Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
437/17.6T9FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: INSTRUÇÃO
INDÍCIOS SUFICIENTES
INDÍCIOS FORTES
CONCEITO
Nº do Documento: RP20200129437/17.6T9FLG.P1
Data do Acordão: 01/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DA ASSISTENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Em sede de instrução, o conceito de indícios não deverá ser visto isoladamente como meros indícios suficientes, mas no sentido de indícios suficientes para uma condenação, o que faz pressupor um projecto de prova para uma condenação, e nos reconduz, por definição, à existência de indícios muito fortes e não a uma mera probabilidade razoável ou superior da condenação face às hipóteses de absolvição.
II - Nessa avaliação não poderá esquecer-se que o juízo condenatório tanto existe para os indícios como para a prova, mas que o plano indiciário tem natureza provisória e está assente num juízo de prognose onde ainda falta o contraditório e os possíveis e restantes meios de prova.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 437/17.6T9FLG.P1
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Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de processo de inquérito havia sido proferido despacho de arquivamento quanto aos arguidos B… e C…, tendo a assistente “D…” requerido a abertura de instrução, a qual sendo admitida veio a correr os seus termos, culminando com o despacho de não pronúncia quanto aos citados arguidos relativamente à discutida responsabilidade pelo cometimento do crime de burla.
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Não se conformando com a decisão de não pronúncia dos arguidos B… e C… a assistente “D…” veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação e com as seguintes CONCLUSÕES:
A - A Recorrente interpõe o presente recurso, por não se conformar com a Decisão Instrutória proferida pelo Tribunal a quo quando aos factos que considerou como não indiciariamente provados, mais concretamente os pontos 8º a 11º e 13º a 19º do Requerimento de Abertura de Instrução.
B - Pelo que impugna a Decisão quanto a esta matéria de facto dada como não indiciariamente provada, pois, atenta a prova produzida deveriam tais factos ser dados como provados.
C - Entende-se terem sido provados os elementos essenciais do crime de burla, mais concretamente o elemento subjetivo e factos integradores da astúcia.
D - No caso vertente é pacífico que, em causa está um cheque pós-datado, e portanto, a sua incriminação, em sede de emissão de cheque sem provisão, está, desde logo, afastada, atento o disposto no artigo 11º, nº3 do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de dezembro, uma vez que o cheque em causa foi entregue aos 06.06.2017 e encontra-se datado a 07.07.2017.
E - Todavia, sempre se poderá colocar a questão de saber se através da emissão de cheque pós-datado, os Recorridos tenham cometido o crime de burla, desde que, naturalmente, se verifiquem todos os seus restantes elementos típicos.
Na verdade:
F - Quer durante o inquérito, quer durante a instrução, nunca foi colocado sequer em causa que não tenha sido o Denunciado C… a entregar o cheque à Assistente.
G - Todas as testemunhas ouvidas em sede de instrução conheciam o Denunciado e não tiveram dúvidas sobre a identidade do mesmo.
H - Sobre a matéria relacionada com a entrega do cheque e contornos do negócio foram inquiridas testemunhas cujos depoimentos ficaram registados: E…; F…; G….
I - Estas testemunhas fizeram um depoimento seguro e consentâneo com as regras de experiência comum e usos do comércio, sendo certo ainda que, quando inquiridos pela Mª. Srª. Juiz a quo, pelo Senhor Procurador e pelos mandatários mantiveram sempre a mesma posição.
J - Na apreciação dos fatores ligados à razão de ciência e à credibilidade destas testemunhas verifica-se que, em termos objetivos e subjetivos, estavam em posição de revelar ao tribunal a realidade que observaram: conheciam o arguido; foram os intervenientes no negócio em causa.
L - Os depoimentos destas testemunhas não podem ser ignorados atenta a sua coerência, nem se compreende que não possam ser merecedores de credibilidade.
M - Não existem, pois DÚVIDAS que foi o Recorrido C… que ENTREGOU o cheque em causa à Assistente na data constante da Participação.
N - Do depoimento da testemunha H…, prestado no dia 06.06.2019, que se encontra gravado, resulta que a sociedade B… era cliente da Recorrente desde 2007, e que a política comercial da Recorrente D… ditava que as entregas da mercadoria só poderiam ser feitas contra a entrega de cheque pós-datado e que o Recorrido C… sabia que sem o preenchimento desta condição nunca conseguiria a entrega mercadoria desejada.
O - Resulta também das regras de experiência comum e do normal da vida que um cidadão que usa um cheque de uma conta cancelada não pretende mais pagar a dívida.
P - Daqui resultando o propósito inicial dos Denunciados não cumprirem o contrato.
Q - Destarte, deve o Tribunal ad quem dar como suficientemente indiciados os seguintes factos:
R - Foi sugerido pelos Denunciados á Participante D… a entrega de um cheque do C…;
S - Como a Participante conhecida o referido C… com sócio da sociedade Denunciada, aceitou a emissão e entrega do mesmo, convencida da sua provisão.
T - Para conseguir que lhe fosse entregue a mercadoria, de comum acordo com a representante legal da B…, o denunciado C… preencheu e entregou à Participante o cheque do I… nº ………. com data de emissão de 06.07.2017 sacado sobre a conta nº ……….. no valor d €6.047,24. (negrito nosso).
U - A denunciante, convencida de que o cheque teria provisão, entregou a mercadoria. (sublinhado nosso).

