Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
280/19.8TXPRT-I.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
PRESSUPOSTOS
FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP20220420280/19.8TXPRT-I.P1
Data do Acordão: 04/20/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Porque se trata de despacho o que concede ou denega a liberdade condicional, nenhuma norma impõe que tenha uma estrutura idêntica à da sentença.
II - A falta de fundamentação de tal despacho constitui uma irregularidade processual (art. 97º, nº 5, e art. 123º).
III - Na medida em que a irregularidade por falta de um dever especial de fundamentação na decisão recorrida atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente pelo tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes
IV – A concessão da liberdade condicional, segundo o art.º 61 do Código Penal, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.
V – No que ao material diz respeito, o primeiro requisito prende-se com uma finalidade de prevenção especial, visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral.
VI - O juízo de prognose positivo sobre a condução da vida do libertado condicionalmente de modo socialmente responsável e sem o cometimento de novos crimes (finalidade da liberdade condicional), há-de revelar-se a partir dos seguintes aspetos:
a) As circunstâncias do caso (valoração do crime cometido - seja quanto à sua natureza, seja quanto às circunstâncias várias que estiveram na base da determinação concreta da pena, nos termos do art. 71 do Código Penal – e da medida concreta da pena em cumprimento);
b) A vida anterior do agente, o que se relaciona nomeadamente com a existência ou não de antecedentes criminais;
c) A sua personalidade. Além de uma valoração fundamentalmente estatística decorrente dos antecedentes criminais [quantos mais, mais se indicia uma personalidade não conforme ao direito e potencialmente não merecedora da liberdade condicional], considera-se a possibilidade de o recluso ter enveredado para um percurso criminoso por a isso ter sido conduzido, ou não, por circunstâncias que não controlou ou não controlou inteiramente;
d) A evolução desta durante a execução da pena de prisão. Esta evolução deve ser percetível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica do recluso, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre, que poderão revelar-se quer em termos omissivos (através da ausência de punições disciplinares ou de condutas especialmente desvaliosas, como o consumo de estupefacientes, quando não motive as referidas punições), quer ativamente (através do empenho no aperfeiçoamento das competências pessoais – laborais, académicas, formativas) ao longo do percurso prisional do recluso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 280/19.8TXPRT-I.P1

Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
Por decisão, datada de 30.11.2021, o Tribunal de Execução de Penas do Porto, indeferiu a concessão de liberdade condicional na metade da pena que cumpre o recluso AA.
Inconformado com tal decisão, dela recorreu o recluso, extraindo da respetiva motivação do recurso as seguintes (transcritas) conclusões: (…)
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O Exmº Magistrado do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, entendendo que o recurso não merece provimento, e concluindo a sua resposta nos seguintes termos (…):
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Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, concluindo também pela improcedência do recurso.
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Cumprida a notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, mantendo o recorrente as razões do seu recurso, foi efetuado o exame preliminar e, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, excetuadas as questões de conhecimento oficioso” – cfr. Ac. do STJ, de 15.04.2010, in http://www.dgsi.pt.
Posto isto,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal:
1. Da falta de fundamentação da decisão sobre a liberdade condicional
2. Dos pressupostos materiais da liberdade condicional: a violação dos princípios da adequação, da proporcionalidade e da necessidade.
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Da falta de fundamentação da decisão sobre a liberdade condicional
O recorrente veio arguir a nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea a), com referência ao n.º 2, do artigo 374.º, ambos do Código de Processo Penal.
Concretamente invoca que não foram “enumerados os factos ou motivos que justificassem a recorrida decisão e muito menos foi dado suporte factual probatório à recorrida decisão. Não basta aferirmos motivos gerais e generalistas, sem qualquer explanação fáctica dos mesmos”.
De acordo com o princípio da legalidade (art. 118, do Código Processo Penal), a falta ou insuficiência de fundamentação da decisão que conceda ou não a liberdade condicional não consubstancia uma nulidade, antes uma mera irregularidade [1].
Todos os vícios que inquinem atos processuais, que não sejam expressamente feridos de nulidade, constituirão uma irregularidade (art.123º).
Tratando-se de mero despacho, nenhuma norma impõe que a decisão sobre liberdade condicional tenha uma estrutura idêntica à da sentença, isto é, sob pena de nulidade (art.379), conter a “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (nº2 do art.374º do Cód. Proc. Penal).
Assim, o regime das nulidades da sentença, previsto no artigo 379, do CPP, é inaplicável à decisão, na forma de despacho e não de sentença, sobre a liberdade condicional.
Inexiste qualquer especial regime normativo – disciplinante quer da forma quer do conteúdo justificativo da decisão sobre a liberdade condicional, similar ao que o legislador reservou para as sentenças/acórdãos estabelecidas pelos artºs 374º, 375º, nº1 e 379º, nº 1 al. a).
Daí que, a falta de fundamentação da decisão recorrida constitua uma irregularidade processual (art.97º, nº5, e art.123º), mas que – no caso - afeta o valor do ato e poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente.
Vejamos.
O regime regra da declaração da irregularidade é o de que esta seja feita a requerimento do interessado, nos estritos termos e prazos previstos na lei, ficando sanada se não for tempestivamente arguida perante o tribunal a quo (art. 123º n.º 1).
Ressalva-se no seu nº2, a declaração e reparação oficiosa de irregularidades que possam afetar o valor do ato praticado, obviamente limitadas pelo campo de proteção da norma que deixou de observar-se.
Assim, se a norma se destina a proteger unicamente interesses de determinado interveniente/sujeito processual e este não se tiver prevalecido da faculdade de invocar o vício, a irregularidade fica definitivamente sanada, não sendo possível declará-la oficiosamente. Se estiver em causa norma ordenadora ou que tenha subjacente a concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de Direito material, já pode ser declarada oficiosamente sem qualquer restrição.
O recorrente não arguiu, tempestivamente, perante a autoridade judiciária respetiva e nos termos legalmente previstos, a existência de qualquer irregularidade que afetasse a decisão recorrida.
Resta, pois, analisar se o caso pode ser subsumido à previsão do n.º2, do citado art.123º.
Nos termos do art.205º n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais - que não sejam de mero expediente - são fundamentadas na forma prevista na lei.
A Constituição não determina o alcance do dever de fundamentar as decisões judiciais, remetendo para a lei a definição do respetivo âmbito e extensão.
