Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
96/17.6SGPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: TIR
ACUSAÇÃO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
ARGUIDO
IRREGULARIDADE
REPARAÇÃO
SERVIÇOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
JUIZ DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RP2018041196/17.6SGPRT.P1
Data do Acordão: 04/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO,(LIVRO DE REGISTOS N.º 15/2018, FLS.100-105)
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui mera irregularidade a notificação da acusação, por via postal, endereçada para a morada da arguida mas que não corresponde à que indicou como morada para notificações, aquando da prestação do TIR.
II - A ser reparada, oficiosamente, pelo tribunal do julgamento, par aonde fora remetido o processo.
III - Seguindo-se, posteriormente, os regulares termos do processo, em função do que vier, ou não, a ser requerido, na sequência da efectivação da notificação em falta.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 96/17.6SGPRT.P1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1. No autos de Processo Comum (Singular) nº 96/17.6SGPRT (a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 3) e em que é arguida B…, pela Sra. Juíza, no dia 24.11.2017, foi proferido despacho em que, considerando a existência de uma nulidade insanável pelo facto da arguida ter sido notificada da acusação para morada diversa daquela que tinha indicado no TIR, deu sem efeito a distribuição e determinou a remessa dos autos ao DIAP – Porto, 7ª Secção a fim de ali serem repetidos os actos de notificação da arguida para a morada que a mesma havia indicado nesse mesmo TIR.

2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso (constante de fls. 75 a 78), finalizando a respectiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
“1 – Nos autos em epígrafe a arguida foi notificada do teor da acusação contra si deduzida através de via postal simples, com prova de depósito, em morada distinta da por si indicada nos termos do art. 196º, nº 2, do CPP para o efeito de ser notificada.
2 - Em consequência não foi regularmente notificada da acusação pública.
3 – Não obstante os autos foram remetidos à distribuição.
4 - Na decisão em crise o tribunal a quo classificou a inexistência de notificação regular da acusação à arguida como nulidade prevista no art. 119º, al. c), do CPP, e determinou a devolução do processo ao Ministério Público para que fosse notificada a arguida da acusação, desta feita considerando a morada constante do TIR para esse efeito.
5 - Sucede o vício existente no procedimento de notificação da acusação à arguida não configura a nulidade atrás referida mas sim mera irregularidade, nos termos do art. 123º, nº 1, do CPP, a qual tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo pois de conhecimento oficioso.
6 – De todo o modo, quer na hipótese de se considerar que a irregularidade pode ser conhecida de forma oficiosa, quer na hipótese de o interessado a invocar nos termos do nº 1, do art. 123º, do CPP, em caso algum pode o tribunal determinar a remessa do processo ao Ministério Público para reparação do vício, já que tal decisão afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
7 - Conhecendo da irregularidade, por arguição do interessado ou oficiosamente, incumbe ao tribunal a sua reparação.
8 - Atento o que precede violou a decisão em crise os arts. 119º, al. c), 123º, nºs 1 e 2 e 311, todos do Código de Processo Penal.
Nestes termos, e nos demais de direito que Vª. Exas. Venerandos Desembargadores se dignarão suprir, deve ser julgado procedente o presente recurso, revogada a douta decisão em crise, a qual deverá ser substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos, com o saneamento do processo e a designação de data para a realização da audiência de julgamento, nos termos dos arts. 311º e 312º, do CPP.”
2. O recurso foi admitido por despacho de fls. 80.
3. Não foi apresentada resposta ao recurso.
4. Subiram os autos a esta Relação, sem que a Sra. Juíza tivesse lançado mão da prerrogativa contida no art. 414º nº 4 do CPP.
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, limitou-se a apôr “Visto” (cfr. fls. 91).
6. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada (artigo 412º, nº 1, in fine, do Código de Processo Penal), sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
No caso vertente, vistas as conclusões do recurso, a questão que se coloca consiste em saber se a notificação da acusação à arguida, efectuada pelos serviços do Ministério Público, para uma morada diversa daquela que a arguida havia indicado no TIR para efeito de notificações, se enquadra no vício da nulidade insanável previsto no art. 119º c) do CPP ou se apenas configura o vício da irregularidade que o juiz possa mandar reparar no respectivo tribunal, sem qualquer ordem de baixa na distribuição e devolução dos autos ao Ministério Público para que este proceda a uma correcta notificação.
2. Decisão recorrida
Definida a questão a tratar, vejamos, desde já, o teor da decisão recorrida, a qual consta dos autos a fls. 71 e 72 (transcrição):
“A arguida prestou TIR a fls. 4 indicando como morada para futuras notificações Travessa …, nº .., …, em Matosinhos.