V - O Tribunal a quo entendeu também não estarem indiciariamente demonstrados os factos integradores da astúcia nem do elemento subjetivo do crime de burla, o que resultou na não pronúncia dos Recorridos e alegado em 13 a 19 do Requerimento de Abertura de Instrução.
X - No presente caso concreto, resulta da prova testemunhal produzida que o Denunciado C… sabia que a sociedade Recorrida B… – da qual era sócio - era cliente de longa data da Recorrente, sabia que para lhe ser entregue a mercadoria teria de titular o seu pagamento.
Z - Comunicou à Recorrente que os cheques da sociedade Recorrida B… tinham acabado, e, desde logo, prontificando-se a efetuar o pagamento das mercadorias com cheque pessoal, de uma conta que sabia estar cancelada desde 2008.
AA - Com tal comportamento fez com que a Recorrente lhe entregasse a mercadoria.
BB - Este cenário previamente engendrado pelo Recorrido C… determinou a entrega da mercadoria por parte da Participante e representa a tal mise-en-scène (ou o plus) da astúcia típica do crime de burla.
CC - Estamos portanto, perante uma “mentira qualificada”, uma “manha”, utilizada pelo Recorrido C… como forma de obter a mercadoria pretendida sem ter que pagar por ela, pois bem sabia que sem apresentar o cheque nunca lhe teria sido também entregue a mercadoria, e bem sabia que a conta relativa ao cheque apresentado estava encerrada desde 12.12.2008.
DD - Acresce que, o recorrido C… atuou de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a conta associada ao cheque que o mesmo entregou, não dispunha de dinheiro para pagar o montante titulado pelo cheque - dolo direto (artigo 14º, nº1 Código Penal).
EE - Denote-se que tudo isto fazia parte de um plano inicial dos Recorridos, pois sabiam ab initio não terem fundos para o pagamento do preço das mercadorias, pois, a conta estava cancelada.
FF - Deve o Tribunal ad quem dar como indiciariamente provados os factos constantes do ponto 13. a 19. da participação criminal.
GG - Daqui resultando verificados todos os pressupostos do crime de burla previsto e punido no artigo 217º Código Penal.
Termos em que deve o Tribunal ad quem revogar a decisão instrutória objeto do presente recurso e, em consequência, condenar os Recorridos B… e C… pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelo artigo 217º Código Penal.
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O Digno Procurador Adjunto apresentou contra-motivação, sumariando da seguinte forma:
veio a assistente recorrer da decisão instrutória proferida nos autos que não pronunciou o arguido C… pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo artigo 217º, n.º 1 do C. Penal.
Na sua motivação, o recorrente conclui nos seguintes termos:
resulta da prova recolhida nos autos que o arguido preencheu e entregou à recorrente um cheque do I…, datado de 6.07.2017, sendo que esta por ter ficado convencida de que o cheque tinha provisão, entregou-lhe a mercadoria; o cheque era de uma conta cancelada em 2008, pelo que, o arguido actuou de forma a obter a mercadoria pretendida sem a pagar, pois bem sabia que a conta relativa a tal cheque estava há anos bloqueada.
Fundamentação da resposta:
Estamos de acordo com o entendimento da Mmª JIC e com a fundamentação que fez na decisão recorrida.
Na verdade, da prova recolhida em sede de inquérito/instrução, resulta apenas que foi celebrado um típico contrato de compra e venda (ou de fornecimento) de mercadorias, tendo ficado estabelecido que o pagamento seria efectuado por cheque.
Não temos dúvidas de que o recorrente ao aceitar o pagamento através de cheque pós-datado, estivesse convicto de que o mesmo obteria boa cobrança, sendo obvio que não abriria mão da mercadoria se soubesse que o cheque não viria a lograr pagamento. Como também não temos dúvidas de que o comportamento do arguido - traduzido na celebração do contrato verbal e assunção do pagamento - tinha implícita a mensagem para o vendedor/ofendido de que o mesmo iria cumprir a sua parte contratual e que ao emitir um cheque, o seu pagamento seria certo.
Todavia, ao celebrar o contrato com o arguido e ao aceitar, no âmbito desse contrato, o pagamento através de cheque, o vendedor/ofendido conhece bem o risco de que o cheque não venha a ser pago, risco esse que, como sabemos, não é assim tão reduzido, tanto mais quando estão em causa cheques pós-datados – como seria o caso em apreço - que deixaram de ser punidos como crime de emissão de cheque sem provisão (face ao disposto no artigo 11º, n.º 3 do Decreto-lei n.º 454/91 de 28 de Dezembro, na redacção conferida pelo Decreto-lei n.º 316/97 de 19 de Novembro), sendo essa razão pela qual muitos comerciantes têm grande relutância em aceitar o pagamento dessa forma quando logo no acto abrem mão da mercadoria.
Mesmo no que se refere ao facto da conta ter sido encerrada no ano de 2008, não entendemos tal facto como sendo enganoso no sentido de que tenha induzido o ofendido erro e que, por seu turno, o tenha levado a praticar actos de que resultaram prejuízos patrimoniais próprios, tal como é exigido pelo tipo.
Portanto, relativamente ao cheque – que não veio a ser pago -, não se depreende o especial artifício ardiloso, “a mentira qualificada” que ludibria a cautela e precauções normais com que, em qualquer actividade comercial, o homem comum agiria.
