Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1082/20.4T8AGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: SERVIDÃO REGRAS DA COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
Nº do Documento: RP202209151082/20.4T8AGD.P1
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: “I - Nos termos do artigo 1569º, n.º 2, do Código Civil, as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
II - A jurisprudência vem, quase unanimemente, considerando que, para que uma servidão seja extinta, por desnecessidade, nos termos do disposto no nº 2, do art.º 1569.º do Código Civil, é necessário: a) Tenha existido uma alteração superveniente relativa ao prédio dominante que não resulte apenas de interesses subjectivos e transitórios do respectivo proprietário; b) Em resultado dessa alteração, a servidão deixe de ter, para o prédio dominante, qualquer utilidade, por existirem alternativas com comodidade semelhante, não se exigindo que a servidão seja indispensável para permitir a respectiva manutenção.
III - No caso vertente, ficando demonstrado que os Apelantes têm acesso à via pública pelo seu terreno e ao que adquiriram, que passaram a integrar única unidade predial, em mais de 70 metros, com três portões, e no qual abriram uma passagem no muro que depois taparam de novo, afigura-se-nos tal facticidade ser mais do que suficiente para que se demonstre a manifesta desnecessidade da servidão.”
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2022:1082/20.4T8AGD.P1


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
AA e mulher BB, residentes na Rua ..., lugar..., ... ..., União das Freguesias ... e ..., Águeda, instauraram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e mulher DD, residentes na Rua ... ..., União de Freguesias ..., ... e ..., Águeda onde concluíram pedindo a condenação dos réus a:
- Reconhecerem o direito de propriedade e posse exclusiva dos autores sobre os prédios descritos no artigo 1º da p.i.;
- Reconhecerem que o acesso de ambos os prédios pertencentes aos autores identificados no artigo 1º da p.i., desde a Rua ..., se faz por um caminho existente no local e que separa o prédio que pertence aos réus do prédio que pertence aos autores e identificado na alínea a) do artigo 1º da p.i., caminho esse que se inicia junto à Rua ... com uma abertura de 3 metros e numa extensão até à anterior abertura, hoje portão, existente no prédio dos autores identificado na alínea a) do art.º 1º e por onde também se acede ao prédio identificado na alínea b) com 110 metros de comprimento e que é o único acesso que os prédios dos autores têm até à Rua ...;
- Absterem-se de praticar quaisquer actos que colidam com o direito de uso e fruição do dito caminho, designadamente, absterem-se de impedirem e de obstruírem com pessoas, bens, objectos, viaturas ou animais, tal acesso;
- Pagarem uma indemnização diária aos autores, no valor de €30,00, desde a citação para o âmbito da presente acção e até que se mostre totalmente desimpedida a servidão.
- A título subsidiário e na eventualidade de o pedido formulado sob a alínea b) não ser procedente, a reconhecerem que, sobre o seu prédio e em benefício de ambos os prédios dos autores e de outros prédios situados a sul, existe uma servidão de passagem a pé, tractor e veículos automóveis, com a largura de 3 metros, e que beneficia os prédios melhor identificados no artigo 1º da p.i., desde a Rua ... numa extensão de cerca de 110 metros, de forma a restituírem aos autores o livre exercício do direito de servidão de passagem que lhes assiste.
Alegam, em síntese, que são proprietários dos dois prédios rústicos melhor identificados no artigo 1º da p.i., que adquiriram por partilha e por compra e venda, respectivamente, e que possuem, em todo o caso, em condições conducentes à sua aquisição por usucapião, encontrando-se os prédios registados em seu nome.
Acrescentam que os referidos prédios dos autores constituem uma única unidade predial, embora com dois artigos, sendo que os réus são donos e possuidores do prédio urbano identificado no artigo 11º da petição inicial.
Mais alegam, que os prédios de autores e réus sempre estiveram separados entre si, nas estremas nascente/poente, por um caminho que entronca na estrada a norte, e se dirige a sul, até chegar ao prédio dos autores, caminho esse que é público, por onde sempre passaram, quer os proprietários dos prédios dos autores, quer a população em geral.
Alegam, ainda, que desde meados de 2018, os réus têm vindo a dificultar o acesso aos prédios dos autores pelo referido caminho, aí estacionando viaturas, impedindo a normal fruição dos prédios pelos autores e assim lhes causando prejuízos.
Referem que caso se entenda que o caminho não tem natureza pública, sempre o mesmo configurará uma servidão de passagem a favor dos prédios dos autores, constituída por usucapião, por verificados os respectivos requisitos.
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Citados, os Réus vieram contestar, por excepção e por impugnação, formulando, ainda, pedido reconvencional.
Arguiram, desde logo, a ilegitimidade passiva, alegando para o efeito que o prédio identificado no artigo 11º da p.i. não lhes pertence por inteiro, antes pertence também aos donos das fracções autónomas em que o prédio se acha constituído em propriedade horizontal.
Impugnam a alegada natureza pública do caminho, bem como que o mesmo constitua uma servidão de passagem.
Alegam, ainda, que os prédios dos autores confrontam com a estrada numa extensão de cerca de 70 metros, e dispõem de 3 aberturas que dão directamente para a estrada, sendo que o caminho referido pelos autores integra o prédios dos réus, e apenas a este serve.
Deduziram, por fim, reconvenção, onde concluem pedindo que, caso se entenda existir servidão de passagem a favor dos prédios dos autores, que se julgue extinta a referida servidão, por desnecessidade, já que os autores têm acesso directo à estrada pelos seus próprios prédios.
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Notificados, replicaram os autores, pugnando pela improcedência da arguida ilegitimidade passiva, mas requerendo, à cautela, para o caso de assim não se entender, a intervenção principal provocada dos vários condóminos do prédio, bem como arguiram a ilegitimidade dos réus para o pedido reconvencional, por estarem desacompanhados dos restantes condóminos;
Impugnam, ainda, a factualidade em que os reconvintes baseiam o pedido reconvencional, alegando para o efeito que os dois prédios dos autores são independentes entre si, e que o prédio da alínea b) nunca teve acesso pela estrada a norte.
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Foi admitida a intervenção principal provocada dos demais proprietários das fracções autónomas do prédio identificado no artigo 11º da petição inicial, na qualidade de associados dos réus: EE e marido FF; GG e mulher HH; II e JJ; KK e LL; MM e mulher NN; OO e marido PP.
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Citados os Chamados, nos termos do disposto no artigo 319º do Código de Processo Civil, estes vieram contestar e reconvir, aderindo ao articulado dos réus primitivos, e alegando que o caminho não é usado, há mais de 20 anos, por ninguém, a não ser para acesso às garagens dos condóminos e aos armazéns dos réus, sendo que os prédios dos autores, que constituem uma única unidade predial, como os próprios alegaram, têm acesso directo à estrada a norte.
Concluem pedindo a improcedência da acção, e pedem, em reconvenção, que se julgue extinta qualquer servidão a favor dos prédios dos autores, por desnecessidade.
Pedem, ainda, a condenação dos autores por litigância de má fé, em multa e em indemnização a favor dos Chamados, por deduzirem pretensão a que bem sabem não ter direito.
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Replicaram os autores, nos termos da réplica já apresentada à contestação/reconvenção dos réus primitivos, e refutando a litigância de má-fé que lhes é imputada.
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Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, com admissão da reconvenção deduzida pelos réus primitivos e pelos Chamados, e julgando-se suprida a arguida excepção da ilegitimidade processual passiva, em face da intervenção principal provocada.
Fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas de prova.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal.
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Seguidamente, foi proferida sentença que decidiu:
1) Julgar a acção parcialmente procedente, e, em consequência, condenar os réus (primitivos e Chamados) a:
i. Reconhecerem o direito de propriedade e posse dos autores sobre os prédios melhor descritos nos nºs 1 e 3 dos Factos Provados;
ii. Reconhecerem que sobre o prédio dos réus (primitivos e Chamados), melhor identificado no nº 5 dos Factos Provados, se constituiu, por usucapião, um direito de servidão de passagem, a pé, de tractor e de veículos automóveis, com a largura de 3 metros, junto à estrema poente do prédio dos réus, em benefício dos prédios dos autores, descritos nos nºs 1 e 3 dos Factos provados, servidão essa que se inicia na Rua ... a norte, numa extensão de 106 metros até ao prédio descrito no nº 1.
Julgar improcedentes os demais pedidos formulados pelos autores, indo deles os réus absolvidos.
2) Julgar a reconvenção procedente, e, em consequência, declarar extinta, por desnecessidade, a servidão de passagem dos autores, supra identificada.
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Não se conformando com a sentença proferida, os recorrentes AA e mulher BB vieram interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações concluem da seguinte forma:

I. Os Apelantes, com a presente apelação, que tem por objecto a parte da douta decisão recorrida que julgou procedente a reconvenção, pretendem colocar à douta sindicância deste Venerando Tribunal os seguintes pontos: a) Recorrer da matéria de facto julgada provada sob o ponto 33 dos factos dados como provados, por entenderem que houve um manifesto erro de julgamento e ausência de fundamentação; b) Questão da ausência de factos alegados pelos Apelados que permitissem poder decidir sobre o mérito da reconvenção, designadamente, falta de alegação e prova de factos que integrem os pressupostos de que depende o pedido e declaração de desnecessidade de uma servidão de passagem; c) Recorrer de direito, já que a solução de mérito dada à reconvenção – e que teve, por isso, o Tribunal a quo não conheceu dos pedidos formulados pelos Apelante sob as alíneas c) e d) dos pedidos formulados na Petição Inicial nem deles se pronunciou na discussão do mérito da ação, como devia ter feito e que gera a nulidade da douta sentença recorrida - não se nos afigura, com o devido respeito por douta decisão em contrário, a mais correta atendendo às normas jurídicas convocáveis para a sua resolução e à total ausência de alegação de factos e sua prova que demonstrassem os pressupostos para que fosse determinada a desnecessidade da servidão de passagem.

