Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
270/12.1GAILH.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AUGUSTO LOURENÇO
Descritores: CRIME DE VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
PROPRIEDADE DA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20150325270/12.1GAILH.P1
Data do Acordão: 03/25/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A entrada pela arguida, onde não reside, na casa de morada de família do ofendido, contitular com aquela do direito de propriedade do imóvel, sem o consentimento deste e mudando a fechadura da porta, integra o crime de violação de domicílio do artº 190º 1 CP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 270/12.1GAILH.P1

Acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 270/12.1GAILH, que correu termos no Juízo Criminal de Ílhavo, Baixo Vouga, em processo comum singular, foi a arguida B…, julgada e condenada nos seguintes termos:
- «Em face do exposto, o Tribunal decide:
a) Condenar a arguida B…, como autora material, de um crime de injúria, p. p. no artº 181º, nº 1, do cód. penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros).
b) Condenar a arguida B…, como autora material, de um crime de violação de domicílio, p. p. no artº 190º, nº 1, do cód. penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros).
c) Operando o necessário cúmulo jurídico das referidas penas, condenar a arguida B… na pena única de 115 (cento e quinze) dias de multa, à taxa diária de € 6 (seis euros).
d) Condenar igualmente a arguida no pagamento das custas do processo-crime, devendo pagar de taxa de justiça 2,5 (duas e meia) UC.
e) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela demandante C…, condenando a demandada B… a pagar à demandante a quantia de € 300, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal para os juros civis, nos termos peticionados, no mais se absolvendo a demandada.
f) Sem tributação, dada a isenção prevista no artº 4º, nº 1, al. n), do Regulamento das Custas Processuais.
g) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes D… e C…, condenando a demandada B… a pagar a cada um dos demandantes a quantia de € 600, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal para os juros civis, nos termos peticionados, no mais se absolvendo a demandada.
h) Sem tributação, dada a isenção prevista no artº 4º, nº 1, al. n), do Regulamento das Custas Processuais».
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Inconformada com a decisão, veio a arguida B… a recorrer nos termos de fls. 278 a 310, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença proferida em 04 de Julho de 2014, nos autos de processo comum, que condenou a arguida pela prática de um crime de injúrias, p. p. no art. 181º, nº 1 do cód. penal e de um crime de violação de domicílio, p. p. no art. 190º, nº 1 do cód. penal.
2. Discorda a Recorrente da douta sentença por entender, salvo sempre o devido respeito, em primeiro lugar, que a sentença padece de nulidades que, necessariamente, deverão conduzir à declaração de nulidade da mesma.
3. Isto porque, os factos que foram dados como provados (7 e 9) não se coadunam com os constantes da acusação particular (6º, 7º, 8º e 9º).
4. Acontece que “…o objecto do processo penal é o objecto da acusação, sendo este que, por sua vez delimita e fixa os poderes de cognição do tribunal e a extensão do caso julgado. É a este efeito que se chama a vinculação da temática do tribunal.” Figueiredo Dias, ob. Cit, p.103.
5. Pelo exposto, a sentença recorrida é nula, nos termos do art. 379º, nº 1, al. b), do C.P.P., porquanto condenou a recorrente por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do C.P.P.
6. Acresce que o Tribunal a quo fez uma incorrecta interpretação e aplicação do art. 190º, nº 1 do cód. penal.
7. Isto porque crê a Recorrente que da prova produzida resulta, claramente, que esta não praticou o crime de violação de domicílio.
8. Dispõe o art. 190º, nº 1 do C.P. que “quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa” comete um crime de violação de domicílio.
9. Ora, da prova produzida, a recorrente não só não é terceiro perante o bem em causa, como não está a exercer um abuso sobre a coisa. Quando muito, está a tentar exercer um direito legítimo, que é o de entrar na habitação, nos mesmos termos em que entrava o ofendido.
10. Estando na convicção, no entanto, que, à data dos factos, aqueles já lá não residiam.
11. Além de que, afirmou a arguida nas suas declarações, que durante algum tempo, anterior aos factos, bem sabia que os assistentes residiam na referida habitação.
12. Não restam assim dúvidas que a Recorrente não praticou o crime de violação de domicílio em que foi condenada.
13. Pelo exposto, o Tribunal não interpretou, nem aplicou, correctamente o art. 190º, nº 1 do cód. penal.
14. Além disso, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento por não ter feito uma correcta análise e ponderação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, impugnando-se, assim, a matéria de facto.
15. Em primeira linha, porque cremos existir uma contradição insanável entre a matéria de facto dada como assente nos pontos 4, 5, 7 e 9 (e, naturalmente, 10 a 18), a prova produzida em audiência e a fundamentação da sentença, neste caso a credibilidade (ou não) que o Tribunal atribuiu às declarações da Arguida e das testemunhas de defesa.
16. A Arguida relatou em audiência a sua participação nos factos em causa, de uma forma que se nos afigura honesta, sincera, clara e verdadeira, referindo, no que respeita à acusação de crime de violação de domicílio.
17. A Arguida assumiu, assim, nos presentes autos a prática de determinados factos, nomeadamente que durante algum tempo, anterior aos factos e posterior à sua saída, bem sabia que os assistentes residiam na referida habitação. Estando na convicção de que, no dia 8 de Julho de 2012 quando se dirigiu à referida residência, aqueles já lá não residiam.