Assim, como já se referiu supra, o recorrente ao aceitar o pagamento mediante um cheque, ainda que convicto do seu pagamento, assume o risco, maior ou menor, de não vir a obter o pagamento, não se podendo, pois, dizer que foi o comportamento dos arguido ao emitir um cheque - porque mais nenhum elemento existe no processo relativo a um qualquer comportamento ardiloso do arguido - que tenha enganado o ofendido e o levado a entregar a mercadoria, sofrendo o correspondente prejuízo.
É que, tal com já referimos, o crime de burla consuma-se com o facto da entrega indevida, determinada por meios ardilosos, destinados a dar crédito à mentira e enganar terceiros, sendo pois determinante que para além da emissão e entrega do cheque haja um convencimento, enganosamente induzido do seu honrado pagamento, que seja determinante para a entrega da mercadoria.
E tanto é assim que o legislador criou um tipo de crime autónomo – o crime de cheque sem provisão – que abrange as situações em que o cheque é devolvido por falta de provisão, irregularidade do saque, o não pagamento em virtude de antes ou depois da entrega a outrem de cheque sacado pelo próprio ou por terceiro, levantar os fundos necessários ao seu pagamento, proibir à instituição sacada ou, por qualquer modo, alterar as condições da sua movimentação, assim impedindo o pagamento do cheque, esbatendo-se, assim, decididamente essa vertente do engano ao tomador.
Assim, nos presentes autos, a conduta do arguido reduziu-se, afinal e apenas, à de uma vulgar e normal emissão de cheque que, na data que lhes havia sido aposta, não logrou pagamento, não existindo, em nosso entender, qualquer prova indiciária que nos permita afirmar que o arguido tenha tido, na altura em que celebraram o negócio e lhe foi entregue a mercadoria, algum tipo de comportamento astucioso que tenha conduzido em erro o recorrente.
Em resumo, além da falta do elemento objectivo - o especial modus operandi, traduzido num plano capcioso, e desde logo falso, de forma a que o destinatário/ofendido acredite nele e seja levado (apenas por que é induzido) a praticar actos que lhe causem um prejuízo patrimonial - , faltam igualmente todos os elementos relativos ao plano subjectivo.
Em nosso entender, tal situação poderá revestir, apenas e somente, relevância cível, facto esse que ficará salvaguardado através do recurso às instâncias cíveis.
Nesta conformidade, deve negar-se provimento ao recurso e manter-se a douta decisão recorrida.
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Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela improcedência do recurso, sustentando que tendo em conta a prova indiciária recolhida, no decurso do inquérito e da instrução, e a fundamentação do despacho impugnado, cremos que assiste razão à Mma Juíza de Instrução, quando conclui pela inexistência de prova bastante de que os arguidos tenham praticado os factos que lhes são imputados no RAI, em termos de lhes poder ser imputada a prática de um crime de burla.
Donde, e de acordo com o ali sustentado, se nos afigure que o recurso não merecerá provimento. Apresenta-se como incontroverso, face à prova documental produzida, que estamos perante um cheque que respeitava a uma conta há muito cancelada, de que era titular o arguido C…, sócio “J…, Lda”, que a assistente recebeu como garantia do pagamento de mercadorias que entregou à sociedade arguida.
Porém, como analisa a Mma Juíza a quo, na fundamentação do despacho recorrido – depois de, face à respetiva assinatura e preenchimento, concluir, em nossa opinião com, acerto, que a pessoa que assinou o cheque, muito provavelmente, não é a mesma que preencheu os demais elementos manuscritos dele constantes – “nada nos autos nos permite afirmar, ainda que indiciariamente, que tenha sido o arguido [C…] a deslocar-se no dia em causa à sociedade ofendida e que ali tenha preenchido e entregue o cheque, tanto mais que nenhuma das testemunhas ou porque a isso não assistiu ou porque desconheciam, soube aventar uma qualquer explicação plausível para a diferença de caligrafia existente”.
Sendo, pois, a prova indiciária recolhida inconclusiva quanto à questão central de saber se a entrega da mercadoria pela assistente foi provocada por erro ou engano astuciosamente provocado pelo arguido C…, somos forçados a considerar – acompanhando a decisão recorrida e a magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância – que, ainda que se possa ter por seguro que do negócio em causa resultaram prejuízos patrimoniais para a sociedade assistente, não se afigura possível imputar aos arguidos, com suficiente segurança, a prática do denunciado crime de burla.
Com efeito, como expressamente dispõe o artigo 286º, nº 1, do C. P. Penal, «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
Por sua vez, o estatuído no artigo 283º, nº 2, do C. P. Penal, aplicável ao despacho de pronúncia e de não pronúncia por força do artigo 308º, nº 2, do mesmo Código, faz depender a pronúncia de terem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma sanção penal.
É certo que – como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal III., pgs. 182/183 – a natureza indiciária da prova significa que não se exige a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, mas apenas a probabilidade, fundada em elementos de prova que, conjugados, convençam da possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança criminal.
Porém, nas palavras daquele ilustre Professor: Não se basta a lei (…) com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas há de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação.
Também o Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, I, pg. 133: tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) - na vigência do CPP/1929 – não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento e, por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.
Assim que a acusação não deva ser proferida de forma apressada, precipitada, quiçá leviana, atentando-se que sujeitar alguém a julgamento pode acarretar, para além do normal incómodo, um vexame e até um estigma de ignomínia, porventura injustificável e que dificilmente se arreda da mente dos outros.
Em idêntico sentido, pode ver-se o Ac. TRP, de 20 de Outubro de 1991, in CJ, Tomo IV, pg. 261, que se pronunciou da seguinte forma: no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que, entre nós, se revestem de dignidade constitucional - (art. 3° daquela Declaração e art. 27° da Constituição da República Portuguesa).