II. No que diz respeito ao ponto 33 dos factos dados como provados não foi quanto a mesmo produzida qualquer prova, quer seja testemunhal quer seja documental, ou sequer tal resulta da ata da diligência da inspecção judicial ao local, para além de não constar da motivação de facto qualquer fundamentação que tivesse levado o Tribunal a quo a considerar esse facto provado, não se tendo observado o que dispõe o artigo 607º n.º 4 do Código de Processo Civil.

III. Analisando detalhadamente a douta motivação de facto não se extrai nenhuma indicação dos meios de prova válidos produzidos nos autos que tivessem levado a Meritíssima Juiz a quo a considerar aquele facto, alegado pelos Apelados, como provado, como deveria tê-lo feito em cumprimento da norma acima transcrita.

IV. Na verdade, nenhuma das testemunhas inquiridas nos autos confirmou tal factualidade, pois se o tivesse confirmado a Meritíssima Juiz a quo teria indicado na fundamentação qual a testemunha que se mostrou idónea e credível para que tal facto fosse dado como provado, como também nenhum dos documentos juntos aos autos, e muito menos os documentos juntos pelos Apelados que tinham o ónus da prova, revelam tal situação de facto, como também da inspecção judicial ao local tal não foi apurado, pois se o tivesse sido, teria sido reduzido a escrito na acta, o que não consta.

V. Por outro lado, também as imagens captadas do Google Earth e junta aos autos não são suficientes, nem permitem visualizar, para apurar de tal realidade, uma vez que delas não se extrai com clareza, nitidez e certeza – até porque à medida que se faz zoom aproximando a imagem esta fica desfocada – se existem ou não barreiras físicas no terreno, se existem pequenas construções, socalcos, ou outro tipo de impedimento. Assim

VI. Por ausência de elementos de prova e também de fundamentação por parte do Tribunal a quo - até para que os aqui Apelantes tomassem conhecimento dos elementos que estiveram na base da convicção com que a Meritíssima Juiz a quo ficou sobre esse facto e de forma a ser-lhes garantido impugnar essa decisão com base na incorrecta análise dos meios probatórios - deverá o ponto 33 ser considerado não provado.

VII. Já quanto ao mérito da reconvenção, como os Apelantes começaram por alegar, o Tribunal a quo, ainda que só considerando os factos constantes da douta sentença recorrida, errou na interpretação e aplicação do direito, uma vez que, não se mostram preenchidos os pressupostos legais para que tivesse determinado a extinção da servidão por desnecessidade.

VIII. Se é certo que os Apelados, enquanto proprietários do prédio serviente, vieram em reconvenção requerer a extinção da servidão objecto dos presentes autos por desnecessidade – ainda que do seu douto articulado tenham impugnado a existência de tal servidão, o que não deixa de ser contraditório, pois só se pode pedir a extinção de uma coisa se ela existir, o que os Apelados não reconheceram na sua douta contestação, não obstante e bem, nessa parte, o Tribunal a quo ter considerado ter sido constituída e existir uma servidão de passagem constituída por usucapião –, não alegaram factos concretos e suficientes para que o Tribunal a quo, na eventualidade de os mesmos virem a ser julgados provados, pudesse estar habilitado para decidir se já não existe necessidade de a servidão de passagem continuar a existir.

IX. Os factos alegados pelos Apelados que consubstanciam a sua causa de pedir só por si não são suficientes para se demonstrar que uma servidão de passagem em beneficio de um ou mais prédios perdeu a sua utilidade, tanto mais que um dos factos alegados e que erradamente o Tribunal a quo considerou provado - como supra se deixou alegado quanto à impugnação da matéria de facto - é constituído por conceitos de direito, como sejam “fácil e livremente”, sem que os Apelantes tivessem alegados factos concretos e objectivos que permitissem extrair-se esses conceitos, até porque o caminho que foi reconhecido e que desde sempre foi utilizado só até ao prédio dos Apelantes, sem contar com os demais que também serve, tem o comprimento/extensão de 105,90 metros e 3,90 de largura.

X. Com efeito, como decorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25 de Maio de 2021, processo n.º 558/20.8T8GMR.G1.S1, em que foi relator o Ex.mo Sr. Juiz Conselheiro Dr. Fernando Simões, in www.dgsi.pt, pode ler-se no seu sumário que: “A desnecessidade susceptível de permitir a extinção judicial de uma servidão de passagem dever ser objectiva, típica, exclusiva e superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante, e deixar de ter qualquer utilidade para este mesmo prédio.”

XI. Mais referindo esse douto aresto que “o ónus da prova da desnecessidade incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão”, in casu, aos Apelados, que para além de terem que provar os factos que possam reconduzir à desnecessidade da servidão, também tinham que os alegar de forma concreta e não, como o fizeram, de uma forma genérica, imprecisa e vaga, e que mesmo assim os Apelados não alegaram, ninguém a eles se referiu e muito menos ficou provado.

XII. De referir que ainda que o prédio dominante possa vir a ter comunicação com a via pública, o que não sucedia com o prédio que foi adquirido em 2000, tal por si não é suficiente para que seja declarada, sem prova de mais factos, extinta a servidão por desnecessidade, e isso também é referido no douto acórdão supra identificado onde se diz que “não é suficiente para essa declaração a mera confinância do prédio dominante com as vias municipais” até porque o acesso ao prédio que foi comprado no ano 2000 sempre se efetuou pelo caminho que ora também foi reconhecido, com a largura de 3,90 metros.

XIII. Por outro lado, também não se pode dizer, como consta da douta sentença recorrida, que “no caso sub judice, também é caso para dizer que se os autores não acedem directamente da via pública para os seus prédios, é porque não querem. Têm um muro virado à estrada com 3 portões, um dos quais dando acesso livre e desimpedido aos seus prédios rústicos, com largura suficiente para a passagem de veículos ligeiros e tractores agrícolas”, até porque não foram, como se disse alegados por parte dos Apelados quaisquer factos que permitissem essa conclusão, designadamente, que através dos portões existentes num outro prédio urbano o acesso aos prédios rústicos se fazia da mesma foram, sem incómodos e tendo a mesma utilidade da servidão de passagem até porque, no seu todo, o prédio dos Apelantes tem a extensão de mais de 250 metros.

XIV. Com efeito, como decorre do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Fevereiro de 2006, processo n.º 05b4254, em que foi relator o Ex.mo Sr. Juiz Conselheiro Dr. Moitinho de Almeida, in www.dgsi.pt, “só quando a servidão deixou de ter para aquele [proprietário do prédio dominante] qualquer utilidade de ser declarada extinta (acórdãos de 27 de Maio de 1999, revista n.º 394/99, e de 7 de Novembro de 2002, revista n.º 2838/02). Como no primeiro destes acórdãos se observa não interessa, assim, saber se, mediante determinadas obras, o proprietário do prédio encravado podia assegurar o acesso imposto pela normal utilização do prédio. O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente.”.

XV. Com efeito, ficou demonstrado nos autos que a servidão de passagem constituída em benefício dos prédios dos Apelantes ainda conserva toda a utilidade, sendo que, fazendo-se um juízo de proporcionalidade, a servidão não comporta um prejuízo injustificado para o prédio serviente dos Apelados face à utilidade, que de forma objectiva é relevante, que assegura aos prédios dos Apelantes.

XVI. Veja-se até que, de acordo com os factos dados como provados sob os pontos 13, 14, 15, 16, 27 e 34, e das fotografias juntas aos autos, a servidão de passagem encontra-se delimitada por muros nos seus dois lados, para além de ser por ela que os proprietários das fracções do edifício construído no prédio serviente acedem ao logradouro desse prédio onde têm as suas garagens, e do prédio urbano situado a poente acedem à sua habitação como resulta do portão aberto e que dá para tal caminho bem como o dos Apelantes e que o tribunal viu no local e a ele não faz, como devia, qualquer referência, como se infere da fotografia junta como documento n.º 5 com a Petição Inicial. Assim

XVII. Nesta data a própria servidão de passagem, devidamente delimitada com o Tribunal a quo pôde comprovar na inspecção judicial ao local que foi feita, confunde-se com um caminho/estrada, a qual sempre se manterá aberta até para que os condóminos Chamados possam aceder às suas garagens - bem como ao prédio vizinho, que ao longo dos 105,90 metros de extensão, só até ao prédio dos Apelantes, mas continua como servidão para outros prédios como ficou provado, e com a largura de 3,90 metros confronta a nascente com o caminho e para onde tem reafirma-se um portão aberto -, donde se infere que a manutenção da servidão de passagem não causa qualquer prejuízo ou sequer representa um incómodo para o prédio serviente, para além de que no leito da servidão, que está devidamente delimitado, nenhuma construção aí possa ser feita que gere uma utilidade social para o prédio serviente.

Assim
XVIII. A servidão de passagem que foi reconhecida ainda é útil para os Apelantes, que dela fazem uso, e é a que causa menos transtornos para retirar os bens de que os seus prédios são susceptíveis, como sendo o corte das árvores, de forma mais cómoda e rápida e que de outra forma não o podem fazer, o que não causa qualquer prejuízo para o prédio serviente.

XIX. Como também, com a manutenção da servidão de passagem, que os Apelantes usam para aceder aos seus prédios, tal fato não onera de forma desnecessária o prédio serviente, até porque é através do leito da servidão de passagem que os proprietários das fracções do edifício existente no prédio serviente acedem às suas garagens e logradouro, tendo até delimitado com muros a própria servidão.

XX. Com efeito, da análise da douta contestação/reconvenção, dos factos apurados e da própria leitura da douta sentença recorrida, não é possível sustentar a ideia de desnecessidade da servidão de passagem objecto dos presentes autos que tivesse levado, como erradamente considerou o Tribunal a quo à extinção da servidão de passagem que o próprio declarou ter sido constituída por usucapião.

XXI. Na verdade, os Apelados, para além de não terem alegado factos concretos, também não provaram, como lhes competia, factos demonstrativos da desnecessidade da servidão sub judice, ou seja, que a mesma deixou de ter utilidade para os prédios que pertencem aos Apelantes ou sequer que se deixou de justificar o exercício do direito sobre essa servidão.