18. Ainda quanto às declarações da Arguida, e conforme consta da fundamentação da sentença, o Tribunal a quo desconsiderou, por completo o depoimento da arguida, que se mostrou coerente.
19. O Tribunal desconsiderou, também, por completo o depoimento da Testemunha K…, que presenciou, integralmente, os factos.
20. O Tribunal a quo ao dar como provados os factos descritos nos pontos 4 e 5, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127º do C.P.P.
21. Quanto ao crime de injúria, entende-se que o Tribunal a quo deu, indevidamente, como provados os factos 7, 9, 10, 12 e 13.
22. Baseando, mais uma vez, a sua convicção apenas nos depoimentos dos assistentes e das testemunhas de acusação.
23. Desconsiderando, por completo, o depoimento quer da arguida, quer das testemunhas de defesa que presenciaram, integralmente, os factos.
24. O depoimento da arguida foi prestado de uma forma sustentada e coerente e sobretudo com uma justificação clara do modo como tudo sucedeu.
25. Merecem aqui destaque, pois corroboram a versão da arguida, as declarações das testemunhas E… e F…, militares da GNR que se desclocaram ao local e presenciaram toda a situação.
26. Estes depoimentos foram prestados de forma coerente, coincidentes um com o outro com perfeito conhecimento dos factos e foram prestados de forma livre e isenta uma vez que estas testemunhas não tinham nos factos nenhum interesse pessoal.
27. Os depoimentos prestado por tais testemunhas, não foram, no entanto, valorados pelo Tribunal, porque claramente contraditórios com o depoimento prestado pelos ofendidos e testemunhas de acusação e até com os factos descritos na acusação particular.
28. Senão vejamos, dos depoimentos destas duas testemunhas (agentes da GNR) não resultou minimamente provado o descrito na acusação particular em 7º, 8º e 9º.
29. Pelo contrário, as testemunhas E… e F…, agentes da GNR que se deslocaram ao local, demonstraram, sem margem para dúvidas, que, na sua presença, nunca a assistente foi injuriada.
30. Além de que, não se compreende, como é que o Tribunal a quo considerou como provados os factos descritos no ponto 7 e 9 da douta sentença, senão vejamos, é a própria assistente que afirma que antes da GNR chegar a arguida apenas lhe disse “estou aqui estou, queres entrar entra, anda entra agora”.
31. Ora, nunca a própria assistente, hipotéticamente ofendida neste processo, afirmou que o que foi dado como provado nos pontos 7 e 9.
32. Estranha-se, por isso, que o Tribunal a quo tenha dado como provados estes factos se a própria assistente/ofendida não os confirmou nas suas declarações.
33. Assim, tirando diferente conclusão das declarações da Assistente, incorreu o Tribunal a quo em erro notório na apreciação da prova, conforme decorre dos excertos da gravação transcritos supra.
34. Posto isto, incorreu o Tribunal a quo em vício na apreciação e valoração da prova ao dar como provado os factos constantes dos pontos 7, 9 e 10 a 14 uma vez que a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento não é compatível com essa conclusão.
35. O Tribunal a quo ao dar como provados os factos ocorridos no dia 8 de Junho de 2012, na versão que consta da fundamentação da sentença, violou o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127º do C.P.P.
36. Pode, pois, o Tribunal de recurso controlar a convicção do julgador da primeira instância, designadamente quando esta se mostre contrária às regras experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos.
37. In casu, cremos que a decisão recorrida violou o princípio in dubio pro reo.
38. Entendemos, pois, contrariamente à sentença recorrida, que da prova produzida, e não se entendendo que dela resulta claramente a inocência da Arguida, resulta, pelo menos, uma dúvida, que é mais do que uma dúvida razoável, é insanável!
39. Na sentença recorrida desconsiderou-se, por completo, tais princípios, assim se violando, consequentemente, o princípio nulla poena sine culpa, porquanto foi proferida uma sentença de condenação sem que o juiz pudesse estar convicto da existência de pressupostos de facto para a condenação.
40. Pelo exposto, impõe-se, pois a absolvição do Arguida B….
41. Nos termos do supra alegado e não tendo a recorrente praticado os crimes em que foi condenada, deve a mesma ser absolvida dos pedidos de indemnização civil.
Termos em que deve o recurso ser julgado procedente e consequentemente ser revogada a sentença com todas as consequências legais. Assim se fará Justiça!»
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O Ministério Público em 1ª instância respondeu à recorrente de forma liminar nos termos de fls. 323 a 330, e defendendo a improcedência do recurso, concluiu nos seguintes termos:
«1. Não há alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação ou da pronúncia, quando os factos referidos se traduzem em meros factos concretizantes da actividade criminosa do arguido sem repercussões agravativas ou na estratégia da defesa do arguido.
2. As diferenças existentes entre a acusação particular deduzida pela assistente e a sentença recorrida não se traduzem em qualquer alteração não substancial dos factos.
3. O tribunal a quo não tinha que dar cumprimento do disposto no art. 358º, não se verificando assim a nulidade da sentença invocada pela recorrente.
4. O bem jurídico que se pretende proteger com o crime de violação do domicílio é a privacidade/intimidade daquele(s) a que assiste o domínio e a disposição sobre o espaço da habitação.
5. Não tem de haver correspondência entre o portador do bem jurídico-penal e o detentor de posições jurídico-civilmente protegidas (como proprietário, possuidor, etc.) sobre o espaço da habitação.
6. Não obstante a arguida fosse proprietária da habitação onde entrou, estando esta agora ocupada por outras pessoas, ocupação essa que não era ilegal, pois que D… também é proprietário da mesma, a arguido violou o espaço privado deste e da outra pessoa que também ali reside, incorrendo, assim, na prática do crime de violação de domicílio.
7. Da análise da decisão sobre a matéria de facto e da respectiva fundamentação e, atento o sentido que vem sendo atribuído jurisprudencial e doutrinariamente ao conceito de contradição insanável entre a fundamentação ou entre esta e a decisão, afigura-se-nos assim que nenhuma destas situações ocorre no caso sub júdice.
8. O juiz não tem que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a missão de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito.
9. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
10. O Tribunal só deve recorrer ao princípio «in dubio pro reo» quando se encontre perante uma dúvida insanável, que continue a existir após a produção da prova, devendo a mesma ser também notoriamente razoável, atendendo às regras da experiência.
11. O tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável, denunciando a motivação da matéria de facto uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal.
12. Na medida em que a decisão sob recurso, depois de enumerar os factos provados e não provados, expôs de forma concisa os motivos de facto que fundamentaram a convicção do tribunal, com uma análise criteriosa e sem que se mostrem violadas as regras da experiência comum, não é legítimo que o recorrente discuta o processo lógico do julgamento de facto a que se procedeu naquela decisão, uma vez que o mesmo se baseou no referido princípio da livre apreciação da prova.
13. A sentença recorrida não violou quaisquer disposições legais.
Pelo exposto, deve o presente recurso, no essencial, ser julgado improcedente, e, em consequência, ser confirmada a sentença recorrida, mantendo-se a condenação de B…».
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Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o Douto Parecer, (cfr. 352/353), tendo-se pronunciado sobre todas as questões suscitadas pela recorrente e concluído pela falta de fundamento das mesmas, defendendo por isso a improcedência total do recurso.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação[1], que, no caso "sub judice", se circunscreve às seguintes questões:
1. Nulidade da sentença por violação do art. 379º, nº 1, al. b), do cód. procº penal.
2. Impugnação da matéria de facto [factos provados sob os nº 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º 12º 13º e 14º] e princípio da livre apreciação da prova;
3. Contradição insanável entre a matéria de facto dada como assente nos pontos 4, 5, 7, 9 e 10 a 18, a “prova produzida em audiência e a fundamentação da sentença”.
4. Qualificação jurídica dos factos quanto ao crime de violação de domicílio p. e p. art. 190º, nº 1 do cód. penal.
4. Violação do princípio “in dubio pro reo”;
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FACTOS PROVADOS
O Tribunal “a quo” deu como provados os seguintes factos:
1. A arguida viveu maritalmente com o assistente D… e, já depois de se terem separado, em 18 de Abril de 2011, este casou com a assistente C…e, a dada altura, o casal passou a viver numa habitação sita na Rua …, nº …, em …, propriedade do assistente D… e da arguida.
2. No dia 8 de Junho de 2012, pelas 20h30m, a arguida dirigiu-se à referida residência dos assistentes D… e C…, sabendo que nessa ocasião aqueles ali não se encontravam.
3. Uma vez aí, tendo na sua posse umas chaves da habitação, que lhe foram entregues por uma terceira pessoa, a arguida entrou na mesma, circulando pelas várias divisões, tendo também mudado a fechadura da porta de entrada.
4. Ao entrar, nas circunstâncias atrás referidas, na residência dos assistentes, a arguida sabia que o fazia contra a vontade dos mesmos.
5. Agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
6. A assistente, ao chegar a casa e ao deparar-se com a fechadura do portão da habitação trocada, telefonou para o marido, o assistente, e para o cunhado, G…, a fim destes se deslocarem ao local, o que veio a acontecer.
7. Entretanto, a arguida, dirigindo-se à janela do quarto da habitação e dirigindo-se directamente à assistente, que se encontrava do lado de fora da residência, disse-lhe, em tom sério e em voz alta e perfeitamente audível, que andava metida com os patrões, que andava metida com o sucateiro, o filho da H…, que bebia que nem uma mula e que tinha um filho de cada pai e chamou-lhe puta.
8. Após a chegada da GNR, que havia sido chamada ao local, o assistente entrou na habitação, acompanhado pela GNR, para retirar alguns dos bens que eram dos assistentes.
9. As expressões acima referidas foram proferidas à frente do marido e do cunhado da assistente.
10. Ao actuar da forma supra descrita, a arguida quis ofender a honra, a reputação, o bom nome, a honestidade, a consideração e a dignidade da assistente, não obstante ter consciência de que as afirmações por si feitas não correspondiam à verdade.
11. A assistente sentiu-se ofendida na honra, consideração e reputação que lhe são devidas e sentiu-se magoada e triste.
12. A arguida sabia que atingia a assistente na reputação, honra, consideração e bom nome, estando plenamente consciente que tal comportamento lhe era vedado por lei.
13. A arguida agiu deliberada, voluntária e conscientemente, apesar de saber ser tal conduta proibida e punida por lei.
14. A demandante C… sentiu-se perturbada, vexada, envergonhada, humilhada, consternada e indignada com toda a situação criada pela arguida.
15. A referida casa era o local onde os assistentes/demandantes D… e C… viviam, onde tinham toda a sua vida organizada e bens e objectos pessoais.
16. Com a invasão da sua habitação pela demandada/arguida, os demandantes D… e C… sentiram-se entristecidos, perturbados e transtornados, os quais são pessoas calmas e pacatas.
17. Desde essa data e durante algumas semanas, os demandantes viveram tristes e amargurados em virtude do sucedido.
18. Os demandantes viveram ainda momentos de grande angústia por não poderem ter acesso ao local onde moravam e onde tinham os seus bens e objectos pessoais, tendo ficado privados de alguns deles até cerca de meados de Novembro de 2012.
19. A assistente/demandante é considerada pessoa séria e honesta.
20. A assistente/demandante está desempregada, recebendo subsídio de desemprego de € 419 mensais.
21. O assistente/demandante é pedreiro e está desempregado desde o ano passado, não recendo subsídio de desemprego.
22. A arguida não tem antecedentes criminais.
23. É solteira e vive com uma irmã, a qual está numa cadeira de rodas e recebeu uma indemnização duma seguradora.
24. A arguida faz umas horas em limpezas, auferindo rendimentos incertos, cujo montante não se logrou apurar, contando com a ajuda dos irmãos e irmãs.
25. Não paga renda de casa e paga, mensalmente, € 450, referentes a empréstimos para aquisição de habitação.
26. Tem o 4º ano de escolaridade».
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Factos não provados
Para além daqueles factos que já resultam logicamente excluídos pela factualidade provada, sendo certo que não há que responder a matéria meramente conclusiva ou de direito, nem a meros juízos de valor, não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente:
a) As expressões foram proferidas pela arguida também à frente de um agente da GNR e dos vizinhos da assistente.
b) A demandante tem visto o seu bom nome arrastado num “lamaçal” de acusações e insinuações e passou várias noites sem dormir.
c) Os demandantes nunca mais se sentiram confortáveis, tranquilos e seguros na sua própria casa, vivendo ainda em permanente sobressalto, sobretudo quando não se encontram em casa, por recearem que a arguida possa vir a repetir, a qualquer memento, tal comportamento, razão pela qual ainda hoje andam permanentemente ansiosos e assustados.
d) Os demandantes, quando estão em casa, tremem de susto ao mínimo estalido que ouvem e acordam muitas vezes de noite a pensar que a arguida lhes entrou pela casa dentro.
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Motivação de facto do Tribunal “a quo”
“Quanto à decisão de facto, a convicção do tribunal baseou-se numa apreciação crítica e global de toda a prova produzida no seu conjunto, apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do tribunal (artº 127º e 355º, ambos do cód. procº penal), designadamente nas declarações dos assistentes/demandantes em conjugação com o depoimento das testemunhas de acusação, dos pedidos de indemnização civil e de defesa militares da GNR ouvidas, que depuseram com aparente isenção e seriedade, prestando declarações e depoimentos simples, claros, lógicos, coerentes e consentâneos entre si, sendo coincidentes na globalidade, relativamente aos factos de que cada um tinha conhecimento, com razão de ciência devidamente controlada, de tudo resultando a sua credibilidade, tendo as respectivas declarações e depoimentos sido no sentido dos factos dados como provados.
Realça-se o depoimento da testemunha G…, a qual disse que os assistentes viviam na residência em causa, que se deslocou à mesma por ter sido chamado pela assistente, que constatou que a arguida estava no interior da residência e que as fechaduras do portão estavam mudadas, que ouviu a arguida chamar, da janela, à assistente, a qual estava do lado de fora da casa, puta e que andava amantizada com os patrões e com o filho da H…, tendo os assistentes que dormir fora de casa, e descreveu como os assistentes ficaram na sequência da actuação da arguida, do que também foi dado conta pelas testemunhas I… e J…, as quais mais reafirmaram que os assistentes/demandantes viviam na casa onde a arguida se introduziu.
Mais se realça o depoimento dos militares da GNR, os quais descreveram o que os assistentes/demandantes retiraram de casa - bens pessoais, inclusivamente roupa que estava num estendal e muito calçado - e referiram ter visto a casa mobilada, tendo inclusivamente o militar F… constatado que havia luz na casa.
Atendeu-se também ao auto de restituição de posse junto aos autos e aos documentos juntos no decurso da audiência de julgamento, do que resulta também que na casa havia bens dos assistentes e que a mesma tinha água e luz na data dos factos.
Cai assim por terra a versão da arguida - e da filha da mesma, a testemunha K…, tendo esta no entanto voltado atrás no seu depoimento - de que não chamou nomes à assistente/demandante e de que os assistentes/demandantes já não estavam a residir na casa em causa, de onde já tinham retirado tudo, estando já cortadas a água e a luz.
Relativamente aos factos não provados, ou não foi produzida qualquer prova ou a mesma não foi cabal ou estão em contradição com os dados como provados, sendo certo que os demandantes/assistentes não voltaram a residir na casa em causa.
No que respeita aos antecedentes criminais, o tribunal baseou-se no certificado do registo criminal junto aos autos.
No que concerne às condições socio-económicas e situação pessoal da arguida, o tribunal teve em consideração as suas próprias declarações”.
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DO DIREITO
Como atrás aludimos, o recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente da respectiva motivação.
As questões a decidir são as que acima elencámos.
Começando pela invocada nulidade da sentença, por violação do art. 379º, nº 1, al. b), do cód. procº penal, alega o recorrente que, “foi condenado por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições previstos nos arts. 358º e 359º do cód. procº penal, dado que a matéria dada como provada nos pontos 7 a 9 não corresponde à deduzida na acusação particular”.
De uma simples leitura dos trechos postos em causa, ressalta com evidência a falácia de tal argumentação. Com efeito, da acusação particular consta o seguinte:
- «6. Aí chegado, o marido da assistente entrou na habitação (cujas janelas tinham sido s abertas pela arguida), tendo a arguida começado a gritar com o mesmo, razão pela qual a assistente resolveu telefonar para a GNR, a qual chegou ao local por volta das 21H00.
- 7. Logo de seguida, quando o marido da assistente se encontrava no corredor da residência juntamente com um agente da GNR, a arguida, referindo-se à assistente, gritou em voz alta e audível e em tom ameaçador “Essa gaja anda metida com os patrões, anda metida com o sucateiro, o filho da H…”, “bebe que nem uma mula”, “é uma garota, essa gaja só tem amantes”.
- 8. Após o que, dirigindo-se à janela do quarto de habitação e, dirigindo-se directamente à assistente que se encontrava junto do portão, disse-lhe em tom agressivo e em voz alta e perfeitamente audível, “a puta tem um filho de cada pai”.
- 9. As expressões acima referidas foram proferidas em tom sério e em voz alta e perfeitamente audível à frente de um agente da GNR, do marido e do cunhado da assistente, dos vizinhos e demais pessoas que se encontravam presentes no local».
Por sua vez na sentença recorrida foi dado como provado o seguinte:
- “7. Entretanto, a arguida, dirigindo-se à janela do quarto da habitação e dirigindo-se directamente à assistente, que se encontrava do lado de fora da residência, disse-lhe, em tom sério e em voz alta e perfeitamente audível, que “andava metida com os patrões, que andava metida com o sucateiro, o filho da H…, que bebia que nem uma mula e que tinha um filho de cada pai e chamou-lhe puta”.
- 8. Após a chegada da GNR, que havia sido chamada ao local, o assistente entrou na habitação, acompanhado pela GNR, para retirar alguns dos bens que eram dos assistentes.
- 9. As expressões acima referidas foram proferidas à frente do marido e do cunhado da assistente”.
Da leitura destes factos não existe qualquer alteração relevante em termos de imputação dos crimes por que foi acusada e condenada, pelo que não se entende, (nem a recorrente o fundamentou no seu recurso) onde reside a alteração não substancial ou substancial dos factos para efeitos do disposto nos artº 358º e 359º ambos do cód. procº penal.
Para que existisse a nulidade que invocou era necessário uma alteração substancial ou não substancial dos fatos da acusação e o incumprimento do formalismo determinado por aquelas normas.
A questão suscitada não passa de um mero preciosismo linguístico sem qualquer impacto ou consequências jurídicas na imputação dos crimes de injúrias e de violação de domicílio e muito menos com a virtualidade de poder conduzir à nulidade da sentença.
Assim, sem mais delongas, importar dizer que ainda que por vezes existam meras modificações terminológicas dos factos ou de redacção dos trechos, não importa, por si só, qualquer alteração, substancial ou não, dos factos descritos na acusação, tendo em conta o disposto nos arts. 1º, f), 358º e 359º, cód. procº penal. Um facto pode ter redacções distintas sem que a sua essência quanto à relevância criminal, constitua uma verdadeira alteração ou qualquer acrescento à factualidade acusatória. Modificações terminológicas ou de mera redacção não relevam, por si só, para a decisão da causa nem contende com a estratégia de defesa da arguida.
Assim se conclui que a pretensão da recorrente em ver declarada a nulidade da sentença por força do disposto no artº 379º nº 1 al. b) do cód. procº penal não tem a menor sustentação.
Como doutamente se decidiu neste Tribunal da Relação:
- «Se o tribunal a quo se limitou a introduzir, na factualidade provada constante do acórdão, pontuais alterações de factos relativos a aspectos não essenciais, manifestamente irrelevantes para a verificação da factualidade típica ou da ocorrência de circunstâncias agravantes e a, fundamentalmente, descrever e concretizar, por palavras suas, os factos imputados ao recorrente que se encontravam já integralmente enunciados na acusação, não se está sequer perante uma “alteração não substancial dos factos”, muito menos uma “alteração substancial”, - Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 22.06.2011, disponível em www.dgsi.pt/trp.
A alteração de factos a que aludem os artigos 358º e 359º e também 1º, nº 1, alínea f), do cód. procº penal, só pode ser a que se reporta a factos novos trazidos ao processo que não sejam totalmente independentes do inicial objecto do processo.
Se esses factos novos trazidos ao processo forem totalmente independentes do objecto deste (entendido como o acontecimento histórico vertido na acusação ou na pronúncia e imputado, como crime, a um determinado sujeito que no decurso do processo se pretende reconstituir o mais fielmente possível), o regime da alteração substancial não é aplicável, sob pena de se violar a estrutura essencialmente acusatória do processo penal tutelada constitucionalmente, nem mesmo que se verifique o acordo referido no nº 3, do artigo 359º, do cód. procº penal, (cfr. neste sentido ac. idem).
O caso suscitado pela recorrente não constitui qualquer situação de alteração substancial ou não substancial dos factos da acusação que se possam reflectir na decisão do Tribunal “a quo”.
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Passando agora à impugnação da matéria de facto, alega a recorrente erro de julgamento quanto aos factos provados sob os nº 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º 13º e 14º e conexa com esta matéria a violação do princípio da livre apreciação da prova.
Entende que em face da prova produzida em audiência de julgamento aqueles factos deveriam ter sido dados como “não provados”, alicerçando a sua perspectiva, basicamente, no facto das declarações por si prestadas em audiência (da própria arguida/recorrente) e as das testemunhas de acusação e assistente serem contraditórias ou o tribunal não as ter valorado, como em seu entender deveriam sê-lo.
Com efeito, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito (artº 428º do cód. procº penal), o recurso pode ter como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, devendo, nesse caso, o recorrente dar cumprimento ao disposto no artº 412º, nº 3, do cód. procº penal.
Sendo utilizada tal forma de pôr em crise a matéria de facto, o Tribunal poderá efectivamente modificar a decisão sobre a matéria de facto nos termos do artº 431º, al. b), do cód. procº penal.
O Tribunal, reapreciando a prova produzida, na parte concretamente indicada pelo recorrente e sem prejuízo de poder ouvir ou visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do cód. procº penal), ou renovando a prova[2], se tal lhe for requerido (artº 412º, nº 3, al. c) e 431º, al. c), do cód. procº penal), vai averiguar se perante a prova produzida, o tribunal procedeu adequadamente ao fixar a matéria de facto provada e não provada.
No caso concreto, a recorrente impugna a matéria de facto referida, alegando deficiente apreciação e valoração da prova, com alegadas contradições entre depoimentos, mas no fundo não apontou em concreto onde reside o “erro de valoração da prova”, apenas se agarrando ao facto da própria arguida ter negado alguns dos factos imputados e a versão não ser inteiramente coincidente com aquela que o Tribunal recorrido achou credível, ao mesmo tempo que descredibiliza os das testemunhas de acusação.
A impugnação da matéria de facto nos termos preconizados pelo artº 412º nº 3 do cód. procº penal, não nos parece cabalmente cumprida, embora se entenda a pretensão da recorrente, o que ressalta desde logo, mais não é do que uma mera discordância da avaliação feita pelo Tribunal recorrido da prova produzida em audiência de julgamento.
De acordo com a norma referida:
- «3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida[3]; (…)».
A factualidade posta em causa, é no fundo a que se reporta ao crime de injúria, que a arguida negou, pois quanto ao crime de violação de domicílio a sua discordância radica noutro ponto que adiante analisaremos. Neste ponto específico, para formar a sua convicção o Tribunal “a quo” teve em conta as declarações dos assistentes/demandantes em conjugação com o depoimento das testemunhas de acusação, que considerou terem deposto “(…) com isenção e seriedade, prestando declarações e depoimentos simples, claros, lógicos, coerentes e consentâneos entre si, sendo coincidentes na globalidade, relativamente aos factos de que cada um tinha conhecimento, com razão de ciência devidamente controlada, de tudo resultando a sua credibilidade, tendo as respectivas declarações e depoimentos sido no sentido dos factos dados como provados”.
Realçou ainda o “depoimento da testemunha G…, a qual disse que os assistentes viviam na residência em causa, que se deslocou à mesma por ter sido chamado pela assistente, que constatou que a arguida estava no interior da residência e que as fechaduras do portão estavam mudadas, que ouviu a arguida chamar, da janela, à assistente, a qual estava do lado de fora da casa, puta e que andava amantizada com os patrões e com o filho da H…, tendo os assistentes que dormir fora de casa, e descreveu como os assistentes ficaram na sequência da actuação da arguida, do que também foi dado conta pelas testemunhas I… e J…, as quais mais reafirmaram que os assistentes/demandantes viviam na casa onde a arguida se introduziu”.
Bem como o “depoimento dos militares da GNR, os quais descreveram o que os assistentes/demandantes retiraram de casa - bens pessoais, inclusivamente roupa que estava num estendal e muito calçado - e referiram ter visto a casa mobilada, tendo inclusivamente o militar F… constatado que havia luz na casa”.
Esta análise do tribunal “a quo”, constante da motivação, está em nosso entender inteiramente de acordo com a realidade do julgamento, tendo em conta os depoimentos prestados e por nós auditados.
O facto de a arguida e a sua filha apresentarem diferente versão, não chega, só por si, para por em causa aquela factualidade que nos pareceu também mais lógica, fundamentada em testemunhos presenciais, coerentes e objectivos.
Tendo este Tribunal procedido à audição dos depoimentos prestados em audiência, feito deles uma análise crítica e conjugando-os com os demais elementos objectivos constantes dos autos, é de concluir pela falta de fundamento da pretensão da recorrente no tocante ao invocado erro de julgamento[4].
Importa sublinhar que é jurisprudência uniforme que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso – (cfr. os Ac. do STJ de 16.6.2005, Recurso nº 1577/05), e de 22.6.2006 do mesmo Tribunal). E neste caso específico não vislumbramos qualquer discrepância assinalável [excepto com os depoimentos da arguida] que de algum modo possa por em causa a valoração do tribunal recorrido.
A justificação dada pelo Tribunal recorrido para credibilizar estes depoimentos e descredibilizar por exemplo os da arguida e da sua filha K…, não nos parece que contenha qualquer vício lógico ou que extravase o âmbito do princípio da livre apreciação da prova, conjugado com as regras de experiência comum, consagrado no artº 127º do cód. procº penal.
A motivação da sentença e valoração da prova realizada, mostra-se inteiramente em consonância com a realidade do julgamento; o Tribunal “a quo”, no exercício do seu poder e livre convicção valorou os depoimentos que se mostraram mais coerentes dentro da análise crítica ao conjunto da prova.
Acresce referir que o recorrente não indicou sequer as provas concretas que em seu entender pudessem impor decisão diversa da recorrida, tal como se exige no artº 412º nº 3 al. b) do cód. procº penal.
A valoração de um depoimento com a preterição de outro, tem a ver com a razão de ciência que o tribunal, na sua fundamentação deve esclarecer, explicitando o seu raciocínio lógico. E essa fundamentação, no essencial mostra-se feita como acima evidenciámos. A afirmação feita pela recorrente de que os depoimentos das testemunhas deveriam ser descredibilizados por criarem uma “dúvida razoável” quanto à sua veracidade, não merece acolhimento, pois a recorrente esquece a referida análise crítica do conjunto da prova feita pelo tribunal “a quo” e que o julgador que esteve perante as testemunhas, as ouviu, viu como se explicaram e a razão de ciência das suas respostas, manancial de informação, não está totalmente ao dispor do tribunal “ad quem”, que neste campo específico, apenas analisa a (des)conformidade entre o que se disse e o que se escreveu.
A convicção íntima do julgador, essa situa-se noutro plano.
Analisar criticamente a prova significa, justamente concluir um facto da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador dentro do seu critério de livre apreciação.
Os argumentos que invoca (ou a falta deles) para alterar a referida matéria de facto, não são minimamente atendíveis, quer à luz dos princípios que regem a apreciação e valoração da prova, quer das regras de experiência comum de que o julgador se pode socorrer.
Na verdade, discordar da valoração feita pelo tribunal recorrido, não é a mesma coisa que impugnar a matéria de facto provada por erro de julgamento, porquanto, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente” - artº 127º do cód. procº penal.
Este livre arbítrio “não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” - A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, pág. 48.
O recurso é assim de improceder no tocante à impugnação da matéria de facto.
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Relacionada com a motivação invocou a recorrente “contradição insanável entre a matéria de facto dada como assente nos pontos 4, 5, 7, 9 e 10 a 18, a prova produzida em audiência e a fundamentação da sentença”.
Em face de tudo o que expusemos sobre a insustentabilidade do alegado erro de julgamento e fundamentação da sentença, a apreciação deste ponto mostra-se prejudicada por se concluir desde logo pela inexistência de qualquer contradição ou deficiente fundamentação, pois como se alcança da argumentação da recorrente tudo radica na perspectiva de que o Tribunal “julgou mal” e errou na valoração dos depoimentos”, o que, como vimos não corresponde à realidade.
Pelo exposto e sem necessidade de mais considerações esta parte do recurso é também ela de improceder.
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Quanto à imputação e condenação pelo crime de violação de domicílio, p. e p. pelo artº 190º do cód. penal, veio a recorrente alegar que:
- “(…) a recorrente não só não é terceiro perante o bem em causa, como não está a exercer um abuso sobre a coisa. Quando muito, está a tentar exercer um direito legítimo, que é o de entrar na habitação, nos mesmos termos em que entrava o ofendido, (9). Estando na convicção, no entanto, que, à data dos factos, aqueles já lá não residiam, (10).
- Além de que, afirmou a arguida nas suas declarações, que durante algum tempo, anterior aos factos, bem sabia que os assistentes residiam na referida habitação, (11).
- Não restam assim dúvidas que a Recorrente não praticou o crime de violação de domicílio em que foi condenada, (12).
A argumentação é, salvo o devido respeito, pouco inteligível e até contraditória, pois se sabia que os assistentes residiam na habitação em causa, (cls. 11) se não tinha nenhum título que a legitimasse, não se entende porque se considera excluída da imputação normativa em causa (artº 190º nº 1 do cód. penal).
Nos termos do artº 190º nº 1 do cód. penal, na parte relevante:
- “1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
(…)
O bem jurídico protegido é a privacidade/intimidade.
O elemento objectivo traduz-se na entrada ou permanência em habitação alheia, conjugada com a falta de consentimento por parte de quem tem o domínio e a disposição sobre a habitação.
O elemento subjectivo exige o dolo, ainda que em qualquer das suas modalidades previstas no artº 14º do cód. penal.
Quanto ao elemento objectivo, importa atentar que “habitação é o espaço físico fechado onde o ofendido se aloja e pernoita. Pode tratar-se de um local de alojamento temporário, periódico ou intermitente. Assim, são exemplos de habitação um quarto de hotel (acórdão do TRE, de 15.4.1986, in BMJ, 358, 625) ou um quarto arrendado a um hóspede numa casa particular (acórdão do STJ, de 2.6.1993, in BMJ, 428, 257). (...) Condição essencial é a de que o espaço físico seja efectivamente ocupado pelo ofendido, nele fazendo a sua vida e nele tendo os seus pertences. (...)” – Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, p. 513.
Além disso, “é irrelevante a natureza jurídica do título de ocupação do espaço físico, podendo consistir num direito real ou obrigacional ou numa situação de direito público. Por exemplo, cometem o crime o arrendatário de um andar que invade os aposentos ocupados pelas subarrendatárias, contra a vontade destas (acórdão do TRL, de 15.2.1989, in CJ, XIV, I, 152) ou o agente que invade a casa da ofendida, mesmo que ela aí habite por mera tolerância (acórdão do TRG, de 3.5.2004, in CJ, XXIX, 3, 289).” - – Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., p. 513.
