Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
175/20.2T8GDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MÁRCIA PORTELA
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
REGIME DO ARRENDAMENTO DE PRÉDIO RÚSTICO PARA FIM NÃO RURAL
Nº do Documento: RP20220713175/20.2T8GDM-A.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - É nula a decisão do pedido reconvencional por o tribunal ter conhecido do mesmo sem que tivesse concedido às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão que levou à sua improcedência (no caso, preterição do litisconsórcio voluntário).
II - A expressão arrendamento urbano ganhou, no nosso direito positivo atual, uma aceção ampla que pode coincidir com a de arrendamento vinculístico ou não, de todos os prédios urbanos ou rústicos não sujeitos ao regime rural ou florestal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 175/20.2T8GDM.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
AA (nif ...), BB (nif ...), CC (nif ...), todos residentes na Rua ..., ..., Gondomar, intentam acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra:
1- DD e marido EE, residentes na Rua ..., n.º ..., R/C esquerdo, ..., Gondomar;
2- FF e mulher GG, residente na rua ..., n.º ..., 1.º esquerdo frente, ..., Gondomar;
3- HH e o marido II, residentes na rua ..., cave, ..., Gondomar;
4- JJ e mulher KK, residentes na rua ..., ..., Gondomar;
5- LL e mulher MM, residentes na rua ..., ..., ..., Gondomar;
6- NN, divorciado, residente na rua ..., n.º ..., 1.º andar esquerdo, ..., Valongo;
7- OO e mulher PP, residentes na rua ..., ..., Gondomar, pedindo a sua condenação a pagar-lhes o montante global de €3.729,00, a saber:
a) € 2.486,00 referente às rendas vencidas e não pagas relativas aos meses de Março a Dezembro do ano de 2019 e Janeiro do ano de 2020;
b) € 1.243,00, correspondente à indemnização de 50% do valor em dívida relativo às rendas vencidas e não pagas; e
c) juros de mora, calculados à taxa legal em vigor, desde a data de citação dos RR. até efectivo e integral pagamento.
Alegaram para tanto, e em síntese:
─ São donos e legítimos proprietários do prédio urbano denominado “...”, sito na rua ..., freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..., de fls 135 verso, do livro de ..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...;
─ O referido terreno adveio à sua propriedade por via do processo de inventário aberto por óbito de QQ e RR que correu termos no, agora, Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Gondomar- Instância local - Secção Cível- J3, sob o n.º 1778/08.9TBGDM;
─ Por escritura pública datada de 16.03.1948, a antecessora dos AA. e anterior proprietária do referido imóvel, RR, no estado de viúva, deu de arrendamento a SS e à esposa, TT, uma parcela do identificado terreno destinado a construção;
─ O citado arrendamento mantém-se em vigor e, na presente data, são os RR. os sucessores de SS e da sua esposa, TT;
─ Por comunicação datada de 12.12.2018, com aviso de recepção, e enviada pelos AA. aos RR. na referida data, os AA. promoveram a transição do contrato de arrendamento não habitacional supra identificado para o NRAU, tenho fixado a renda mensal no valor de € 226,00, correspondente a 1/5 do valor patrimonial do locado;
─ Em 28.12.2018 os RR. responderam aos AA. que, no seu entender, o contrato em causa não estaria abrangido pelo NRAU, propondo, contudo, o pagamento do valor anual de € 100,00, não actualizável;
─ Nessa sequência, os AA. reiteraram o teor da comunicação que enviaram aos RR. em 12.12.2018, informando-os que o valor da renda fixada, no montante de € 226,00, lhes era devido a partir do dia 01.03.2019;
─ Não obstante o exposto, os RR. não pagaram o valor da renda devida e fixada pelos AA..
Contestaram apenas os RR. OO e PP JJ e mulher, KK.
No que para o recurso releva, JJ e mulher, KK, alegaram:
─ Os antecessores dos AA. cederam aos sucessores dos RR. um terreno que tinha uma especifica destinação ─ construção por parte destes últimos de casas para habitação, naquele terreno cedido, uma contrapartida monetária anual;
─ Ao longo dos anos, os RR. contruíram no prédio cedido casas de habitação;
─ O contrato a que alude o doc. 4 da PI, não consubstancia um contrato de arrendamento, não estando sujeito às regras especificas do regime do arrendamento urbano;
─ Por via desse contrato, foi constituído um direito de superfície ao abrigo do qual os antecessores dos AA. deram autorização aos antecessores dos RR. para construírem em chão alheio as casas que por estes vieram a ser efetivamente construídas e habitadas;
─ Mediante a contrapartida de pagamento anual de uma quantia monetária especificamente fixada, de 600 escudos anuais (3 €/anuais) – cfr. Clausula 2.ª do doc 4;
─ Conforme se retira da cláusula 5ª do doc. 4, os intervenientes pretenderam a renovação automática do contrato, e acordaram que caso a cedente não permitisse a renovação (o que nunca veio a acontecer), teria de pagar aos cessionários o valor equivalente ao triplo do valor das benfeitorias por estes aí realizadas;
─ Os RR. sempre cumpriram com o pagamento acordado, encontrando-se a contrapartida devida paga até 2033;
─ Neste sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 02.11.2006, citando Cunha Gonçalves, que “o contrato pelo qual alguém é autorizado a fazer construções ou plantações em terreno alheio, conservando a propriedade delas, embora seja denominado locação, porque é temporário e o pagamento do solário se confunde com a renda, deverá ser classificado como direito de superfície”;
─ Pelo que, não são devidas as quantias peticionadas, seja a título de rendas, porque não existe contrato de arrendamento, seja a outro título, porquanto a contrapartida fixada por acordo está paga;
Em sede de reconvenção:
─ O prédio urbano identificado no artigo 1.º da petição inicial, tal como se encontra/existe actualmente, não pertence aos AA.;
─ Sobre tal parcela do prédio foram realizadas e encontram-se incorporadas obras que foram feitas, primeiro, há mais de 70 anos, pelo falecido pai e sogro dos RR., ora reconvintes e, mais tarde, há mais de 40 anos, pelo casal reconvinte, obras estas acabadas e que consistiram na construção de uma casa de habitação identificada como casa ...;
─Tais obras foram realizadas com o consentimento dos antecessores dos AA. – consentimento expresso no documento junto com a PI;
─ Pelo que, desde logo, tendo existido expresso consentimento dos Reconvindos (ou seus antecessores) para a construção feita pelos Reconvintes, estes estão, como sempre estiveram, de boa-fé;
─ O prédio (entenda-se, a sobredita parcela) tal como existe actualmente é resultado das obras de construção custeadas por aqueles sobreditos, cujo montante global por ora não conseguem concretizar, na medida em que desconhecem o valor suportado pelo referido falecido, mas, no que respeita ao valor global suportado
pelos reconvintes, este ascende a mais de € 35.000,00;