E é por isso - prossegue o mesmo douto Aresto – que quer a Doutrina quer a Jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, ou os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
A esta luz e face à insuficiência da prova indiciária recolhida e às dúvidas que subsistem, suficientemente explicitadas no despacho impugnado, não vislumbramos probabilidades de condenação dos arguidos “J…, Lda” e C…, pela prática do crime de burla consubstanciado nos factos descritos no RAI, pelo que, em nosso entender, não merece censura a decisão recorrida.
2.2 – Pelo exposto, emitimos parecer no sentido de que será de julgar não provido o recurso, confirmando-se a impugnada decisão de não pronúncia.
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.
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É assim composto por matéria de Direito com diversa avaliação do mérito dos indícios com revogação da decisão e sua substituição por decisão de pronúncia.
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Do enquadramento dos factos.
Do despacho recorrido consta em síntese a descrição dos depoimentos das testemunhas E…, F…, e G….
Depois, conclui que mesmo que tivesse sido o arguido a entregar o cheque, o que suscita muitas dúvidas, com o propósito de que a mercadoria lhe fosse entregue, fazendo crer que dispunha de provisão na conta a que tal cheque se referia essa atitude, só por si, não preencheria a astúcia própria da burla. A astúcia é, materialmente, algo mais do que aquela mentira; é um plus que lhe acresce e que lhe empresta, sob a forma de cenário criado, uma mise-en-scéne, que tem por fim dar crédito à mentira e inevitavelmente enganar.
A par desta q uestão, o Tribunal A Quo, como se viu, considera ter dúvidas sobre a existência de indícios de que tenha sido o arguido a deslocar-se no dia em causa à sociedade ofendida e que ali tenha preenchido e entregue o cheque, tanto mais que nenhuma das testemunhas ou porque a isso não assistiu ou porque desconheciam, soube aventar explicação plausível para a diferença de caligrafia existente entre a assinatura e o preenchimento dos outros campos.
Proferindo decisão de não pronúncia dos arguidos, considerando não existirem indícios do dolo de burla, nem tão pouco da astúcia, que no entender do Tribunal não foi criada.
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Cumpre apreciar.
Importando apreciar o mérito dos indícios e da sua relevância jurídica face ao ilícito de burla, cabe primeiramente aferir os requisitos legais de aferição dos indícios.
Conforme disposto no art.286º, nº 1 do C. P. Penal, a instrução “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Constitui uma atividade de averiguação processual complementar daquela que foi levada a cabo durante o inquérito, destinando-se, tendencialmente, a uma investigação mais aprofundada dos factos constitutivos de um crime e sua imputação a determinada pessoa.
Nos termos do art.308º, n.º 1 do C. P. Penal, se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.
Indícios suficientes têm que ver não só com a densidade indiciária, mas pela capacidade probatória dos mesmos em audiência. E é a suficiência dessa capacidade que deve ser aferida.
Na interpretação do que sejam indícios suficientes a jurisprudência tem percorrido um entendimento que nos parece muito discutível e que carece de reponderação, entre muitos ver o aresto Ac.RelC de 28/06/2017 no qual se sustenta que o “juízo de probabilidade razoável de condenação enunciado no n.º 2 do art. 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale ao juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. Quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”
O acervo de indícios que possam sustentar uma “aposta ou projecto de prova” significa a gestão das probabilidades de condenação, constituindo um eminente juízo relativo, porque provisório.
Com efeito, o conceito e o processo de prova com essa dignidade (por contraponto aos juízos indiciários) só ocorre quando se discutem os meios de prova com pleno contraditório, imediação, oralidade em audiência de julgamento. É aí, nesse cenário, onde todos os princípios do processo penal são honrados e cumpridos, que operam os juízos de prova, com sujeição à imediação e oralidade de todos os depoimentos das testemunhas, declarações das partes e esclarecimento dos peritos (com o contraditório das instâncias), com o contraditório e confronto das partes e das testemunhas aos resultados periciais e teor dos documentos, podendo o exercício do contraditório implicar a adição de nova prova testemunhal e documental nos prazos da contestação.
Antes da audiência de julgamento, nas fases anteriores de inquérito e instrução, as ilações e os juízos de valor que se retiram dos meios de prova até aí existentes, porque ocorrem em ambiente diverso, com quebra de vários princípios, só podem ser qualificados de juízos indiciários, sem valor probatório. Repete-se que o conceito e o processo de prova só pode operar em audiência de julgamento.
A lei quando usa a expressão de indícios suficientes, isso não significa a graduação quantitativa dos indícios entre insuficiente, suficiente, médio ou alto, e por isso não se trata de uma carga suficiente/mínima de indícios. Antes, a densidade destes continua a ser necessariamente qualificada, exigindo uma “alta probabilidade de futura condenação”, tal como se refere no AC.STJ de 28/06/2006 (pese embora este aresto admita pelo menos uma probabilidade superior de condenação perante as probabilidades de absolvição [o que a nosso ver não preenche o juízo de suficiência]), sob pena do suporte indiciário não resistir aos limites da dúvida “in dúbio pro reo”. Não é concebível acusar ou pronunciar com um plano de suficiência de indícios quantificado em mera probabilidade razoável de condenação, antes são necessários indícios qualificados de muito fortes.