Não sendo uniformes as exigências constitucionais de fundamentação relativamente a todo o tipo de decisões judiciais, algumas delas hão-de ser objeto de um dever de fundamentar de especial intensidade, mormente em matéria penal as decisões finais condenatórias - acórdão TC n.º 680/98.
O n.º5 do artigo 97.º, do Código de Processo Penal, estabelece, no âmbito do processo penal, o núcleo central da exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais.
Segundo o disposto no art.97º n.ºs 1 e 5, os despachos e sentenças dos juízes constituem atos decisórios necessariamente fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito que os sustentam.
Não decorrendo deste preceito genérico qual o grau exigível de fundamentação em cada ato decisório, haverá que ponderar relativamente a cada tipo de decisão o grau exigível de especificação dos fundamentos de facto e de direito que lhe subjazem.
Tratando-se de decisões com repercussão na esfera dos direitos, liberdades e garantias das pessoas – como é o caso da decisão que versa sobre a concessão da liberdade condicional –, é de considerar que se impõe uma especial atenção na fundamentação, “devendo aquelas revelar os motivos de facto e as razões de direito que conduziram ao veredicto concretamente emitido, de modo a permitir avaliar cabalmente à parte, ao tribunal de recurso e à comunidade o porquê da decisão” [2].
Com efeito, tal exigência, além da compreensão das decisões pelos cidadãos, especialmente pelos interessados, tem em vista o controlo crítico, por via de recurso, da lógica e transparência da decisão, constituindo fator de legitimação do poder jurisdicional e uma garantia de observância e respeito pelos princípios da legalidade, imparcialidade e independência, obstando a decisões arbitrárias.
Daí que a fundamentação de ato decisório deva ser “objectiva, clara e rigorosa e exteriorizar-se no respetivo texto de modo que se perceba qual o seu sentido e os argumentos lógicos que compõem o seu substrato racional”, estando em causa “a transparência democrática no exercício da função jurisdicional e a boa administração da justiça, interesses supra partes que justificam, se for esse o caso, a intervenção oficiosa visando a sanação do vício” – cfr. ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Dionísio) www.dgsi.pt.
Consequentemente, na medida em que a irregularidade, por falta de um dever especial de fundamentação na decisão recorrida, atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente pelo tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art.123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes – cfr. RL 24-02-2010 (Maria José Costa Pinto), Ac RG 27-05-2019 (Fátima Furtado), o ac RP 15-04-2015 (Maria Deolinda Dionísio) www.dgsi.pt, RP 31-05-2017 (Neto Moura), www.dgsi.pt. Também ATRG de 5/1/2004 Proc. 293/04.1, de 12/2/2007 Proc. 2335/06.1, ATRP de 16 /12/2009 Proc. 568/09 GFVNG.P1www.dgsi.pt
Neste caso, a extrema gravidade e consequências da imperfeição que atinge o ato decisório determina que o tribunal ad quem possa declarar a sua ineficácia, independentemente da sua arguição (nulidade insanável e irregularidades de conhecimento oficioso), dada a ofensa aos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, sobrepondo-se aos ideias de segurança, celeridade e economia na administração da justiça penal [3].
Este poder-dever restringe-se aos casos em que esteja em causa o interesse público e não um interesse privado disponível – cfr. João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, 2019, Tomo I, anot. art.123 º, pg.1295.
Posto isto, a verificar-se a irregularidade abrangida pela estatuição do art.123º n.º 2, por omissão dos reais fundamentos da decisão de não conceder a liberdade condicional ao recorrente, cumprirá declarar inválido o despacho correspondente (e todos os atos posteriores dele dependentes), devendo ser substituído por outro que explicite e exteriorize no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam a decisão, pois só assim se dará claro e completo cumprimento ao imperativo constitucional da fundamentação da decisão em causa [4].
Chegados à conclusão que nada obsta a que o tribunal de recurso conheça agora do vício apontado à decisão recorrida, cumpre agora saber se foi cumprido o dever especial de fundamentação daquela.
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Assim, com relevo para a resolução da questão objeto do recurso importa recordar
a fundamentação relevante da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):

“Quanto ao caso em concreto, resulta além do mais, do relatório dos serviços prisionais, do relatório dos serviços de reinserção social, da nota biográfica, do CRC e das próprias declarações do condenado, o seguinte:
1) O condenado nasceu no dia .../.../1983;
2) Cumpre a pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, à ordem do processo n.º 27/13.2PEVNG, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes (nas circunstâncias e modo descritos na respectiva decisão, aqui dados por integrados – folhas 3 e seguintes – designadamente, “por exercerem no período entre finais de Fevereiro de 2015 e 8 de Fevereiro de 2016, em actividade conjunta e em comunhão de esforços, de venda de estupefaciente haxixe”);
3) Atinge o meio da pena em 08/12/2021, os dois terços serão atingidos em 08/11/2022 e o termo em 08/09/2024 - cf. com folhas 170 verso;
4) Em termos escolares e formativos, o condenado frequentou sem concluir, o curso de formação profissional de canalizador – cf. com o relatório dos Serviços Prisionais, folhas 217; está num processo de certificação com vista à obtenção do 9.º ano de escolaridade;
5) Em termos laborais o recluso desempenha funções no armazém geral/cantina e mais para o fim estava no bar dos funcionários – cf. com folhas 217;
6) Está em regime aberto no interior desde 24/02/2021;
7) Está desde 15/10/2021 em regime aberto no exterior e começa na segunda feira a trabalhar na Câmara Municipal ...;
8) O condenado não tem registo de quaisquer sanções disciplinares; 9) O condenado já beneficiou de licenças de saída jurisdicionais e de licenças de saída de curta duração que decorreram sem conhecimento de anomalias;
10) O recluso confrontado com os factos prestou as declarações gravadas no sistema citius media studio – folhas 238, cujo teor aqui se dá por integralmente por reproduzido;
11) No meio livre o recluso perspectiva ir viver com a companheira e avó e o filho do casal;
12) Em termos de trabalho não tinha projeto concreto; mas apresenta agora duas propostas de trabalho para uma fábrica de calçado e para uma empresa que vende roupa;
13) Tem registo historial aditivo de consumo de canabinoides, nunca tendo sentido necessidade de procurar ajuda especializada - relatório dos Serviços prisionais, folhas 217 verso;
14) Do relatório dos Serviços de Reinserção social junto aos autos, resulta ainda que:
> Em meio livre AA dispõe do apoio da sua companheira, BB, num agregado constituído pela mesma, a avó desta e o filho do casal ainda menor de idade. BB tem um filho de outra relação com 14 anos, que reside com o respetivo progenitor; a relação afetiva entre este núcleo familiar e o condenado é avaliada como estruturada e solidária;
> A habitação onde reside o agregado de acolhimento é uma casa antiga arrendada, dotada de condições razoáveis de habitabilidade, dispondo de dois quartos, cozinha, casa de banho e pátio. A habitação encontra-se inserida em zona residencial pacata, sem referências a específicas vulnerabilidades sociais;
> A situação de reclusão de AA é do conhecimento da comunidade residencial, sendo o agregado positivamente referenciado;
> Não se perspetivam reações negativas face à presença do mesmo naquele contexto, situação que tem merecido avaliação positiva no decurso do benefício das medidas de flexibilização da pena, principiadas em dezembro 2020, não havendo registo de incumprimento
> AA possui como habilitações literárias o 6 º ano de escolaridade, concluído em meio livre;
> No estabelecimento prisional, encontra-se a frequentar o curso de formação de canalizador, com vista à obtenção de equivalências ao nível do 9º ano de escolaridade, cumulando ainda funções laborais no armazém da cantina;
> Ao nível profissional em período precedente à reclusão refere ter mantido ocupação laboral na exploração do bar da coletividade “...” e como mecânico numa oficina de automóveis propriedade de um primo; exerceu ainda também atividade como motorista na empresa “T..., nas funções de condução de veículos e cargas e descargas de mercadorias;
> Não obstante de em contexto de entrevista verbalizar que a procura de emprego é uma das suas maiores prioridades aquando do seu regresso a meio livre, por ora, não apresenta qualquer perspetiva de integração profissional; a subsistência económica do agregado é assegurada pelo valor 550 EUR, respeitante à pensão de velhice da avó da companheira a que acresce um valor de 100 EUR que aquela beneficia como cuidadora da ascendente, 240 EUR da frequência de um curso de formação profissional e 40 EUR do abono do menor;
> Apresentam como despesas fixas o valor de 37 EUR, correspondente às despesas inerentes à renda da habitação;
> Em meio livre e até que o condenado conquiste a sua autonomização através de inserção laboral, o agregado de acolhimento manifesta disponibilidade para assegurar a sua subsistência;
> AA iniciou os consumos de haxixe na entrada para a idade adulta, assumindo-se como abstinente há cerca de 9 anos, sendo que desde então não apresenta indicadores de problemáticas aditivas ou outras significativas de saúde que interfiram no decurso da medida;
> Quando questionado sobre os atos ilícitos por si praticados, AA reconhece a ilicitude e danos para as vítimas da tipologia em questão, verbalizando arrependimento; contudo contextualiza os seus comportamentos numa fase destruturada da sua vida, reportada à insuficiência económica, aos consumos de estupefacientes, designadamente haxixe na relação do cometimento do ilícito para a satisfação das adições, bem como na integração em grupos de pares associados ao tráfico de estupefacientes, desvalorizando as suas condutas, seja nos pares ou nos consumos;
15) Tem os demais antecedentes criminais documentados no CRC junto a folhas e seguintes, cujo teor, por brevidade, aqui dou por integralmente por reproduzido.
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Face a todas estas circunstâncias, não restam dúvidas que ainda não é possível fazer um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado, no sentido de que uma vez em liberdade condicional, leve uma vida socialmente responsável e sem cometer mais crimes, embora se reconheça um percurso prisional positivo atento o investimento no aumento das suas competências profissionais.
Face a todas estas circunstâncias, dúvidas não restam que ainda não é possível fazer um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado, no sentido de que uma vez em liberdade condicional, leve uma vida socialmente responsável e sem cometer mais crimes, embora se reconheça um percurso prisional positivo atento o investimento no aumento das suas competências profissionais, a atividade laboral desenvolvida e a ausência de incidentes disciplinares. Antes de mais, há que dizer que este percurso prisional, não é suficiente para concluir, sem mais, que seja de lhe conceder, desde já, a liberdade condicional. Na verdade, como entendeu a propósito o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão proferido em 17/01/2018, “a liberdade condicional não se trata de um instituto concebido como medida de clemência ou como mera compensação pela boa conduta prisional, mas antes, como um incentivo e auxílio ao condenado, uma vez colocado em liberdade, a não recair na prática de novos delitos, permitindo-lhe uma adaptação gradual à nova realidade e a consequente adequação da sua conduta aos padrões sociais”. No mesmo sentido, se pronunciou o mesmo Tribunal superior, no Acórdão de 23/01/2019, proferido no processo n.º 465/17.1TXPRT-H1, desta mesma UP, no Acórdão de 12/02/2020, proferido no âmbito do processo deste segundo juízo com o número 1524/16.3TXLSB-E.P1 e, mais recentemente, no Acórdão de 03/03/2021 (processo n.º 1022/17.8TXPRT-H.P1) relatado pela Senhora Desembargadora, Dr.ª Liliana Páris Dias[5].
Também é verdade que resulta dos autos que o recluso tem em meio livre, o apoio da companheira e perspectivas de trabalho (embora não concretizadas): contudo, como entendeu o Tribunal da Relação do Porto, “o facto de o recluso demonstrar vontade de trabalhar e o apoio de que beneficia, não são fundamento bastante para considerar uma fundamentada esperança de que em liberdade, consiga manter uma conduta adequada porque as circunstancias em que delinquiu já incluíam esses dados de facto e não obstante, não funcionaram como impedimento à actividade criminosa” – cf. com o acórdão de 29/06/2011, proferido no âmbito do processo n.º 2698/10.2TXPRT-E. No mesmo sentido se pronunciou o mesmo superior no Acórdão supra citado de 03/03/2021 (processo n.º 1022/17.8TXPRT-H.P1), considerando que “o enquadramento sócio-profissional e familiar adequado e favorável à reinserção do condenado já preexistia e não constituiu um factor de inibição à prática dos crimes que determinaram a sua condenação…”.
No caso dos autos, o Tribunal não pode ignorar em primeiro lugar, a elevada ilicitude dos factos tendo em conta que, como salientou o Tribunal da condenação, “mostra-se acentuado atento o modo organizado a nível logístico e humano como desenvolveu a actividade, a frequência com que essa actividade era desempenhada pelo arguido e a quantidade das substâncias transacionadas” – cf. com folhas 63 verso.
Em segundo lugar o Tribunal pondera a insuficiente capacidade crítica sobre os factos que levaram à sua reclusão, uma vez que como salienta o Ministério Público no antecedente parecer, o condenado “desculpabiliza a sua conduta com o consumo de estupefacientes, com a insuficiência económica e com o grupo de pares onde estava integrado. No mesmo sentido se pronunciaram os Serviços de Reinserção Social, ao considerarem que o condenado mantém uma postura de desculpabilização pelo que “o sucesso da sua reinserção social passará pela capacidade de canalizar as condições objetivas de que dispõe, orientada para uma efetiva mudança, assente na adoção de um estilo de vida normativo, com dedicação familiar e desenvolvimento de projeto laboral ou inserção profissional curto prazo com vista a conquistar conforto financeiro para si e agregado”. Acresce que o condenado, na sua audição, verbalizou arrependimento, mas além do mais, por causa do tempo que perdeu do crescimento dos seus filhos. De tudo resulta que se verifica, ainda, uma insuficiente interiorização do desvalor da conduta delituosa sendo certo que está em causa a prática de um crime grave, que permita concluir que o condenado é uma pessoa diferente e que não se revê naquela que praticou o crime. Perante as circunstâncias concretas do caso, a vida anterior do recorrente, a sua personalidade que revela uma certa ausência de autocritica e de interiorização da gravidade da sua conduta, recorrendo o condenado a uma desculpabilização fácil pelo cometimento dos factos, tudo demonstrativo de acentuadas necessidades de prevenção especial que não possibilita a formulação de um juízo de prognose favorável à concessão da liberdade condicional.
Por outro lado, também não se admite como possível, um juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade sendo certo que o crime em apreço (tráfico), tem consequências gravosas designadamente nas camadas mais jovens da população. Na verdade, são fortíssimas as exigências de prevenção geral, em relação ao crime de tráfico de estupefacientes, atentos, o autêntico flagelo para a saúde pública que constituem, bem como para a tranquilidade e segurança da população, pela grande taxa de criminalidade de outra natureza associada ao consumo e tráfico de estupefacientes e o elevado número de ilícitos desta natureza perpetrados no nosso país.
Como se escreveu no Acórdão do STJ de 30/04/2014, relatado pela Sr.ª Conselheira Isabel Pais Martins (processo n.º 2/13.7PEBGC.S1), «nos crimes de tráfico de estupefacientes as finalidades de prevenção geral impõe-se com particular acuidade, pela forte ressonância negativa, na consciência social, das actividades que a consubstanciam…a comunidade conhece as gravíssimas consequências do consumo de estupefacientes, particularmente das chamadas drogas duras, desde logo ao nível da saúde dos consumidores, mas também no plano da desinserção familiar e social que lhe anda, frequentemente, associada e sente os riscos que comporta para valores estruturantes da vida em sociedade»[6].
Na verdade, não restam dúvidas que tendo em conta a dimensão da problemática associada ao consumo de estupefacientes, potenciada por acções como a do recluso, a dimensão da necessidade de prevenção geral positiva e negativa, tendo em conta o tipo de ilícito, é muito elevada, sendo manifesto que no caso dos autos, ainda não estão satisfeitas as exigências mínimas da tutela do ordenamento jurídico (cf. com acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/06/2011, proferido no processo 2574/10.9TXPRT-D, ainda não publicado).
Conclui-se assim não se mostrarem preenchidos os pressupostos previstos no artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) e b), do Código Penal.
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Decisão:
Pelo exposto, tudo visto e ponderado, atentas as disposições legais citadas e as considerações expendidas, decide-se não colocar o condenado AA, com os demais sinais dos autos, em liberdade condicional”.
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Ora, vista a fundamentação, é inequívoco que a decisão recorrida contém a especificação dos factos indiciados e os meios de prova correspondente, a partir dos quais se alicerçou a análise da verificação ou não dos pressupostos materiais e formais sobre a liberdade condicional no limite temporal em causa.
Ainda que o recorrente dela possa discordar, a decisão recorrida enumera autonomamente os factos indiciados e o suporte probatório correspondente, expondo a partir dos mesmos os concretos argumentos lógicos que estiveram na base do juízo de prognose (negativo) subjacente à decisão.
O despacho em causa explicita de forma casuística e completa as concretas razões de facto e de direito que levaram à não concessão da liberdade condicional.
Por conseguinte, improcede a arguição de nulidade por falta de fundamentação.
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Dos pressupostos materiais da liberdade condicional: dos princípios da adequação, proporcionalidade e necessidade
Alega o recorrente, em suma, que o tribunal recorrido fez um uso errado do disposto no artigo 61, nº 2, al. a) e b), do Código Penal, ao denegar-lhe a concessão da liberdade condicional, não havendo no caso acentuadas necessidades de prevenção geral e especial que o justifiquem.
Tudo o mais, aventada violação dos princípios da adequação e proporcionalidade, são generalizações do recorrente sem cuidar de especificar, na motivação e conclusões do recurso, o sentido em que, no seu entender, o tribunal recorrido interpretou cada uma das normas que os corporizam ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada (art.412º, nº2, al.b), do Código Processo Penal), o que inviabiliza o conhecimento do recurso nessa parte.
O recluso encontra-se em cumprimento da pena de prisão em que foi condenado – 5 anos e 6 meses de prisão efetiva pela prática de crime de tráfico de estupefacientes.
Iniciou o cumprimento da pena em 11/3/2019, atingiu o meio da pena em 8/12/2021, atingirá os 2/3 em 8/11/2022 e o seu fim em 8/9/2024.
A liberdade condicional tem como objetivo “…criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão” [7].
A concessão da liberdade condicional, segundo o art.º 61 do Código Penal, depende da verificação de pressupostos formais e materiais, a saber:
Pressupostos formais:
1 - Que o recluso tenha cumprido metade da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou dois terços da pena e, no mínimo, 6 meses de prisão, ou ainda 5/6 da pena, para os casos de penas superiores a 6 anos;
2 - Que aceite ser libertado condicionalmente;
Pressupostos materiais:
a) Que fundadamente seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer novos crimes (juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do delinquente no meio social);
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social (requisito que não se mostra necessário aquando dos 2/3 da pena, conforme resulta do disposto no nº 3 do preceito em causa).
O primeiro requisito prende-se com uma finalidade de prevenção especial, visando o segundo satisfazer exigências de prevenção geral [8].
No primeiro momento de apreciação da liberdade condicional, como acontece no caso dos autos, quando o condenado já cumpriu metade da pena de prisão, faz-se depender a concessão da liberdade condicional dessas razões de prevenção (geral e especial) - artigo 61º, nº 2, als. a) e b), do Código Penal -, isto porque se admite a possibilidade de o cumprimento de metade da pena de prisão poder não ser suficiente para satisfazer as finalidades de prevenção geral. O mesmo já não ocorre no segundo momento de apreciação da concessão da liberdade condicional, quando o condenado já cumpriu dois terços da pena (artigo 61º, nº 3, do Código Penal).
O juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado em liberdade faz-se a partir daqueles elementos (art.173º, do CEP), “os quais funcionam como índice de ressocialização e de um comportamento futuro sem o cometimento de crimes, sendo de notar a substituição do critério de “bom comportamento prisional” (art.61º, nº1, do Código Penal, na redação primitiva), pelo elemento “evolução da personalidade durante a execução da pena de prisão” [9].
O juízo de prognose positivo sobre a condução da vida do libertado condicionalmente de modo socialmente responsável e sem o cometimento de novos crimes (finalidade da liberdade condicional), há-de revelar-se a partir dos seguintes aspetos:
1) As circunstâncias do caso (valoração do crime cometido - seja quanto à sua natureza, seja quanto às circunstâncias várias que estiveram na base da determinação concreta da pena, nos termos do art.71 do Código Penal – e da medida concreta da pena em cumprimento);
2) A vida anterior do agente, o que se relaciona nomeadamente com a existência ou não de antecedentes criminais;
3) A sua personalidade. Além de uma valoração fundamentalmente estatística decorrente dos antecedentes criminais [quantos mais, mais se indicia uma personalidade não conforme ao direito e potencialmente não merecedora da liberdade condicional], considera-se a possibilidade de o recluso ter enveredado para um percurso criminoso por a isso ter sido conduzido, ou não, por circunstâncias que não controlou ou não controlou inteiramente;
4) A evolução desta durante a execução da pena de prisão. Esta evolução deve ser percetível através de algo que transcenda a esfera meramente interna psíquica do recluso, ou seja, através de padrões comportamentais temporalmente persistentes que indiciem um adequado processo de preparação para a vida em meio livre.
Daí que, segundo entendimento da jurisprudência dominante, a evolução positiva da personalidade do recluso durante a execução da pena de prisão não se exteriorize nem se esgote necessariamente através de uma boa conduta prisional, muito embora haja uma evidente identidade parcial [10].
Os referidos padrões comportamentais poderão revelar-se quer em termos omissivos (através da ausência de punições disciplinares ou de condutas especialmente desvaliosas, como o consumo de estupefacientes, quando não motive as referidas punições), quer ativamente (através do empenho no aperfeiçoamento das competências pessoais – laborais, académicas, formativas) ao longo do percurso prisional do recluso.
No caso dos autos os pressupostos formais para a concessão da liberdade condicional estão preenchidos: a ½ da pena está já ultrapassada e o recluso aceita a liberdade condicional.
No que respeita aos requisitos substanciais, no caso aqueles relativos às exigências de prevenção especial, não merece reparo a decisão recorrida ao concluir de forma fundamentada pela sua não verificação.
Não se vislumbram nos factos indiciados, nem o recorrente especifica as concretas circunstâncias que suportam factualmente uma evolução significativa da personalidade suscetível de fundamentar um juízo positivo no sentido de que no futuro o recluso irá pautar a sua vida pelas regras do Direito.
Ainda que o arguido venha beneficiando de medidas de flexibilização da pena no estabelecimento prisional com licenças de saída, sem incidentes, onde tem valorizado a sua ocupação, não obstante o recluso verbalizar o seu arrependimento, tais circunstâncias não são suficientemente fortes para se ajuizar positivamente acerca da capacidade do recluso para, em liberdade, se manter afastado de condutas de risco de reincidência na prática criminosa.
A esta luz, para além da vontade subjetiva do condenado, o que releva é a capacidade de readaptação do mesmo, analisada por parâmetros objetivos e objetiváveis, de modo a poder concluir-se que as expectativas de reinserção são superiores aos riscos que a comunidade suportará com a antecipação da restituição à liberdade do condenado [11].
Daí que não seja elemento essencial (decisivo) o bom comportamento prisional do condenado, devendo atender-se a todos os índices de ressocialização revelados pelo mesmo, de acordo com as circunstâncias concretas de cada caso, nomeadamente a conduta anterior e posterior à condenação, à própria personalidade do condenado, ao seu modo de vida, aos seus antecedentes criminais e aos seus laços sociais e familiares.
Como referido, a evolução positiva da personalidade do recluso durante a execução da pena de prisão não se exterioriza, nem se esgota, através de uma boa conduta prisional. Nem esse aspeto pode ser visto de forma acrítica e isolada, sem “necessidade de valoração conjunta com os demais critérios legalmente estabelecidos e supra expostos. Não é qualquer evolução que justifica a libertação condicional e mesmo havendo evolução da personalidade durante a execução da pena de prisão a libertação condicional só se justifica depois de devidamente ponderados os demais critérios legalmente consignados” e “a existência de alguma evolução da personalidade durante a execução da pena pode não bastar para justificar a libertação condicional se a avaliação das circunstâncias concretas do caso, da vida anterior do agente e da sua personalidade impuserem um juízo de prognose desfavorável” [12].
Daí que não seja determinante a circunstância do recorrente possuir um comportamento prisional isento de sanções disciplinares, mantendo uma postura correta em meio prisional.
Relembrando o percurso criminoso do recluso, AA, nascido em .../.../1983, tem duas condenações em juízo, sendo uma delas aquela cuja pena se encontra em execução e outra em pena de multa, que pagou, por crime de ofensa à integridade física simples, tudo conforme se observa no certificado de registo criminal junto de 2021/10/06.
A conduta anterior e a personalidade do recorrente, analisada a partir do seu percurso criminal, apontam por isso para a formulação de um juízo desfavorável à concessão da pretendida liberdade condicional.
Não obstante o recluso o verbalizar, não está comprovado que aquele tenha efetivamente assegurado, quando em liberdade, qualquer projeto laboral ou emprego, como resulta do relatório dos serviços de reinserção social.
O seu enquadramento familiar não evitou a prática dos supra referidos crimes, não sendo, por isso, um fator decisivo na hora ajuizar sobre o seu comportamento futuro.
O recorrente traz ao recurso, no essencial, as perspetivas subjetivas sobre o que diz serem as suas intenções para o futuro, mas, bem vistas as coisas, sem qualquer validação objetiva nem significação especial que denote uma comprovada evolução da personalidade capaz de infirmar o risco de cometer novos crimes em meio livre.
Tanto mais que o recorrente, que não prestou declarações em julgamento sobre os factos imputados e assim não revelou consciência critica sobre os mesmos, justifica agora o tráfico de estupefacientes com a necessidade de assegurar os consumos de estupefacientes, insuficiências económicas quotidianas e contacto com grupo de pares associados ao tráfico de estupefacientes, tudo dificuldades com as quais seguramente se iria deparar quando restituído à liberdade condicional para ingressar no mesmo agregado sociofamiliar.
Note-se que a condenação do recluso advém de um comportamento realizado em conjunto com vários outros arguidos, de modo organizado e frequente, como resulta da decisão condenatória.
A mencionada forma como o recluso justifica a sua conduta é demonstrativa de uma absoluta falta de reconhecimento crítico sobre o mal do crime, dos graves danos provocados na saúde pública, pelo que, a sua libertação no momento em que a decisão recorrida foi proferida não seria compatível com a fundada esperança de em liberdade não cometer crimes.
Nada nos permite, pois, concluir que a personalidade do arguido evoluiu de tal modo durante e por força da execução da pena que lhe foi aplicada, de modo a superar, sem reservas, a provação séria de que conduzirá a sua vida de modo responsável sem cometer crimes.
Também o elevado grau de ilicitude e censurabilidade dos factos impõe especial cautela no que respeita à prevenção da reincidência, circunstâncias do caso que, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, podem e devem ser aqui ponderadas nos termos do art.61º, nº2, al.a).
São estes os factos relevantes recortados da matéria de facto provada relativos ao recorrente AA:
"os arguidos AA e CC, para além dos demais actos de venda e cedência de estupefacientes que a seguir se referem, exercerem, no período entre finais de Fevereiro de 2015 e 8 de Fevereiro de 2016, actividade conjunta e em comunhão de esforços, de venda de estupefacientes, haxixe, de acordo com plano entre ambos firmado, estabelecendo para o efeito vários contactos pessoais e telefónicos para organizar a entrega e cedência daquela substância ilícita a terceiros, o que ocorreu, nomeadamente, nos dias 1.04.2015, 5.7.2015, 6.7.2015, 15.10.15, 21.10.2015, 24.11.2015, 30.11.15 e 27.12.2015. No exercício dessa actividade conjunta, o arguido AA obteve algumas vezes o haxixe que directamente transaccionava junto do arguido CC, designadamente nos dias 5.07.15, e 30.11.15, esta última data relativa à transacção com os co-arguidos DD e EE concretizada nos dias 1.12.2015, por entrega directa do arguido AA. Em outras ocasiões, o arguido AA encaminhava os clientes inte­ressados para a casa de CC, procedendo-se aí à entrega e venda de produto estupefaciente por este arguido detido naquela residência, o que sucedeu nos dias 5.07.15 e 12.11.15, esta última também relativa a venda de haxixe aos co-arguidos DD e FF. Na execução dessa actividade conjunta efectuaram vendas de Haxixe aos co-arguidos DD, pelo menos, em 12.11.15 e em 1.12.2015. As quantidades transaccionadas, no exercício da actividade conjunta destes arguidos situaram-se, pelo menos, entre uma placa de haxixe (21.10.15) e 10 placas de haxixe (5.07.25 e 12.11.15), sendo que na transacção havida em 1.12.15 com os co-arguidos GG e DD, os arguidos HH e CC venderam a estes haxixe com o peso bruto de 1 007,62 KG e líquido de 984,370), tendo estes co-arguidos sido interceptados e detidos pela autoridade policial logo após terem adquirido o estupefaciente aos arguidos, que lhes foi directamente entregue pelo arguido AA. No período de Janeiro de 2015 a 9 de Fevereiro de 2016, o arguido AA, para além da actividade conjunta acima referida com o arguido CC, vendia haxixe, a outros revendedores ou a consumidores, que o contactavam para o efeito, contando para o efeito com a colaboração de II para guardar os produtos estupefacientes que vendia a terceiros; tais vendas ocorreram, entre outras datas, designadamente nos dias 18.01.15, 20.01.15, 22.01.2015, 23.01.2015, 4.02.2015, 8.02.2015, 11.02.2015 e 24.03.15; nesta última data, o arguido vendeu haxixe, depois de o ter recolhido em casa de II, a JJ, pelo valor de 5 € ou 10 €, tendo-se para o efeito deslocado ao Bairro ..., no seu veículo; o arguido AA procedeu ainda à venda de haxixe, entre outras, nas seguintes datas: 18.03.15, 20.04.15, 24.04.15, 26.04.15, 26.04.15 e 16.07.15. As quantidades e valores transaccionadas directamente pelo arguido AA não ficaram em alguns casos apuradas e nos demais casos variaram entre, pelo menos 5 a 10 € de haxixe e uma placa de haxixe. Em 9 de Fevereiro de 2016 no decurso de busca realizada por autoridade policial à residência do arguido AA, sita na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, foi apreendido ao arguido: A quantia monetária total de 1125,00 (mil cento e vinte e cinco) euros, em notas do Banco Central Europeu, proveniente da actividade ilícita levada a cabo pelo mesmo; uma balança de precisão, de marca Sinbo, utilizada pelo arguido para a pesagem da droga que transaccionava com terceiros; nesse dia foi ainda apreendido ao arguido o veículo ..-..-GJ; o arguido utilizou o veículo automóvel ..-..- GJ, para transportar produtos estupefacientes, designadamente nos dias 02.15, 4.02.15, 11.02.15, 24.03.15 e 1.04.15”.
...
25. Arguido AA
25.1. O arguido AA não tem antecedentes criminais.
25.2. O percurso de desenvolvimento de AA decorreu integrado no seu núcleo familiar, junto da progenitora, padrasto e 6 irmãos, dos quais é o mais velho, sendo a dinâmica familiar estável e equilibrada.