─ Pelo que o prédio a que alude a PI perdeu, pelo menos no que respeita à parcela onde se encontra construída a casa habitada pelos reconvintes, a sua autonomia, pois as obras aí realizadas por estes não podem separar-se do imóvel;
─ Pelo que, da incorporação da obra feita pelos reconvintes em parte do prédio a que alude a PI, resultou a constituição de uma unidade inseparável, permanente e definitiva de um todo único entre o terreno e a obra;
─ Parte do prédio que ora se discute, nomeadamente a parte em que foi construída a casa dos reconvintes, após a construção aí implantada pelos reconvintes, é definitiva, sendo composta por uma casa de rés-do-chão, destinada a habitação, identificada como casa ..., composta por hall, dois quartos, uma sala, uma casa de banho, uma cozinha, uma despensa e um sótão;
─ A parte do prédio dos autos, onde foi construída obra pelos Reconvintes, antes da construção, não valia mais do que € 100,00;
─ A parte do prédio onde foram implantadas as obras, que atualmente consiste numa casa de habitação, tem um valor de mercado nunca inferior a € 60.000,00;
─ O valor acrescentado pela obra feitas pelos reconvintes na parte do prédio dos autos trouxe-lhe um valor acrescentado, de, pelo menos € 59.900,00 [€ 60.000,00 (valor após a construção) – € 100,00 (valor antes da construção)];
─ Encontram-se, assim, verificados os elementos cumulativos integradores da acessão industrial imobiliária, nomeadamente:
a) a construção de uma obra (realizada em prédio rústico ou urbano), sementeira ou plantação resultante de um acto voluntário do interventor;
b) que essa obra haja sido efectuada em terreno que seja propriedade de outrem, ou seja, que ocorra uma implantação em terreno alheio;
c) que os materiais utilizados na obra, sementeira ou plantação pertençam ao interventor/autor da incorporação;
d) que da obra tenha resultado uma incorporação, ou seja, a constituição definitiva. e) que da incorporação da obra, sementeira ou plantação resulte a constituição de uma unidade inseparável, permanente, definitiva de um todo único entre o terreno e a obra, sementeira ou plantação;
f) que o valor acrescentado pela obra, sementeira ou plantação acrescente valor (económico e substantivo) àquele que o prédio possuía antes de ter sofrido a incorporação da obra, sementeira ou plantação seja superior ao valor que o prédio tinha antes da incorporação;
g) que o autor da obra, sementeira ou plantação tenha agido de boa fé (psicológica);
─ A acessão é sempre um acto de inovação, praticado por quem tem uma relação possessória, por quem exerça posse, em termos de propriedade ou em termos de propriedade superficiária;
─Nos termos e por força do artigo 1340.º CC, os Reconvintes adquiriram a propriedade da parte (parcela) do prédio a que alude a PI, precisamente aquela porção de terreno onde se encontra implantada a casa habitada pelos reconvintes e que é resultado da construção de obra por estes realizada e suportada – aquisição por via da acessão industrial imobiliária, que pretendem ver declarado por este Tribunal;
─ Na eventualidade do Tribunal não entender encontrarem-se verificadas, in casu, as regras sobre a acessão imobiliária, por todas as razões de facto e de direito já expostas, o contrato dos autos (doc. 4 junto com a PI) importou a constituição de um direito de superfície sobre o prédio dos autos ─ o que deverá se declarado por este Tribunal.
Concluem pedindo que a reconvenção seja julgada totalmente e, consequentemente ser declarado e os Reconvindos condenados a reconhecer, transmitido para os Reconvintes, por acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade sobre a aludia parcela do prédio dos autos, incluindo a construção nele implantada, com efeitos retroativos, ainda que condicionada ao pagamento de uma indemnização aos reconvindos em valor nunca superior a € 100,00 (cem euros), ou, se assim não se entender, seja declarado, e os Reconvindos condenados a reconhecer, que o contrato dos autos, consubstancia a constituição de um direito de superfície sobre o prédio dos autos.
Replicaram os AA., alegando:
─ Os RR. para além de terem formulado pedido reconvencional, vêm igualmente alegar factos novos, os quais são susceptíveis de serem extintivos ou modificativos do direito que os AA. pretendem aqui fazer valer em juízo;
A. Da [in] aplicabilidade do artigo 266º, n.º 2 alínea a) CPC
─ O requisito substantivo da admissibilidade da reconvenção, consagrado na alínea a) do n.º 2 do artigo 266º CPC, implica que o pedido formulado em reconvenção resulte naturalmente da causa de pedir dos AA. ou seja normal consequência do facto jurídico que suporta a defesa, que tem o propósito de obter uma modificação ou extinção do pedido dos AA..
─ O facto jurídico que serve de fundamento à pretensão formulada pelos AA. é o contrato de arrendamento celebrado por escritura pública outorgada a 16.03.1949, que teve por objecto a parcela de terreno em causa;
─ Já o pedido reconvencional, assenta num outro facto jurídico (que nada tem a ver com a presente acção), que se prende com o pretenso direito de propriedade que os RR. alegam ter sobre a referida parcela de terreno e a casa nela construída;
─ Em sede de contestação, alegam os RR., como facto extintivo do direito dos AA., que “mediante o contrato outorgado em 16.03.1948 foi constituído um direito de superfície em que os AA. são proprietários do solo e os RR. proprietários das casas.” – cfr. artigo 14.º da contestação com reconvenção;
─ Já em sede de reconvenção alegam os RR. que adquiriram a propriedade da parte (parcela) do prédio a que alude a PI, precisamente aquela porção de terreno onde se encontra implantada a casa habitada por eles – cfr. artigo 37º da contestação com reconvenção;
─ Ou seja, o facto invocado pelos RR., em sede de contestação, e com a pretensa virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido formulado pelos AA. é totalmente distinto do facto que serve de fundamento ao pedido reconvencional;
B. Da [in]aplicabilidade do artigo 266º, n.º 2 alínea b) e d) CPC
─ Compulsada a douta contestação com reconvenção, facilmente se constata que os RR. não se propõem tornar efetivo qualquer direito a benfeitorias ou despesas relativas à parcela de terreno, cuja entrega, aliás, também não é pedida;
─ Nem pretendem conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que os AA. se propõem obter [pagamento das rendas vencidas e não pagas];
C. Da [in]aplicabilidade do artigo 266º, n.º 2 alínea c) CPC
─ A alínea c) do n.º 2 do artigo 266.º do Cód. Proc. Civil prevê que a reconvenção só é admissível se o R. pretender o reconhecimento de um crédito e a sua respectiva compensação;
─ De acordo com o disposto no artigo 847.º CC quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer uma delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, desde que preenchidos os seguintes requisitos:
a) ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele excepção, peremptória ou dilatória, de direito material; e
b) terem as duas obrigações por objecto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.