Compulsados os autos verificamos que a notificação da acusação foi remetida para outra morada que não a indicada nos termos do art. 196º, nº 2 do Código de Processo Penal.
Assim sendo, a ora arguida não se encontra devidamente notificada não se verificando a presunção de notificação.
Cumpre apreciar e decidir.
Dispõe o art. 119º, alínea c) do C.P.P. que “Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais: A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;”
A notificação da acusação ao arguido é obrigatória nos termos do disposto no art. 113º, n.º 9 do Código de Processo Penal quando é conhecido o paradeiro daquele.
Não se tendo verificado aqui a situação prevista no art. 283º, n.º 5 do Código de Processo Penal – até porque o arguido prestou Termo de Identidade e Residência e indicou morada para a sua notificação – não podiam, os presentes autos terem sido remetidos para julgamento.
Assim, podemos concluir que está verificada a nulidade prevista no art. 119º, alínea c) do C.P.P., a qual é do conhecimento oficioso.
Atento todo o supra exposto, declaram-se nulos e de nenhum efeito todos os actos processuais realizados após o despacho de fls. 61.
Notifique.
Após trânsito remeta os presentes autos ao DIAP – Porto, 7ª Secção a fim de serem repetidos os actos de notificação do ora arguido na morada constante do Termo de Identidade e Residência e supra identificada.
Dê baixa na distribuição.”

Mais resulta dos autos, com relevância para a decisão, o seguinte:
a) A arguida prestou TIR a fls. 4 no qual consta:
“Morada: Rua … (Matosinhos), …., …,. Código Postal:…. … ….
Morada para notificações: Travessa … (….), .., …, Código Postal: …. ….”
b) A notificação da acusação deduzida pelo Ministério Público para julgamento da arguida, em Processo Comum (Tribunal Singular), efectuada através de carta simples com prova de depósito, foi dirigida para a seguinte morada:
“Rua …, …. – …. …. - … …”
c) Remetidos os autos à distribuição e distribuídos como Processo Comum (Tribunal Singular), no dia 24.11.2017 a Sra. Juíza proferiu o despacho recorrido e já supra transcrito.
3. Apreciando
Como referimos a questão a conhecer consiste em saber se a notificação da acusação à arguida, efectuada pelos serviços do Ministério Público, para uma morada diversa daquela que a arguida havia indicado no TIR para efeito de notificações se enquadra no vício da nulidade insanável previsto no art. 119º c) do CPP ou se apenas configura o vício da irregularidade que a Sra. Juíza possa mandar reparar no respectivo tribunal, sem qualquer ordem de baixa na distribuição e devolução dos autos ao Ministério Público para que este proceda a uma correcta notificação.
No entendimento expresso no despacho recorrido a notificação da acusação à arguida para uma morada diversa daquela que havia indicado no TIR traduz-se no cometimento de uma nulidade insanável.
Ao invés, no entendimento do recorrente Ministério Público, a notificação nessas mesmas circunstâncias, apenas se reconduz a uma irregularidade, vício esse que o tribunal a quo pode sanar através dos próprios serviços sem ter que ordenar a dar baixa na distribuição e devolver os autos ao Ministério Público para que este efectue a notificação para a correcta morada que havia sido indicada no TIR.

Apreciando, desde já adiantamos que, a nosso ver, a razão está do lado do recorrente Ministério Público.
Vejamos, então.
Como é sabido, em matéria de nulidades processuais penais vigora o princípio da legalidade, de acordo com o qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (cfr. art.° 118.°, n.°1, do Código de Processo Penal), sendo que, nos casos em que a lei não comine a nulidade, o ato ilegal é irregular (cfr. art.° 118°, n° 2, do Código de Processo Penal).
Da conjugação destes preceitos decorre que “o processo penal está subordinado ao princípio da legalidade dos actos, não sendo admitida a prática de actos que a lei não permita; os actos previstos devem respeitar as disposições da lei de processo que dispõem sobre os pressupostos, as condições, o prazo, a forma e os termos. Porém, a «violação ou inobservância» das «disposições da lei do processo penal» só determinará a invalidade do acto quando a consequência for expressamente cominada na lei. O princípio da legalidade do processo e dos actos desdobra-se, deste modo, em matéria de nulidade ou invalidade, na consequência que se afirma na expressão de um numerus clausus dos fundamentos da invalidade; a nulidade do acto não resulta da simples violação ou inobservância de disposições legais, mas tem que estar expressamente prevista como consequência da violação ou inobservância das condições ou pressupostos que a lei expressamente referir.