XXII. Resulta do que vem sendo alegado e da jurisprudência dominante, não só a citada nestas alegações como a que consta sobre esta temática nas Relações e no Supremo Tribunal de Justiça, a servidão de passagem, com a configuração descrita na Petição Inicial e que resultou provada, constituída por usucapião, como reconhecido na douta sentença recorrida, não pode ser declarada extinta por desnecessidade, devendo ser a douta sentença nesta parte revogada.

XXIII. E sendo revogada a douta sentença recorrida na parte em que julgou procedente o pedido reconvencional, deverá este Tribunal ad quem tomar posição sobre os pontos c) e d) dos pedidos formulados na Petição Inicial e que, ainda que sobre eles o Tribunal a quo não se tenha referido nem apresentado fundamentação para o seu não conhecimento, cuja decisão e discussão dos mesmos ficou prejudicada pela decisão errada de extinção da servidão.

XXIV. Posto tudo o que supra se disse, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, ainda que não se altere a matéria de facto acima impugnada, mesmo assim deverá ser revogada a douta sentença recorrida na parte em que julgou procedente o pedido reconvencional e substituída por outra que julgue improcedente o pedido reconvencional e procedente os pedidos constantes das alíneas c) e d) da Petição Inicial, pois o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, nessa parte, violou a douta sentença recorrida o disposto no artigo 607º n.º 4 do Código de Processo Civil e no artigo 1569º n.º 2 do Código Civil.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões a resolver no âmbito do presente recurso são as seguintes:
- Da nulidade da sentença;
- Da impugnação da matéria de facto;
- Da desnecessidade da servidão de passagem.
- Da litigância de má fé.
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3. Factos
3.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o nº ... da freguesia ..., o seguinte prédio: prédio rústico, situado em ..., com a área de 11.200 m2, inscrito na matriz predial da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ..., composto por cultura, fruteiras, videiras, sobreiros, pinhal e terreno a mato, a confrontar do norte com caminho, do sul com ..., do nascente com QQ, e do poente com RR.
2. Pela Ap. ... de 6/9/2018, o prédio descrito em 1) encontra-se inscrito no registo a favor da autora BB, casada com o autor AA no regime da comunhão geral, por partilha da herança de SS.
3. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o nº ... da freguesia ..., o seguinte prédio: prédio rústico, situado em ..., com a área de 1.400 m2, inscrito na matriz predial da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ..., composto por terreno a mato e pinhal, a confrontar do norte, nascente e poente com AA, e do sul com TT.
4. Pela Ap. ... de 14/11/2000, o prédio descrito em 3) encontra-se inscrito no registo a favor do autor AA, casado com a autora BB no regime da comunhão geral, por compra.
5. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Águeda, sob o nº ... da freguesia ..., o seguinte prédio: prédio urbano, situado em ..., Rua ..., com a área total de 3.100 m2, inscrito na matriz predial da União das Freguesias ... e ... sob o artigo ..., composto por edifício composto por cave, para armazém, rés-do-chão, 1º e 2º andares para habitação, a confrontar do norte com caminho, do sul com AA e outro, do nascente com R..., Lda., e do poente com UU. É comum às fracções destinadas a habitação (A, B, C, D, E, F), uma entrada voltada para a rua, e existe uma entrada própria comum para as fracções dos armazéns (G, H), nas traseiras do prédio.
6. Pela Ap. ... de 16/11/1993, o prédio descrito sob o nº ... da freguesia ... encontra-se inscrito no registo a favor dos réus, por compra a QQ.
7. Pela Ap. ... de 17/1/1996, encontra-se registada a constituição da propriedade horizontal no referido prédio, com as fracções ... a ..., e a menção de que “tem um logradouro com 380 m2 entre o prédio e a rua que é comum a todas as fracções para habitação (A. B, C, D, E, F). O espaço existente entre o prédio e as garagens fica comum a todas as fracções autónomas, sendo próprio dos dois armazéns e o terreno que fica atrás destes”.
8. O prédio descrito em 1) tem, num canto nascente, a cerca de 106 metros da via pública a norte (Rua ...), uma abertura com 3,90 metros de largura, onde os autores colocaram, há cerca de 20 anos, um portão de rede, que deita para um caminho.
9. O prédio descrito em 3) encontra-se rodeado, por três das suas confrontações, pelo prédio descrito em 1), constituindo hoje uma única unidade predial.
10. Antes de os autores terem comprado o prédio descrito em 3), em 2000, era através do espaço que hoje está vedado com o portão ali colocado pelos autores que o anterior proprietário a ele acedia.
11. Na estrema poente do prédio dos réus, existe um caminho que, entroncando na estrada a norte, na Rua ..., se dirige no sentido sul, até chegar ao portão referido em 8).
12. O referido caminho dava também acesso ao prédio descrito em 3), através do prédio descrito em 1), sendo por aí que o anterior proprietário a ele acedia.
13. O caminho, no seu início, junto à Rua ..., encontra-se compactado no seu pavimento.
14. É ladeado, a poente, por um muro do proprietário do primeiro prédio que com ele confronta desse lado.
15. Estando também aí implantados um poste de iluminação e um poste de telefone, no limite poente de tal caminho.
16. Também na parte do logradouro traseiro do prédio dos réus, a nascente do caminho, está aí construído um muro a separar esse logradouro do referido caminho.
17. O leito do caminho é em terra batida, sendo visíveis os rodados de veículos.
18. Os antepossuidores do prédio descrito em 3), antes da compra do mesmo pelos autores, acediam ao prédio sempre, durante mais de 20 anos, desde a Rua ..., por tal caminho, seja a pé, seja de veículo de tracção animal.
19. Os autores, através dos terceiros por si autorizados, acedem ao prédio descrito em 3), desde a sua compra em 2000, e ao prédio descrito em 1), desde há mais de 20 anos, através do descrito caminho, seja a pé, seja de veículo de tracção animal, seja de veículo automóvel.
20. O caminho tem uma largura de cerca de 3 metros.
21. Desde a Rua ..., até ao portão referido em 8), o caminho tem uma extensão de cerca de 106 metros de comprimento.
22. O trânsito dos autores, ainda que por intermédio de terceiros autorizados, e dos seus antepossuidores, pelo caminho em questão, era feito à vista de toda a gente, sem oposição, na convicção de que lhes assistia um direito próprio de por aí transitar para aceder aos seus prédios.
23. Os réus, pelo menos desde meados de 2018, têm vindo a estacionar viaturas no caminho em questão, visando impedir que os autores, ou pessoas por estes autorizadas, possam transitar pelo caminho até aos prédios descritos em 1) e 3).
24. Estacionaram aí viatura, impedindo que os autores pudessem transitar pelo caminho.
25. O prédio descrito em 1) situa-se a poente do prédio dos réus, descrito em 5).
26. Os Chamados são proprietários das fracções ... a ... do prédio descrito em 6), sendo os réus proprietários das fracções ... e ....
27. Os condóminos possuem garagens nas traseiras do edifício, onde estacionam os seus veículos, às quais acedem por uma entrada comum, propriedade do dito prédio.
28. O prédio descrito em 1) confronta com caminho (Rua ...), a norte.
29. Os autores têm cerca de 70 metros de muro a delimitar o prédio descrito em 1) e um seu prédio urbano, da Rua ..., a norte.
30. No referido muro, existem 3 aberturas/portões, que dão directamente desses prédios para a Rua ....
31. Há cerca de 2 anos, os autores retiraram eucaliptos dos prédios descritos em 1) e 3), por uma abertura que fizeram no muro junto à Rua ....
32. Abertura essa que, após a retirada da madeira, os autores fecharam/taparam novamente com blocos e reboco.
33. É possível aceder facilmente ao prédio descrito em 1), directamente da Rua ..., a pé e de veículo automóvel ligeiro e tractor agrícola, através de, pelo menos, um dos portões referidos em 30), bem como, a partir do prédio descrito em 1), para o prédio descrito em 3).
34. O acesso às garagens e ao logradouro traseiro do prédio urbano descrito em 6) é feito pela parte poente do prédio, pelo caminho que aí passa.
35. Para fazer a abertura referida em 31), os autores tiveram que deitar parte do muro abaixo, numa largura suficiente para passar uma camioneta para transportar a madeira dos prédios.