─ A compensação impõe, que as duas obrigações sejam fungíveis da mesma espécie e qualidade, o que não sucede no caso vertente, em que se discute o pagamento de rendas;
─ Não podem os RR., no âmbito destes autos, pretender o reconhecimento do direito de propriedade de um imóvel ao qual atribuem, arbitrariamente, um valor pecuniário;
─ Os RR. sempre teriam que admitir o crédito dos AA., nem que seja a título meramente subsidiário, ao qual os RR. oporiam o seu próprio crédito.
─ E essa admissão não opera por simples efeito do direito, impondo-se que haja manifestação de vontade de um dos credores - devedores nesse sentido;
─ Os RR. não podem alegar a compensação se negarem a existência do crédito invocado pelos AA. - neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.09.2010, processo n.º 652/07.OTVPRT.P1S1 e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 07.11.2017, processo n.º 14204/16.0T8PRT-A.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt;
In casu, os RR. não reconhecem qualquer direito dos AA., muito pelo contrário, afirmam que “não são devidas as quantias peticionadas” - vide artigo 17.º da contestação com reconvenção; que “o prédio urbano identificado no artigo 1º da petição inicial (…) não pertence aos AA.” - vide artigo 19.º da contestação com reconvenção.
─ O não preenchimento de nenhum dos pressupostos previstos no artigo 266.º, n. º 2, CPC conduz à inadmissibilidade da reconvenção deduzida nos autos;
ii. Do caso julgado
─ No ano de 2006, a A., viu-se confrontada com o facto da propriedade do imóvel em causa se encontrar inscrita a favor dos RR. e com o facto de sobre o referido imóvel se encontrar registada uma penhora a favor de terceiro;
─ Perante tal factualidade, invocando o contrato de arrendamento em discussão nos autos, peticionou, em súmula, a condenação dos RR. a reconhecerem-na como comproprietária da parcela de terreno em causa; o cancelamento da inscrição da mencionada penhora e do registo de propriedade a favor dos RR.;
─ Em sede de contestação, àquela data, os RR. alegaram, entre o demais, serem
donos e legítimos proprietários da parcela de terreno, objecto do contrato de arrendamento em causa por terem adquirido o direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa por força do instituto da acessão imobiliária;
─ Por sentença transitada em julgado, em 12.03.2009, proferida no âmbito do referido processo, n.º 1280/06.3TBGDM, que correu termos no Tribunal Judicial de Gondomar – 2.º juízo cível, ficou provado, entre o demais:
“6- por escritura de arrendamento outorgada a 16 de março de 1949, UU, como senhoria, e SS e TT, como arrendatários,
7-declaram, ainda, na mesma escritura, que «o terreno faz parte do descrito na competente Conservatória no livro ..., a fls 135, verso, sob o n.º ... e do inscrito na respectiva matriz sob o n.º ...»”……” – tudo conforme certidão emitida, a 13.04.2009, pelo Tribunal Judicial de Gondomar- 2.º juízo cível, que se junta sob o documento n.º 1, cujo teor se dá por integralmente reproduzido e integrado para os devidos efeitos legais;
─ Nessa sequência, foram os RR. condenados a reconhecerem a A. como comproprietária da parcela de terreno onde se encontra implantada a casa construída pelos antecessores dos RR., na sequência do contrato de arrendamento celebrado com os antecessores dos AA.;
─ Assim, existindo identidade de sujeitos, de causa de pedir e do respectivo pedido nas duas acções, como é o caso, verifica-se a existência de caso julgado quanto à matéria em discussão nos presentes autos, excepção dilatória prevista no artigo 577.º alínea i) CPC, que obsta a que o tribunal conheça o mérito da causa e dá lugar à absolvição dos AA. da instância ─ artigo 576º, n.ºs 1 e 2, CPC;
iii. Do alegado direito de superfície dos RR. sobre a parcela de terreno onde se encontra construída a casa
─ Face a tudo quanto se exposto, aos factos que ficaram provados e à decisão proferida no âmbito do processo n.º 1280/06.3TBGDM, inexiste qualquer fundamento factual e jurídico para o direito de superfície alegado pelos RR.;
(…)
─ Importa, ainda, relembrar que a constituição do direito de superfície está sujeita a registo – cfr. artigo 2. º, n.º 1 alínea a) do Código do Registo Predial, registo, esse, inexistente no caso - cfr. documento n.º 1 junto com a contestação com reconvenção;
─ E que, mesmo que os RR. fossem titulares do direito de superfície invocado, teriam sempre que pagar a renda pela ocupação do terreno;
Sem prescindir,
iv. por impugnação
(…)
v. da condenação dos RR. em litigância de má fé
(...).
Em 03.05.2021 foi proferido o seguinte despacho:
Da admissibilidade da Reconvenção:
Pretendem os AA que a Reconvenção deduzida pelos RR JJ e PP é inadmissível por não integrar nenhuma das previsões das alíneas a) a d) do nº. 2 do artº. 266º. do CPC.
Decidindo:
A reconvenção constitui uma exceção ao princípio da estabilidade da instância (artº. 260º do CPC), pois implica uma modificação objetiva da mesma, dependendo por isso a sua admissibilidade do preenchimento de determinados requisitos objetivos, através dos quais se pretende assegurar uma certa conexão entre o pedido reconvencional e o pedido do autor, a fim de que não se produza uma perturbação processual que comprometa a própria finalidade da ação.