Basta pensar que a probabilidade de condenação meramente superior a uma probabilidade de absolvição, nunca em fase do julgamento pode conduzir a uma condenação, pois nesse caso, impunha-se uma absolvição. Com efeito, verificando-se uma probabilidade de absolvição (portanto, com indícios nesse sentido), se essa probabilidade for de 40% ou até de 30%, pese embora seja claramente minoritária, encontra-se instalada uma dúvida expressiva que comprometerá um juízo condenatório.
Cabe esclarecer que os indícios suficientes para a verificação do crime nos termos do art.283º do CPP tem a mesma exigibilidade da suficiência dos indícios do despacho de pronúncia prevista no art.308º do CPP, embora aqui com a especialidade e necessidade de aferir a matéria indiciária respeitante aos termos do art.74º do CP. Pois, se estiverem reunidos os requisitos da dispensa de pena, não deve ser proferida uma decisão de pronúncia, com movimentação desnecessária de toda a máquina da Justiça e convocação de todos os intervenientes, para depois o resultado do julgamento não ultrapassar uma dispensa de pena, com ofensa do princípio da dignidade da pessoa humana, resultados que o Legislador não quis, e bem (pese embora hajam indícios do cometimento do delito suficientes para a condenação).
A jurisprudência com frequência tem interpretado gramaticalmente o “suficiente” como adjetivo a qualidade que está entre o mínimo e o máximo, ou seja o que é razoável”, para daí concluir que a probabilidade de condenação terá de ser razoável, mas, como se viu, não é esse o sentido legal da expressão. A expressão legal “indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena”, tem outro significado normativo e gramatical, a suficiência em causa não é dos indícios em si mesmos, mas a suficiência para um juízo futuro de condenação.
A questão deverá ser vista não no conceito isolado de “indícios suficientes”, portanto, a categoria gramatical da palavra suficiência não pode ser um adjectivo dos indícios (o qual é gerador de equívocos centrados na expressão de suficiência, porque colide com as futuras exigências de prova numa condenação); mas no conceito que implique todo o silogismo, ou seja, “suficientes para uma condenação e aplicação de uma pena”, onde a classificação de suficiência não é adjectivo, mas substantivo porque significa aquilo que é necessário para uma condenação.
Portanto, a suficiência de indícios para aplicação de uma pena nos termos do art.308º do CPP, porque supõe um projecto de prova para condenação, exige, por definição, indícios muito fortes, e não uma mera probabilidade razoável ou superior da condenação face às hipóteses de absolvição. Existindo em inquérito e instrução indícios conflituantes ou divergentes face aos indícios que conduzem à imputação do crime, se aqueles conviverem como possibilidades de verificação plausível, ainda que inferiores aos indícios de cometimento do crime, a mera probabilidade superior de condenação não pode conduzir a um despacho de pronúncia ou de acusação, mesmo que o peso da probabilidade de absolvição se situe em 30%, aqui uma dúvida expressiva estará instalada. Só pode sobrevir um despacho de pronúncia se os fortes indícios existentes nos autos constituírem de forma suficiente um projecto de prova com aptidão para uma condenação, e este silogismo exige com suficiência (aqui como substantivo) a existência de indícios muito fortes (mais do que indícios fortes).
Como é óbvio a exigência de indícios muito fortes não se confunde com o juízo de prova a final, porque o juízo indiciário por definição é provisório e o possível naquela fase do processo (com depoimentos de testemunhas em suporte de auto de inquirição pelas OPCs, sem valor autónomo ou intrínseco em audiência de julgamento), onde ainda não existe pleno contraditório assim como todos os elementos e meios de prova e de aferição. Contudo, não pode deixar de ser alta a exigência dos indícios, similar ao juízo condenatório. O juízo condenatório tanto existe para os indícios como para a prova, simplesmente o plano indiciário tem natureza provisória e está assente num juízo de prognose, onde ainda falta o contraditório e os possíveis e restantes meios de prova.
Deve ainda referir-se que a necessária exigência indiciária qualificada para a acusação ou pronúncia, nessas fases processuais, pese embora a sua antecipação e limitações, por regra já contém meios de prova estruturados (com um valor autónomo e intrínseco em audiência de julgamento), uns ainda a sujeitar a contraditório, outros produzidos já com contraditório, como sejam as declarações dos arguidos em 1º interrogatório, que poderão contar e valer como prova em audiência; as declarações para memória futura das vítimas, relatórios periciais, autos de reconhecimento do arguido, inquirições de testemunhas por autoridade judiciária.
Portanto, o juízo legal de suficiência referido no art.308º do CPP é sempre estabelecido por referência à prova que se propõe para condenação, e, por isso, a proposta de indícios tem de ser suficiente para, com essa aptidão probatória, em audiência de julgamento, sobrevir uma condenação e se aplicar uma pena ao arguido. E todos sabemos que suficiência para aplicar uma pena implica sempre um parâmetro de prova seguro e exigente que arrede panoramas de dúvida. O “projecto de prova” que se propõe numa acusação ou numa pronúncia, tem as exigências de prova do julgamento. A diferença é que esse projecto se estabelece por antecipação e apenas com os elementos que existem nos autos. Esse juízo indiciário da acusação e da pronúncia formula a prognose de uma aptidão probatória que se projeta manter quando sujeita à oralidade, imediação e contraditório, assim como ao confronto de nova prova testemunhal e documental (surgida na fase do julgamento).

Estabelecida que está a densidade do art.308º do CPP, cabe estabelecer as fronteiras típicas do crime de burla que pela assistente é imputado aos arguidos.