2.2 Factos Não Provados.
O Tribunal a quo considerou não provado que:
a) O descrito em 1) dos Factos Provados confronta do norte com outro prédio dos autores.
b) A Rua ... situa-se a cerca de 110 metros do limite norte do prédio descrito em 1).
c) O caminho referido em 11) dos Factos Provados sempre esteve, há mais de 20, 30, 40, 50 e mais anos, desde tempos imemoriais de que os vivos já não têm memória, no uso directo e imediato do público em geral, designadamente, da população do lugar..., que aí possuem os seus prédios que também são servidos por esse caminho.
d) Sendo por aí que a população da ..., que tem prédios situados a sul e a nascente dos prédios dos autores e réus, por ali sempre transitaram livremente a pé, de veículo de tracção animal ou de veículos motorizados, como tractores e camiões, a qualquer hora do dia e da noite, sempre que de tal necessitam ou pretendem.
e) Isso sem obstáculo ou impedimento de quem quer que seja, calcorreando e percorrendo tal caminho na convicção generalizada de que tal caminho é público.
f) Ambos os prédios descritos em 1) e 3) dos Factos Provados apenas têm acesso à Rua ... através do referido caminho, que, não fora o mesmo, encontrar-se-iam encravados.
g) Com a actuação descrita em 23) dos Factos Provados, os autores ficam impedidos de aceder com veículos e tractores aos prédios descritos em 1) e 3), e de os poderem cultivar, tratar e cortar as árvores.
h) Os autores, já por diversas vezes e meios, instaram os réus para que deixassem de estacionar viaturas no caminho, para que aqueles possam aceder aos seus prédios, quer a pé, quer com veículos.
i) O comportamento dos réus tem impedido os autores de proceder à limpeza dos seus prédios, bem como a manutenção das culturas e árvores que neles existem.
j) Impedindo, consequentemente, os autores de retirar qualquer benefício dos prédios.
k) Desde que há memória, que o caminho sempre serviu os prédios descritos em 1) e 3), para a Rua ....
l) Sempre os autores e seus antecessores se serviram do caminho para chegarem ao prédio descrito em 1), de forma a cultiva-lo, limpá-lo, roçar o mato, colher os frutos e cortar as árvores.
m) Sempre os autores se serviram do caminho para chegarem ao prédio descrito em 3), de forma a cultivá-lo, limpá-lo, roçar o mato, colher os frutos e cortar as árvores.
n) O carregamento da madeira referida em 31) dos Factos Provados teve de ser feito de forma manual, ou seja, desde os prédios descritos em 1) e 3) dos Factos Provados, até ao local onde foi possível a camioneta se deslocar.
o) A camioneta não pôde aceder aos prédios descritos em 1) e 3), por tal ser impossível em termos físicos, sem deitar abaixo outras construções.
p) Não se pode aceder do prédio descrito em 3) dos Factos Provados, à via pública a norte, através do prédio descrito em 1), devido à existência de barreiras físicas.
q) Outra das aberturas referidas em 30) é para um prédio que serve de quintal dos autores, onde estes cultivam as suas hortas.
r) Há mais de 20 anos que o caminho não é usado por ninguém, e muito menos pelos autores (ainda que por intermédio de outrem).
s) Só até à zona das garagens é que há vestígios de passagem.
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4. Conhecendo do mérito do recurso:
4.1. Da nulidade da decisão
Invocam, desde logo, os apelantes que a decisão recorrida padece do vício enunciado na alínea d), do nº 1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil.
Alegam para tanto, que o Tribunal a quo não conheceu dos pedidos formulados pelos Apelantes sob as alíneas c) e d) da Petição Inicial, nem deles se pronunciou na discussão do mérito da acção, como devia ter feito, o que gera a nulidade da sentença recorrida.
Vejamos, então, se a decisão sob recurso é nula.
É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento seja de facto ou de direito - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 9.4.2019, processo nº 4148/16.1T8BRG.G1.S1., disponível, como os demais, em www.dgsi.pt ou em sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça -: as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal - cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.3.2017, proferido no processo nº 7095/10.7TBMTS.P1.S1 -; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei - cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.10.2017, proferido no processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1. e de 10.9.2019, proferido no processo nº 800/10.3TBOLH-8.E1.S2 -, consiste num desvio à realidade factual (nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma) ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma.
Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124/125, o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afectam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de carácter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua actividade.
E, como salienta o Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 686, perante norma do Código de Processo Civil de 1961 idêntica à actual, o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade com o direito aplicável, não se incluiu entre as nulidades da sentença.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) - cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2017, proferido no processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1.
Como é sabido, as causas de nulidade da sentença vêm taxativamente enunciadas no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que é nula a sentença:
- Quando não contenha a assinatura do juiz (al. a)).
- Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (al. b)).
- Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (al. c)).
- Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (al. d)).
- Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e)).
O Prof. Castro Mendes, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, pág. 297, na análise dos vícios da sentença enumera cinco tipos: vícios de essência; vícios de formação; vícios de conteúdo; vícios de forma e vícios de limites.
Os vícios determinantes da nulidade da sentença correspondem, assim, a casos de irregularidades que afectam formalmente a sentença e provocam dúvidas sobre a sua autenticidade, como é a falta de assinatura do juiz, ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões de que deveria conhecer (omissão de pronúncia).
São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afectada.
Em nosso entender, a nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do Código de Processo Civil, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes.
Conforme atrás referimos, referem os apelantes que, na sentença recorrida, o Tribunal a quo não conheceu dos pedidos formulados pelos Apelantes sob as alíneas c) e d) dos pedidos formulados na Petição Inicial, nem deles se pronunciou na discussão do mérito da acção, como devia ter feito, o que gera a nulidade da sentença recorrida.
Contudo, o certo é que a sentença sobre tais pedidos pronunciou-se efectivamente quando na mesma se diz: “Improcedem os demais pedidos formulados pelos autores, indo deles os réus absolvidos.”, sendo que tal conclusão infere-se da apreciação do mérito da acção.
Do exposto, resulta evidente não ocorrer a nulidade invocada.
Improcede, pois, esta nulidade invocada pelos recorrentes.
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4.2. Da impugnação da Matéria de facto
Os apelantes, em sede recursiva, manifestam-se discordantes da decisão que apreciou a matéria de facto, defendendo que a matéria de facto julgada provada sob o ponto 33 dos factos deve ser dada como não provada.
Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se minimamente cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pelos recorrentes e, se necessário, outras provas, máxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente, constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre os factos nos seguintes meios de prova:
“O Tribunal fundou a sua convicção nos vários meios de prova produzidos – inspecção judicial ao local, prova documental, declarações/depoimentos de parte, e prova testemunhal – conjugados entre si e criticamente apreciados.
Os factos provados nºs 1 a 7 encontram-se provados por meio das certidões matriciais e do registo predial juntas a fls. 13 verso a 15 verso e 34 verso a 40 verso, documentos estes cuja autenticidade não foi impugnada.
A extensão do caminho em questão, bem como as características do respectivo leito, os muros que o ladeiam, os postes aí colocados, e o portão de rede colocado ao fundo do referido caminho, junto à entrada para o prédio dos autores, foram tudo factos objecto da percepção directa do Tribunal, em sede de diligência de inspecção judicial ao local, a qual permitiu, ainda, perceber a configuração do terreno, até ao muro que ladeia a estrada a norte.
O nº 9 dos Factos Provados resultou do confessado pelos próprios autores, no art.º 13º da p.i., facto este que os réus e os Chamados aceitaram especificadamente, pelo que, não obstante a inversão da sua posição inicial, já em sede de réplica, operou o efeito confessório do facto, nos termos do disposto no art.º 465º, nº 2 do CPC.
Quanto ao acesso aos prédios dos autores, pese embora algumas evidentes incongruências e, pior ainda, alguma manifesta parcialidade das testemunhas inquiridas, ainda assim, ficou-nos a convicção segura de que o caminho em litígio também dava acesso aos prédios dos autores.
Não foi feita qualquer prova cabal da natureza pública de tal caminho, não tendo sido referido por nenhum dos inquiridos que o mesmo estivesse afecto e fosse usado pela população em geral, para qualquer finalidade, e desde tempos imemoriais, sendo apenas referido que o mesmo dava acesso aos prédios dos réus, dos autores e seus antepossuidores, e de uma D. VV, tendo o prédio desta última sido já comprado pelo réu. A própria autora, nas suas declarações de parte, acabou por afastar a natureza pública do caminho, ao diser que “aquela passagem era só nossa”, e que os prédios mais a sul não têm passagem pelo caminho, sendo o acesso deles feito pela variante, a sul.
Nem a existência de um poste da EDP e de outro poste dos telefones, bastam para qualificar um caminho como público, sendo certo que são inúmeras as situações da implantação desses postes em terrenos privados.
Também a existência de muros de delimitação ao longo de parte do traçado do caminho não basta para qualificá-lo como público, não sendo pouco frequente que os proprietários murem o espaço destinado a servidão de passagem, para evitar alguma devassa do restante prédio, ou mesmo por questões de segurança.
Ponderosas são as confrontações indicadas nos documentos matriciais e registrais, donde consta que o prédio descrito sob o nº ... da freguesia ..., confronta do nascente com QQ (que, conforme resulta da inscrição referida em 6) dos Factos Provados, foi quem vendeu o prédio nº ... da mesma freguesia aos réus.
Por seu turno, da descrição predial deste último prédio, consta que o mesmo confronta do poente com UU (que, em sede de inspecção judicial ao local, foi indicada como sendo a casa que se vê do lado direito na foto de fls. 16, ao fundo da qual está o canto do prédio dos autores que confina desse lado com o tal caminho).
Ora, se o caminho em questão fosse um caminho reconhecidamente público, essa confrontação com caminho constaria das descrições prediais, o que, como vimos, não sucede.
Também não nos ficaram dúvidas de que o prédio descrito em 1) dos Factos Provados confronta, a norte, com a estrada pública (Rua ...), não obstante a posição pouco clara dos autores a esse respeito nos respectivos articulados.
É o que resulta da descrição registral do prédio, e que a prova testemunhal produzida não conseguiu cabalmente refutar.
A própria autora, embora negando que o prédio em questão, que herdou do pai, confronte com a estrada a norte (não oferendo, contudo, qualquer explicação para a confrontação norte indicada no registo e na matriz), disse que o prédio tem mais de um hectare (contrariando, assim, a tentativa de reduzi-lo no levantamento topográfico de fls. 18, onde há o cuidado de “cortar” o prédio de modo a que o mesmo não chegue à estrada a norte).
Pese embora várias testemunhas dos autores (e cuja parcialidade, em geral, era evidente, assumindo várias delas a postura de “eu só venho falar do caminho, e mais nada”), tenham vindo dizer que o pinhal dos autores, que a autora herdou do pai, não chegava à estrada a norte, e que a frente que confinava com a estrada pertencia ao prédio onde a autora fez a casa, não nos parece que as testemunhas tenham oferecido uma explicação cabal para o que afirmaram. Na verdade, tendo pertencido ambos os prédios – o urbano e o rústico – aos pais da autora mulher, não causa qualquer estranheza que os autores tivessem murado a frente, junto à estrada, tudo em conjunto, sem fazer distinção entre os dois prédios. Também não causa estranheza o facto de o pinhal estar mais recuado relativamente à estrada, sendo certo que da própria descrição predial do prédio referido em 1) dos Factos Provados, resulta que o mesmo não era constituído apenas por pinhal, mas também por “cultura, fruteiras, videiras”. Estando vários prédios, pertencentes ao mesmo dono, pegados, sem sinais de demarcação entre eles, não é normal que terceiras pessoas saibam precisamente individualizar cada um dos prédios. Acresce que teria sido bastante fácil aos autores comprovar que o terreno murado junto à estrada pertencia apenas ao prédio urbano, bastando-lhes ter junto os documentos do projecto de construção, donde, certamente, constaria uma planta de implantação.
Assim, e dada a conhecida falibilidade da prova testemunhal, entendemos que, perante a existência de documentos que apontam em sentido diverso, e sem que tenha sido oferecida qualquer tentativa de justificação para essa divergência, é de conferir maior relevância probatória à prova documental.
Da prova testemunhal, conjugada com os indícios colhidos no local, consideramos provado que o caminho em questão também servia os prédios dos autores.
Para além do portão de rede implantado no prédio descrito em 1), o qual abre directamente para o caminho – e que, segundo referiu, quer a autora mulher, quer a testemunha WW, terá sido colocado há cerca de 20 anos, ou seja, mais ou menos aquando da compra do prédio descrito em 3), que também tinha passagem por esse local – várias testemunhas confirmaram que usavam o caminho para aceder aos referidos prédios, com autorização dos autores, emigrados.
A testemunha XX, de 51 anos de idade, foi quem vendeu o prédio descrito em 3) aos autores, no ano 2000. Esclareceu que conhecia mal o prédio, que pertenceu aos seus avós, embora recordando ir lá com eles ao mato, quando era criança, a pé e com carro de vacas, passando pelo caminho em questão. Disse que não havia outro acesso ao prédio, que não confrontava com estrada. Nunca foi impedido de passar. Depois de adquirir o prédio, só lá ia ver se precisava de ser limpo, passando a pé pelo caminho em questão.
As testemunhas YY e mulher ZZ, primos da autora mulher, apressaram-se a dizer que, há cerca de 30 anos, foram roçar mato que lhes foi dado pelos autores no pinhal destes, e que passaram pelo caminho em questão. Disse o marido que transportaram o mato com uma carroça das vacas, ao passo que a mulher garantiu que não tinham carroça, e que pedia ao seu irmão, que transportava o mato numa camioneta. A confusão poderá encontrar alguma explicação, quer nas idades avançadas das testemunhas - 83 e 80 anos de idade, respectivamente - quer no grande lapso de tempo desde que, segundo ambas disseram, já não vão ao pinhal - há cerca de 30 anos.
A testemunha AAA, de 81 anos de idade, pai da testemunha XX, disse que o prédio descrito em 3) dos Factos Provados, que o filho vendeu aos autores, pertencia ao seu sogro, BBB. Referiu que o referido prédio não tinha outro caminho de acesso, que não aquele dos autos. Apesar do depoimento “apaixonado” que prestou, acreditamos que a testemunha falava verdade quando disse que não conheceu outro acesso ao prédio que foi do seu sogro, por onde também passava para limpar e para cultivar uma pequena horta que chegou a existir lá (também o seu filho falou numa parte do prédio que já fora cultivada). Disse que o sogro passava com uma carroça de vacas.
A testemunha CCC, cujo marido é irmão do autor marido, de 85 anos de idade, disse que os autores estavam emigrados, e que lhe deram ordem para ir à lenha e ao mato do pinhal deles, e para semear e plantar a horta, e que, para isso, ela passava pelo caminho em questão, com carro de burro, trazendo de lá mato, lenha e batatas, durante muitos anos, o que deixou de fazer há cerca de 4 ou 5 anos, por lhe faltarem as forças. Dispunha de uma chave do portão de rede ao fundo do caminho, para aceder aos prédios dos autores, referindo que chegou a abrir o portão para a passagem dos homens da EDP, que foram fazer intervenção num poste que está dentro do terreno (logo por aqui se vai a tese dos autores de que os postes são sempre colocados em terrenos públicos!). Disse que nunca ninguém se opôs à sua passagem. Esclareceu que não passava pelo portão do muro a norte, junto à estrada, porque não tinha a chave.
A testemunha WW, de 85 anos de idade, cuja mulher é irmã da autora mulher, disse que, quando regressou de França, onde esteve emigrado, em 1982, cultivou uma leira ao fundo do pinhal dos autores, e colheu lenha do pinhal, com autorização dos autores. Passava para o prédio, de carrinha, pelo caminho em questão, ou quando ia só a ré, pelo portão de cima, junto à estrada, do qual tinha a chave, para poder ligar a electricidade para regar. Deixou de lá ir cultivar e colher lenha por volta de 2001/2002 (depois disse que foi por volta de 2010, mas cremos que a primeira data indicada estará mais próxima da verdade, já que disse que o portão de rede ao fundo do caminho não é do seu tempo).
A testemunha DDD, cujo pai vendeu o terreno ao réu, onde este veio a construir os apartamentos, nada soube esclarecer quanto ao caminho, do qual disse não se recordar, admitindo conhecer mal o local.
A testemunha EEE disse que vai uma vez por ano roçar o mato e as silvas no terreno dos réus ao fundo dos apartamentos, o que já faz há cerca de 10 anos. Limitou-se a dizer nunca ter visto ninguém a passar no caminho. Desde que lá anda que lá conhece o portão em rede ao fundo do caminho.
A testemunha FFF, filho dos réus, reproduziu a versão dos pais, ou seja, que o caminho em questão apenas serve os apartamentos e o estaleiro ao fundo. Confirmou a existência do portão em rede, ao fundo do caminho, mas nunca lá viu entrar nem sair ninguém.
Praticamente todos os inquiridos, bem como o próprio réu, no seu depoimento/declarações de parte, confirmaram que o caminho servia também um prédio que pertencia a uma D. VV, prédio esse que entretanto foi adquirido pelo réu, e que está pegado ao prédio dos apartamentos.
Conjugando todos esses dados - a existência objectiva do caminho em questão, com o traçado que se viu no local e que é bem visível nos documentos fotográficos e de satélite juntos aos autos, caminho esse que, como o próprio réu admite, não servia só o seu prédio urbano; o portão de rede virado para o caminho, no prédio dos autores; a falta de outro caminho para aceder ao prédio que foi comprado pelos autores em 2000; e os depoimentos das testemunhas que, embora mais ou menos interessadamente, descreveram os factos que as levaram a usar o caminho em questão para aceder aos prédios que hoje são dos autores; o facto de o réu ter sentido necessidade de obstaculizar a passagem dos autores (ou de terceiros, a seu mando) - tudo isso nos leva a crer que o caminho também era usado para aceder aos prédios dos autores, quer antes, quer depois, da compra do segundo prédio em 2000. Diga-se que se compreende que os terceiros a quem os autores autorizavam a fruição dos prédios (seja do mato, da lenha, ou do cultivo do terreno) acedessem aos mesmos através do caminho em questão, e não pelos portões existentes no muro a norte, dado que, não residindo os autores em Portugal, certamente que aqueles portões não estariam livremente acessíveis, contrariamente ao que sucedia ao fundo do caminho em questão, até pelo menos ao ano de 2000, cuja entrada era perfeitamente desimpedida. A partir daí, após a colocação do portão de rede, apenas a cunhada dos autores, CCC, usava o caminho para aceder aos prédios, dado que os autores lhe confiaram a chave do referido portão.
Que os autores, ainda que por intermédio de terceiros por si autorizados, transitavam no caminho, à vista de todos, com a convicção de que exerciam um direito próprio de por aí transitar, é facto evidenciado pela colocação e manutenção do portão de rede junto ao caminho em questão. Em princípio, só quem se julga no direito de passar é que coloca um portão a abrir para um caminho. A falta de oposição a esse trânsito foi referido pelas testemunhas, sendo que, conforme alegaram os autores na p.i., e não se mostra impugnado pelos réus, apenas em 2018 os réus reagiram a essa passagem, obstaculizando-a com a colocação de viaturas no caminho.
Os nºs 26 e 27 dos Factos Provados resultam da certidão do registo predial do imóvel.
O muro dos autores, junto à Rua ..., cuja extensão de 70 metros foi aceite pelos autores em sede de diligência de inspecção judicial ao local, conforme consta da referida acta, veda as propriedades daqueles da estrada. Que esse muro também abrange o prédio descrito em 1) dos Factos Provados, essa convicção do Tribunal resultou do já supra
exposto, a propósito da confrontação norte do referido prédio. Não há dúvidas de que os autores vedaram com muro toda a sua propriedade na parte em que confina com estrada. Só que essa propriedade abrange não apenas o seu prédio urbano, como os autores pretenderam fazer crer, mas também o prédio rústico descrito em 1) dos Factos Provados, que confronta, a norte, com estrada, e que não é só composto pelo pinhal ao fundo.
Os 3 portões existentes no referido muro foram visualizados na diligência de inspecção judicial ao local, sendo que as testemunhas dos autores lá foram admitindo que pelo menos um desses portões permite o acesso da Rua ... para os prédios dos autores. Esse portão é o da fotografia junta a fls. 41-D verso, e o da imagem do Google Earth junta a fls. 41, sendo que esta última, conjugada com as demais juntas aos autos, é bem elucidativa do desimpedimento da passagem daí até ao pinhal ao fundo.