Assim, preceitua o artº. 266º. nºs 1 e 2 do CPC, que o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor quando: o pedido emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa; se propõe obter a compensação ou tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; o pedido tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
Os RR alegam na contestação que o contrato de arrendamento em que os AA fundam o pedido de pagamento de rendas e indemnização não configura um contrato de arrendamento mas antes a constituição de um direito de superfície ao abrigo do qual os antecessores dos AA deram aos antecessores dos RR autorização para construírem as casas que vieram a ser contruídas sendo que, para além das obras efetuadas há mais de 70 anos pelos pais e sogros dos RR, estes construíram uma casa de habitação que constitui uma unidade inseparável. Concluem pedindo que se reconheça “transmitido para os Reconvintes, por acessão industrial imobiliária, o direito de propriedade da parcela dos autos, incluindo a construção nela implantada” e, subsidiariamente, que se declare e condene os AA a reconhecer que o contrato dos autos consubstancia a constituição de um direito de superfície sobre o prédio dos autos.
Resulta do exposto que o pedido reconvencional formulado pelos RR reconduz-se à modalidade de pedido reconvencional emergente do facto jurídico que serve de fundamento à defesa
Como refere Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, 1999, págs. 488 e 489), nestes casos o pedido reconvencional funda-se total ou parcialmente nos mesmos factos em que o próprio réu funda uma exceção perentória ou com os quais indiretamente impugna os factos alegados na petição inicial.
No mesmo sentido decidiu-se no Acórdão da RL de 19.03.1998 (Processo nº 0000632, in http://www.dgsi.pt/) que “a reconvenção é admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico (causa de pedir) que a verificar-se, produza efeito útil defensivo, que tenha a virtualidade para reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.”
Termos em se conclui pela admissibilidade legal do pedido reconvencional, à luz do estatuído no artigo 266º, n.º1 e 2, al. a) do CPC, que, assim, vai admitido.
*
Do valor da ação:
Dispõe o artigo 296º. do CPC que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, que representa a utilidade económica do pedido, dispondo o nº. 1 do artº 297º. Que “Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, …”, dispondo o nº. 3 do mesmo dispositivo que, no caso de dedução de pedidos subsidiários, se atende apenas “ao pedido formulado em primeiro lugar” e do nº. 2 do artº. 299º. que “O pedido formulado pelo réu ou pelo interveniente só é somado ao valor do pedido formulado pelo autor quando os pedidos sejam distintos, …”, não sendo distinto o pedido quando o réu pretende obter o mesmo efeito jurídico pretendido pelo autor – cfr. nº. 3 do artº. 530º. Do CPC.
O pedido reconvencional deduzido é distinto do peticionado pelos AA, atribuindo os RR reconvintes à reconvenção o valor de € 60.000,00 que alegam ser o valor do todo resultante da incorporação da construção no terreno dos autos, valor a que não se opuseram os AA.
A acessão industrial é uma forma de aquisição originária da propriedade – cfr. artº. 1340º. do CC. - pressupondo a acessão industrial imobiliária a incorporação de uma construção que pertence a uma pessoa, num terreno que pertence a outra pessoa, perdendo as coisas incorporadas no terreno a sua individualidade física e jurídica e formando com o terreno uma coisa nova, um «corpo único», com um valor próprio – v. P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, III, 164 – sendo o valor desta nova realidade que há-de servir de critério para fixação do valor da ação quanto ao pedido em que assenta a acessão industrial imobiliária em obediência ao disposto no artº. 302º. do CPC que dispõe que “Se a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa”.
Como referimos em cima, os Reconvintes alegam que o valor do imóvel resultante da incorporação e cuja propriedade querem ver reconhecida é de € 60.000.00, valor a que não se opuseram os AA, sendo este o valor que deve ser atribuído à reconvenção.
Assim, e ao abrigo do disposto nos artºs 299º. nº. 2, 302º. nº.1, 305º. nº. 1 e 306º. nº. 1 do CPC fixo à causa o valor de € 63.729,00 (€ 60.000,00 + € 3.729,00).
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Em consequência do valor da presente causa assim fixado, ao abrigo do disposto nos artigos 41.º e 117.º, n.º1 c) da Lei 62/2013 de 26 de agosto, resulta ser este Juízo Local Cível incompetente em razão do valor para a preparação e julgamento da presente ação, competência que cabe à secção Cível do Juízo Central.
Em face do exposto, julga-se este Juízo Local Cível incompetente em razão do valor para a preparação e julgamento dos presentes autos, de harmonia com o disposto nos artigos 102.º, 104.º, nº. 2, 310.º, n.º. 1 todos do Código de Processo Civil e 41.º e 117.º, n.º 1 a) da Lei 62/2013 de 26 de agosto.
Notifique, incluindo o Ministério Público, registe e dê baixa.
Após trânsito, remeta os autos aos Juízos Centrais Cíveis da Comarca do Porto.
No Juízo Central Cível foi proferida sentença que:
a) declarou os RR. /reconvintes JJ e mulher, KK, partes ilegítimas para o pedido reconvencional, dele absolvendo da instância os AA./reconvindos AA, BB e CC; e
b) julgou a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido.
Inconformados, apelaram os AA., apresentando as seguintes conclusões:
1. Ao concluir não serem aplicáveis ao caso em julgamento as regras do arrendamento urbano, sem definir que regras seriam as aplicáveis, a sentença recorrida violou o disposto no artigo 10º do Código Civil.
2. Porque inexistem normas legais que regulem os contratos de arrendamento de prédios rústicos para finalidades não agrícolas, devem ser-lhe aplicadas as normas da locação civil e do arrendamento urbano para fins não habitacionais.
3. Pois as normas do arrendamento urbano dividem-se na parte específica do fim habitacional e na parte geral de outros fins (fim não habitacional).
4. Inexistindo norma que regule a atualização das rendas dos contratos de prédios rústicos não rurais (ou agrícolas) e não sendo admissível concluir apenas que não há norma que regule essa atualização,
5. tem de concluir-se que a atualização da renda do contrato de arrendamento em causa segue as regras estabelecidas para a atualização das rendas dos contratos de arrendamento urbano para qualquer fim não habitacional.
6. Ao decidir como decidiu, a decisão recorrida violou, designadamente o disposto no artigo 10º do Código Civil.
Termos em que e nos melhores de Direito que VV. Ex.cias doutamente suprirão, deve a decisão recorrida na parte em que absolveu os RR. do pedido, ser revogada e substituída por outra que, considerando legal e fundamentada a atualização da renda à luz das regras da locação civil e do arrendamento urbano para fim não habitacional, julgue a ação procedente e condene os RR. no pedido, como é de lei e são justiça.