Frequentou o sistema de ensino até ao 8º ano, que não concluiu.
Iniciou actividade laboral aos 14 anos, como operário fabril, numa fábrica de candeeiros, e posteriormente na construção civil, actividade que exerceu com maior regularidade e no âmbito da qual esteve um ano emigrado na Holanda.
AA estabeleceu união de facto em 2010, tendo explorado com a sua companhei­ra o bar da colectividade "...", Associação ...­ de ..., entre 2011 a 2013/2014.
Paralelamente mantinha ocupação em tarefas indiferenciadas junto de um primo na reparação de veículos, em oficina do próprio, e que lhe asseguravam cerca de 200€ mensais. Iniciou o consumo de haxixe aos 18 anos.
À data dos factos dos autos, AA vivia a Rua ..., ..., com a companheira e filhos menores, e havia encerrado a actividade exercida na exploração do bar da colectividade, perante o pouco rendimento obtido, insuficiente para as obras de restauro que o espaço necessitava, que fechou entretanto. Ao nível laboral, mantinha a actividade de mecânico na oficina de automóveis do primo.
Desde Março de 2017 o agregado familiar alterou a residência para a casa da avó paterna da companheira do arguido, de 89 anos, tratando-se de situação temporária e vista como necessária para o seu apoio e cuidados, sendo o agregado familiar agora constituído pelo arguido, companheira, 29 anos, desempregada, filho da companheira, de 11 anos de idade, filho comum do casal, de 2 anos, e avó de 89 anos.
A dinâmica familiar presente entende-se como afectuosa e apoiante.
AA tem igualmente contactos de proximidade com o seu núcleo familiar de origem, nomeadamente mãe e irmãos.
O arguido trabalha, desde Julho de 2016, como motorista de ligeiros em transportes de mercadorias na empresa de distribuição "T...", tendo como funções a condução dos veículos e cargas/descargas de mercadorias, actividade que o mesmo valoriza e considera gratificante. Encontra-se actualmente em cumprimento do segundo contrato laboral com a empresa por seis meses, auferindo vencimento de€ 550,00.
Os rendimentos do agregado são provenientes do vencimento do arguido, no montante de mensal de 550€, pensão da avó paterna da companheira no montante de 200€, RSI atribuído à família no montante de 140€, e abonos referentes aos menores no montante de 80€. Os rendimentos familiares permitem assegurar o pagamento das despesas fixas mensais, na ordem dos 300€, no qual já se incluiu o pagamento da creche e ATL das crianças.
No meio onde vive o arguido goza de uma imagem globalmente favorável”.
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Em sede de acórdão confirmativo do Tribunal da Relação do Porto foi assinalado o tipo de atividade criminosa desenvolvida pelo condenado, o modo como se encontrava organizado o tráfico (realçando-se a organização a nível logístico e humano, a frequência com que era desempenhada a atividade criminosa e a quantidade das substâncias transacionadas), sendo mesmo entendido que a conduta empreendida pelo condenado é ainda mais grave do que a do coautor.
A concessão da liberdade condicional não pode basear-se em apregoadas mudanças de comportamento e arrependimento do recorrente, quando é certo que o seu percurso criminal e a persistente desculpabilização dos factos colocam a descoberto o vazio e fragilidade dessas proclamações [13].
Subsiste, de facto, uma postura desresponsabilizante que não se compadece com a prevenção do risco de recidiva que se considera ser elevado, tanto mais que o recluso tem um alarmante historial aditivo de substâncias estupefacientes.
No mais, não surpreende o discurso do condenado sobre o que julga ser o correto, conveniente e adequado para que o Tribunal lhe conceda a libertação antecipada.
Mas, nada faz prever que o recorrente, uma vez restituído à liberdade, conduza hoje, ao contrário de antes, a sua vida de forma socialmente responsável, sem cometer crimes, sobretudo quando não lhe são conhecidas sinceras condições nem capacidade séria para se readaptar de forma sustentada à vida social.
A demonstração da sua personalidade em juízo, associada às circunstâncias do caso concreto e antecedentes criminais do condenado, não permitem asseverar tão somente a partir do seu percurso prisional que, nesta fase da pena, estejam debelados os riscos de recidiva.
A aplicação da liberdade condicional deve basear-se num prognóstico individualizado e favorável de reinserção social assente, essencialmente, numa probabilidade ainda maior de que o agente, uma vez em liberdade, adote um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.
Obviamente nunca se poderá ter a certeza de que, uma vez em liberdade, o recorrente não voltará a delinquir.
Mas, numa situação como aquela do recorrente não é sustentável, a partir dos factos hoje conhecidos, um juízo sério e fundado de prognose favorável sobre a ressocialização e a eficácia preventiva da liberdade condicional.
Como se salienta no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, de 21-10-2009 (DR, I Série, 226, 20-11-2009, pág. 8442-8450) “- é do senso comum das coisas e resulta da leitura das finalidades e função do instituto da liberdade condicional e do período de adaptação - o problema não está nos pressupostos formais ou positivos. A questão é apenas de aplicação prudencial dos pressupostos materiais que a lei coloca na razoabilidade da ponderação pelo juiz dos critérios de julgamento e decisão.”
Nem existe qualquer princípio de presunção de capacidade de conformação às normas do direito num comportamento futuro, não havendo um dever do julgador de libertar condicionalmente ali onde não está comprovada uma indubitável capacidade de, em liberdade, o recluso levar uma vida sem cometer novos crimes.
A circunstância do recorrente se encontrar preso, vendo complicar-se as expectativas e esperança de reconstruir a sua vida no exterior, mais não são do que consequências da sua conduta criminosa e do fracasso das garantias por si prestadas sobre a perigosidade do mesmo do ponto de vista da reincidência criminal.
De resto, também as razões de prevenção geral convocadas pela decisão recorrida, a partir da natureza e circunstâncias do crime, apontam claramente para a não concessão da liberdade condicional ao meio da pena.
Com efeito, de acordo com as regras da experiência comum, tratando-se de um crime de tráfico de estupefacientes e com elevada ilicitude, atento o modo organizado (logístico e humano) de execução, a frequência e a quantidade de estupefaciente transacionado, maior é o alarme social e a insegurança e intranquilidade públicas em torno desta atividade criminosa que já por si demanda elevadas necessidades de prevenção geral, atento o proliferar de condutas similares e, sobremaneira, os múltiplos e fortes efeitos devastadores que elas têm na sociedade.