Cabe apreciar os momentos típicos subjectivos e objectivos que definem a legalidade do crime de burla. No figurino típico, como se referiu, o delito de burla exige que o agente haja querido induzir em erro, ou com engano, aparências conseguidas de forma astuciosa com a intenção de conseguir um enriquecimento ilegítimo à custa de um prejuízo patrimonial do enganado ou de terceiros.
Portanto, o elemento subjectivo é composto pela intenção típica de conseguir um enriquecimento ilegítimo (por isso qualificado “delito de intenção”, a qual não exige a correspondência com um resultado nos elementos objectivos do tipo, por isso, é um crime de resultado parcial, no caso, uma intenção de resultado cortado) que orienta um processo astucioso criado pelo agente, para gerar o erro ou o engano de outrem, daí que a doutrina defina este crime como de execução vinculada. Paulo Pinto de Albuquerque sustenta que: O tipo inclui ainda um elemento subjectivo adicional: a intenção de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo. Não é necessário que se verifique o enriquecimento, mas apenas a vontade de o obter. Ou seja, o tipo subjectivo contém uma intenção de realização de um resultado que não faz parte do tipo objectivo, mas que é provocado pela acção típica.” (in “COMENTÁRIO AO CÓDIGO PENAL”, 2ª ed. p.681, Lisboa 2010).
Portanto, quanto ao segmento subjectivo da intenção típica o crime de burla traduz-se num ilícito de resultado parcial ou cortado, em que o agente actua com intenção de obter - para si ou para terceiro - um enriquecimento ilegítimo, não obstante a consumação do crime - em termos objectivos - não depender da concretização do enriquecimento do agente. CARRARA o príncipe dos penalistas Italianos definia o enriquecimento do delinquente como “o fim último do seu acto, o objecto ideológico; em contraponto com o fim imediato do agente de induzir o outro a que se despoje de algo próprio” (in “Programma del Corso di Diritto Criminale”, Op.cit.§2339).
Por sua vez, a par da intenção típica, o elemento subjectivo base é composto justamente pelo dolo do tipo, o qual tem de abranger: o ardil ou astucia para provocar o erro ou o engano, elementos conhecidos e desejados pelo agente; mais querendo que o enganado pratique actos (actos de disposição), de onde resultem prejuízos para si ou para terceiros, e aqui emerge o resultado danoso típico.
Na dinâmica subjectiva, aferir sobre qual a necessária carga típica da astúcia, com relevância jurídico-penal, torna pertinente convocar os conceitos de causalidade que operam no processo astucioso que se inicia com a provocação do erro para determinar o acto de disposição e consequente prejuízo. A doutrina a este respeito, tem numerado uma sucessão de causalidades, parecendo curial a que define a exigência típica de um triplo nexo causal: 1º entre a conduta astuciosa e o engano; 2º entre o engano e o cometimento de actos de disposição pelo burlado; 3º entre estes actos de disposição patrimonial e o prejuízo do ofendido.
A burla caracteriza-se, então, pela oportunidade criada ou aproveitada pelo agente, de se servir do erro e do engano da vítima. No apuramento da densidade do erro relevante e da causalidade, como adiante se verá, ganha interesse o conceito da autoria mediata, dado que o enganado agindo em erro, actua por intermédio do agente.
Muito embora, a doutrina seja unanime em categorizar o tipo legal como de execução vinculada, e assim é; contudo, a acção típica do agente encontra-se descrita com recurso a conceitos abertos, importando saber o que será a astucia usada para criar o erro e engano relevantes, determinante aos actos de disposição patrimonial.
A tripla causalidade, deve conjugar-se com outros conceitos, como são os deveres de diligência e cuidado a cargo do destinatário da astúcia enganosa, na despistagem das falsas representações da realidade.
Ainda sobre a densidade do grau típico da astúcia, há muito que a doutrina tem questionado a produção do engano através de uma mera mentira, ou com a suficiência de uma “mise-en-scène”, discussão que é pensada desde os romanos, como sustenta FRANCESCO CARRARA quando escreve: “O jurisconsulto romano ensina que para que haja crime é necessário a magna calliditas [grande astucia]; e os práticos repetem a uma só voz que o ardil deve ser tal que possa enganar um bom pai de família.” (in Op.Cit.§2343), mas logo a seguir, adverte para os perigos destas concepções, sustentando que a “fraude” não deve julgar-se subjectivamente, mas antes objectivamente. Ainda hoje é válida essa doutrina. ALMEIDA E COSTA situa a intensidade típica da astúcia na perigosidade objectiva da conduta, reveladora da intensidade do engano, da sugestão do falso pelo verdadeiro, com a energia suficiente para iludir o cuidado usado no sector em causa (a publicidade comercial lida com distorções da realidade que não merecem censura penal), constituindo fundamento da relevância típica da astúcia, portanto, numa perspectiva objectiva (in “COMENTÁRIO CONIMBRICENSE AO CÓDIGO PENAL”, Tomo II, p.297, Coimbra, 1999).
No entanto, as dificuldades de delimitação são notórias, e disso dá notícia CARRARA quando discorre sobre situações de engano fora da astúcia, exemplificando as práticas de dolo lícito no comércio jurídico, em contraponto com a “fraude” no critério essencial do estelionato (in Op.Cit.§2342); também, nos contextos contratuais, onde os devedores invocam uma sucessão de motivos muito imaginativos, para dilatar no tempo os pagamentos já em mora; os que exaltam as qualidades do objecto que estão a vender, ocultando os seus defeitos, acabando CARRARA por atribuir relevo à importância da mise-en-scène, porque demonstrativa de maior energia criminosa, de um aparato exterior muito mais sugestivo e eficaz ao engano.