Também os RR. reconvintes apelaram, assim concluindo:
1 - Por douta sentença proferida a fls…., foi decidido: “Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais combinadas dos arts. 33, 278 nº 1 al. d), 577 al. e) e 578, todos do Código de Processo Civil, bem como do art. 2091 do Código Civil, declaro os réus/reconvintes JJ e mulher, KK, partes ilegítimas para o pedido reconvencional, dele absolvendo da instância os autores/reconvindos AA, BB e CC. Custas, nesta parte, pelos réus reconvintes, fixando-se o seu decaimento em 60.000,00 euros (valor do pedido reconvencional).”
2 - Salvo o devido respeito, não podem os Apelantes concordar com a decisão proferida, porquanto violou, entre outras, as disposições contidas nos artigos 3º e 6.º do CPC e nos artigos 33.º, 316.º e 261.º do Código Civil e está ferida da nulidade prevista no art. 195.º do CPC.
3 - Com efeito, esta decisão judicial consubstancia uma verdadeira decisão surpresa, pois nunca o Tribunal a quo convidou as partes para se pronunciarem sobre a questão da ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, que decidiu conhecer oficiosamente.
4 – Sendo que tal questão nunca foi levantada nem discutida pelas partes nos autos.
5 – Na verdade, os apelantes apresentaram o seu articulado de contestação e reconvenção (refª 27632755), através do qual, alegaram que em parte do terreno em discussão realizou obras de construção que aí se encontram incorporadas e acabadas, que consistiram na construção de uma casa de habitação identificada como casa ..., sendo uma unidade inseparável, permanente e definitiva de um todo único entre o terreno e a obra, que tal parcela valia cerca de 100,00 e agora, após a construção, consiste numa casa de habitação que vale cerca de 60.000,00, concluindo encontrarem-se verificados os elementos cumulativos integradores da acessão industrial imobiliária, e pugnando, a final, seja declarado pelo tribunal, nos termos e por força do artigo 1340.º do Código Civil, que os Reconvintes adquiriram a propriedade da parte (parcela) do prédio a que alude a PI.
6 - Após requerimento de resposta dos apelados (com a refª 28321313), onde estes não invocam tal excepção, foi admitida a reconvenção por despacho de fls. 160, com a refª 424287441.
6 – Por despacho de fls…, com a refª 425649504, foi determinado pelo Exmo. Sr. Juiz a quo: “entendemos solicitar aos ilustres mandatários das partes que, em 15 dias, informem da sua disponibilidade para uma das três seguintes possibilidades de procedimento:
1- Os ilustres mandatários das partes contactarem entre si e, sendo possível a obtenção de acordo, fazerem chegar a este tribunal a respectiva transacção ou dizerem o que se lhes oferecer por conveniente relativamente a eventuais negociações em curso;
2- Não sendo possível a obtenção de acordo, ser dispensada a realização de audiência prévia, prosseguindo os autos com despacho saneador que será notificado às partes, concedendo-se-lhes o prazo de 15 dias para se pronunciarem por escrito quanto ao mesmo e/ou reformularem os seus requerimentos probatórios (sem prejuízo de prazos legais mais alargados, nomeadamente relativos a interposição de recurso, em caso de conhecimento do mérito de algumas das excepções invocadas);
3- Designar-se data para audiência prévia, mas tão só com a intervenção e presença dos ilustres mandatários das partes junto deste tribunal.
*
Pese embora o acima referido e por uma questão de lealdade e colaboração com as partes, ficam estas também desde já advertidas que, compulsados os autos, articulados das partes e documentos juntos, pondera o tribunal a eventualidade de estar já em condições de conhecer imediatamente do mérito da causa, tanto em sede de acção como de reconvenção, destinando-se a audiência prévia a facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos termos do disposto no art. 591 nº 1 al. b) do Código de Processo Civil (atrevendo-se assim o tribunal a sugerir esforços acrescidos às partes no sentido de encontrarem uma solução negociada que ponha termo à acção).”
7 – E, por sentença de fls…, com a refª 427774151, que ora se sindica, decidiu o Tribunal a quo declarar os Réus/reconvintes ora apelantes, parte ilegítima para o pedido reconvencional dele absolvendo da instância os autores/reconvindos.
8 – Assim decidindo, o Tribunal a quo fê-lo inopinadamente e com inobservância do principio do contraditório.
9 – Destarte, não tendo o Tribunal a quo observado o contraditório dos apelantes, e considerando que o conhecimento oficioso da excepção de ilegitimidade influi no exame e na decisão final, tal inobservância constitui uma nulidade processual nos termos do art. 195.º do CPC.
10 – Sem prescindir de que, os Reconvintes na sua reconvenção aí intervêm também em nome próprio, reivindicando direito próprio, pelo que, pelo menos e nessa medida, não existe qualquer ilegitimidade ativa dos reconvintes, devendo os autos ter prosseguido para julgamento.
Nestes termos e nos melhores de direito, que será doutamente suprido por V. Exas., deverá ser dado provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da douta sentença recorrida,
Assim se fazendo como sempre,
JUSTIÇA!

Contra-alegaram os RR. reconvintes concluindo nos termos seguintes:
1 – Conforme fundamenta a sentença proferida:
Como vimos já acima, trata-se de analisar o contrato outorgado por escritura pública, datada de 16.03.1948, mediante o qual RR, antecessora dos autores, declara arrendar a SS e esposa, TT (pais dos réus e seus sucessores universais), o “terreno” que “destina-se a construção” e aí identificado..Como consta da respectiva escritura pública, o “arrendamento” refere-se a “... um terreno em forma de trapézio ... medindo pelo lado poente ... nove metros, pelo sul ... trinta e trez metros e meio e pelo norte ... trinta metros ... o prazo de duração é de dezanove anos ... a renda anual é de trezentos escudos ... o terreno arrendado destina-se a construção...”Pretendem os autores que tal arrendamento está sujeito ao NRAU, discordando os réus contestantes (aliás, configuram-no mesmo como contrato de direito de superfície).A causa de pedir e os pedidos dos autores, tal como alegados, configuram, indubitavelmente, uma relação de arrendamento, sendo essa a questão a decidir, ou seja, se se trata de arrendamento a que seja aplicável o NRAU. Desde logo, adiantamos que se nos afigura que a resposta é negativa. Os prédios rústicos e urbanos são coisas imóveis, entendendo-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (art. 2014 do Código Civil).Ou seja, não nos restam quaisquer dúvidas de que o objecto do contrato e “arrendamento” acima referidos, se referem um prédio rústico (um terreno em forma de trapézio delimitado no solo).Ora, sejam ou não destinados a habitação, também não nos restam dúvidas de que as normas do RAU, do NRAU e respectivas disposições legais nele inseridas, se destinam a regular apenas arrendamentos urbanos e não arrendamentos rústicos (“Novo Regime do Arrendamento Urbano -Artigo 1.º -Objecto -A presente lei aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU)”. Não sendo tal diploma legal aplicável a arrendamentos não urbanos, por maioria de razão, não lhe é aplicável o disposto no art. 50 do NRAU (que se destina a regular a transição para o NRAU dos arrendamentos urbanos para fins não habitacionais).Assim sendo, a acção é manifestamente improcedente.