A violação ou inobservância das condições ou pressupostos do acto, que não constitua nulidade, determina apenas a «irregularidade» do acto.” (Henriques Gaspar, in Código de Processo Penal Comentado (2014), anotação ao artigo 119º, pág. 383).
A notificação da acusação a um arguido deve conter os elementos previstos no artigo 277º, nº 3, ex vi artigo 283º, nº 5, devendo observar a forma prevista no nº 6, deste último normativo, todos do Código de Processo Penal.
Tal comunicação é efectuada “mediante contacto pessoal ou por via postal registada, excepto se o arguido (…) tiver indicado a sua residência ou domicilio profissional à autoridade policial ou judiciária que elaborar o auto de notícia ou que o ouvir no inquérito ou na instrução, caso em que são notificados mediante via postal simples, nos termos da alínea c) do nº 1 do artigo 113º.”
In casu, tendo sido notificada da acusação, por via postal, para uma morada diferente daquela morada que no Termo de Identidade e Residência havia indicado para efeito de notificações, nenhuma dúvida subsiste que foi praticado um acto processual à revelia do estatuído no nº 6, do citado artigo 283º, impondo-se, assim, em primeiro lugar, que se qualifique juridicamente aquele vício, para num segundo momento, uma vez que foi detectado, determinar os seus efeitos.
Para tanto, há que verificar se a incorrecção da notificação da acusação à arguida é cominada pela lei como nulidade. Não o sendo, estaremos em face de uma mera irregularidade.
Entendeu a Sra. Juíza a quo que tal situação configurava uma nulidade insanável prevista na alínea c) do art. 119º do CPP.
Dispõe o art.° 119.° do Código de Processo Penal:
Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:
a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;
b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48°, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;
c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;
d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;
e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n° 2 do artigo 32.°;
f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.
Da simples leitura deste art.° 119º logo se extrai que a notificação da acusação a um arguido para uma morada diversa daquela que o mesmo havia indicado no TIR não integra qualquer uma das nulidades ali expressamente previstas, mormente a da alínea c), tal como considerou a Sra. Juíza a quo.
É certo que o art. 119º c) do CPP comina de nulidade insanável “a ausência do arguido ou do seu defensor nos casos em que a lei exigir as respectiva comparência”.
Todavia, diversamente do que ocorre, por exemplo, nos casos em que a audiência de julgamento figura como uma das situações em que é obrigatória a comparência do arguido (cfr. 332º nº 1 e 64º nº 3 a), ambos do CPP), já no que respeita ao acto de notificação da acusação o mesmo, para ser válido, não exige a presença ou comparência do arguido. Dito de outra forma: a validade do acto de notificação da acusação não depende da, nem pressupõe a, presença do arguido.
Por outro lado, percorrendo todo o Código de Processo Penal, não descortinamos um qualquer normativo que comine com o vício da nulidade insanável (nem sequer com o vício da nulidade sanável ou dependente de arguição) quando um arguido seja notificado da acusação para uma morada diversa daquela que no TIR havia indicado para o efeito de receber notificações.
Por isso, apesar da notificação da acusação ter sido efectuada para uma morada diversa daquela que no TIR havia sido indicada para efeitos de notificações, jamais se está perante qualquer nulidade insanável.
Mal andou, pois, a Sra. Juíza a quo quando, com esta nomenclatura, qualificou o vício que detectou.
Acresce também referir que aquela incorrecta notificação também não se enquadra no leque das nulidades relativas ou dependentes de arguição a que alude o art. 120º do CPP.
Nessa decorrência apenas estaremos, então, perante o vício da irregularidade.
A propósito desta questão e, ainda antes da revisão do Código de Processo Penal de 1998, pronunciou-se, além do mais, o Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão de 17 de Janeiro de 1995 (in CJ, ano XX, tomo I, pág. 155 e 156), no sentido de que a falta de notificação da acusação ao arguido não constitui uma nulidade, mas uma mera irregularidade, com argumentos que, pela relevância, merecem, ainda hoje, a sua transcrição:
« O Supremo Tribunal de Justiça já havia claramente assumido que (…) “é manifesto que a falta de notificação da acusação para constituir nulidade insanável deveria ser designada como tal por disposição expressa (cf. artigo 119º, do C.P.P), já que neste preceito, designadamente, na sua alínea d) o que é dado como nulo é a falta de inquérito, ou da instrução, nos casos em que a lei determina a sua obrigatoriedade, sendo que não se alega que o inquérito não tivesse sido realizado e a instrução é facultativa, como resulta do artigo 286º, n º2, do Código de Processo Penal”. (Ac. de 05/06/91, C.J., Tomo III, 26).