Daí que, também por esta via, nenhum reparo merece a decisão recorrida.
Finalmente, os relatórios e pareceres técnicos juntos apenas constituem informação auxiliar que o juiz pode valorar livremente, nos termos do art.127º, do Código Processo Penal, à semelhança da prova resultante da audição do recluso– cfr. RC 08-08-2008 (Jorge Raposo) www.dgsi.pt.
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Em suma, a decisão recorrida, ao não conceder a liberdade condicional ao recorrente, efetuou uma prudente interpretação do disposto no artigo 61º, n.º 2, al. a) e b), do Código Penal, não merecendo qualquer reparo a conclusão que teve como não verificados os requisitos substanciais da aplicação daquela.
Por conseguinte, o recurso é de improceder.
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3. Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso interposto pelo recluso AA, mantendo-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UCs (arts. 513º, nº 1, do CPP, 1º, nº 2 e 8º, nº 9, do RCP e tabela III anexa).
Notifique.
Acórdão elaborado pelo primeiro signatário em processador de texto que o reviu integralmente (art.94º nº 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelo Excelentíssimo Juiz Adjunto.
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Porto, 20 de abril de 2022
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
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[1] No sentido de que estamos perante uma irregularidade a arguir perante o tribunal a quo, no prazo geral de 10 dias, previsto no art. 152, n.º 1, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (CEPMPL) – cfr. Ac. RP 04-07-2012 (Joaquim Gomes), RP 03 Outubro 2012 (Coelho Vieira) RP 17 Outubro 2018 (Ligia Figueiredo) RC 12.12.2012 (Maria Pilar) RC 22/05/2013 (Fernando Ventura), RC 11-11-2015 (José Eduardo Martins), RC 17-12-2020 (Olga Maurício), RC 16-12-2015 (Vasques Osório), RC 25/09/2013 (Luís Coimbra) www.dgsi.pt
No sentido de que estamos perante uma irregularidade, mas do conhecimento oficioso (art.123º, nº2) – RL 24-02-2010 (Maria José Costa Pinto) www.dgsi.pt
Concluindo que as decisões sobre liberdade condicional devem ter uma estrutura idêntica à das sentenças, sendo-lhe aplicável a norma do artigo 374º, do Código de Processo Penal, sob pena de nulidade (art.379º) – RL 15-12-2011 (Neto Moura), RP 10-02-2010 (Adelina Barradas Oliveira), RL 26.03.2019 (Jorge Gonçalves) www.dgsi.pt
[2] RL 24-02-2010 (Maria José Costa Pinto) www.dgsi.pt
[3] João Conde Correia. Contibuto para a análise da inexistência e das nulidades processuais penais, BFDUC, Stydia Ivridica, 44. Coimbra Editora, 1999, pg. 171 e 174.
Haverá aqui que distinguir, como refere Germano Marques da Silva, em Curso de Processo Penal, volume II, 5ª edição, página 131, “entre a validade do acto e o seu valor; o acto será válido se a irregularidade não for declarada, mas pode não ter valor, designadamente por não poder produzir os efeitos a que se destinava”.
[4] A fundamentação influi essencialmente sobre a descrição dos factos, pois são estes que delimitam o objeto de apreciação. A necessidade de descrição dos factos é corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais e imposto quer pela CRP quer pela lei ordinária – artº 97º CPP como mencionado). A fundamentação da decisão, ao mover o seu juízo probatório entre os factos elencados, não pode deixar indicar aqueles que julga indiciados e/ou aqueles que julga não indiciados, e só no final poderá extrair a consequência jurídica que se impõe (concessão ou não da liberdade condicional).
[5] Considerou o TRP neste ultimo acórdão que “o bom comportamento prisional…não assegura necessariamente o bom comportamento em meio livre e sem hetro-controlo pois o meio prisional – enquanto organização de vida imposta ao recluso – não emula perfeitamente o meio social livre, em que, para além do auto-sustento, o indivíduo tem que auto-controlar todas as componentes da sua actividade e os impulsos que lhe subjazem”.
[6] No mesmo sentido cf. o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 31/01/2018, consultado em www.dgsi.pt: “não podemos escamotear que os crimes de tráfico de estupefacientes têm consequências gravosas designadamente nas camadas mais jovens da população…”.
[7] Cfr. n.º 9 do Preâmbulo do D.L. nº 400/82 de 23 de setembro.
A LC tem uma “finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização” – cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, p. 528.
[8] – cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Direito Prisional Português e Europeu, Coimbra Editora, 2006 p. 356; também António Latas – Intervenção Jurisdicional na Execução das Reacções Criminais Privativas da Liberdade – Aspectos Práticos, in Direito e Justiça, Vol. Especial, 2004, p. 223 e 224, nota 32.
[9] Maria João Antunes, Consequências jurídicas do crime, Coimbra Editora, 2013, pg.86
[10] ALBUQUERQUE, PAULO PINTO DE [2008], op cit, p. 211-212, art. 61º do C.P., anotação n.º 8.
Como se escreve o ac RC 11-10-2017 (Elisa Sales) www.dgsi.pt, acompanhando a doutrina de Figueiredo Dias in, Direito Penal Português – Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 538 e 539: “Para o preenchimento do requisito legal enunciado na al. a) do n.º 2 do artigo 61.º do CP, releva sobretudo, não o percurso prisional, em si mesmo, do condenado, no sentido de adaptativo e de obediência e conformismo táctico e pragmático aos regulamentos, mas sim o comportamento daquele - exteriorização de uma dada personalidade, materializada e espelhada durante o período de reclusão -, como índice de (re)socialização e de um futuro comportamento responsável em liberdade”.
[11] Ac RE 03-02-2015 (João Amaro) www.dgsi.pt.
[12] Ac RC 08-08-2008 (Jorge Raposo) www.dgsi.pt.
[13] Como se afirma nos Ac. RL de 17-12-2014, proc. 6645/10.3TXLSB-Q-3 e RC 11-10-2017 (Elisa Sales), disponíveis in www.dgsi.pt: “A declaração de arrependimento do recluso não influencia positivamente o juízo de prognose a emitir sobre a liberdade condicional quando decorre da penosidade do cumprimento da pena de prisão e da ânsia de liberdade, em vez de constituir a expressão de uma genuína mudança de carácter e personalidade”.