2 - E mesmo que o douto tribunal ainda assim o não entenda, sempre terá de concordar que sempre estaríamos num caso não subsumível às regras do RAU ou NRAU, porquanto,
3 - Efetuada análise ao contrato verifica-se que, os Antecessores dos AA, por contrato celebrado por escritura publica, apesar de estar denominado como arrendamento, decorre do seu conteúdo, inequivocamente, que aqueles antecessores dos AA cederam aos Sucessores dos Reus, um terreno que tinha uma especifica destinação- construção por parte destes últimos- subentenda-se- de casas para habitação, naquele terreno cedido, sendo devida uma contrapartida monetária anual.
4- por efeito deste contrato não estamos perante a mera cedência do gozo de um imóvel, tal como acontece nos arrendamentos.
5 - Neste caso concreto, estamos perante a constituição de um direito de superfície ao abrigo do qual os Antecessores dos AA deram autorização aos Antecessores dos Reus para construírem em chão alheio as casas que por estes vieram a ser efetivamente construídas.
6 - Ora, a faculdade de implantar e manter edifício próprio em chão alheio, sem aplicação das regras sobre acessão imobiliária, é denominada, pelo artigo 1º da Lei 2030 de 22.06.de 1948, direito de superfície (embora a esta data apenas se previa este direito pelo Estado).
7 - atento os factos supra alegados, não restam quaisquer duvidas que o contrato celebrado em 16/03/1948 se caracteriza , não como um contrato de arrendamento, conforme os AA pretendem fazer crer, mas, antes, como de constituição de um direito de superfície.
8 - E sendo o direito de superfície configurado como um autêntico ius in re, hoje no Livro III do nosso Código Civil em vigor, nos direitos das coisas.
9 - Pelo que a sentença recorrida não violou nenhum preceito legal, conforme alegam os AA.
10- Pelo que deve a sentença proferida em 10/09/2021, referencia CITIUS 427774151, ser mantida e confirmada, pois bem andou de acordo com o estabelecido na lei e, ser julgado totalmente improcedente o recurso deduzido pelos AA recorrentes.
Termos em que,
Deve a douta sentença recorrida ser confirmada, decidindo-se no mesmo sentido, permitindo que assim se faça a esperada
JUSTIÇA.
2. Fundamentos de facto

Consideram-se provados por documentos os seguintes factos:
1. O prédio denominado “...”, sito na rua ..., freguesia ..., concelho de Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ..., de fls. 135 verso, do livro de ..., e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ... adveio à propriedade dos AA. por via do processo de inventário aberto por óbito de QQ e RR que correu termos no, agora, Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Gondomar- Instância local - Secção Cível- J3, sob o n.º 1778/08.9TBGDM.
2. Por escritura pública datada de 16.03.1948, a antecessora dos AA. e anterior proprietária do referido imóvel, RR, no estado de viúva, declarou dar de arrendamento a SS e à esposa, TT, uma parcela do identificado terreno em forma de trapézio, medindo pelo lado poente nove metros, pelo sul trinta e três metros e meio e pelo norte trinta metros, mediante a contrapartida de pagamento anual de uma quantia monetária especificamente fixada, de 600 escudos anuais, pagos no final de cada ano.
3. O terreno arrendado destinava-se à construção.
4. Foi celebrado pelo prazo de 19 anos renováveis, a começar em Abril desse ano.
5. Foi estabelecido na cláusula 5.ª que se a cedente não permitisse a renovação teria de pagar aos cessionários o valor equivalente ao triplo do valor das benfeitorias por estes aí realizadas.
3. Do mérito do recurso
O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigos 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se na seguintes questões:
─ nulidade, por violação do contraditório, da decisão que decretou a ilegitimidade dos apelados para a dedução de pedido reconvencional por preterição de litisconsórcio necessário:
se ao contrato de arrendamento em causa se aplica o regime do NRAU.

3.1. Da nulidade, por violação do contraditório, da decisão que decretou a ilegitimidade dos apelados para a dedução de pedido reconvencional por preterição de litisconsórcio necessário
Os apelantes reconvintes arguiram a nulidade, por violação do contraditório, da decisão que decretou a sua ilegitimidade a para a dedução de pedido reconvencional por preterição de litisconsórcio necessário, alegando que se tratou de decisão surpresa.
O pedido reconvencional foi admitido por decisão proferida pela Instância Local Cível a que a acção foi inicialmente distribuída.
Por força do valor que foi atribuído à acção em consequência do pedido reconvencional, os autos transitaram para a Instância Central Cível, que deu a conhecer às partes a possibilidade de conhecer de imediato quer do objecto da acção, quer da reconvenção.
E fê-lo, como se segue:
Nos termos do art. 30 do Código de Processo Civil, autores e réus são partes legítimas quando têm interesse directo em demandar e em contradizer, respectivamente, exprimindo-se esse interesse pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da acção lhes advenham, sendo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados como titulares de tal interesse os sujeitos da relação material controvertida, “tal como é configurada pelo autor”, ou pelo réu, em caso de reconvenção.
A legitimidade afere-se pelos pedidos formulados (tanto em sede de acção como de reconvenção), ou seja, tem de ser apreciada pela utilidade que da procedência ou improcedência da acção ou da reconvenção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor e/ou reconvinte configuram o direito invocado e a posição que as partes, perante os pedidos formulados e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como esta é apresentada na petição inicial ou na reconvenção.