CARRARA sustentava que a “mise-en-scène” “completava o elemento subjectivo e o elemento objectivo do delito: o subjectivo, porque mostra maior astucia, maior persistência no desejo de produzir o dano; e o objectivo, porque as aparências externas pré-fabricadas para acreditar a palavra mentirosa, incrementam a credibilidade junto da vítima, agregam o facto ao dano imediato que não ocorre quando se crê nas mera palavras do primeiro que se apresente.” (in cit. “PROGRAMMA”, §2345). Alguma doutrina, contudo, tem mostrado reservas à relevância obrigatória de uma “mise-en-scène” na execução astuciosa, porquanto, uma história bem contada, ou por vezes, num contexto próprio, alguns gestos associados a alguma verbalização num contexto concludente podem, na ausência de encenação, motivar um engano convincente com relevância típica. Mas nestes exemplos dados já estamos perante uma encenação.
Uma certeza haverá, a “mise-en-scène” incrementa a astúcia e confere probabilidade e eficácia ao dolo induzir em erro, densifica a ilicitude e a culpa.
ALMEIDA e COSTA sobre o requisito da astúcia associada a uma mentira qualificada, concretiza o critério “há-de reportar-se, exclusivamente, à maior perigosidade da conduta em relação à ofensa ao bem jurídico (…) Só na hipótese de o comportamento – pelo especial engenho ou astúcia que reveste – se mostrar susceptível de iludir o cuidado que, no sector em causa, normalmente se espera de cada um, se estaria perante uma situação merecedora de tutela jurídico-criminal.” (in “COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Parte Especial”, Tomo II, Coimbra, 1999, pág. 297). O mesmo autor depois delimita e confere maior operacionalidade ao conceito de astúcia, robustecendo-o com a nomenclatura do domínio-do-erro por parte do agente, associado a um domínio-de-sujeição, onde o agente assume o controlo da situação. No decurso do processo enganoso, a atitude psicológica da vítima é prevista e condicionada pelo agente, que controlando os acontecimentos, sugere-lhe procedimentos de disposição num cenário de engano.
Em ALMEIDA E COSTA os procedimentos do agente, quando provoca o erro noutrem, podem incluir o uso de palavras expressas, descrevendo uma falsa representação da realidade; através de actos concludentes, que de acordo com as regras da experiência comum dentro do sector de actividade em questão se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro; ou por omissão, onde o agente não provocando o engano, limita-se a aproveitar o estado de erro em ele já se encontra (ver COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Parte Especial”, Tomo II, Coimbra, 1999, pág. 301).
Outro ponto que merece destaque na construção típica e no desenvolvimento da conduta do agente burlão, é a definição dos limites da autoria com recurso à doutrina do domínio do facto. A circunstância da vítima ser usada pelo agente no logro induzido, com domínio do erro, vindo a mesma a actuar em sintonia com o que sucede com o homem-da-frente, na figura da autoria mediata. A vítima age não detendo o domínio do facto, mas sujeita ao erro provocado pelo burlão (homem-de-trás). Digamos que a autoria imediata do burlão, no segmento típico objectivo do cometimento dos actos de disposição patrimonial tem os fundamentos da construção dogmática da autoria mediata, onde a vítima colabora para esse fim de deslocação patrimonial e consequente prejuízo. “ uma vez que é o próprio sujeito passivo que pratica os actos de diminuição patrimonial, a burla integra, em último termo, uma hipótese de «auto-lesão», estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio-do-facto do «homem-de-trás» deriva do estado de erro do executor (autor imediato).” (ver Almeida e Costa in COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, Parte Especial”, Tomo II, Coimbra, 1999, pág. 298).
Subsumindo os factos apurados aos elementos típicos, concretamente, aferindo o alegado processo ardiloso de promoção do engano e do erro da vítima, no caso dos autos, e contrariamente ao que foi referido pelo Tribunal “A Quo” é indiciariamente exuberante a encenação empregue pelo arguido (mise-en-scène), quando fez crer que pretendia pagar as mercadorias, aparentando satisfazer as garantias exigidas pela assistente com a emissão de um cheque (de uma conta cancelada há 9 anos). É certo que não se indicia não ter sido o arguido C… a preencher os restantes campos do cheque, mas as testemunhas inquiridas em fase de instrução indiciam fortemente que o negócio de compra das mercadorias fora realizado pela pessoa do arguido, conhecida há vários anos que com ele lidavam quando o mesmo se deslocava à empresa para adquirir mercadorias, e com ele estiveram no dia em causa - 6/06/2017 (concretamente as testemunhas F…) -, sendo o cheque assinado e entregue pelo arguido nesse momento, o qual veio a ser preenchido e pré-datado de 30 dias, assim como o montante de cerca de 6.000€, preenchimentos que se mostram coerentes com o negócio acabado de realizar, constituindo a entrega desse cheque a única forma de desbloquear o negócio. Pois está igualmente, fortemente indiciado que, sem a emissão do cheque, a assistente não efetuaria o negócio, com entrega da mercadoria ao arguido sem o mínimo de contrapartida e que significaria a entrega desse meio de pagamento ainda que pré-datado (constituindo por um isso um meio de crédito).
Portanto, o comportamento astucioso mostrar-se-ia objetivamente concretizado com a emissão de um cheque proveniente de uma conta já muito cancelada (9 anos).
