência financeira, à mercê da gula do grande banco sem escrúpulos.
b) Dos factos alegados pelo R. na contestação
21. Contrariando este quadro, o R. alegou na contestação, em primeiro lugar, o seguinte quanto ao perfil das empresas, à sua atividade e ao modo como eram geridas, à época em que foram concluídos os contratos em causa nos autos:
— as AA. integram o mesmo grupo empresarial, sendo detidas em partes iguais por dois irmãos, o Eng. DD e o Dr. CC (art. 19.º da contestação);
— Até 25 de novembro de 2011, era gerente das AA. o Eng. DD, sendo desde então gerente o Dr. CC, o qual já antes agia em representação das AA. através de procuração passada em seu favor (arts. 20.º e 21.º);
— Ambos os irmãos sempre participaram ativamente na gestão das AA. e intervieram na negociação e conclusão de contratos, nomeadamente com o R.
— ambas as AA. estavam em crescimento e expansão da sua atividade de construção civil (art. 24.º);
— Para o financiamento dessa atividade, as AA. contraíram, em 2007 e nos anos anteriores, elevados empréstimos junto do R. e de outros bancos, que rondavam os 7 milhões de euros no caso da H... e os 700.000 euros no caso da G..., sendo que esta última se encontrava ainda a negociar com o R. e veio a contrair junto dele no final de 2007 um crédito de 2,4 milhões de euros (arts. 26.º a 30.º);
— Os contratos de financiamento subjacentes à concessão dos referidos créditos pelos bancos às AA. envolviam a prestação de garantias (os chamados “colaterais”), seja pessoais seja reais e, dentro destas, quer constituídas sobre imóveis quer sob a forma de penhor de aplicações financeiras (art. 32.º);
— Na negociação e conclusão desses contratos intervinham os dois sócios e, em particular, o Dr. CC (art. 33.º);
— a celebração dos contratos de swap discutidos nos autos foi precedida de duas reuniões presenciais, ocorridas em 13 de julho e 20 de novembro de 2007, para apresentação e negociação dos contratos, nas quais estiveram presentes, em representação das AA., o seu sócio Dr. CC e o Dr. EE, assessor financeiro das empresas; o Dr. CC confirmou posteriormente junto do R. o interesse das AA. em celebrar os contratos e reuniu com um colaborador do R. para entrega dos dois originais dos contratos de swap, que foram depois recolhidos assinados pelos dois sócios das AA. (arts. 54.º a 56.º, 66.º a 68.º, 76.º a 78.º, 83.º a 88.º).
22. Se demonstrados, os factos alegados até ao momento deixam claro, desde logo, que: i) as AA. eram empresas da área da construção civil com uma dimensão relevante, que negociavam e obtinham na banca empréstimos de montantes elevados para financiar a sua atividade; ii) quem sempre geriu, de direito e/ou de facto, as AA. foram os irmãos Eng. DD e Dr. CC; iii) os contratos de swap em crise nos autos foram explicados e negociados com o sócio Dr. CC e assinados quer por ele quer pelo sócio gerente, Eng. DD.
23. Em segundo lugar, e é o que mais releva para efeitos do presente incidente, o R. alegou o seguinte quanto à experiência e conhecimentos dos sócios e/ou gerentes das AA. especificamente em matéria de produtos financeiros:
— Os sócios das AA., Eng. DD e o Dr. CC, eram pessoas com um património financeiro muito elevado e com participações em diversas empresas (art. 34.º).
— Os referidos sócios das AA. tinham já, à data em que os contratos foram negociados e celebrados, grande experiência na negociação e conclusão de contratos financeiros de grande vulto com diversas instituições bancárias e na realização de investimentos em produtos financeiros complexos e de risco, seja no Banco ... seja noutras instituições financeiras (art. 35.º).
— O Dr. CC era e é uma pessoa muito interessada em produtos financeiros e sempre realizou investimentos em produtos sofisticados e de risco, como ações, fundos de investimento de médio e alto risco e aplicações sem garantia de capital (art. 36.º).