A falta de legitimidade para a acção ou reconvenção constitui uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso pelo tribunal e que tem como consequência a absolvição da instância do réu ou do reconvindo (arts. 278 nº 1 al. d), 577 al. e) e 578, todos do Código de Processo Civil).
No caso presente, resulta inequívoco que todos os réus são demandados enquanto herdeiros da herança não partilhada pelos óbitos de SS e de TT, pais dos réus. Ou seja, na verdade, ré é a herança, representada pela generalidade dos herdeiros (cfr. escritura pública de “habilitação de herdeiros” acima referida”.
E é nessa qualidade que intervêm nos autos os co-réus JJ e mulher, KK.
Aliás, compulsado todo o seu articulado, é também apenas nessa qualidade que formulam o pedido reconvencional (nem poderia ser outra, pois que invocam o contrato celebrado com o seu pai, as obras de construção que este terá efectuado como dono das mesmas e que, por conseguinte, pertencem à sua herança, ainda não partilhada).
Em tal caso, não pode ser invocado qualquer direito de propriedade ou, sequer, de compropriedade (nos termos dos arts. 1403 e 1412 do Código Civil, existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa).
A compropriedade e a comunhão de direitos não se confundem.
Com efeito, enquanto a compropriedade se pode caracterizar como o direito de propriedade, juntamente com outra ou outras pessoas, sobre um bem determinado em concreto (ou sobre uma quota desse bem concreto), a comunhão de direitos (nomeadamente a comunhão patrimonial inerente ao casamento ou o chamado “direito e acção à herança”), incide sobre o património global existente na esfera jurídica do casal ou da herança.
Ou seja, não se confundem tais conceitos, porquanto na compropriedade é- se contitular de um direito sobre um bem determinado em concreto (uma casa, um carro...) e na comunhão de mão comum é-se contitular de um direito que engloba todos os bens existentes no património hereditário, sem se poder dizer que se é dono de uma parte especificada de cada um deles (só com a partilha se averiguarão então quais os bens que compõem o património hereditário e quais, em concreto, caberão a cada um dos herdeiros, podendo até acontecer que um deles fique sem quaisquer bens, recebendo a respectiva contrapartida em dinheiro).
Assim sendo, figurando nesta acção na qualidade de herdeiros pelo óbito dos seus pais, não têm os réus JJ e mulher, KK, legitimidade para, desacompanhados dos demais herdeiros, deduzirem os pedidos reconvencionais acima referidos, nomeadamente no que se refere à aquisição de bens para a herança, através da invocação do direito de aquisição por acessão industrial imobiliária.
É, aliás, o que resulta do disposto no art. 2091 nº 1 do Código Civil, quando preceitua que, fora dos casos excepcionados aí previstos (que não se aplicam ao presente caso), “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros, ou contra todos os herdeiros”.
Trata-se, pois, de uma situação de litisconsórcio necessário, ao abrigo do disposto no art. 33 do Código de Processo Civil.
Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais combinadas dos arts. 33, 278 nº 1 al. d), 577 al. e) e 578, todos do Código de Processo Civil, bem como do art. 2091 do Código Civil, declaro os réus/reconvintes JJ e mulher, KK, partes ilegítimas para o pedido reconvencional, dele absolvendo da instância os autores/reconvindos AA, BB e CC.
No entanto, como sublinham os apelantes reconvintes, o Tribunal recorrido conheceu da questão da ilegitimidade sem que as partes se pudessem pronunciar sobre a mesma e, eventualmente, diligenciassem pela sua sanação (recorde-se que os demais interessados cuja falta determinou a decisão de ilegitimidade já figuram como réus na acção, embora não tenham deduzido contestação).
Desnecessário será sublinhar a importância do contraditório enquanto garantia de um processo justo e equitativo.
Por se tratar de princípio estruturante do processo civil, consagrou-se no artigo 3.º, n.º 3, CPC, que O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
É manifesto que foi cometida nulidade que influi claramente na decisão da causa, impondo-se a anulação da decisão e dos termos subsequentes que dela dependem.
Significa isto que o processo, na parte relativa ao pedido reconvencional, terá que regressar à fase do termo dos articulados, que se dê às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a questão da preterição do litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, CPC., seguindo-se os demais termos.
Procede, pois, a apelação dos reconvintes.
*
3.2. Se ao contrato de arrendamento em causa se aplica o regime do NRAU
A 1.ª instância, não obstante ter considerado que o contrato em causa nos autos configura um contrato de arrendamento, julgou a acção improcedente por lhe considerar inaplicável o NRAU.
Escreveu-se na sentença recorrida:
Como vimos já acima, trata-se de analisar o contrato outorgado por escritura pública, datada de 16.03.1948, mediante o qual RR, antecessora dos autores, declara arrendar a SS e esposa, TT (pais dos réus e seus sucessores universais), o “terreno” que “destina-se a construção” e aí identificado.
Como consta da respectiva escritura pública, o “arrendamento” refere-se a “… um terreno em forma de trapézio … medindo pelo lado poente … nove metros, pelo sul … trinta e trez metros e meio e pelo norte … trinta metros … o prazo de duração é de dezanove anos … a renda anual é de trezentos escudos … o terreno arrendado destina-se a construção…”
Pretendem os autores que tal arrendamento está sujeito ao NRAU, discordando os réus contestantes (aliás, configuram-no mesmo como contrato de direito de superfície).
A causa de pedir e os pedidos dos autores, tal como alegados, configuram, indubitavelmente, uma relação de arrendamento, sendo essa a questão a decidir, ou seja, se se trata de arrendamento a que seja aplicável o NRAU.
Desde logo, adiantamos que se nos afigura que a resposta é negativa.
Os prédios rústicos e urbanos são coisas imóveis, entendendo-se por prédio rústico uma parte delimitada do solo e as construções nele existentes que não tenham autonomia económica, e por prédio urbano qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro (art. 2014 do Código Civil).
Ou seja, não nos restam quaisquer dúvidas de que o objecto do contrato de “arrendamento” acima referidos, se referem um prédio rústico (um terreno em forma de trapézio delimitado no solo).
Ora, sejam ou não destinados a habitação, também não nos restam dúvidas de que as normas do RAU, do NRAU e respectivas disposições legais nele inseridas, se destinam a regular apenas arrendamentos urbanos e não arrendamentos rústicos (“Novo Regime do Arrendamento Urbano - Artigo 1.º - Objecto - A presente lei aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU)”.