É que “a violação ou inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei”. E, “nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular” (Art. 118º, nºs 1 e 2).
Ora, as “nulidades insanáveis” são as que taxativamente estão indicadas no artigo 119º, do Código de Processo Penal.
Aquele juízo é, pois, incontornável: a omissão de notificação, para ser integrada na categoria das nulidades insanáveis, sempre teria que ser assimilável a “falta de instrução” imposta por lei (o que não é compatível, desde logo, com o elemento literal daquela disposição).
As coisas só assim não seriam se se entendesse que a preclusão do direito à fase da “instrução” que é consequência natural daquele entendimento – punha em causa as “garantias do processo criminal”, consagradas no artigo 32º, da Constituição da República.
Há que ponderar, na verdade, que “a existência de uma fase de instrução subordinada ao principio do contraditório é, decerto, uma garantia de defesa, na medida em que permite ao arguido, ainda antes do julgamento, corrigir, questionar e até contrariar a prova indiciária que fundamentou a acusação, e evitar assim que haja de ser sujeito a um julgamento por factos que não praticou. Ora, segundo o nº1, do artigo 32º, da Lei Fundamental, o processo penal tem de assegurar todas as garantias de defesa.
Todavia, esta disposição constitucional, como tantas outras em matéria processual penal, tem de ser interpretada à luz do princípio da proporcionalidade. Assim, quando se fala em “garantias de defesa” há-de se entender as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa (…) (Ac. T. C de 02/04/92).
Por outro lado, “a Constituição não estabelece qualquer direito aos cidadãos a não serem submetidos a julgamento sem que previamente tenha havido uma completa e exaustiva verificação de existência de razões que indiciem a sua presumível condenação, pelo que o simples factos de se ser submetido a julgamento não pode constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado de bom nome e reputação” (Ac. T. C, de 28/06/94).
Esta posição do Tribunal Constitucional – expostas, embora, para situações diferentes – inculcam que a solução antes encontrada é conforme a Constituição.
E assim – afastada a aplicação, ao caso dos autos, do regime de nulidades insanáveis – reverte-se à categoria das nulidades e irregularidades, “dependentes de arguição” - artigo 120º e seguintes do C.P.Penal».
Mais recentemente, e após a revisão do Código de Processo Penal de 1998, pronunciou-se, entre outros, o Acórdão da Relação do Porto de 31 de Janeiro de 2007 (Proc. 0417372, rel. Joaquim Gomes, in www.dgsi.pt) naquele mesmo sentido: «A falta de notificação da acusação ao arguido constitui mera irregularidade, a ser tratada nos termos do nº 1 do artº 123º do CPP».
Aí se lê:
«Percorrendo o disposto no art. 119.º, que diz respeito às nulidades insanáveis, não encontramos aí contemplado o apontado vício da incorrecção da notificação, nem a mesma encontra-se tipificada como nulidade sanável, no seguinte art. 120.º, nem em qualquer disposição legal.
Como mera nota, diremos que é óbvio que tal vício não integra a previsão do n.º 2, al. d), deste último preceito – “A insuficiência do inquérito …” – porquanto tal segmento normativo diz respeito à omissão de diligências de prova.
Trata-se por isso de uma mera irregularidade e esta, segundo o art. 123.º, n.º 1 “…só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tivessem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele a que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado”.
Tudo isto para dizer que, não prevendo os artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal a forma incorrecta como foi realizada a comunicação da acusação à arguida como uma nulidade, estamos perante uma irregularidade a seguir o regime imposto pelo artigo 123º, do Código de Processo Penal.
Ora dispõe este art. 123º:
“1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiver assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.”
Ou seja, estamos perante uma irregularidade com previsão no nº 1 do art. 123º do CPP. Desse modo, a falta de notificação da acusação do Ministério Público à arguida constitui uma irregularidade que tem de ser arguida pelos interessados no prazo de 3 dias, não sendo de conhecimento oficioso (neste sentido, cfr. o acórdão do TRE, de 14,04.2009, in CJ XXXI, tomo II. pag. 294).
Mas tendo a Sra. Juíza, oficiosamente, detectado essa irregularidade (que, incorrectamente, denominara como de nulidade insanável) isso não impede que a sua reparação possa ter lugar no âmbito do nº 2 do art. 123º do CPP, reparação essa que poderá ser realizada pelos próprios serviços do tribunal, sem necessidade de dar sem efeito a distribuição e de ordenar a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público para reparar tal irregularidade.