— E isto não só junto do R., uma vez que o Dr. CC referiu por diversas vezes aos colaboradores do R. ser titular de uma carteira junto do Banco 1 ... com investimento em produtos de risco (art. 37.º).
— O Dr. DD era titular de uma carteira de investimento em títulos (art. 38.º).
24. É para a prova deste último conjunto de factos que o R., em face da recusa dos sócios e/ou gerentes das AA. em i) fornecer ao Tribunal informação respeitante à sua experiência em produtos financeiros, por um lado, e em ii) autorizar o R. a juntar aos autos tal informação, por outro, se vê na contingência de lançar mão do presente incidente.
25. Na ótica do R., a prova dos factos em apreço é de grande relevância, senão mesmo essencialidade, para a sua defesa na presente acção, pois é sobretudo através dela que lhe é possível demonstrar a falta de sustentação das alegações das AA. segundo as quais os colaboradores do R. que negociaram com os irmãos Dr. CC e Eng. DD os contratos de swap se teriam aproveitado da inexperiência e ignorância destes últimos em matéria bancária e de produtos financeiros, incorrendo em usura, má fé e violação de deveres de informação.
26. O R. sabia do nível de conhecimentos dos representantes das AA. e da sua capacidade para perceberem as características dos contratos de swap que vieram a concluir. Foi por considerar que as AA. reuniam as características necessárias para o efeito, que os contratos em causa correspondiam aos fins por elas visados e que as AA. tinham capacidade financeira para suportar os encargos que deles decorriam que o R. aceitou celebrar com as AA. os contratos de swap de taxa de juro cuja validade é agora questionada pelas AA.
c) Da tramitação que antecedeu a dedução do presente incidente
27. O R. requereu, logo na contestação, “a notificação dos Srs. Eng. DD e Dr. CC para que juntem cópia de todos os produtos financeiros em cuja subscrição tenham intervindo pessoalmente ou em nome de empresas de que sejam sócios ou legais representantes, para prova do alegado nos arts. 35.º, 36.º, 37.º e 39.º do presente articulado”.
28. Esse requerimento foi deferido pelo Tribunal a quo, no despacho de 14.8.2015.
29. Após a frustração da primeira notificação (que foi enviada, refira-se, para a própria sede social das AA.), os sócios/gerentes das AA. foram novamente notificados para juntarem os elementos em causa, tendo omitido, no entanto, qualquer resposta.
30. Por douto despacho de 18.11.2015, foi ordenada nova notificação, “agora com a cominação de serem condenados em multa caso se mantenham em silêncio ou não justifiquem a não apresentação tardia dos documentos apresentados”.
31. “Face ao silêncio dos notificados”, a multa veio efetivamente a ser aplicada, por despacho de 7.1.2016.
32. Só então vieram os Senhores Eng. DD e Dr. CC, representados pelo Ilustre mandatário das AA., apresentar um requerimento nos autos (datado de 11.1.2016), no qual rejeitam genericamente os factos alegados pelo R. nos arts. 35.º, 36.º, 37.º e 39.º da contestação, e juntam um documento que, contrariamente ao que pretenderiam, dá notícia de diversas aplicações financeiras que subscreveram junto do Banco 1 ... quer em garantia ou colateral de financiamentos concedidos às AA. quer a título pessoal (estes últimos os de maior risco).
(...)
35. Novamente fora de prazo, vieram então os notificados opor-se, entre outras coisas, à requerida junção de documentos pelo R. (ou por outras instituições), alegando, em síntese, que se trataria de uma “intromissão excessiva na sua vida privada”, dado tratar-se de “informações privilegiadas, que contêm dados secretíssimos e pessoais dos notificados”.
d) Da verificação dos requisitos para que seja concedida a dispensa de sigilo ao R.
36. Como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (proc. n.º 46/14.1TBMBR-A.C1), “cabe ao Tribunal decidir sobre a dispensa desse dever de sigilo nos termos do n.º 3 do art. 135.º do CPP, o que pressupõe a ponderação do valor relativo dos interesses em confronto, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade da informação pretendida para a descoberta da verdade, em confronto com a tutela da reserva da vida privada protegida pelo sigilo bancário”.
37. Segundo o mesmo acórdão, no âmbito do conflito de interesses entre o dever de segredo bancário e a realização de justiça, a “prevalência ao interesse preponderante deve ser ponderada em concreto, em função dos contornos do litígio”, havendo de se “averiguar se a informação pretendida é necessária - tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas de prova, bem como ónus e regras de prova - ou imprescindível - no sentido de não poder ser obtida de outro modo”.
38. Do ponto de vista do R., para além de os documentos cuja junção é pretendida serem claramente importantes e mesmo essenciais para a descoberta da verdade, sempre se deve entender, atentas as circunstâncias do presente caso, que o direito de defesa e o direito ao contraditório do R. deverão prevalecer sobre o direito ao sigilo bancário.
39. Na verdade, tem sido praticamente consensual o entendimento, quer da doutrina, quer da jurisprudência, de que o direito dos clientes ao sigilo bancário não é absoluto a ponto de prevalecer sobre todos os direitos potencialmente conflituantes.
40. Veja-se, a título de exemplo, o sumário do Acórdão da Relação de Évora de 20.11.2008 no qual se refere que: “I- O direito ao sigilo bancário não pode considerar-se absoluto, de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, devendo ceder na medida do necessário ao êxito dessa finalidade” (Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20.11.2008, processo n.º 1773/08-2).
41. Ora, um desses direitos fundamentais é precisamente o direito de defesa que constitui uma das vertentes em que se desdobra o direito de acesso aos Tribunais estabelecido no art. 20.º da CRP.
(...)
45. Ora, a essencialidade dos documentos cuja junção se pretende realizar é manifesta, do ponto de vista do esclarecimento do Tribunal sobre os conhecimentos e a experiência dos sócios/gerentes das AA. – que com o R. contrataram os swaps objeto dos autos – em matéria de produtos financeiros.
46. E o apuramento desses conhecimentos, por seu turno, é de patente relevância para que o Tribunal possa formar uma convicção fundada quanto a saber se, como as AA. alegam, os seus sócios eram pessoas impreparadas e de cuja confiança o R. abusou ou se, ao invés e como alegado pelo R., eram pessoas esclarecidas e mesmo experientes em assuntos financeiros, que tinham capacidade para entender os contratos de swap celebrados e os entenderam efetivamente.
47. Em suma, não pretende o R. demonstrar no processo, nem mais, nem menos do que o estritamente necessário à refutação das teses das AA. plasmada na petição inicial e à fundamentação da sua própria posição.
48. Assim, deverá considerar-se que a junção dos documentos é necessária, proporcional e adequada ao fim a que se destina, ou seja, ao exercício do direito fundamental de defesa e do contraditório, encontrando-se preenchidos os requisitos de que depende a quebra do sigilo bancário.
Termos em que se requer:
(...)
b) Que, para prova do alegado pelo R. nos arts. 35.º, 36.º, 37.º e 39.º da contestação relativamente à experiência e conhecimentos dos Senhores Eng. DD e Dr. CC em investimentos financeiros, e na sequência da recusa de autorização por parte destes últimos ao R. para juntar aos autos informação sobre essa matéria, seja suscitada a intervenção do Tribunal da Relação do Porto nos termos conjugados dos arts. 135.º, n.º 3 do CPP e 417.º, n.º 3 do CPC , com vista à obtenção de dispensa do sigilo bancário que permita ao R. vir a juntar aos autos documentação que possa existir respeitante a eventuais investimentos financeiros que os referidos sócios e atuais ou ex-gerentes das AA. possam ter efetuado junto do R. ou com a sua intermediação.

B – Requerimento com a referência 37272874:
1. Nos presentes autos está designada para o próximo dia 4 de dezembro a data para a realização da audiência final.
2. Contudo, encontra-se requerida nos autos a realização de um conjunto de diligências instrutórias, sintetizadas em requerimento com a ref. Citius 27517675, apresentado a 30.11.2017, nos seguintes termos:
a) «Na sequência do douto despacho proferido a 09.05.2016 (referência Citius 367574669), e face ao silêncio das AA. e recusa dos Senhores Dr. CC e o Engo. DD, que haja pronúncia sobre o requerido e seja admitido o incidente de levantamento de sigilo bancário relativamente ao R., suscitado e requerido a 19.04.2016 (referência Citius 22434821);
(...)
6. Os documentos que se pretende sejam juntos aos autos e as informações a obter são fundamentais para efeitos dos atos a praticar em audiência, nomeadamente para efeitos da inquirição das testemunhas.
7. De forma que esta atividade instrutória se encontra ainda por realizar e deve necessariamente anteceder o início da audiência final (...)”.

Foram dispensados os Vistos e nada obsta à apreciação do mérito do incidente.

II – O objeto do presente incidente traduz-se em saber se existe dever de sigilo bancário por parte da réu e se justifica a quebra de tal dever.

III – Fundamentação de facto
Os factos constantes do relatório que antecede mostram-se bastantes à apreciação do mérito do incidente.

IV - Fundamentação de Direito
De acordo com o disposto no citado artigo 417 do Código de Processo Civil (CPC), “1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. 2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344 do Código Civil. 3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar: a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4. 4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”. E, por outro lado, dispõe o artigo 78, nº 1, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, que os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, estando, designadamente, “sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias” (artigo 78, nº 2, do RGICSF).

No caso em apreço, pretende o Banco réu juntar aos autos os documentos relativos aos investimentos financeiros realizados pelos identificados sócios das primitivas autoras e, por isso, a recusa mostra-se legítima, ou melhor, sendo o próprio réu, mostra-se devida, restando saber se deve ser quebrada, ou seja, se o banco réu está dispensado da obrigação de sigilo.

De acordo com o disposto no n.º 3 do artigo 135 do Código de Processo penal (CPC) O tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado decide a quebra do segredo “segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.”

Aplicando tal princípio ao caso em apreço, deve ter-se em conta, desde logo, que está aqui em causa o direito à contraprova por parte do Banco contestante, face à alegada, pelas autoras, ignorância ou desconhecimento dos trabalhadores e gerentes das sociedades quanto a investimentos financeiros, ignorância e/ou desconhecimento que são também fundamento para responsabilização do demandado.

Ora, o direito à contraprova é uma manifestação do princípio do contraditório, bem como do direito à prova, decorrências necessárias de um processo equitativo (artigo 20, nº 4, da Constituição da República Portuguesa) . Está assim em causa o exercício de um direito fundamental por parte do contestante, sendo certo que no exercício desse direito se poderá vir a apurar da veracidade ou não da alegação de que os decisores das sociedades nada conheciam sobre o tipo de investimentos aqui em causa e não foram devidamente informados pelo réu.

Salvo melhor opinião, a informação pretendida juntar pelo réu não ofende significativamente a privacidade dos sócios das primitivas autoras, sendo certo que informação semelhante, relativa a outra instituição bancária, já foi deferida, na sequência de quebra do dever de sigilo.

No confronto dos interesses que cumpre ponderar, e porque a informação pretendida juntar se revela fundamental à efetivação do direito à contraprova e, por isso, também à realização da justiça, apoiada no apuramento da verdade material, entendemos ser de deferir a pretensão de levantamento do dever de sigilo.

V - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em determinar a quebra do sigilo bancário pelo Banco réu, podendo o mesmo juntar aos autos os elementos documentais relativos aos investimentos financeiros realizados pelos identificados sócios das primitivas autoras.

Custas do incidente pelos identificados sócios das primitivas autoras, atento a sua oposição à quebra do sigilo bancário.

Porto, 4.04.2022
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Mendes Coelho