Diversamente, a densidade da mentira ou do engano quando não corporiza uma mise-en-scéne, não adquire dignidade típica. Será o caso, quando a parte negocial refere não poder pagar naquele momento, mas que irá pagar mais adiante. Contudo, a emissão de um cheque enganoso, sendo uma relação cartular (com ordem de pagamento), simulando a emissão de uma garantia, consuma o engano astucioso, pela razão de que sem essa garantia a parte lesada não contrataria. A causalidade desse engano é relevante e determinante. A circunstância de não se indiciar quem em concreto preenchera os restantes campos não colocaria em crise o forte suporte indiciário da imputação do delito, porque o arguido indiciariamente esteve presente, assinou e entregou o cheque (reportado a uma conta sua há 9 anos cancelada), sendo os campos preenchidos em completa harmonia com o negócio acabado de realizar, portanto, existiam indícios muito fortes de que o arguido atuou de forma astuciosa e desse modo, determinou a assistente a dispor do seu património em situação de erro, sobre a garantia prestada.
E todos estes fortes indícios determinariam a procedência do recurso, com revogação do despacho de não pronúncia, não fora a solução do legislador quando descriminalizou os cheques pré-datados.
Como se sabe o acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 8 de Maio de 1997 veio equiparar o não pagamento por conta cancelada à emissão de cheque sem provisão, porém em ambos os casos opera a descriminalização dos cheques, quando são pré-datados. De salientar que o legislador em todas as formas de cheque sem provisão tarifou uma modalidade de burla especial, dispensando a previsão do artifício enganoso, prevendo para tal, o uso do cheque. Assim, se por opção do legislador são descriminalizados estes comportamentos, como a lei especial alterou a lei geral (entenda-se a previsão típica da burla no art.217º do CP), uma vez descriminalizado o cheque sem provisão (ou por conta cancelada), não pode subsidiariamente sobrevir a punição do mesmo comportamento como crime de burla (pese embora todos os seus elementos estivessem preenchidos).
Neste sentido os Acórdãos Rel.P de 10/10/2001 sustentou-se que “o arguido em 1996 sacou um cheque para pagamento de mercadorias, de valor superior a 1000 contos, que, apresentado a pagamento, foi devolvido com a declaração de "conta bloqueada" pelo facto de o arguido ter solicitado ao banco sacado, em data anterior à emissão do cheque, o cancelamento da conta, bem sabendo que assim causava um prejuízo patrimonial à ofendida, pretendo com isso obter um benefício ilegítimo, mostra-se verificado o crime de emissão de cheque sem provisão previsto e punido no artigo 11 n.1 do Decreto-Lei n.454/91, de 28 de Dezembro (versão originária).
Tratando-se, porém, de cheque post-datado, tal conduta ficou descriminalizada face ao disposto no Decreto-Lei n.316/97, de 19 de Novembro.
Tal conduta não integra o crime de burla. A entender-se o contrário, o eventual crime de burla estava em concurso aparente com o de emissão de cheque sem provisão e por isso, atendendo às regras da especialidade, apenas prevalecia este último crime, pelo que não faz sentido dizer-se que há crime de burla quando falta um dos requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão”.
E AC.RelP de 20/05/2009 aí se sustentando que, como “se considerou no Acórdão uniformizador, que a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento, integra o crime de emissão de cheque sem provisão previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, se verificados todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, naturalmente que não pode ter-se por verificado o crime de burla, que estaria consumido por aquele, ainda que se verificassem os elementos do tipo, e não se verificam.
Com efeito, o eventual crime de burla estaria em concurso aparente com o de emissão de cheque sem provisão. Ora, atendendo às regras da especialidade, apenas poderia prevalecer o crime de emissão de cheque sem provisão.
Como este não está verificado o crime de emissão de cheque sem provisão, por se tratar de cheque pré-datado, como a assistente reconhece, e porque o crime de burla está consumido, não faz sentido dizer-se que há crime de burla quando falta um dos requisitos do crime de emissão de cheque sem provisão.
Havendo uma relação de especialidade entre o crime de emissão de cheque sem provisão, que contempla, como se referiu, a situação alegada pela Assistente de proibição à instituição sacada do pagamento, invocando um facto (que até será falso) de falta ou vício de vontade na emissão, e o crimes de burla, por força do princípio da especialidade, subsiste apenas o crime de emissão de cheque sem provisão. O que tem como efeito, nas acertadas palavras do Prof. Eduardo Correia, a exclusão da lei geral pela aplicação da lei especial. Porque assim, sendo os factos subsumíveis ao crime de emissão de cheque sem provisão, não pode indagar-se se são subsumíveis ao crime de burla e de falsificação.
O que sempre levaria à não pronúncia pois que, como se disse, falta um dos elementos objectivos do tipo de cheque sem provisão já que este foi emitido com data posterior à da sua entrega ao tomador.”
Assim sendo, não obstante a verificação dos elementos típicos do crime de burla, a descriminalização dos cheques pré-datados não permite sobre o mesmo comportamento a verificação do delito de burla.
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso não merece provimento.
DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso não provido, nos termos e fundamentos expostos mantendo-se a decisão do Tribunal a quo ainda que por outros motivos.

Custas do recurso pela assistente, fixando a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Notifique.

Sumário:
(Conceito de indícios no art.308º do CPP como sendo de alta probabilidade de condenação)
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Porto, 29 de Janeiro 2020.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha