Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2603/15.0T8STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: INSOLVÊNCIA QUALIFICADA DE CULPOSA
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
Nº do Documento: RP201706292603/15.0T8STS-A.P1
Data do Acordão: 06/29/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 100, FLS.16-36)
Área Temática: .
Sumário: I - Demonstrado qualquer dos fundamentos previstos nas várias al.s do nº 2 do art.º 186º do CIRE, presume-se iuris et de iure que a insolvência é culposa para efeito da sua qualificação; aquela presunção abrange o nexo casual entre a atuação do agente do facto e a criação da insolvência ou o seu agravamento.
II - É ao interessado na qualificação da insolvência e na afetação que cabe o ónus da prova dos factos-índice previstos naquela disposição legal, enquanto pressuposto da presunção que dali emerge, pelo que, quanto à al. a), não se exige ao pretenso afetado que demonstre que os bens abatidos ao património da devedora eram obsoletos ou não correspondiam a uma parte considerável do seu património.
III - A al. e) do nº 2 do art.º 189º do CIRE deve ser interpretada em termos hábeis quando conjugada com o subsequente nº 4: a indemnização não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelo afetado na insolvência, aproximando-se do valor dos danos efetivamente causados, sem esquecer que tem também natureza sancionatória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2603/15.0T8STS-A.P1 (apelação)
Comarca do Porto - Juízo de Comércio de Santo Tirso

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
Na sequência da realização da assembleia de apreciação do relatório, veio o Administrador da Insolvência apresentar as suas alegações por escrito, para efeito da qualificação da insolvência como culposa, indicando, para ser afetado por tal qualificação o gerente da sociedade insolvente B…, Lda., C….
Fundamentando o seu parecer, o Administrador da Insolvência alegou essencialmente que a gerência entregou a colaboradores, de forma gratuita, os equipamentos informáticos que compunham o ativo e vendeu a si próprio o veículo da sociedade compensando o seu preço com suprimentos que lhe havia efetuado.
A afetação destes ativos impediu a apreensão de qualquer ativo da empresa e gerou proveitos ao sócio gerente em detrimento dos credores da insolvência, designadamente da Autoridade Tributária.
Por despacho de 15.12.2015, o tribunal declarou aberto o incidente de qualificação da insolvência.
O Ministério Público manifestou concordância com o parecer do Administrador da Insolvência.
Citado, C… deduziu oposição, defendendo a improcedência da qualificação como culposa, refutando os fundamentos invocados pelo Administrador da Insolvência, e negou o enquadramento dos comportamentos descritos na al. d) do nº 2 do art.º 186º do CIRE, por não revestirem, pelo modo como ocorreram e a finalidade que prosseguiram (e que explicou), nenhuma forma de disposição de bens ou agravamento da situação de insolvência da sociedade.
Concluiu que a insolvência deveria ser considerada fortuita.
Em 21.2.2016, o trabalhador D… respondeu à oposição do gerente da sociedade, defendendo a sua improcedência. Alegou, designadamente, que o computador portátil que utilizava pertencia à empresa onde estava em regime de outsourcing, e foi restituído no momento da saída da empresa. O único equipamento que ainda está na sua posse é o telemóvel (Samsung …), modelo de …, ultrapassado e descontinuado. Manifestou surpresa pelo facto de, na oposição que apresentou, o gerente defender que promoveu a dação em pagamento junto de colaboradores, nunca tendo promovido qualquer dação relativamente aos créditos que reclama.
O Administrador da Insolvência respondeu à defesa do gerente, sustentando os fundamentos que carreara já para a sua alegação inicial.
O gerente pronunciou-se ainda contra a argumentação utilizada pelo referido trabalhador, por requerimento de 7.3.2016, e, em 4.8.2016, respondeu também ao Administrador da Insolvência, invocando a extemporaneidade da sua resposta, a falta de elementos subjetivos exigidos para a qualificação e os fundamentos que já arregimentara na sua oposição para que a insolvência fosse qualificada como fortuita.
Em 9.12.2016, o Ministério Público manifestou-se no sentido de manter o seu parecer anterior (fls. 13: “Nos termos e pelos fundamentos constantes do parecer do Ex.mo Administrador de Insolvência, o Ministério Público concorda com a proposta de qualificação da insolvência como culposa, devendo ser afectado pela decisão o legal representante da insolvente C…” (sic).
O Administrador da Insolvência ainda veio defender que o seu requerimento foi apresentado em tempo e que a sua sustentação é conforme à realidade material.
Foi então proferido despacho saneador que julgou tempestivo o requerimento de resposta do Administrador da Insolvência, identificou o objeto do litígio, fixou factos que considerou já provados e definiu os temas de prova.
Teve lugar a audiência final, com produção e provas, após a qual foi proferida sentença com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Em conformidade com o exposto, e de acordo com os preceitos legais indicados, decide-se:
1. Qualificar a insolvência da sociedade B…, Lda como culposa.
2. Afectar o gerente da insolvente C… pelos efeitos da qualificação;
3. Declarar a inibição de C… para administrar patrimónios de terceiros, por um período de 2 anos;
4. Declarar a inibição de C… para o exercício do comércio durante um período de 2 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa,
5. Decretar a condenação de C… a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças do seu património.
Custas pela massa insolvente.» (sic)
*
Inconformado, recorreu o afetado C…, produzindo alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Na sequência do que vai dito, a douta sentença em apreço é nula por violação do princípio do inquisitório constante do disposto no artigo 11º do CIRE;
2. É nula pelo facto de conhecer de questões das quais não podia conhecer, nos termos da alínea d), do nº 1, do artigo 615º do Código de Processo Civil;
3. A douta sentença ora em crise faz uma errada interpretação e aplicação das alíneas a) e d), do nº 2 do artigo 186º do CIRE;
4. A douta sentença ora em crise, padece de vício de erro de julgamento, do vício de omissão de apreciação da matéria de facto e do vício de contradição na apreciação da matéria de facto;
5. Também na sequência do que supra vai dito, devem os Factos 11 e 12, dados como provados ser dados como não provados e os Factos 1, 2 e 3, dados como não provados, devem ser dados por provados;
6. Deve ainda ser dado como provado que o imobilizado da insolvente foi abatido durante os anos de vigência da sociedade; o referido imobilizado estava obsoleto e não tinha qualquer valor; a declaração emitida a 02.07.2015 e transcrita no ponto 5 (cinco) dos factos dados como provados foi emitida na sequência de um pedido da contabilidade para o efeito;
7. A douta sentença ora em crise não faz qualquer referência à resolução do negócio relativo veículo com a matrícula .. - .. -XJ e à sua entrega voluntária do pelo aqui Apelante/C…, à massa insolvente a 25.11.2016;
8. Em sede deste incidente de qualificação da insolvência vigora o princípio do inquisitório, conforme dispõe o artigo 11º do CIRE;
9. A entrega voluntária do veículo chegou ao conhecimento da Meritíssima Juiz a quo em virtude do exercício das suas funções, pelo que, a referida entrega voluntária do veículo com a matrícula .. - .. - XJ, a 25.11.2016, pelo Apelante ao Ilustre Administrador de Insolvência deveria constar dos factos assentes, bem como, da fundamentação de facto da douta sentença ora em crise;
10. Mais referida entrega voluntária do veículo com a matrícula .. - .. - XJ não permite dar como provado, como faz a douta sentença ora em crise, que a atuação do gerente/ Apelante enquadre a previsão da alínea d), do nº 2, do artigo 186º;
11. Já que, tendo o referido veículo sido apreendido para a massa insolvente, não pode a douta sentença dar como provado que o aqui gerente/ Apelante tenha disposto de bens em proveito pessoal ou de terceiros;
12. A douta sentença ora em crise padece ainda do vício de omissão da apreciação da matéria de facto pois, do processo principal e dos apensos das reclamações de créditos constavam elementos essenciais à boa decisão da causa e que deveriam ter sido elencados nos factos assentes pela Meritíssima Juiz a quo;
13. Desde logo, o valor dos suprimentos e data da prestação dos mesmos à sociedade pelo aqui Apelante/C…;
14. O aqui Apelante/ C…, na qualidade de sócio gerente da sociedade insolvente e perante as dificuldades financeiras da mesma, prestou suprimentos à sociedade no valor total de 25.428,77€ (vinte e cinco mil quatrocentos e vinte e oito euros e setenta e sete cêntimos);
15. Tal sucedeu nos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014, conforme melhor discriminado na reclamação de créditos apresentada pelo Apelante/ C…, em apenso a estes autos e junta a este incidente com a Oposição apresentada, como documento nº 3;
16. A douta sentença ora em crise deu tal facto como provado, sob o seu nº 6 (seis) dos factos provados da seguinte forma: “O Administrador de Insolvência reconheceu créditos ao gerente da insolvente C… no montante global de €44.029,92, referente a salários, subsídio e suprimentos.” (Sublinhado nosso);
17. A douta sentença ora em crise deu também como provado o facto de apenas o trabalhador, D… ter reclamado créditos no presente processo de insolvência, cfr. ponto 10 (dez) dos factos provados e como justificação da prova deste facto, na motivação desta douta sentença pode ler-se “ o facto descrito em 10 resultou apurado com base na consulta ao apenso da reclamação de créditos.”;
18. Do apenso da reclamação de créditos consta a relação dos créditos reclamados pelo aqui Apelante/ C…, devidamente discriminada quanto ao valor e datas dos suprimentos por este prestados à sociedade insolvente. E tal facto – valor e datas da prestação de suprimentos – é de extrema relevância para qualificação da insolvência em causa;
19. A violação do princípio do inquisitório, pelo Tribunal a quo, e a consequente falta de valoração da prova contida neste documento, levaram à qualificação da insolvência da sociedade B… como culposa, já que, a douta sentença ora em crise veio enquadrar a atuação do aqui Apelante, enquanto gerente, da referida sociedade insolvente, na previsão da alínea d), do nº 2, do artigo 186º do CIRE;
20. Não pode o Tribunal a quo socorrer-se da consulta ao apenso da reclamação de créditos para dar como provados determinados factos e, relativamente ao outros factos – a partir dos quais qualifica a insolvência como culposa –, invocar a inexistência de prova, quando a prova está junta ao próprio incidente de qualificação de insolvência;
21. O Tribunal a quo deveria ter dado como provada a prestação de suprimentos pelo aqui Apelante/ C…, enquanto gerente da sociedade insolvente, suprimentos estes já existentes à data da celebração do negócio de compra e venda do veículo, em Maio de 2013;
22. No entanto, o Tribunal a quo não apreciou devidamente nenhum dos factos supra descritos e ignorou os elementos de prova juntos aos autos com o articulado de Oposição à qualificação de insolvência pelo aqui Apelante. Tais factos eram, no entanto, do conhecimento do Tribunal a quo que os omitiu da apreciação e fundamentação da decisão tomada. A douta sentença padece de omissão na apreciação da prova e tal omissão configura, ainda uma nulidade suscetível de inquinar o processado subsequente por violação do princípio do inquisitório;
23. A douta sentença ora em crise incorreu em erro de julgamento da matéria de facto e os factos supra descritos sob o Pontos nº 11 e 12 dos FACTOS PROVADOS devem ser dados como NÃO PROVADOS;
24. Da prova produzida em sede se audiência, discussão e julgamento, como se demonstrará, ficou apenas provado que os equipamentos abatidos pela gerência, ao longo da sua existência estavam obsoletos e não tinham qualquer valor económico;
25. Não foi feita prova que permitisse afirmar – como o faz a douta sentença, em crise - que os referidos equipamentos têm o “valor de aquisição de €73.702,88, nos termos que constam a fls. 8 vs, cujo teor se dá por reproduzido”;
26. Não foi possível estabelecer qualquer relação entre o documento que consta de folhas 8 (oito) e o equipamento objeto de abate cuja declaração emitida a 2 de Julho de 2015 faz referência;
27. O Sr. Administrador de Insolvência não faz qualquer referência ou dá explicação quanto ao documento que junta, nem alega sequer que o valor que consta do mesmo se refira ao valor da aquisição do ativo em causa, o que não permite dar como provado o PONTO Nº 11;
28. Encontra-se incorretamente julgado o PONTO Nº 12 dos factos provados quando refere que “Parte do equipamento objeto da declaração de abate incluía o equipamento básico, equipamento administrativo e outro ativo imobilizado melhor descrito no documento junto a fls. 99, cujo teor se dá por reproduzido”;
29. Relativamente ao documento junto a folhas 99 (noventa e nove) cujo teor exato se desconhece e a douta sentença ora em crise não justifica, pensa-se ser um documento junto aos autos pelo Senhor Administrador de Insolvência a 29.02.2016 e da mesma forma, o Sr. Administrador de Insolvência não faz qualquer referência ou explicação quanto ao documento que junta, nem alega sequer, como faz a douta sentença que “Parte do equipamento objeto da declaração de abate incluía o equipamento básico, equipamento administrativo e outro ativo imobilizado” descritos no referido documento;
30. Além do erro de julgamento, que conforme se demonstrará considerou provados os factos supra transcritos, ao conhecer de tais factos, dos quais não podia tomar conhecimento, pois não dispunha de meios para tal, a douta sentença ora em crise, encontra-se ferida de nulidade, nos termos do disposto na alínea d), do nº1, do artigo 615º do Código de Processo Civil;
31. Com base na referia prova testemunhal produzida em sede de audiência discussão e julgamento, ter sido dado como PROVADO nos termos do disposto no artigo 640º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil que: o imobilizado da insolvente foi abatido durante os anos de vigência da sociedade; o referido imobilizado estava obsoleto e não tinha qualquer valor; a declaração emitida a 02.07.2015 e transcrita no ponto 5 (cinco) dos factos dados como provados foi emitida na sequência de um pedido da contabilidade para o efeito;
32. Nos termos e para os efeitos do artigo 640º B do Código de Processo Civil encontram-se incorretamente julgados os seguintes pontos da matéria de facto: os PONTOS Nº 1, 2 e 3 dos factos não provados, os quais merecem resposta positiva, ou seja PROVADOS;
33. O princípio da livre apreciação da prova permite que, as declarações de parte que não impliquem a confissão, como sucede no caso em apreço, possam ser valoradas mesmo que sejam favoráveis ao declarante, com base nas regras da experiência ou de critérios sociais, existindo desta forma um grau de confirmação adequado;
34. E tal sucede no caso em análise, Veja-se o teor dos factos 9º e 10º dos factos dados como provados;
35. Ou seja, dos 12 (doze) trabalhadores ao serviço da sociedade insolvente no ano de 2011, apenas 1 (um) dos mencionados trabalhadores reclamou créditos no âmbito do processo de insolvência aqui em apreciação.
36. As regras da experiência levam-nos a concluir, que nenhum dos outros trabalhadores sentiu necessidade de fazer tal reclamação e tal deve-se à explicação, clara coerente e credível dada pelo gerente da sociedade insolvente/ C… relativamente ao modo como os trabalhadores em causa cessaram os contratos com a sociedade insolvente, B… Lda.;
37. Por outro lado, a forma de cessação dos contratos descrita, através da “absorção” dos trabalhadores pelas empresas (clientes da insolvente) aos quais os referidos trabalhadores estavam alocados, não exige a elaboração de qualquer documento escrito que a tal permita. Daí a inexistência da prova documental, exigida pelo Tribunal a quo para dar tais factos como provados;
38. Ao valorar as declarações do aqui Apelante para dar como provados determinados factos e ao desvalorizar as mesmas declarações para dar factos como não provados, a douta sentença ora em crise incorre em vício de contradição na apreciação da matéria de facto;
39. Da prova produzida em sede de audiência, discussão e julgamento, outra conclusão não pode ser retirada que não passe pela resposta positiva: PROVADO aos Pontos nº 1, 2 e 3 dos factos não provados;
40. Deve pois, dar-se como provado que: PONTO Nº 1. “Em consequência da deterioração da saúde financeira da sociedade, e com o objectivo de diminuição dos custos de indemnizações nos acordos de rescisões a celebrar com os colaboradores, a sociedade insolvente acordou com os clientes finais a integração nos seus quadros dos recursos humanos daquela.”; PONTO Nº 2. “Como incentivo para o colaborador, a sociedade insolvente atribuiu-lhes os equipamentos fornecidos como ferramentas de trabalho.”; PONTO Nº 3. “Em virtude do supra referido, a sociedade insolvente não pagou indemnizações aos trabalhadores no valor de €48.000,00.”;
41. O depoimento coerente e esclarecido do aqui Apelante, gerente da sociedade insolvente só pode resultar a prova dos factos alegados. Neste depoimento com a duração de mais de uma hora, o aqui Apelante durante vários dos momentos das diversas instâncias explicou como funcionava o acordo tripartido entre a sociedade insolvente, as clientes da sociedade insolvente e trabalhador;
42. É este acordo tripartido e a sua concretização, no que respeita à grande maioria dos trabalhadores que consta da folha de férias junta aos autos a folhas 41 (quarenta e um) que permitiu que mais nenhum trabalhador, à exceção do já identificado D… viesse reclamar créditos a este processo de insolvência;
43. Mais, com base na prova produzida em instância da Meritíssima Juiz a quo e com recurso à referida folha de férias foi possível identificar a data de admissão e saída de cada um desses trabalhadores;
44. Da referida folha de férias – documento junto aos autos a folhas 41 e valorado quanto à prova do facto 9 (nove) pela Meritíssima Juiz a quo – constam os vencimentos de cada um dos trabalhadores mencionados;
45. O Tribunal a quo inquiriu de forma exaustiva o gerente da insolvente, aqui Apelante sobre das datas de admissão e cessação dos contratos de todos os trabalhadores que constam da folha de férias;
46. No entanto, decidiu não valorar tal depoimento, não obstante, os vencimentos dos referidos trabalhadores constarem de prova documental, a folha de férias considerada pelo mesmo Tribunal a quo para prova do facto nº 9 (nove). E ao fazê-lo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto;
47. A douta sentença ora em crise, enquadra a atuação do gerente da insolvente, na previsão da alínea d), do nº2, do artigo 186º do CIRE mas os factos PROVADOS e supra transcritos, sob os números 4 (quatro), 13 (treze) e 14 (catorze) não permitem, por si só, chegar à conclusão que chegou a douta sentença ora em crise e que se transcreveu supra;
48. Também a PROVA TESTEMUNHAL, produzida em sede de audiência, discussão e julgamento, quanto à venda do veículo com a matrícula .. - .. - XJ, não permite chegar àquela conclusão;
49. Na motivação da douta sentença ora em crise, a Meritíssima Juiz a quo refere que o facto descrito em 4 (quatro) está assente, conforme despacho de seleção da matéria assente e temas de prova proferido a fls 135 (cento e trinta e cinco) e ss. E os factos descritos em 13 (treze) e 14 (catorze) resultaram apurados com base no “teor do documento junto a fls. 9 vs (fatura que titula a compra e venda do veículo de matrícula .. - .. - XJ).”;
50. A Meritíssima Juiz a quo omite qualquer apreciação à prova testemunhal produzida em sede de audiência, discussão e julgamento, sobre o assunto em causa;
51. E tal apreciação, secundada pela prova documental junta aos autos levaria necessariamente à seguinte conclusão: o sócio-gerente da insolvente, C… adquiriu um veículo automóvel à sociedade insolvente a 15 de Maio de 2013 (conforme resulta do facto provado nº 13 e fatura de compra e venda do veículo); o sócio-gerente da insolvente, C…, não pagou o preço do referido veículo; à data da compra do veículo, a 15 de Maio de 2013, o sócio-gerente da insolvente, C… tinha já prestado suprimentos à sociedade insolvente, entre 12.08.2011 e 03.05.2013 no valor de 49.234,84€ (conforme documento nº 3, junto à Oposição a este incidente e respetivos documentos contabilísticos);o sócio – gerente da insolvente, C…, não justificou a falta do pagamento do preço um ano e meio depois (da venda) “através da invocação da compensação de um crédito por suprimentos existente a essa data (isto é, a data da declaração)”; o sócio – gerente da insolvente, C… apenas emitiu as declarações transcritas sob os nºs 4 (quatro) e 5 (cinco) dos factos provados, com data respetivamente de 06.01.2015 e 02.07.2015 porque tal lhe foi solicitado pela contabilidade (conforme resulta dos depoimentos do TOC, E… já transcrito);
52. Assim sendo, a falta de pagamento do preço do veículo em causa, encontra justificação na compensação com os suprimentos já existentes e a declaração que consta do ponto 4. (quatro) dos factos provados, trata-se de um mero documento de quitação da fatura emitida a 13.05.2013 e que foi solicitado pela contabilidade;
53. Contrariamente ao entendimento vertido na douta sentença ora em crise, o sócio - gerente da insolvente, C…, não justificou a 06.01.2015, a falta de pagamento do preço do veículo adquirido a 13.05.2013, com suprimentos existentes à data de 2015;
54. Da prova documental junta aos autos, designadamente a fatura emitida a 13.05.2013, da qual consta o valor de mercado do veículo, à data 6.000,00€ (seis mil euros), cfr. facto provado nº 14 nº (catorze);
55. Acompanhada pelas declarações do aqui Apelante/C… levam-nos à necessária conclusão de inexistir qualquer proveito para terceiros - designadamente o aqui Apelante, com a venda do veículo em causa;
56. O valor da venda corresponde ao valor de mercado da viatura, tendo em conta o facto de a mesma ter sido adquirida já em 2004, no estado de usada;
57. Aliada ao facto da referida viatura ter uma avaria na direção cuja reparação ascendia ao montante de 2.700,00€, 2.800,00€;
58. Com efeito, a venda em causa, conforme melhor explicado no depoimento transcrito, evitou gastos de manutenção, gastos de combustível, gastos com pagamento de seguros, gastos com pagamento de imposto único de circulação para a sociedade insolvente, a B… Lda.;
59. Tais gastos, que seriam da responsabilidade da sociedade insolvente, caso a venda não se tivesse verificado, no ano de 2013 e com a referida venda, tais despesas passaram para a esfera privada do sócio gerente;
60. Pelo que, não existe aqui qualquer proveito pessoal do Apelante/ C…, com a compra e venda deste veículo, pelo que, a existir, existirá apenas prejuízo;
61. A alínea d), do nº 2, do artigo 186º do CIRE não faz menção à importância económica dos bens que o administrador dispôs em proveito pessoal ou de terceiros. Ficou demonstrado que o bem em causa, o referido veículo automóvel, não tinha qualquer relevância económica para a insolvente, nem tinha qualquer valor o referido equipamento informático conforme considerada pela douta sentença nos termos supra transcritos;
62. No caso em apreço, temos que, é a própria douta sentença em análise que destaca a irrelevância económica dos bens em causa;
63. Veja-se que à data da venda o veículo em causa, a 13.05.2013, a empresa continuou, por mais dois anos com a sua normal laboração.
64. O veículo com a matrícula ... - .. - XJ está na posse da massa insolvente desde o mês de Novembro de 2016;
65. A venda do referido veículo em nada se relaciona com a declaração de insolvência da referida sociedade;
66. Atuação do aqui Apelante em nada contribuiu para a declaração de insolvência da sociedade. E a existência do veículo, no ativo da sociedade não seria suficiente para impedir a situação de insolvência;
67. Também neste caso, entendemos que a situação provada nos autos não permite qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas;
68. A impugnação da matéria de facto, feita relativamente aos factos nº 1, 2 e 3 dados como não provados, implica que a resposta positiva dada aos mesmos e pela qual agora se pugna venha também determinar a falta de verificação da presunção constante do disposto na alínea a), do nº2, do artigo 186º do CIRE.;
69. Também a impugnação da matéria de facto, feita relativamente aos factos nº 11 e 12 dados como provados, e os quais devem ser considerados não provados com a necessária prova que: o imobilizado da insolvente foi abatido durante os anos de vigência da sociedade; o referido imobilizado estava obsoleto e não tinha qualquer valor; a declaração emitida a 02.07.2015 e transcrita no ponto 5 (cinco) dos factos dados como provados foi emitida na sequência de um pedido da contabilidade para o efeito; o que vem também determinar a falta de verificação da presunção constante do disposto na alínea a), do nº 2, do artigo 186º do CIRE;
70. O Apelante e os Técnico Oficiais de Contas, ouvidos em audiência, nas declarações prestadas e já transcritas, para as quais se remete explicaram que o abate do equipamento foi feito sucessivamente ao longo dos vários anos de existência da sociedade. Sem que à medida que o equipamento foi inutilizado tal ficasse refletido na sociedade. Perante a iminência do fecho da sociedade e a pedido dos referidos técnicos oficiais de contas, foram emitidas as declarações transcritas nos factos dados como provados em 4 (quatro) e 6 (seis), respetivamente quanto ao veículo e ao equipamento informático da sociedade;
71. O aqui Apelante relativamente ao imobilizado chega até a referir que a sociedade mudou de escritórios tendo deixado ficar o equipamento;
72. Mais uma vez e tal qual como ficou dito no que ao veículo com a matrícula .. - .. - XJ ficou dito, a douta sentença ora em crise considera o respetivo material sem qualquer relevância económica;
73. Ao exposto acresce que, não foi feita prova nos autos sobre os bens concretos que faziam parte do imobilizado da sociedade insolvente, sendo apenas considerado o seu diminuto valor;
74. Não se pode, pelo que vem dito e provado, considerar que os referidos bens sejam a totalidade ou parte considerável do património da sociedade devedora, pelo que, não se encontram preenchidos os requisitos da alínea a), do nº 2, do artigo 186º do CIRE, a qual exige que o património dissipado tenha relevo económico;
75. Resta afirmar que a atuação do sócio gerente da B… LDA., aqui Apelante não foi a causa da situação de insolvência;
76. Sendo que, de igual forma a atuação do sócio gerente da B… LDA., aqui Apelante em nada contribuiu para verificação ou agravamento de tal situação;
77. No entanto foi condenado nos termos que constam da douta sentença, Condenação com a qual não se pode concordar e cuja revogação se impõe, dada a necessária qualificação da insolvência da sociedade B… LDA. como fortuita». (sic)
Defendeu, assim, a recorrente a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que qualifique a insolvência como fortuita.
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Não foram oferecidas contra-alegações.
*
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho).
Com efeito, estão para apreciar e decidir as seguintes questões:
1. Nulidade da sentença por:
a) Violação do princípio do inquisitório;
b) Conhecer de questões de que não podia conhecer (art.º 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil);
2. Erro de julgamento da matéria de facto (omissão e contradição na sua apreciação);
3. Erro de interpretação e aplicação das al.s a) e d) do nº 2 do art.º 186º do Código de Processo Civil (enquadramento jurídico).
*
III.
São os seguintes os factos considerados provados na 1ª instância[1]:
1. Por sentença proferida em 26 de agosto de 2015, foi decretada a insolvência de B…, Lda.
2. A sociedade insolvente tinha por objeto a prestação de serviços de consultadoria informática, gestão e administração de sistemas informáticos e comércio de harware e software.
3. À data da declaração da insolvência, C… desempenhava funções como gerente.
4. Em 6 de janeiro de 2015, a gerência da sociedade B…, Lda emitiu uma declaração intitulada “Venda Viatura da matrícula .. - .. - XJ”, nos termos da qual:
“A gerência da B…, Lda, abaixo assinada, comunica para os devidos efeitos, a alienação da viatura Volvo com matrícula .. - .. - XJ a favor do sócio-gerente Sr. C… pelo valor de €6.000,00 (seis mil euros). A liquidação deste valor será efectuada por via do abatimento dos suprimentos, em existência a esta data, do sócio-gerente C… à B…, Lda.
5. Em 2 de julho de 2015, a gerência da sociedade B…, Lda emitiu uma declaração intitulada “Abate de equipamentos informáticos”, nos termos da qual:
“A gerência da B…, Lda, abaixo assinada, comunica para os devidos efeitos, que os ativos (equipamentos informáticos) foram abatidos do património da empresa”.
6. O Administrador da Insolvência reconheceu créditos ao gerente da insolvente C… no montante global de €44.029,92, referente a salários, subsídio e suprimentos.
7. O modelo de negócio da sociedade insolvente baseava-se no fornecimento de recursos humanos especializados no sector das tecnologias de informação, sendo os seus trabalhadores colocados a prestar trabalho directamente nas instalações dos clientes.
8. Na prossecução da sua actividade, a sociedade insolvente fornecia a todos os trabalhadores computadores portáteis e periféricos, telemóveis e, para os que faziam serviços de prevenção aos clientes, placa de dados móveis.
9. Em junho de 2011, exerciam funções na sociedade insolvente os trabalhadores E…, D…, F…, G…, H…, I…, J…, K…, L…, M…, N….
10. Apenas o trabalhador D… reclamou créditos no presente processo de insolvência.
11. Em 31 de julho de 2015, foi elaborado um documento contabilístico relativo a abate de equipamentos com o valor de aquisição de €73.702,88, nos termos que constam a fls. 8 vs, cujo teor se dá por reproduzido.
12. Parte do equipamento objeto da declaração de abate incluía o equipamento básico, equipamento administrativo e outro ativo imobilizado melhor descrito no documento junto a fls. 99, cujo teor se dá por reproduzido.
13. A alienação do veículo automóvel referido em 4.º ocorreu em 15 de maio de 2013.
14. O valor de mercado do referido veículo, à data da alienação, era de €6.000,00.

O tribunal a quo deu como não provada a seguinte materialidade[2]:
1. Em consequência da deterioração da saúde financeira da sociedade, e com o objectivo de diminuição dos custos de indemnizações nos acordos de rescisões a celebrar com os colaboradores, a sociedade insolvente acordou com os clientes finais a integração nos seus quadros dos recursos humanos daquela.
2. Como incentivo para o colaborador, a sociedade insolvente atribuiu-lhes os equipamentos fornecidos como ferramentas de trabalho.
3. Em virtude do supra referido, a sociedade insolvente não pagou indemnizações aos trabalhadores no valor de €48.000,00.
4. O gerente da insolvente procedeu ao efetivo abate de parte dos equipamentos informáticos referidos em 12.º.
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Apreciação das questões do recurso
1. Nulidades da sentença
São duas as causas de nulidade da sentença que o apelante invoca:
Violação do princípio do inquisitório e conhecimento de questões de que o tribunal não podia conhecer.
Começando pela apreciação da primeira, diz-nos o art.º 11º do CIRE[3] que “no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes”.
Pode, assim, o juiz servir-se de outros factos fundamentadores das decisões que profira no âmbito dos incidentes de qualificação de insolvência, para além daquela alegação.
Trata-se de um poder inquisitório bem mais alargado do que o que brota do art.º 5º do Código de Processo Civil e, praticamente, sem paralelo no Código de Processo Civil anterior (art.º 264º, nº 2), sendo, por isso excecional, mais se aproximando dos poderes concedidos ao juiz em sede de processo de jurisdição voluntária (art.º 986º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O poder de fundar a decisão em factos não alegados contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem como recolher as provas e informações que entender convenientes. É precisamente no plano dos incidentes da qualificação de insolvência que, considerada a correspondente tramitação e o momento em que se desenvolve, melhor se pode exprimir e concretizar o princípio do inquisitório, com os contornos que resultam do art.º 11º.[4]
O apelante situa a nulidade da sentença na omissão e desconsideração de factos pelo tribunal que, na sua perspetiva, estão documentalmente provados nos autos e que muito relevam para a boa decisão da causa.
As causas de nulidade da sentença são as que estão taxativamente previstas no art.º 615º, nº 1, do Código de Processo Civil. Entre elas, a única em que a situação denunciada se pode enquadrar é a da al. b): Não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Omitiram-se factos que deveriam ter sido considerados provados na sentença, diz-nos o recorrente. Mas não se omitiu a fundamentação de facto; a sentença contém factos provados e não provados, ainda que aquela fundamentação possa ser insuficiente.
Tem-se entendido, de modo praticamente uniforme, que só a falta absoluta de fundamentação determina a nulidade da sentença, não padecendo desse vício a sentença que contém uma fundamentação insuficiente, deficiente, medíocre ou mesmo errada[5].
A falta de fundamentação da decisão, seja ela um mero despacho ou uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira, num determinado sentido. É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, antes a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Como escreve o Professor Alberto dos Reis[6], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
O dever de fundamentação de facto e de direito da sentença, previsto no art.º 607°, apenas se aplica ao conhecimento das questões decididas naquela peça processual, entendendo-se por estas os pontos essenciais de facto ou de direito em que as partes basearam as suas pretensões; não se aplica também aos meros argumentos usados no conhecimento das mesmas.
Como dissemos, só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou impercetível. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão[7]. A fundamentação da sentença contenta-se com a indicação factual e as razões jurídicas que servem de apoio à solução adotada pelo julgador.
A Ex.ma Juiz fundamentou a sentença, de facto, através da concretização dos factos provados que servem de base à decisão (estão descritos sob pontos 1 a 14) e de matéria não provada, para além da fundamentação jurídica subsequente.
Poderá justificar-se o aditamento da matéria dita omitida aos factos provados --- questão a ponderar aquando da reapreciação da decisão em matéria de facto --- mas a referida nulidade não ocorre.

Ainda a título de nulidade, o apelante diz-nos que o tribunal conheceu de questões que não podia conhecer, tendo cometido o vício previsto na al. d) do nº 2 do citado art.º 615º. Refere-se à matéria dos pontos 11 e 12 dos factos provados, alegando que, quanto a eles, o tribunal não dispunha de meios (presumimos que, de prova) que permitissem o seu assento.
O problema é saber se tais factos estão, ou não estão, provados e tem solução em sede de impugnação da decisão em matéria de facto. Conhecer ou não conhecer de determinados factos não é conhecer ou não conhecer de determinada questão. Os factos não são questões.
Não confundamos questões com factos e argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir, assim como a eventuais exceções ligadas à defesa[8]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[9] O facto material é um elemento para a solução da questão, não é a própria questão.
Já Alberto dos Reis ensinava[10] que “uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”.
Com ou sem os factos que o recorrente possa ter por relevantes para a decisão da causa, a 1ª instância não omitiu o tratamento e a solução das questões suscitadas na ação, atenta a sua causa de pedir e o pedido.
Não ocorre também a nulidade invocada com base na al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
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2. Erro de julgamento em matéria de facto
O recorrente preconiza a modificação da decisão em matéria de facto nos seguintes termos:
- Os pontos 11 e 12 dos factos dados como provados devem ser dados como não provados;
- Os itens 1, 2 e 3 da matéria dada como não provada devem ser dados como provados.
Deve ser ainda ser dado como provado, na expressão do apelante:
- O mobilizado da insolvente foi abatido durante os anos de vigência da sociedade;
- O referido imobilizado estava obsoleto e não tinha qualquer valor;
- A declaração de 02.07.2015, transcrita no ponto 5 (cinco) dos factos dados como provados, foi emitida na sequência de um pedido da contabilidade para o efeito;
- O negócio relativo ao veículo com a matrícula .. - .. - XJ foi resolvido e voluntariamente entregue pelo apelante à massa insolvente no dia 25.11.2016;
- O apelante, na qualidade de sócio gerente da sociedade insolvente prestou-lhe suprimentos ao longo dos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014, no valor total de €25.428,77, para fazer face às dificuldades financeiras da mesma.
Nota-se que, ao longo das alegações, numa mescla de factos e direito, o recorrente se apoia noutras circunstâncias, tendo-as como relevantes para a decisão. Porém, não estende às mesmas a impugnação da decisão em matéria de facto nos termos exigidos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil, pelo que não são consideradas.
Para efeito da pretendida modificação da decisão nos termos acima concretizados, o apelante indica determinados documentos, passagens das suas declarações de parte e depoimentos testemunhais dos TOCs E… e O….
Foi, naquela medida, suficientemente cumprido o ónus de impugnação a que se refere o art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a), do Código de Processo Civil.
O tribunal deu por assentes os pontos 11 e 12 apenas com base nos documentos de fls. 8 verso e 99, respetivamente. Deu como não provados os itens 1º, 2º e 3º da matéria que negou, por falta de provas, nomeadamente por só o gerente se ter referido a esta factualidade e ser parte interessada no desfecho do incidente, sem apoio documental ou testemunhal (depoimentos de trabalhadores da empresa).

Cumpre-nos reapreciar a matéria impugnada, fazendo funcionar a regra do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, com vista à deteção de qualquer erro de julgamento, com a delimitação dada no recurso, corrigindo-o, pelo uso do princípio da livre apreciação da prova e respeito pela prova legal ou vinculada, como tribunal de instância que é a Relação.
Foi examinada toda a prova produzida, sendo ela a documental junta aos autos, as declarações de parte do gerente da insolvente, C…, e os depoimentos testemunhais do gestor da empresa responsável pela prestação dos serviços de contabilidade da sociedade insolvente, E…, e o TOC que diretamente fez os lançamentos na contabilidade da insolvente entre 2009 e 2015, O….
Fica a ideia geral de que E… não fazia os lançamentos na contabilidade, mas apenas o seu colega O…. Não obstante, mostrou conhecer alguns aspetos da mesma, mas muito pouco sobre as realidades que justificavam os lançamentos, mesmo quando foi confrontado com as situações concretas a que se referem os documentos juntos a fls. 9 e 9 verso (caso da venda do veículo).
Melhor conhecimento mostrou ter a testemunha O…, pelo motivo já referido. Deu explicações sobre aqueles documentos e o documento de fls. 8, com que foi confrontado. Ambos os depoimentos se afiguraram credíveis, neles não foram detetadas contradições ou incongruências com a demais prova produzida, nem referências que possam extravasar do conhecimento que, previsivelmente, podem ter em razão da relação quem mantinham com a vida da empresa, sendo, sobretudo, contabilístico, mais formal.
As declarações de parte, tal como os depoimentos testemunhais, são de livre apreciação, exceto na parte em que consistam em confissão (art.º 466º, nº 3, do Código de Processo Civil). De modo diferente do que refere o recorrente, o tribunal não tem que acreditar, radicalmente, em tudo ou nada do que o declarante refere na sua prestação probatória. Esta releva na medida em que convencer, sendo o convencimento tanto maior quanto mais justificado estiver e se aproximar da prova credível fornecida por outros meios, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica da vida. Pode uma parte das declarações convencer e outra parte não convencer. O tribunal não pode olvidar que o recorrente tem interesse direto na sorte da ação.
Assim, as declarações respeitantes a factos favoráveis ao declarante devem ser apreciadas unitária, global e conjuntamente pelo tribunal, ao abrigo de um poder (não vinculado) de valoração livre dos elementos probatórios delas resultantes, a somar aos demais elementos probatórios e às máximas da experiência prudentemente aplicáveis.
Nessa avaliação, há de ponderar-se a possibilidade que a parte tinha, ou não tinha, de demonstrar os factos através de outros meios de prova acessíveis, designadamente testemunhal, não devendo, por regra, valorar-se a seu favor a declaração isolada de um facto favorável e duvidoso relativamente ao qual a parte podia (e devia) ter arrolado testemunhas e dar a conhecer o seu conhecimento, ou ter juntado documentos relevantes e bastantes. Como veremos, o apelante não o fez, ou não o fez de modo razoável e que seria expectável segundo um juízo de normalidade no procedere.
Vejamos então a matéria objeto de impugnação, ponto por ponto.
Quanto aos factos dados como provados
Ponto 11
Em 31 de julho de 2015, foi elaborado um documento contabilístico relativo a abate de equipamentos com o valor de aquisição de €73.702,88, nos termos que constam a fls. 8 v., cujo teor se dá por reproduzido.
Este facto não é mais do que o próprio documento de fls. 8 verso, com que a testemunha O… foi confrontada em audiência, sem que o pusesse em causa, antes o confirmando como documento da contabilidade da insolvente. Sobre o seu conteúdo, pronunciou-se também o declarante sem que o negasse, antes anuindo até ao seu teor, acrescentando as condições em que os equipamentos, na sua perspetiva, foram saindo da empresa para os seus trabalhadores/colaboradores.
Este facto está efetivamente provado.
Ponto 12
Parte do equipamento objeto da declaração de abate incluía o equipamento básico, equipamento administrativo e outro ativo imobilizado melhor descrito no documento junto a fls. 99, cujo teor se dá por reproduzido”.
Ficou muito claro, quer a partir das declarações de parte, quer dos dois depoimentos testemunhais, que a sociedade insolvente tinha por objeto a prestação de serviços de informática em regime de outsourcing, colocando os seus trabalhadores (número variável que, em cada momento, rondou os 11 elementos) junto das empresas suas clientes, onde os serviços eram prestados ao longo do tempo, com alguma permanência e regularidade.
Todos descreveram o material como equipamento informático e administrativo, explicando o declarante que incluía computador portátil, placa de acesso a dados informáticos e telefone, fornecidos aos seus trabalhadores que o utilizavam junto do cliente.
Analisado o documento de fls. 99, não admira, pois, que o tribunal tivesse dado como provado o facto em causa, atentos os elementos ali descritos e a descrição menos concretizada do documento de abate de 31.8.2015 (fls. 8 verso), mas que sempre haveria de se referir aos equipamentos naturais na empresa, atento o objeto da sua atividade, confirmados pelo declarante como sendo material administrativo e equipamentos de trabalho entregues aos colaboradores. Obviamente, a empresa abatia o equipamento de que dispunha, e não outro. É o que resulta da conjugação daqueles documentos das declarações de parte e dos depoimentos das testemunhas. Não surpreende que parte do material abatido corresponda a material descrito no documento de fls. 99.
O facto do ponto 12 também está demonstrado.
Quanto aos factos dados como não provados
Item 1
Em consequência da deterioração da saúde financeira da sociedade, e com o objectivo de diminuição dos custos de indemnizações nos acordos de rescisões a celebrar com os colaboradores, a sociedade insolvente acordou com os clientes finais a integração nos seus quadros dos recursos humanos daquela.
Sobre esta matéria apenas se pronunciou o declarante C… no sentido de a confirmar. As testemunhas E… e O… mostraram desconhecê-la.
As declarações do gerente da insolvente mostraram-se claras e até com algum sentido lógico, mas a ausência de outras provas diretas e suficientes quando, na realidade, tudo indica que poderia ter viabilizado a inquirição como testemunhas do facto algum ou alguns dos seus colaboradores, clientes ou funcionários destes, deixa a dúvida séria sobre se assim aconteceu; para mais, depois de constar dos autos a versão de um dos seus colaboradores, D…, em manifesta divergência com o declarante.
O facto de outros trabalhadores não terem reclamado créditos é insuficiente para dar como provada a sua integração noutras empresas (clientes da insolvente) e as condições em que isso aconteceu. Tal integração é possível, mas não era a única solução que evitasse a reclamação de créditos, admitindo-se que os tivessem. Exigia-se mais da prova, porque fácil seria trazer prova testemunhal sobre a matéria.
É das regras da experiência que nem sempre o mais provável acontece. Os elementos de prova de que dispomos quanto a este facto são frágeis (e podiam ser fortes). Dar o facto como provado tem uma margem de risco que está longe de ser desprezível.
Esta matéria deve manter-se não provada.
Item 2
Pelas mesmas razões que o item 1 é dado como não provado: Falta também prova suficiente para considerar esta matéria realidade. Deve permanecer não provada.
Item 3
De igual modo e pelas razões apontadas, a versão do declarante é insuficiente para darmos o facto como assente.

O recorrente pretende ainda que sejam dados outros factos como provados:
a- O imobilizado da insolvente foi abatido durante os anos de vigência da sociedade;
b- O referido imobilizado estava obsoleto e não tinha qualquer valor;
c- A declaração emitida a 02.07.2015 e transcrita no ponto 5 (cinco) dos factos dados como provados foi emitida na sequência de um pedido da contabilidade para o efeito;
d- O negócio relativo ao veículo com a matrícula .. - .. - XJ foi resolvido e voluntariamente entregue pelo apelante à massa insolvente no dia 25.11.2016;
e- O apelante, na qualidade de sócio gerente da sociedade insolvente, prestou-lhe suprimentos ao longo dos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014, no valor total de €25.428,77, para fazer face às dificuldades financeiras da mesma.

Nada mais previsível do que uma sociedade ir abatendo imobilizado obsoleto e consumido ao longo dos anos em que exerce a sua atividade comercial. Mas, uma coisa é o abate material/físico dos bens, designadamente, deitando-os para o lixo, outra coisa é o abate formal dessas coisas, o lançamento do facto na contabilidade da empresa.
Nos autos não conhecemos outro que não seja o abate formalizado pelo documento de fls. 8 e verso.
Principalmente, a testemunha O… admitiu que aquele documento poderá espelhar um abate que, de facto, foi decorrendo previamente ao longo do tempo e que se formalizou apenas naquele ato. O documento de fls. 8 verso respeita, nos seus próprios termos, a regularizações mensais e a declaração de fls. 8 é anterior a ele (2.7.2015), pelo que é até difícil aceitar que um e outro respeitem aos mesmos bens.
Assim quanto ao ponto a), apenas é seguro dar como provado que a insolvente procedeu ao abate de equipamento que utilizava no exercício da sua atividade.

O recorrente declarou que houve equipamento abatido que foi entregue aos seus trabalhadores, até para os compensar na cessação do contrato de trabalho e na transferência dos mesmos para os quadros da cliente em que cada um deles prestava serviço. Está implícito o reconhecimento do valor desses bens. Logo, não é possível afirmar que o equipamento que a insolvente abateu ao longo dos anos estava obsoleto e que não tinha qualquer valor (embora também não se saiba qual fosse esse valor, podendo ser diminuto). É, aliás, uma afirmação demasiado genérica, carecida de concretização para relevar no processo.
O ponto b) não se considera provado.

Quanto ao ponto c), foi o O… que tratou os dados e recorda-se de ter recebido esta declaração para lançar na contabilidade, sendo que a mesma significa que os equipamentos informáticos deixaram de estar na empresa. Mas não é mais do que uma informação da gerência da empresa nesse sentido, que já não existem, devendo a contabilidade espelhar esse facto que, no entanto, não confirma. Diz mesmo aquela testemunha que, se os equipamentos tivessem sido entregues aos trabalhadores da sociedade insolvente, isso deveria constar da declaração de fls. 8, de 2.7.2015. É mais provável que o documento tivesse sido presente à contabilidade pela gerência para lançamento, do que pedido por aquela para o mesmo efeito.
Este facto não está provado.

Quanto ao ponto d), resulta do processo principal que o negócio de compra e venda do veículo foi resolvido pelo Administrador da Insolvência e, nessa sequência, não houve impugnação da resolução e o automóvel foi entregue ao Administrador da Insolvência no dia 25.11.2016.
Logo, o ponto d) deve ser considerado provado nos seguintes termos:
O negócio relativo ao veículo com a matrícula .. - .. - XJ foi resolvido e, nessa sequência, o automóvel foi entregue pelo apelante à massa insolvente no dia 25.11.2016.

O facto da al. e) tem que ser dado como parcialmente assente. Foi referido pelo declarante e também pelas testemunhas, que reconheceram o esforço que aquele fez, enquanto sócio gerente (mesmo quando a insolvente teve outros sócios além dele), para que a empresa não fracassasse, ali injetando capital seu e privando-se outras vezes do seu salário. Acresce a melhor prova emergente do reconhecimento que o Administrador da Insolvência fez do seu crédito na lista que elaborou ao abrigo do art.º 129º, onde acolheu a sua reclamação na totalidade, sendo de €25.428,77 o crédito por suprimentos.
Não se conhece sentença transitada em julgado que tenha reconhecido e graduado o referido crédito reclamando pelo gerente. Daí, podemos estar perante uma forte probabilidade da sua existência e validade, mas, com todo o rigor, só aquela situação permite afastar toda e qualquer dúvida.
Seguro é afirmar, como afirmou a sentença, no ponto 6, que o Administrador da Insolvência reconheceu créditos ao gerente da insolvente C… no montante global de €44.029,92, referente a salários, subsídios e suprimentos, fazendo-os constar da respetiva lista que apresentou ao abrigo do art.º 129º; acrescentamos apenas que tal reconhecimento, quanto a suprimentos, respeita ao valor de €25.428,77, sendo relativos aos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014 e que se destinaram a fazer face às dificuldades financeiras da sociedade.

É relevante a data em que a sociedade se apresentou à insolvência. Tal facto resulta sobejamente demonstrado pelos termos do próprio processo e pode ser considerado pela Relação.
Não seria necessário, mas adita-se aos factos provados:
“A sociedade apresentou-se à insolvência no dia 21.8.2015”
Decorre do exposto acrescentar à matéria provada os seguintes factos novos:
- A insolvente procedeu ao abate de equipamento que utilizava no exercício da sua atividade;
- O negócio relativo ao veículo com a matrícula .. - .. - XJ foi resolvido e, nessa sequência, o automóvel foi entregue pelo apelante à massa insolvente no dia 25.11.2016.
- O reconhecimento a que se refere o ponto 6, quanto a suprimentos, respeita ao valor de €25.428,77, sendo relativos aos anos de 2011, 2012, 2013 e 2014 e destinaram-se a fazer face às dificuldades financeiras da sociedade.
- A sociedade apresentou-se à insolvência no dia 21.8.2015.
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3- Erro de interpretação e aplicação das al.s a) e d) do nº 2 do art.º 186º e do art.º 189º do CIRE
Considerando a delimitação dada pela apelação, releva no que dispõe o art.º 186º:
«1– A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 – Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)».

A questão é, na sua essência, qualificar a insolvência como fortuita ou culposa pelos referidos dois fundamentou ou algum deles, tirando daí as devidas consequências.
A sua abordagem carece com uma breve análise dos pressupostos da qualificação da insolvência.
Como ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda[11], é por força da sentença de declaração de insolvência que se abre o incidente pleno (art.º 36º, al. i)), sendo que o alcance deste primeiro momento do incidente é o de conceder a qualquer interessado a faculdade de, no incidente, alegar os factos que relevem para a qualificação da insolvência como culposa.
O incidente de qualificação da insolvência é novo relativamente ao anterior CPEREF que foi revogado pelo CIRE (art.º 10º do decreto-lei nº 53/04, de 18 de março) e de cujos termos preambulares resulta que este incidente é aberto oficiosamente em todos os processos de insolvência, qualquer que seja o sujeito passivo, e não deixa de realizar-se mesmo em caso de encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente, para além de que tanto se pode reportar ao devedor, como aos administradores, quando existam, sejam eles de direito ou de facto.
Na definição do nº 1 do art.º 186º, a insolvência é culposa quando tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de Direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. Assim, para a qualificação da insolvência como culposa, exige-se não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores, mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência. A contrario, a insolvência será considerada fortuita sempre que não se verifique essa situação.
O acórdão da Relação do Porto de 12.10.2012[12] é lapidar na análise da culpa, ao referir que “o que se qualifica é o comportamento do devedor na produção ou agravamento do estado de insolvência, de modo a que se averigue se existe, à luz da teoria da causalidade adequada, um nexo de causalidade entre os factos por si cometidos ou omitidos e a situação de insolvência ou o seu agravamento, e o nexo de imputação dessa situação à conduta do devedor, estabelecido a título de dolo ou culpa grave. Dolo que, enquanto conhecimento e vontade de realização do facto em causa, pode revestir-se das modalidades de directo, necessário e eventual. Culpa, (stricto sensu) quando o autor prevê como possível a produção do resultado, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação e não toma as providências necessárias para o evitar. Este é o recorte da culpa consciente, já que na culpa inconsciente se enquadram as situações em que o agente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não chega sequer a conceber a possibilidade do facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação, se usasse da diligência devida. Estes os termos em que devem ser entendidas estas noções usadas pelo CIRE (artigo 186º, 1). Nada dispondo em particular sobre essa matéria, tais conceitos devem ser entendidos nos termos gerais do Direito. E, por isso, também repescada a tese da culpa em abstracto consagrada no Código Civil, apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, 2). A norma exige, no entanto, a culpa grave, traduzida em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, observam, contraposta à culpa leve, vertida na omissão da diligência normal, e à culpa levíssima, correspondente à omissão de cuidados especiais que só as pessoas mais prudentes e escrupulosas observam.”
Quanto à determinação da pessoa afetada pela qualificação, cada agente tem uma atuação que merece ou não ser objeto de pronunciamento neste tipo de incidente, misto de civil e sancionatório, tendo-se em vista atuações pessoais, comportamentos pessoais, atos pessoais realizados à frente da empresa, venham eles de administradores ou gerentes de facto ou de administradores ou gerente de direito.
Segundo o nº 2 do citado art.º 186º, a insolvência do devedor que não seja pessoa singular considera-se sempre culposa verificadas que sejam determinadas condutas dos seus administradores de direito ou de facto, ali elencadas sob as al.s a) a i).
Tem sido entendido pela maioria da doutrina e da jurisprudência que aquele nº 2 estabelece presunções de culpa iuris et de iure (“considera-se sempre”), de efeito automático e inexorável, não admitindo prova em contrário. Como tal, conduzem, necessariamente, os comportamentos aí referidos à qualificação da insolvência como culposa[13]. Ainda que nesta matéria possam surgir dúvidas quanto a algumas das referidas alíneas do nº 2[14], a jurisprudência vem entendendo de modo uniforme que, pelo menos na maior parte das situações ali previstas, a presunção de culpa inclui o nexo causal entre a criação ou o agravamento do estado de insolvência em consequência de atuação dolosa ou com culpa grave do devedor ou dos seus administradores[15]. É, aliás, o que resulta da interpretação conjugada com o nº 1 do mesmo artigo.
A este propósito, elevando uma posição algo diversa, mas numa perspetiva sobretudo teórica (não tanto no efeito prático), refere-se no recente acórdão desta Relação de 7.12.2016[16], citando o acórdão desta mesma Relação de 15.7.2009[17]: “A generalidade da doutrina [o relator refere-se a Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. II, pág. 14; Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, pág. 175, 2ª edição; e Carneiro da Frada, “A Responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, in Estudos Jurídicos e Económicos em Homenagem ao Prof. Doutor António Sousa Franco, Vol. II, pág. 963] considera que as várias alíneas do n.º 2 constituem presunções legais jure et jure, isto é, inilidíveis, conducentes à qualificação da insolvência como culposa. Apesar disso, e partindo do conceito de presunção legal desenhado no artigo 349º do Código Civil, inclinamo-nos mais para o entendimento de que essas alíneas integram factos-índice ou tipos secundários de insolvência culposa. No acórdão do Tribunal Constitucional de 26.11.2008 [in DR, 2ª Série, n.º 9, de 14.01.2009], escreveu-se a este propósito: «… é duvidoso que na previsão do artigo 186º do CIRE se instituam verdadeiras presunções. Na verdade, o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal … de situações típicas de insolvência culposa». De todo o modo, sejam presunções ou factos-índice, o legislador prescinde de uma autónoma apreciação judicial acerca da existência de culpa. Provada qualquer uma das situações enunciadas nas citadas alíneas, estabelece-se de forma automática o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento.
(…)
Prossegue-se ali na análise da diferença das presunções, iuris tantum, a que se refere o subsequente nº 3 do mesmo preceito legal (que aqui não interessa apreciar) e conclui-se que “a opção por esta técnica jurídica justifica-se pela necessidade de garantir uma maior «eficiência da ordem jurídica na responsabilização dos administradores por condutas censuráveis que originaram ou agravaram insolvências», para além disso favorece a previsibilidade e a rapidez da apreciação judicial dos comportamentos.”
E remata-se no acórdão de 7.12.2016, com toda a clareza: “Podemos pois assentar no seguinte: para que a insolvência possa ser qualificada como culposa é necessário que a actuação do devedor tenha sido causa da situação de insolvência ou do seu agravamento, uma vez que o devedor pode ter actuado dolosamente mas em nada ter contribuído para a criação ou agravamento da insolvência. Todavia, verificada uma das situações do n.º 2 do artigo 186.º presume-se iuris et de iure a verificação desses requisitos e a insolvência não pode deixar de ser qualificada como culposa. Já se apenas estiver verificada uma das situações previstas no nº 3, para a insolvência ser declarada culposa é necessário que se demonstre que a actuação com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, presumindo-se a culpa grave mas facultando-se ao insolvente a faculdade de ilidir essa presunção iuris tantum.
(…)
A interpretação das alíneas a) e d) não suscita grandes dúvidas. No entanto, deve referir-se em relação à primeira que, tal como assinalado no Acórdão da Relação de Coimbra de 28.05.2013, proc. 102/12.0TBFAG-B.C1, in www.dgsi.pt, «a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho….». No que concerne à previsão da alínea d), o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.
Feita esta análise jurídica, é tempo de retomarmos a observação da decisão em matéria de facto, justamente para efeito da sua qualificação jurídica.
Importa reter ainda uma ideia-base relativa à prova. O ónus da prova dos fundamentos das presunções ou factos-índice (se assim se preferir) --- os comportamentos ali referidos sob o nº 2 do art.º 186º --- é de quem os invoca (art.º 342º, nº 1, do Código Civil). Tais fundamentos não se presumem; o que se presume é a culpa na insolvência e o nexo causal --- conforme acima exposto --- a partir da prévia demonstração dos factos-índice. Sem a prova destes, a presunção (iuris et de iure) não funciona.
São dois os factos-índice em causa:
a) A venda que o gerente fez a si mesmo de um automóvel da sociedade;
b) O abatimento de equipamentos informáticos ao património da sociedade.
Ambos os factos foram praticados dentro do período de três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Abordemos a al. a).
O tribunal recorrido enquadrou esta situação na al. d) do nº 2 do art.º 186º.
No dia 15 de maio de 2013, o gerente da sociedade B…, Lda., C…, vendeu à sua própria pessoa um determinado automóvel pertencente à sociedade, pelo preço de €6.000,00. Não o pagou. Só no dia 6.1.2015, mais de um ano e meio depois e pouco mais de sete meses e meio antes de se ter apresentado à insolvência, a gerência da sociedade emitiu uma declaração relativa àquela venda, fazendo constar, para além da venda, que a liquidação do valor do preço “será efectuada por via do abatimento dos suprimentos, em existência a esta data, do sócio-gerente C… à B…, Lda.”.
Está provado que o Administrador da Insolvência reconheceu créditos ao gerente da insolvente no valor de €44.029,92, sendo que a quantia de €25.428,77, neles englobada é relativa a suprimentos, valor bem superior ao preço do veículo que era também o seu valor de mercado na data da alienação.
Podemos admitir, para efeito de qualificação da insolvência, que os suprimentos são efetivamente devidos ao recorrente. Nem por isso o gerente deixou de dispor de bens da insolvente no seu proveito pessoal. O bem foi colocado à sua disposição, sem qualquer retorno posterior para a insolvente. O facto de ter um crédito avultado sobre a sociedade devedora, muito superior ao valor do bem adquirido, não dá ao gerente o direito de se fazer pagar pelo valor dos seus bens numa altura em que a sociedade passa já por dificuldades financeiras, com dívidas a outros credores, assim frustrando, em alguma medida, as expetativas de estes virem a obter a cobrança efetiva dos seus créditos segundo um critério de igualdade e respeito pelas regras da execução universal (art.ºs 1º e 128º e seg.s). Basta imaginar, ainda que por excesso possa ser, o que seria se o gerente tivesse adquirido todos os bens da sociedade para se pagar pelo seu crédito[18], esvaziando o património da devedora, frustrando completamente o interesse de todos os outros credores na cobrança dos seus créditos.
Acresce que os créditos do gerente relativos a suprimentos são subordinados e, por isso, graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência, nestes incluídos os créditos garantidos e os créditos comuns (art.ºs 47º e 48º, al. g)), o que agrava o nível de violação e frustração dos interesses dos demais credores e a probabilidade de que o gerente nada receberia se não tivesse usado do expediente da compra do veículo com compensação de créditos que só invocou, tardiamente, mais de um ano e meio depois da realização da negócio, muito mais próximo da data da sua apresentação à insolvência, quando mais se tornava exigível a proteção da generalidade dos credores.
Esta conduta do apelante preenche a al. d) do nº 2 do art.º 186º, presumindo-se, iuis et de iure, portanto, de modo inilidível[19], a sua culpa e o nexo casual entre a sua conduta e o agravamento que dela resulta para a insolvência da devedora.
A restituição do veículo deu-se em consequência da resolução da compra e venda, pelo que não releva como restituição voluntária e oportuna. A referida al. d) fica preenchida na data em que, sem qualquer contrapartida, o veículo foi vendido e saiu do património da empresa (maio de 2013).

Quanto ao fundamento exposto na referida al. b), entendeu o tribunal recorrido que se enquadra na al. a) do nº 2 do art.º 186º, expondo o seguinte: “(…) tal factualidade está também demonstrada, na medida em que nenhum bem pertencente à sociedade insolvente foi apreendido, tendo o gerente apresentado uma declaração de abate de equipamentos informáticos e um documento contabilístico que pretende documentar o abate, invocando que parte do equipamento informático foi entregue aos trabalhadores e outra foi destruída, por se ter tornado obsoleta, mas sem que se tenha comprovado, quer a entrega do equipamento, quer os pressupostos da dação em cumprimento alegada (designadamente, o consentimento dos ex-trabalhadores e valor dos créditos laborais e dos equipamentos informáticos), quer também o efectivo abate do equipamento por força do seu estado obsoleto”.
A norma daquela al. a) exige a prova da destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento, no todo ou em parte considerável, do património do devedor.
Não é ao apelante que cabe demonstrar algum daqueles factos-índice e o valor não considerável, desprezível, dos bens, mas aos interessados na qualificação da insolvência, sem prejuízo do poder inquisitório do tribunal, e quanto aos bens que o mesmo é considerável, apreciável, relevante, no contexto económico da devedora.
Ora, provou-se apenas que, em 2 de julho de 2015, a gerência da sociedade emitiu uma declaração de abate de equipamentos informáticos, tendo estes deixado de integrar o património da empresa.
Em data posterior (31.7.2015) foi elaborado um documento contabilístico relativo a abate de equipamentos com o valor de aquisição de €73.702,88.
Desconhecemos o motivo do abate do equipamento e se este procedimento corresponde a destruição, dano, inutilização, ocultação ou desaparecimento, assim como não sabemos qual era o valor que tinha à data do abate. Eram equipamentos informáticos e acessórios, como tal altamente desvalorizáveis com o decurso do tempo.
Não estando demonstrado o valor dos equipamentos na data em que efetivamente foram abatidos, não é possível concluir, com a necessária segurança, que tinham um valor considerável.
Com efeito, não temos por preenchida a qualificativa da al. a) do nº 2 do art.º 186º do CIRE.
Não se tendo demonstrado ainda que os equipamentos foram abatidos ao património da insolvente para proveito pessoal do recorrente ou de terceiros, também não está preenchida a al. d) do nº 2 daquele mesmo artigo.
Impõem-se, assim, qualificar a insolvência como culposa, como fez a sentença recorrida, embora apenas por força da al. d) do nº 2 do art.º 186º, e determinar os efeitos previstos no art.º 189º, nº 2, por referência aos 5 itens do seu dispositivo, acima transcrito.
Assim:
Mantém-se o item 1, ou seja, a qualificação da insolvência como culposa.
O item 2 também se mantém, sendo afetado o gerente da insolvente, C… pelos efeitos da qualificação.
Quanto ao item 3, já ali se fixara o tempo mínimo previsto na lei --- 2 anos --- de inibição do afetado para administrar patrimónios de terceiros, pelo que a redução dos fundamentos da qualificação não se pode refletir na quantificação desta sanção legal.
Pela mesma razão, o item 4 não pode ser objeto de qualquer modificação.
O item 5 do dispositivo limita-se a apontar para a letra da al. e) do nº 2 do dito art.º 189º.
Impõe-se o seu esclarecimento e quantificação, se possível, da indemnização.
Diz a norma que o juiz deve “condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente no montante dos créditos não satisfeitos, até às forças dos respetivos patrimónios, sendo solidária tal responsabilidade entre todos os afetados”.
Visa a norma dissuadir o agente da prática de condutas dolosas ou gravemente culposas suscetíveis de criar ou agravar a situação de insolvência nas condições referidas no art.º 186º. É uma indemnização com uma evidente componente sancionatória.
Numa simples interpretação literal, parece que o afetado pela qualificação fica obrigado a indemnizar os credores do insolvente pela totalidade do valor dos créditos que a massa insolvente, por insuficiência, não possa satisfazer, contanto que no património do afetado existam bens suficientes para o efeito; ou seja, responde pelos créditos graduados e reconhecidos na medida em que a massa insolvente seja insuficiente para os cobrir, tendo como limite o esvaziamento do seu próprio património.
Não nos parece que assim possa ser interpretada a norma, desde logo pela violação do princípio constitucional e penal da proporcionalidade e da proibição do excesso. Teríamos então, por hipótese, a possibilidade de um gerente afetado pela qualificação a responder com toda a sua massa patrimonial, com todos os seus bens, por créditos sobre uma sociedade insolvente que podem atingir milhões de euros, apenas por se ter apropriado de um bem a ela pertencente no valor de cinco ou seis mil euros, dentro dos 3 anos que precederam o início do processo de insolvência. Sanção brutal e inaceitável, por ser desproporcional ao prejuízo causado, e inconstitucional.
Na verdade, decorre do princípio do Estado de direito democrático conexionado com os direitos fundamentais, o princípio da proibição do excesso ou princípio da proporcionalidade em sentido amplo, que constitui, na realidade, um princípio de controlo a respeito da medida tomada pela autoridade pública --- seja a autoridade administrativa, seja a autoridade judicial --- no sentido de saber da sua conformidade aos princípios subconstitutivos da proibição do excesso, como sejam: (i) o princípio da conformidade ou adequação de meios; (ii) o princípio da exigibilidade ou da necessidade; (iii) o princípio da proporcionalidade em sentido estrito.
De modo prático, pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação medida/fim.
Pelo princípio da proporcionalidade em sentido estrito ou princípio da "justa medida" cuida-se de saber e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. Saber se, no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são "desmedidas" (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.
O princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adotar outro meio menos oneroso para o cidadão.
A liberdade com que devemos interpretar e aplicar as regras de direito leva-nos a esclarecer o sentido daquela norma, numa interpretação constitucional, conforme aos citados princípios (art.º 5º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Entendemos que a pessoa afetada pela qualificação deve ser condenada a indemnizar os credores do insolvente pela diferença que existe entre aquilo que cada um deles recebe em pagamento pelas forças da massa insolvente, após liquidação, e o valor do seu crédito, não podendo a indemnização ser superior ao valor do prejuízo causado à massa com a prática dos factos fundamentadores da qualificação. A referência às forças do seu património é excessiva e desnecessária porque jamais os obrigados podem responder para além dos limites do seu património.
Como se refere no acórdão desta Relação do Porto de 23 de fevereiro de 2017[20], “(…) à natureza da responsabilidade ali prevista e ao princípio da proporcionalidade, a responsabilidade dos administradores não corresponde necessariamente ao montante dos créditos que as forças da massa insolvente não permitirão satisfazer. Esse é apenas o limite da obrigação de indemnizar: os credores não poderão exigir do afectado pela qualificação uma indemnização superior à parte do valor do crédito reclamado e verificado na insolvência que não seja satisfeito pelo produto da massa”.
Acrescenta-se ali, a propósito da determinação da indemnização (art.º 189º, nº 4):
«João Labareda e Carvalho Fernandes, in Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado, 2.ª edição, pág. 736, observam que a forma como esta responsabilidade está desenhada “revela que, a mais da função ressarcitória que realiza, assume manifestamente um carácter de penalização pela culpa da insolvência”. Para estes autores o modelo “recuperou substancialmente a solução que fora acolhida nos artigos 126.º-A e 126.º-B do CPEREF, introduzidos pelo DL 315/98, de 20 de Outubro”, embora com diferenças relevantes, de que aqui se destaca o facto da nova lei não fazer “nenhuma referência à possibilidade de a responsabilidade ser limitada ao dano efectivamente causado pelo culpado quando inferior ao do passivo não coberto pelas forças da massa, diferentemente do que sucedia com a parte final do n.º 1 do art.º 126.º-B”. Anotam ainda que deste modo se permite “ao juiz referenciar factores que, designadamente, em razão das circunstâncias do processo, devam mitigar o recurso, puro e simples, a meras operações aritméticas de passivo menos resultado do activo” abrindo consequentemente “espaço para uma reflexão atinente ao grau de culpa atribuído aos atingidos pela qualificação de insolvência”.
O Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 280/2015, in www.tribunalconstitucional.pt, considerou a este respeito que “a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189.º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas colectivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal”.
O Acórdão da Relação de Coimbra de 16.12.2015, relatado por Maria Domingas Simões, in www.dgsi.pt, cita a este propósito a Lei Concursal espanhola, “fonte inspiradora do legislador português”, que “coloca nas mãos do juiz a decisão de condenar (ou não) os afectados com a qualificação (el juez podrá) “a cobrirem, total ou parcialmente, o deficit, na medida em que a conduta que determinou a qualificação como culposa tenha criado ou agravado a insolvência”.
Conclui este Acórdão que «o montante da condenação há-de ser fixado em função da incidência que a apurada conduta, que determinou a qualificação da insolvência como culposa e determinou a sua afectação, teve na criação ou agravação da situação de insolvência, […] Tendo em conta tal solução da lei inspiradora e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos art.ºs 186.º e 189.º vincula a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das als. a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, entendemos que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afectado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa.
A nosso ver, a indemnização a suportar deve aproximar-se do montante dos danos causados pelo comportamento do afectado que conduziu à qualificação da insolvência. Se, por exemplo, a qualificação da insolvência decorre de um comportamento que se traduziu na destruição ou dissipação de todo ou parte considerável do património do devedor, a indemnização deve ascender ao valor do património destruído ou dissipado que se não fosse esse comportamento iria responder pela satisfação dos créditos. É por isso que as normas em apreço estabelecem que o juiz deve fixar o valor das indemnizações devidas e se isso não for possível, como sucederá na maior parte dos casos, fixar, ao menos, os critérios que permitirão liquidar o seu valor, o que não seria minimamente necessário se a indemnização devesse corresponder apenas à diferença entre o valor dos créditos e o pagamento a ser obtido na distribuição do produto da liquidação do ativo.»
Volvendo ao caso que nos ocupa, atende-se a que o veículo foi restituído à massa insolvente, mas apenas em novembro de 2016, na pendência do presente incidente de qualificação, por força da resolução contratual levada a cabo pelo Administrador da Insolvência.
Naturalmente, o veículo sofreu desgaste e envelhecimento desde a data da compra e venda resolvida até à restituição (mais de três anos e meio decorridos), tendo, por isso, à data da restituição, valor inferior.
Assim, para além de a indemnização dever cobrir o valor da desvalorização do automóvel enquanto esteve na posse do apelante, deve ainda funcionar no seu importante aspeto sancionatório, sob pena de deixar de constituir um meio eficaz de prevenção da prática de atos culposos na criação ou agravamento da situação de insolvência.
Tudo ponderado e considerando ainda que o Administrador da Insolvência reconheceu créditos do recorrente sobre a massa insolvente de valor muito superior ao valor do veículo objeto do negócio, afigura-se-nos equitativo fixar a indemnização em valor próximo daquele que tinha naquela data (€6.000.00), ou seja, na quantia de €5.000,00 a favor dos credores, não podendo, em caso algum, ultrapassar a diferença que existir entre os valores efetivamente pagos aos credores com o produto da liquidação da massa insolvente e as quantias que permanecerem em dívida aos credores.
*
SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Demonstrado qualquer dos fundamentos previstos nas várias al.s do nº 2 do art.º 186º do CIRE, presume-se iuris et de iure que a insolvência é culposa para efeito da sua qualificação; aquela presunção abrange o nexo casual entre a atuação do agente do facto e a criação da insolvência ou o seu agravamento.
2. É ao interessado na qualificação da insolvência e na afetação que cabe o ónus da prova dos factos-índice previstos naquela disposição legal, enquanto pressuposto da presunção que dali emerge, pelo que, quanto à al. a), não se exige ao pretenso afetado que demonstre que os bens abatidos ao património da devedora eram obsoletos ou não correspondiam a uma parte considerável do seu património.
3. A al. e) do nº 2 do art.º 189º do CIRE deve ser interpretada em termos hábeis quando conjugada com o subsequente nº 4: a indemnização não pode ultrapassar a diferença entre o valor dos créditos reconhecidos e o que é pago aos credores pelas forças da massa insolvente, e também não pode ser desproporcional relativamente à gravidade da situação prejudicial criada pelo afetado na insolvência, aproximando-se do valor dos danos efetivamente causados, sem esquecer que tem também natureza sancionatória.
*
IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta relação do Porto em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, porém, com a seguinte alteração do ponto 5 do dispositivo --- imposta pela necessidade de esclarecer e completar aquele aspeto da decisão, fixando a indemnização a que se refere o art.º 189º, nº 2, al. e) e nº 4 do CIRE[21]:
5- Condena-se C… a indemnizar os credores do devedor declarado insolvente, pela quantia de €5.000,00, sem prejuízo da sua redução ao valor da diferença entre o que estiver pago aos credores pelas forças da massa insolvente e o que ainda constituir crédito dos mesmos, se esta (diferença) for de valor inferior.
*
Por ter decaído na apelação, o apelante suporta as custas do recurso.
*
Porto, 29 de junho de 2017
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
____
[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem).
[4] L. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 2009, pág. 104.
[5] Cf. entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, in www.dgsi.pt.
[6] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[7] Cf., entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[8] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[9] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[10] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 145.
[11] Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, Quid Juris, 2009, pág. 255, ponto 12.
[12] Proc. 243/09.1TJPRT-G.P1, in www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6.10.2011, proc. 46/07.8TBSVC-0.L1.S1, in www.dgsi.pt.
[14] Como é o caso das al.s h) e i), já que a referência a "incumprimento substancial" ou "reiterado" pressupõe a sua concretização em termos de facto que conduzam a essa conclusão. Daí que a inclusão de tais alíneas no nº 2 do art.º 186º do CIRE, seja objeto de críticas, na medida em que, não permitindo presumir com segurança o nexo de causalidade entre o facto e a insolvência, melhor seria a sua integração no nº 3 do referido normativo (cf. acórdão da Relação do Porto de 10.2.2011, proc. 1283/07.0TJPRT-AG.P1, in www.dgsi.pt).
[15] Acórdãos da Relação do Porto de 18.6.2007, de 3.3.2009 e de 25.11.2010, proc.s 0731779, 0827686 e 814/08.3TBVFR-F.P1, respetivamente, in www.dgsi.pt, e acórdãos da Relação de Lisboa de 9.11.2010, proc. 168/07.5TBLNH-D.L1-7 E DE 17.1.2012, proc. 1023/07.4TBBNV-C.L1-7, publicado na mesma base de dados.
[16] Proc. 262/15.9T8AMT-D.P1, relatado pelo aqui Adjunto Desemb. Aristide de Almeida.
[17] Proc. 725/06.7TYVNG-C.P1, in www.dgsi.pt.
[18] Tudo indica --- face ao exposto na sentença recorrida --- que, no caso, nenhum bem foi apreendido para a massa.
[19] Ao contrário do que defende o recorrente.
[20] Relatado pelo aqui Adjunto Desembargador Aristides Rodrigues de Almeida, proc. nº 491/14.2TYVNG-B.P1 (inédito).
[21] Esta alteração contém-se no âmbito do recurso, pois que se pretende a revogação integral da condenação, incluindo o pagamento de uma indemnização que, nos termos do dispositivo da sentença recorrida, corresponderia ao valor dos créditos não satisfeitos até ao limite das forças do património do apelante.