A própria autora admitiu, nas suas declarações de parte, que tinha 3 portões junto à estrada, mas que só um deles dá para o terreno, tendo cerca de 3 metros de largura. Disse que não usa esse portão para aceder ao pinhal, porque tem o caminho. Referiu haver um poço próximo, que não impede a passagem de tractores nem de veículos ligeiros, mas que seria danificado pela passagem de camiões pesados, como era o caso daquele que transportou as árvores para fora do pinhal, e daí que tiveram necessidade de fazer uma quarta abertura no muro há 2 ou 3 anos, quando foi para tirar as árvores do pinhal. Abertura essa que depois voltaram a fechar.
A testemunha CCC disse que o portão que está junto à estrada dá para passar um carro, e que os autores entram para o seu prédio por onde lhes apetece.
A testemunha WW disse que apenas tinha as chaves do portão da casa dos autores, por onde passava a pé para a terra, mas que havia outro portão ao lado, que servia as terras. Em seu entender, um tractor não passa pelo portão, por causa da largura (versão esta que, todavia, foi rebatida por outros inquiridos, que falaram numa largura de portão de cerca de 3 metros, que também foi referida pela autora).
A testemunha DDD soube dizer que os autores têm portões para a estrada, não sabendo quantos, mas sabendo que, pelo menos um dá para a casa e outro para o terreno.
A testemunha FFF também assegurou que um dos portões dos autores (de fls. 41), com cerca de 3 metros de largura, junto à estrada, dá acesso aos prédios em questão.
Os Factos Não Provados resultam da ausência/insuficiência dos meios de prova, conforme já referido supra, a propósito da confrontação norte do prédio descrito em 1), da falta de prova do uso do caminho pelo público em geral, desde tempos imemoriais, da confinância do prédio descrito em 1) com a estrada a norte, da possibilidade de acesso aos prédios, de pé, de veículos ligeiros e de tractor agrícola, através de um dos portões sito a norte, junto à estrada.
Nenhuma prova foi produzida dos factos referidos nas alíneas h), i) e j).
Quanto às alíneas l) e m) dos Factos Não Provados, a única coisa que ficou provada, é que as terceiras pessoas, autorizadas pelos autores, usavam o caminho para acederem aos prédios, como já o faziam os anteriores proprietários do prédio descrito em 3) dos Factos Provados, não tendo resultado da prova que os autores o fizessem pessoalmente, sendo que ninguém o referiu e nem seria lógico que os autores saíssem do seu prédio urbano, para a estrada, para darem a volta até ao caminho em questão, a fim de acederem a prédios aos quais tinham acesso directo dentro do seu conjunto predial, sem necessidade de dele saírem para a via pública.
Nenhuma prova foi produzia da matéria das alíneas n) a q) dos Factos Provados, sendo que as imagens do Google Earth do local sugerem o contrário, não sendo visível qualquer impedimento ou barreira física à passagem, para além do próprio muro, o qual tem portões, conforme já referido.
Pese embora a maior parte dos inquiridos referisse que há mais de 20 anos que não passa pelo caminho, pelo menos a cunhada dos autores, CCC passava, sendo certo que, se ninguém passasse, certamente que os réus não teriam sentido necessidade de obstruir a passagem, como o fizeram.
As fotografias e imagens Google Earth desmentem a matéria da alínea s) dos Factos Não Provados.”.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, ouvida que foi a gravação dos depoimentos prestados em audiência no segmento em causa, vejamos então se, na parte colocada em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida pelos apelantes.
Adiantamos, desde já, que, no caso vertente, a Senhora Juiz a quo fundamentou a sua decisão de forma rigorosa, bem sistematizada, não contornando as questões que se colocavam, invocando sempre com ponderação as regras da experiência comum e o juízo lógico-dedutivo.
Após audição da prova, afigura-se-nos que a apreciação da Senhora Juiz a quo, efectivada no contexto da imediação da prova, surge-nos como claramente sufragável, com iniludível assento na prova produzida e em que declaradamente se alicerçou, nada justificando, por isso, a respectiva alteração.
Com efeito, a convicção expressa pelo tribunal a quo tem razoável suporte naquilo que a gravação das provas e os demais elementos dos autos lhe revela.
Isto porque salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A livre apreciação da prova, não se confunde, contudo, de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova; a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve, portanto, colocar o julgador ao apreciar livremente a prova.
Importa, isso sim, aquilatar se as conclusões que foram retiradas a partir da prova que foi produzida e credibilizada pelo tribunal, não contende com as regras da experiência comum e da lógica.
Como é sabido, a livre apreciação da prova tem de se traduzir numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma real motivação da decisão: com a exigência de objectivação da livre convicção poderia pensar-se nada restar já à liberdade do julgador, mas não é assim: a convicção do julgador há-de ser sempre uma convicção pessoal, mas há-de ser sempre uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros em termos de racionalidade e perceptibilidade.
Não esqueçamos, ainda, que a formação da convicção do juiz não pode resultar de partículas probatórias, mas tem necessariamente de provir da análise global do conjunto de toda a prova produzida.
Como é sabido, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos.
Deve ter-se em conta que o acto de julgar parte de uma operação lógico-dedutiva, a partir de dados objectivos (a experiência pessoal, as regras da experiência da vida) e dados intuitivos (a forma como o depoente expõe, as reacções públicas e emocionais, a racionalidade e razoabilidade das respostas).
Destarte, a prova testemunhal não dispensa um tratamento a nível cognitivo por parte do julgador, mediante operações de cotejo com os restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal como a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode ser objecto de formulação de deduções e induções, os quais partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras da experiência.
E sempre se deve ter presente a globalidade dos depoimentos e não apenas as partes que alegadamente conviriam aos Apelantes.
No caso vertente, ao contrário do que os Apelantes alegam, a matéria dada como provada no ponto 33 encontra-se devidamente justificada.
A este propósito, refere o Tribunal a quo que “os nºs 26 e 27 dos Factos Provados resultam da certidão do registo predial do imóvel.
O muro dos autores, junto à Rua ..., cuja extensão de 70 metros foi aceite pelos autores em sede de diligência de inspecção judicial ao local, conforme consta da referida acta, veda as propriedades daqueles da estrada. Que esse muro também abrange o prédio descrito em 1) dos Factos Provados, essa convicção do Tribunal resultou do já supra exposto, a propósito da confrontação norte do referido prédio. Não há dúvidas de que os autores vedaram com muro toda a sua propriedade na parte em que confina com estrada. Só que essa propriedade abrange não apenas o seu prédio urbano, como os autores pretenderam fazer crer, mas também o prédio rústico descrito em 1) dos Factos Provados, que confronta, a norte, com estrada, e que não é só composto pelo pinhal ao fundo.
Os 3 portões existentes no referido muro foram visualizados na diligência de inspecção judicial ao local, sendo que as testemunhas dos autores lá foram admitindo que pelo menos um desses portões permite o acesso da Rua ... para os prédios dos autores. Esse portão é o da fotografia junta a fls. 41-D verso, e o da imagem do Google Earth junta a fls. 41, sendo que esta última, conjugada com as demais juntas aos autos, é bem elucidativa do desimpedimento da passagem daí até ao pinhal ao fundo.
A própria autora admitiu, nas suas declarações de parte, que tinha 3 portões junto à estrada, mas que só um deles dá para o terreno, tendo cerca de 3 metros de largura. Disse que não usa esse portão para aceder ao pinhal, porque tem o caminho. Referiu haver um poço próximo, que não impede a passagem de tractores nem de veículos ligeiros, mas que seria danificado pela passagem de camiões pesados, como era o caso daquele que transportou as árvores para fora do pinhal, e daí que tiveram necessidade de fazer uma quarta abertura no muro há 2 ou 3 anos, quando foi para tirar as árvores do pinhal. Abertura essa que depois voltaram a fechar.
A testemunha CCC disse que o portão que está junto à estrada dá para passar um carro, e que os autores entram para o seu prédio por onde lhes apetece.
A testemunha WW disse que apenas tinha as chaves do portão da casa dos autores, por onde passava a pé para a terra, mas que havia outro portão ao lado, que servia as terras. Em seu entender, um tractor não passa pelo portão, por causa da largura (versão esta que, todavia, foi rebatida por outros inquiridos, que falaram numa largura de portão de cerca de 3 metros, que também foi referida pela autora).
A testemunha DDD soube dizer que os autores têm portões para a estrada, não sabendo quantos, mas sabendo que, pelo menos um dá para a casa e outro para o terreno.”
De resto, a testemunha FFF também assegurou que um dos portões dos autores (de fls. 41), com cerca de 3 metros de largura, junto à estrada, dá acesso aos prédios em questão.
Ora, os referidos elementos probatórios são mais do que suficientes para que tenha sido dada como provada a matéria de facto impugnada.
De notar que, além da prova testemunhal que os Apelantes não põem em causa, nem apontam qualquer contradição aos depoimentos prestados pelas testemunhas, o Tribunal a quo refere claramente a inspecção ao local e a prova documental, nomeadamente as certidões matriciais e prediais e as fotografias juntas a fls 41-D verso e a imagem Google Earth de fls 41, além das outras juntas aos autos, referindo o Tribunal a quo quanto a este ponto, que: “ … e o da imagem do Google Earth junta a fls. 41, sendo que esta última, conjugada com as demais juntas aos autos, é bem elucidativa do desimpedimento da passagem daí até ao pinhal ao fundo.”.
Ou seja, a matéria dada como provada no ponto 33, que é o ponto que os Apelantes pretendem colocar em crise na presente impugnação da matéria de facto, está devidamente fundamentado e motivado, não havendo reparo a fazer.
De resto, as testemunhas dos apelantes EEE e ZZ sustentaram que não há necessidade de passar pelo terreno dos RR e Chamados, ao contrário do que é referido pelos Apelantes.
Relativamente aos depoimentos das testemunhas transcritos pelos Apelantes para sustentar a sua argumentação, sempre diremos que, como é consabido, a actividade dos Juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o Juiz necessariamente aceite esse sentido ou essa versão. Os Juízes têm necessariamente de fazer uma análise crítica e integrada dos depoimentos com os documentos e outros meios de prova que lhes sejam oferecidos, sendo certo que o juízo crítico efectuado pelo Tribunal a quo nos parece acertado e adequado.