Revertendo ao caso dos autos, ressalta com evidência que os factos provados, quanto à conduta da arguida, integram todos os elementos objectivos e subjectivos do crime p. e p. pelo art. 190º, nº 1 do cód. penal.
Na verdade, resultou provado, que “no dia 8 de Junho de 2012, pelas 20h30m, a arguida dirigiu-se à referida residência dos assistentes D… e C…, sabendo que nessa ocasião aqueles ali não se encontravam.
- Uma vez aí, tendo na sua posse umas chaves da habitação, que lhe foram entregues por uma terceira pessoa, a arguida entrou na mesma, circulando pelas várias divisões, tendo também mudado a fechadura da porta de entrada.
- Ao entrar, nas circunstâncias atrás referidas, na residência dos assistentes, a arguida sabia que o fazia contra a vontade dos mesmos.
- Agiu de forma voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal”.
Na fundamentação destes factos o tribunal “a quo”, além dos depoimentos prestados e que acima já referimos, atendeu também ao auto de restituição de posse junto aos autos e aos documentos juntos no decurso da audiência de julgamento, que demonstram que na casa havia bens dos assistentes e que a mesma tinha água e luz na data dos factos, ou seja, os mesmos ainda ali residiam.
Acresce referir que, independentemente da questão que se prende com o direito de propriedade, o certo é que a arguida entrou de forma ilegítima na casa de morada de família dos assistentes, sem o consentimento destes. Assim, mesmo que a propriedade da casa pertença também à arguida, não era legítimo a esta, aceder ao interior desta nas condições em que o fez e mudar a fechadura.
Por sua vez, também o elemento subjectivo do crime, o dolo, se mostra preenchido na modalidade de dolo direto (artº 14º, nº 1, do cód. penal), pois a arguida quis entar deliberadamente naquela habitação, sabendo que não o podia fazer naquelas circunstâncias e que tal conduta era proibida.
Daqui se conclui que a imputação e condenação da arguida pelo crime de violação de domicílio se mostra correctamente efectuada.
Improcede o recurso também neste ponto.
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Na sequência do invocado erro de julgamento, veio ainda a recorrente alegar a violação do princípio “in dubio pro reo”. A esta matéria nos referimos já, ainda que indirectamente, ao abordar o princípio da livre apreciação da prova e em face da improcedência das questões supra referidas, encontra-se em certa medida prejudicada, todavia, sempre abordaremos sucintamente a questão.
Desde logo cumpre realçar que a violação de tal princípio só existiria se o Tribunal de julgamento reconhecendo a dúvida ainda assim condenasse. O que não foi o caso. A dúvida da recorrente é aqui irrelevante e jamais poderia conduzir à violação de tal princípio, que é no fundo uma regra de que o próprio julgador se deve socorrer quando tem dúvidas.
Não basta que exista um depoimento que à recorrente não mereça credibilidade, para simplesmente se concluir que a sua valoração pelo tribunal redundou na violação do princípio “in dubio pro reo”.
A valoração de um meio de prova com a preterição de outro, tem a ver com a razão de ciência que o tribunal, na sua fundamentação deve esclarecer, explicitando o seu raciocínio lógico. E essa fundamentação, no essencial mostra-se feita como acima realçámos.
A convicção íntima do julgador, essa situa-se noutro plano.
Analisar criticamente a prova significa, justamente concluir um facto da conjugação dos vários elementos trazidos à discussão da causa e reputá-lo como verdadeiro ou falso, em face daquilo que for a convicção do julgador dentro do seu critério de livre apreciação.
Defender no contexto referido, a violação do princípio “in dubio pro reo” carece de fundamento sustentável.
Com efeito, o princípio in dubio pro reo, é um princípio probatório que procura solucionar um problema de dúvida em relação à matéria de facto e não ao sentido de uma norma jurídica.
Trata-se de um princípio, que traduz o correspectivo do princípio da culpa em Direito Penal, ao garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos típicos, sendo um corolário lógico do princípio da presunção de inocência do arguido, mas não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais;
«A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.» - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004[5].
Sem necessidade de mais considerandos, concluímos pela total improcedência do recurso.
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DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto por B….
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Custas a cargo da recorrente com taxa de justiça que se fixa em 4 UC (quatro unidades de conta).
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Porto 25 de Março de 2015[6]
Augusto Lourenço
Moreira Ramos
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[1] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2] - Defende o Dr. José António Barreiros, in “A Reforma dos Sistema Penal de 2007”, Justiça XXI, pág. 78, que “A renovação da prova (artº 430º) é uma previsão não praticada pois que impraticável”. Aquilo que podemos, é analisar a prova produzida na mira de vislumbrar a existência ou não de erro de julgamento, susceptível de influir na decisão.
[3] - Não se alcança do teor do recurso onde residem as provas que possam impor decisão diversa.
[4] - Como bem se refere no Ac. do Trib. Relação de Lisboa de 10/10/07 (www.dgsi.pt):
- “O recurso da matéria de facto, que se funda na existência de um erro de julgamento detectável pela análise da prova produzida e valorada na audiência de 1ª instância, implica que o tribunal “ad quem” reaprecie essa prova.
[5] - Cfr. Tribunal Constitucional in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos.
[6] - Elaborado e revisto pelo relator, sendo da sua responsabilidade a não aplicação do acordo ortográfico.