Não sendo tal diploma legal aplicável a arrendamentos não urbanos, por maioria de razão, não lhe é aplicável o disposto no art. 50 do NRAU (que se destina a regular a transição para o NRAU dos arrendamentos urbanos para fins não habitacionais).
Assim sendo, a acção é manifestamente improcedente.
Insurgem-se os apelante AA. contra esta decisão, afirmando que o Tribunal recorrido se limita a afirmar que ao arrendamento de prédios rústicos não se aplicam as regras do arrendamento urbano, sem indagar que regras são as aplicáveis a este concreto arrendamento de prédio rústico.
Afastam os apelantes a aplicação das regras especiais do arrendamento rural, por estas apenas serem aplicáveis a “arrendamento (total ou parcial) de prédios rústicos para fins agrícolas, florestais ou outras atividades de produção de bens ou serviços associados à agricultura, à pecuária ou à floresta”, conforme artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 294/2009, de 13 de Outubro, que aprova o regime jurídico do arrendamento rural.
Referem que, na vigência do RAU (Regime jurídico expressamente referido na douta sentença recorrida como não sendo aplicável ao arrendamento de prédios rústicos) essa solução estava expressamente prevista no respectivo artigo 6º, que consignava: “Aos arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais (…) aplica-se o regime de locação civil, bem como o disposto nos artigos (…) do presente diploma”.
E que até à entrada em vigor do RAU (15.11.1990), dispunha o artigo 1083.º CC (cuja Secção VIII era titulada por “Arrendamento de prédios urbanos e de prédios rústicos não abrangidos na secção precedente” – a do arrendamento rural ─ que: “Os arrendamentos de prédios urbanos e os arrendamentos de prédios rústicos não compreendidos no artigo 1064º (Arrendamento rural) ficam sujeitos às disposições desta secção (…)”.
Concluem que sempre o legislador expressamente mandou aplicar as normas da locação civil ao arrendamento de prédios rústicos para fins não abrangidos pelo regime legal especial do arrendamento rural e supletivamente as regras do arrendamento urbano nos casos omissos.
E consideram ser a única solução legalmente admissível, e que ao arredar de todo a aplicação das normas do arrendamento urbano a todos os arrendamentos de prédios rústicos, o legislador deixou em zona totalmente branca de legislação os arrendamentos rústicos não rurais, havendo que recorrer às regras estabelecidas para o arrendamento urbano para fim não habitacional para preencher a respetiva lacuna, nos termos do artigo 10.º CC.
Apreciando:
Está definitivamente assente que o contrato em causa nos autos é um contrato de arrendamento.
Embora os apelados na contra-alegação insistam que não está em causa um contrato de arrendamento mas a constituição de um direito de superfície, acabam por concluir pela confirmação da sentença.
A sentença na parte relativa ao contrato de arrendamento, comporta dois segmentos: o da qualificação do contrato e o da inaplicabilidade do NRAU (em rigor, não se discute qual o regime aplicável, mas tão só se se aplica o NRAU).
Os apelados não podiam, naturalmente, recorrer desta parte da sentença, por não terem ficado vencidos, mas poderiam ter ampliado o âmbito do recurso, nos termos do artigo 636.º, n.º 1, CPC, prevenindo a necessidade da apreciação do segmento em que decaiu (o da qualificação do contrato).
Não o tendo feito, é irrelevante a discordância manifestada nas contra-alegações acerca da qualificação do contrato.
Importa, agora, determinar se ao contrato em causa ─ contrato de arrendamento rústico não sujeito a regime especial ─ se aplica o regime do NRAU.
A sentença recorrida responde negativamente a esta questão, argumentando que as normas do NRAU se destinam a regular apenas arrendamentos urbanos e não arrendamentos rústicos, por o artigo 1.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro estabelecer que A presente lei aprova o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU).
Afigura-se que este entendimento faz uma leitura redutora do conceito doutrinário de arrendamento urbano.
Como refere Pinto Furtado, Manual de Arrendamento Urbano, Almedina, 4.ª edição actualizada, vol. I, pg. 112-3,
A expressão arrendamento urbano tinha no entanto ganho, desde a primitiva formulação do CC, um sentido especial e ambivalente, que tem vindo a persistir através de sucessivas grandes reformas arrendatícias.
Com o NRAU, a par de, no novo normativo do CC, se referir a Arrendamento de Prédios Urbanos, como epígrafe da Secção VII do Capítulo dedicado à Locação, em vários dos seus artigos conservou-se a expressão arrendamento urbano (arts. 1066-1, 1067-1, 1079, 1070, 1079, 1094-1 e 1108), numa acepção compreensiva, inclusivamente, da disciplina dos próprios “arrendamentos rústicos não sujeitos a regimes especiais (novo art. 1108 CC, in fine).
De resto, no actuial art. 1064 CC determinou-se a aplicação das normas constantes da Secção VII não só ao arrendamento, total ou parcial, de prédios urbanos, mas também “a outras situações nela previstas”.
Além disso, a própria designação da nova lei de aprovação (Novo Regime do Arrendamento Urbano) aproveitou esta expressão no sentido que lhe consagrava o RAU, tentando apenas reduzir um pouco mais a importância dos velhos arrendamentos vinculísicos confinando-os a um lento fenecer, com a morte ou extinção dos respectivos arrendatários e seus sucessores.
Assim, a expressão arrendamento urbano ganhou, no nosso direito positivo actual, uma acepção ampla que podemos fazer coincidir com a de arrendamento vinculístico ou não, de todos os prédios urbanos ou rústicos não sujeitos ao regime rural ou florestal.
Aqui chegados facilmente se conclui que o NRAU se aplica ao contrato de arrendamento em causa, e que o seu artigo 50.º, ao referir-se a arrendamento para fim não habitacional abarca os contratos de arrendamento rústico não sujeito a regime especial, como é o caso do arrendamento que aqui está em causa.
Procede, pois, a apelação, devendo os autos prosseguir para apreciação da pretensão formulada pelos apelantes AA..
4. Decisão
Termos em que, julgando-se as apelações dos AA. e RR. reconvintes procedente, revoga-se as decisões recorridas, ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Sem custas a apelação dos AA., atento o apoio judiciário de que beneficiam os apelantes RR., e custas da apelação dos RR. reconvintes pela parte vencida a final.

Porto, 13 de Julho de 2022
Márcia Portela
João Ramos Lopes
Rui Moreira