Parece-nos, por isso, à luz da prova testemunhal e documental não existirem motivos que justifiquem a alteração devendo manter-se as respostas dadas ao referido ponto da matéria de facto provada.
De resto, conforme já referimos, a Sr.ª Juiz a quo procedeu, inclusive à realização de uma inspecção ao local.
Ou seja, houve uma percepção directa dos factos pelo Tribunal a quo, na inspecção ao local, o juiz colhe, por si próprio, a prova, toca, por assim dizer, o facto a provar, nada se interpõe entre a sua percepção e o facto que se pretende averiguar, na expressiva e clara definição deste meio de prova que nos fornece o Prof. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil (nota 14), pág. 306.
Em face do que vem de ser exposto, improcede o recurso sobre a decisão da matéria de facto.
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A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada é assim fixada em 1ª instância.
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4.3. Da desnecessidade da servidão de passagem.
Os apelantes clamam pela revogação da sentença de que recorrem quanto ao pedido reconvencional.
Sustentam tal pretensão na modificação da decisão sobre a matéria de facto que, pela via recursiva, reclamam.
Mantendo-se, todavia, inalterada a decisão relativa à matéria de facto, em consequência da improcedência do recurso impugnativo da mesma, afigura-se-nos que à luz da mesma se deve manter a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Com efeito, nos termos do artigo 1569º, n.º 2, do Código Civil, as servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante.
A desnecessidade é uma causa autónoma de extinção de direitos reais, limitada às servidões constituídas por usucapião e às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição.
A desnecessidade corresponde a uma falta de justificação objectiva para a manutenção de um encargo para o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência da servidão representa para o prédio dominante. Este juízo de proporcionalidade deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso.
O § único do artigo 2279º, do Código de Seabra, previa três hipóteses de verificação de desnecessidade da servidão: “por terem cessado as correspondentes necessidades deste prédio, por ser impossível já satisfazê-las por via daquelas servidões ou porque o proprietário dominante pode fazê-lo por qualquer outro meio igualmente cómodo”.
O actual artigo 1569º, nº 2 do Código Civil, não previu estas hipóteses, não por discordar que as mesmas constituíssem casos de desnecessidade, mas sim porque essa especificação se apresentava como redutora, como enumeração taxativa, e desinteressante, como indicação exemplificativa - cfr. a nota explicativa ao artigo 30º, do Anteprojecto do título sobre servidões prediais do actual Código Civil, constante do B.M.J. nº 64, págs. 34-35.
Daí que deva continuar a considerar-se que uma das situações em que se pode verificar a desnecessidade duma servidão seja a possibilidade da utilidade que ela proporciona poder ser obtida por outro meio.
Esta situação exigirá, porém, um juízo de proporcionalidade entre o grau de desagravamento do prédio serviente resultante da extinção da servidão e a dimensão dos custos, incómodos e inconvenientes da alternativa apontada.
Para alguns, impõe-se o entendimento de que apenas uma alteração das circunstâncias existentes à data da constituição da servidão, pode motivar a sua extinção por desnecessidade Esta posição mostra-se também referida por Oliveira Ascensão, em “Direito civil. Reais”, págs. 439-440, da 4ª edição, da Coimbra Editora, e em “Desnecessidade e extinção dos direitos reais”, págs. 10-12, da separata da Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XVIII, 1964, e pelos Acórdãos da Relação de Coimbra, de 25-10-1983, na C.J., Ano VIII, tomo 4, pág. 62, relatado por Ataíde das Neves; da Relação do Porto, de 2-12-1986, na C.J., Ano XI, tomo 5, pág. 229, relatado por Tato Marinho; da Relação do Porto, de 7-3-1989, na C.J., Ano XIV, tomo 2, pág. 189, relatado por Metello de Nápoles; da Relação de Coimbra, de 13-6-1995, na C.J., Ano XX, tomo 3, pág. 41, relatado por Cardoso de Albuquerque; do S.T.J., de 25-11-1999, no site www.dgsi.pt, relatado por Simões Freire; da Relação do Porto, de 14-2-2000, no site www.dgsi.pt, relatado por Paiva Gonçalves; da Relação do Porto, de 26-2-2002, no site www.dgsi.pt, relatado por Soares de Almeida; da Relação do Porto, de 4-4-2002, no site www.dgsi.pt, relatado por Saleiro de Abreu; da Relação de Coimbra, de 16-4-2002, na C.J., Ano XXVII, tomo 2, pág. 23, relatado por Silva Freitas; do S.T.J., de 7-11-2002, no site www.dgsi.pt, relatado por Ferreira Girão; da Relação do Porto, de 26-11-2002, na C.J., Ano XXVII, tomo 5, pág. 182, relatado por Lemos Jorge e do S.T.J., de 27-11-2003, no site www.dgsi.pt, relatado por Ferreira Girão.
Para outros, apesar de, normalmente, a situação jurídica de desnecessidade resultar duma alteração das circunstâncias do prédio dominante, nada impede que essa situação já ocorra no momento da constituição da servidão, e nada justifica que, nesses casos, o proprietário do prédio serviente não possa requerer a extinção de um encargo para o seu prédio que não tem justificação - cf., neste sentido os Acórdãos do S.T.J., de 27-5-1999, no B.M.J. nº 487, pág. 313, relatado por Ferreira de Almeida; da Relação de Lisboa, de 30-1-2003, na C.J., Ano XXVII, tomo 1, pág. 90, relatado por António Valente; da Relação de Coimbra, de 29-6-2004, no site www.dgsi.pt, relatado por Jaime Ferreira; da Relação de Coimbra, de 28-9-2004, na C.J., Ano XXIX, tomo 1, pág. 18, relatado por Artur Dias e, da Relação de Coimbra, de 15-2-2005, no site www.dgsi.pt, relatado por Monteiro Casimiro.
Na verdade, embora uma servidão traga, necessariamente, proveito ao prédio dominante, uma vez que é este o seu requisito existencial, esse proveito pode não se justificar face à dimensão do encargo que resulta para o prédio serviente. Deste modo, pode alguém ter adquirido, por usucapião, um direito de servidão sobre outro prédio em que a sua utilidade não justifique esse encargo, pelo que deve ser concedido o direito ao proprietário do prédio onerado requerer a extinção de tal encargo, por desnecessidade deste. (…)”.
A jurisprudência vem, quase unanimemente, considerando que, para que uma servidão seja extinta, por desnecessidade, nos termos do disposto no nº 2, do art.º 1569.º do Código Civil, é necessário: a) Tenha existido uma alteração superveniente relativa ao prédio dominante que não resulte apenas de interesses subjectivos e transitórios do respectivo proprietário; b) Em resultado dessa alteração, a servidão deixe de ter, para o prédio dominante, qualquer utilidade, por existirem alternativas com comodidade semelhante, não se exigindo que a servidão seja indispensável para permitir a respectiva manutenção.
Desde logo, a desnecessidade deve ser apreciada em termos objectivos, ou seja, abstraindo da situação pessoal do proprietário do prédio dominante.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.02.2006 que acolhe a jurisprudência largamente dominante, entendeu-se que: “só quando a servidão deixou de ter para aquele (proprietário do prédio dominante) qualquer utilidade deve ser declarada extinta (acórdãos de 27 de Maio de 1999, revista nº 394/99, e de 7 de Novembro de 2002, revista nº 2838/02). Como no primeiro destes acórdãos se observa não interessa, assim, saber se, mediante determinadas obras, o proprietário do prédio encravado podia assegurar o acesso imposto pela normal utilização do prédio. O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente.
O Prof. Oliveira Ascensão defende que “a desnecessidade, que em matéria de servidão se considera, supõe uma mudança na situação, não do prédio onerado ou serviente, mas do prédio dominante. Por virtude de certas alterações neste sobrevindas, aquela utilização, sempre possível, do prédio serviente, perdeu utilidade para o prédio dominante. Para que uma servidão possa ser extinta por desnecessidade, tem de verificar-se um facto superveniente, concreto, objectivo e actual do qual resulte que a servidão deixou de ter justificação por o prédio dominante se ter tornado autónomo em termos de acessibilidade. É então necessário garantir ao dono do prédio serviente o total exercício do direito de propriedade, na plenitude da sua função socioeconómica, arredando todas as limitações comprovadamente inúteis.”
Nas palavras do Prof. Pires de Lima (Anteprojecto, Servidões Prediais, BMJ 64º- 34), “foram os factos que a impuseram, e são agora os factos que justificam a sua extinção”. Se os factos que estiveram na sua origem desapareceram, então a extinção justifica-se.
A situação de desnecessidade tem que ser aferida à data da interposição da acção; não sendo exigível um juízo de indispensabilidade da servidão para permitir a sua manutenção (cf. se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.05.2015, proferido no proc. 273/07). Cumpre assim adoptar um conceito de desnecessidade paralelo ao interesse que justifica a constituição, e que é o da utilidade para o prédio dominante (no domínio do anterior Código Civil, cfr. Oliveira Ascensão, op. cit., pág. 260: “é à inutilidade, e não à dispensabilidade, que a lei se reporta”); cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil citado, vol. cit., pág. 677, por remissão para o acórdão da Relação de Coimbra de 25 de Outubro de 1983, in Colectânea de Jurisprudência, ano VIII – 1983, tomo 4, págs. 62 e segs. Uma servidão pode constituir-se por ser útil ao prédio dominante (não tem de ser indispensável) e pode extinguir-se se essa utilidade desaparecer.
O artigo 1569º, nºs 2 e 3, do Código Civil prevê a extinção da servidão por desnecessidade, o que significa que se a servidão deve constituir um proveito para o prédio, não se poderá constituir uma servidão desnecessária - cfr Henrique Sousa Antunes, Direitos Reais, 484/488; Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 4ª edição, 440, «a) se há desnecessidade originária, nunca há que falar em desnecessidade como causa de extinção de direitos reais, pois que nenhuma servidão se poderá constituir contra tipificação legal; b) se há desnecessidade superveniente, temos uma causa específica de extinção de direitos reais, mas que só actua nos casos especialmente previstos por lei.»; cf. Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XVIII, 1964, 244 «A servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta graças a uma utilização, lato sensu, de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante, surge-nos a figura da desnecessidade».
A servidão torna-se desnecessária quando, por razões que se prendem com o prédio dominante, o uso do serviente deixou de ter utilidade para aquele (cfr. Prof. Oliveira Ascensão - “Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais”, apud separata da “Revista da Faculdade de Direito de Lisboa”, 1964, 12; e ainda o Parecer da PGR, BMJ 147-67; e v.g. Ac do STJ de 8/3/63, BMJ 125-504, na vigência do artº 2313º CC 1867).
É que, sendo a servidão um encargo a onerar um prédio a favor de outro, necessariamente aumentando o valor deste, já que permite uma melhor, e mais rentável, utilização do prédio encravado, tornando-se desnecessária dever cessar, sob pena de ferir sem razão válida o acervo dos direitos que integram a propriedade e constam do artigo 1305.º da lei substantiva civil.