Com efeito, tal como referido a dado passo no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.01.2016 (Proc. 339/14.8IDBRG-A.G1, relatora Ana Teixeira, in www.dgsi.pt): “Mas ainda que seja entendimento do Juiz que é de reparar oficiosamente a irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao Ministério Público essa reparação. Quando o n° 2 do art. 123° do Cód. Proc. Penal, prevê a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação” quer dizer que a autoridade judiciária pode tomar a iniciativa de reparar a irregularidade, determinando que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido, não ordenando a remessa dos autos ao Ministério Público, pois que tal situação contém implícita uma ordem para que proceda à notificação da acusação ao arguido – decisão que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz. De facto, sendo autónomas a intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção (cfr. o acórdão do STJ, de 27.04.2006 (pesquisado in www.dgsi.pt)”.
E neste mesmo sentido, pode ver-se também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 06.02.2017 (Proc. 540/14.4GCBRG.G1, rel. Alda Casimiro, in www.dgsi.pt, em cujo sumário é dito que “ Se estiver em causa a falta de notificação do MºPº ao arguido e mesmo que se entenda que o juiz deve reparar oficiosamente essa irregularidade, tal não significa que possa ordenar ao MºPº essa reparação. É que não cabe na esfera de competência do juiz julgador censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito.
Também neste mesmo sentido, ainda pode ver-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26.02.2013 (Proc. 406/10.7GALNH-A.L1-5, rel. Alda Casimiro, in www.dgsi.pt, em cujo sumário é dito que “(…) II-O Juiz (de instrução ou de julgamento) não pode determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao arguido, visto que tal decisão afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público.”
E num outro caso em que perante a, oficiosamente detectada, pelo juiz do julgamento, falta de notificação da acusação ao mandatário do ofendido que tinha manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil e nessa medida deu sem efeito a distribuição e ordenou a remessa dos autos aos serviços do Ministério Público a fim de ali ser suprida essa omissão, na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público, o Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 21.11.2013 (Proc. 304/11.7PTPDL.L1-9, rel. Maria Guilhermina Freitas, acessível in www.dgsi.pt) deixou consignado o seguinte sumário:
I- A omissão da notificação do despacho de arquivamento/acusação ao mandatário do denunciante configura uma irregularidade (art. 118.º, n.º 2, do CPP), com reflexos no exercício de direitos do denunciante, afectando dessa forma a validade de todos os actos processuais posteriores.
II- Tal irregularidade é de conhecimento oficioso, ao abrigo do disposto no n.º 2 do art. 123.º do CPP, dado que não se mostra sanada.
III- Deverá, porém, a Sr.ª Juíza do tribunal a quo ordenar a reparação da irregularidade em causa, da qual conheceu oficiosamente, pelos seus próprios serviços e não ordenar a remessa dos autos aos serviços do MP, como o fez, com essa finalidade, dando sem efeito a distribuição, decisão essa que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.
Também Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 311 do CPP, defende que “pelos motivos já expostos, atinentes ao princípio da acusação, o juiz de julgamento não pode censurar o modo como tenha sido realizado o inquérito e devolver o processo ao Ministério Público (…) para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito e reformular a acusação, incluindo irregularidades da notificação da acusação” - (cfr. citado autor, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4° edição actualizada, pags.816 e 817).
Face a tudo o atrás exposto, impõe-se a revogação do despacho recorrido - na parte em que havia considerado como de nulidade insanável a falta de notificação da acusação à arguida e, nessa sequência, tinha dado sem efeito a distribuição e determinado a remessa dos autos ao DIAP - o qual, em face da aqui decidida qualificação de tal vício como de mera irregularidade, deve ser substituído por outro que ordene nos próprios serviços a reparação da irregularidade em causa, seguindo-se os regulares termos do processo em função do que vier, ou não, a ser requerido na sequência da efectivação da notificação em falta.
Merece, pois, provimento o recurso.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em, concedendo provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogar o despacho recorrido o qual, em face da aqui decidida qualificação do vício da falta de notificação da acusação à arguida como de mera irregularidade, deve ser substituído por outro que ordene nos próprios serviços a reparação da irregularidade em causa, seguindo-se os regulares termos do processo em função do que vier, ou não, a ser requerido na sequência da efectivação da notificação em falta.
Sem custas.
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(Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos signatários)
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Porto, 11 de Abril de 2018
Luís Coimbra
Maria Manuela Paupério