Daí que, verificando-se que a servidão de passagem sobre o prédio serviente deixou de interessar ao prédio dominante, o dono daquele pode pedir a respectiva extinção.
Mas essa desnecessidade deve apresentar-se como objectiva, típica e exclusiva caracterizada por uma mudança de situação do prédio dominante - que não do serviente - mercê de alterações ulteriores, não bastando razões subjectivas como a ausência de interesse, vantagens ou conveniências pessoais do onerador.
Como se observa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de Fevereiro de 2006 (www.dgsi.pt, proc. nº 05B4254), a propósito do conceito de desnecessidade relevante para o efeito que agora releva, “tem este Tribunal entendido que o conceito de "desnecessidade da servidão" abstrai da situação pessoal do proprietário do prédio dominante, devendo ser apreciada em termos objectivos. Só quando a servidão deixou de ter para aquele qualquer utilidade deve ser declarada extinta (acórdãos de 27 de Maio de 1999, revista n.º 394/99, e de 7 de Novembro de 2002, revista n.º 2838/02).
Seguindo de perto o que já se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Março de 2011, in www.dgsi.pt, proferido no processo nº 263/1999.P1.S1, é seguro que tal desnecessidade há-de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário. Com efeito, “as servidões prediais consistem num encargo imposto a um prédio em benefício de outro prédio, pertencente a dono diferente” – artigo 1543º do Código Civil e, por exemplo, acórdão deste Supremo Tribunal de 2 de Julho de 2009, www.dgsi.pt, processo nº 08B3995.
O que se torna necessário é garantir uma acessibilidade em termos de comodidade e regularidade ao prédio dominante, sem onerar desnecessariamente o prédio serviente. E é nesta perspectiva que também a "necessidade da servidão" deve ser considerada como requisito da sua constituição por usucapião.”
Isto porque, como ensina o Prof. Oliveira Ascensão (apud “Desnecessidade …”, ob. cit. 10) “a servidão assenta numa relação predial estabelecida de maneira que a valia do prédio aumenta graças a uma utilização «latu sensu» de prédio alheio. Quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante surge-nos a figura da desnecessidade.”
A servidão de passagem (ou de trânsito) é um direito real, “jus in re aliena”, “species” de propriedade imperfeita.
Expõe o Dr. J. Luciano de Castro (“Servidão de passagem para prédios encravados” - apud “O Direito”, Ano 44.º, 10, 145) que “o direito que têm os donos dos prédios encravados de exigir servidão pelos prédios vizinhos está limitado ao caso de não ter o prédio encravado comunicação alguma com as vias públicas; de maneira que se não possa entrar n’elle, nem sair d’elle, sem passar pelo prédio ou prédios vizinhos.”.
Reportando-nos ao caso vertente, constata-se que se provou que o prédio dos autores, aqui apelantes, descrito em 1), confronta directamente com a via pública a norte (Rua ...).
Por seu turno, o prédio descrito em 3), não confrontando com qualquer via pública, ou sequer, com caminho, está envolvido pelo prédio descrito em 1), por 3 dos seus lados.
Ademais, os dois prédios estão ligados entre si, constituindo mesmo uma única unidade predial, situação que se verifica desde o ano 2000, em que ambos os prédios passaram a ter o mesmo proprietário.
Provou-se, ainda, que os apelantes têm frente para a estrada, com cerca de 70 metros de muro que delimita o prédio descrito em 1).
Nesse referido muro, têm 3 aberturas com os respectivos portões, que abrem directamente para a Rua ..., sendo certo que é possível aceder facilmente ao prédio descrito em 1), directamente da Rua ..., a pé, de veículo ligeiro e de tractor agrícola, através de, pelo menos, um desses portões, e prosseguindo daquele prédio para o prédio descrito em 3).
Também se provou que, há cerca de 2 anos, para retirarem eucaliptos dos seus prédios rústicos, os autores tiveram que fazer mais uma abertura no muro norte, já que os portões já existentes não tinham largura suficiente para o camião de transporte das madeiras.
Provou-se, ainda, que fizeram-no os autores, e depois voltaram a tapar essa abertura com blocos e reboco.
Ora, ficando demonstrado que os Apelantes têm acesso à via pública pelo seu terreno e ao que adquiriram, que passaram a integrar única unidade predial, em mais de 70 metros, com três portões, e no qual abriram uma passagem no muro que depois taparam de novo, afigura-se-nos tal facticidade ser mais do que suficiente para que se demonstre a manifesta desnecessidade da servidão.
De resto, se os Apelantes pretendiam manter a mesma, era a eles que competia alegar e provar a necessidade da mesma e dos incómodos que a declaração de desnecessidade lhes causava, sendo certo que os Apelantes não o alegaram e como tal não podiam provar o referido facto.
A desnecessidade da servidão é, aliás, manifesta e resulta da prova dos autos.
Com efeito, percorrido o quadro factual provado, constata-se a existência de elementos de facto que, alterando a situação do prédio dominante, consubstanciam a perda de utilidade da passagem acordada.
Na realidade, carece de sentido manter uma servidão, quando os prédios servidos, não estão encravados e que os Apelantes pretendam sair do seu terreno, percorrer 70 metros pela Rua ..., depois mais 106 metros pelos terremos dos chamados e RR., Apelados, até à entrada do seu portão, quando têm acesso directo a todo o seu terreno, que consideram unidade predial.
Pelo exposto, é possível concluir pela desnecessidade da servidão existente.
Impõe-se, por isso, a improcedência da apelação.
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4.4. Litigância de má fé
Os apelados pretendem a condenação dos apelantes como litigantes de má-fé.
Vejamos, então.
O artigo 8.º do Código de Processo Civil consagra o chamado "dever de boa-fé ou de probidade processual".
Ora, a mais grave violação desses deveres constitui justamente a litigância de má-fé, cujos contornos se acham definidos no artigo 542.º daquela lei adjectiva civil.
Nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 542.º, do Código de Processo Civil, diz-se “litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão".
O dever de litigar de boa fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos artigos 7º, e 8º, do Código de Processo Civil, para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respectivas partes.
Se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar - má fé instrumental -, deve ser condenada como litigante de má fé.
Mas tem-se entendido que tal sanção apenas pode e deve ser aplicada aos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, cujo fim último é a busca em descobrir a verdade e cumprir a justiça, como também ao seu antagonista no processo.
E esta actuação da parte, conforme se vinha entendendo na doutrina e Jurisprudência (cf. Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pág. 343 e Alberto dos Reis, in Código Proc. Civil Anotado, II, pág. 259 e Acórdão da Relação de Lisboa de 09.01.97, in Col. Jur., Ano XXII, Tomo I, pág. 88), exige que haja dolo ou negligência grave do actuante.
Verifica-se a negligência grave naquelas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou das aconselhadas pela previsão mais elementar que devem ser observadas nos usos correntes da vida (cf. Maia Gonçalves, Código Penal Português, 4ª edição, pág. 48).
Na redacção dada ao artigo 456º do Código de Processo Civil, antes da revisão operada pelo Decreto-Lei nºs. 329-A/95 de 12/12 e 180/96 de 25/09, exigia-se uma intenção maliciosa (má fé em sentido psicológico) e não apenas leviandade ou imprudência (má fé em sentido ético).
Não bastava a imprudência, o erro, a falta de justa causa. Era necessário o querer e o saber que se está a actuar contra a verdade ou com propósitos ilegais.
No dolo substancial deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida - dolo directo - ou altera-se a verdade dos factos, ou omite-se um elemento essencial - dolo indirecto; no dolo instrumental faz-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável - cf. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”, I, Almedina, 1984, pág. 380.
No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/04/1991, in A.J., 18º/28, afirma-se: “Os factos a que se refere o art.º. 456º, nº 2, do Código de Processo Civil, e cuja alteração consciente constitui litigância de má fé, são os factos que as partes alegam nos articulados para fundamentar o pedido e a oposição (...)".
O actual regime traduz uma substancial ampliação do dever de boa fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva. A condenação por litigância de má fé pode fundar-se, além de numa situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave.
No entanto, esta concepção explícita agora de litigância de má-fé não se pode confundir com erro grosseiro, com lide meramente temerária ou ousada, com pretensão de dedução ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova e de não ter logrado convencer da realidade por si trazida a julgamento, na eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, ou com discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, na diversidade de versões sobre certos e determinados factos ou até na defesa convicta e séria de uma posição, sem contudo a lograr convencer.
Mesmo que se esteja entre uma lide dolosa e uma lide temerária, mas não sendo seguros os elementos para se concluir pela existência de dolo, a condenação como litigante de má fé não se deve operar, entendimento que pressupõe prudência e cuidado do julgador e para existir condenação como litigante de má fé que se esteja perante uma situação donde não possam surgir dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte (cfr. Acórdão do STJ de 20.06.90, citado por Abílio Neto, anotações ao então artigo 456º).
Note-se que para que o tribunal possa fundamentar validamente uma condenação como litigante de má fé, pode e deve não só ater-se aos factos alegados e não provados, como também àqueles documentos não impugnados e que denunciam estar-se perante um facto ou uma situação completa e totalmente contrária ao constante do articulado do litigante em causa, devendo tomar em consideração, quer os factos admitidos por acordo, quer os documentos - artigo 607.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
No caso vertente, apesar das versões diversas apresentadas pelas partes relativamente à relação material controvertida, não se nos afigura que a conduta dos apelantes preencha os pressupostos da litigância de má fé, pelo que não se justifica a sua condenação como litigantes de má fé à luz da factualidade provada e dos os contornos específicos da causa.
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Sumariando, em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
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Custas a cargo dos apelantes.
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Notifique.

Porto, 15 de Setembro de 2022
Paulo Dias da Silva
Isabel Silva
João Venade


(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)