Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1536/18.2T8AMT-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRORROGAÇÃO DO PERÍODO DE CESSÃO
Nº do Documento: RP202209131536/18.2T8AMT-E.P1
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE/DECISÃO CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Legislação Comunitária: DIRECTIVA N.º 2019/1023 DO PARLAMENTO E DO CONSELHO DA EUROPA.
Sumário: I - A Directiva n.º 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, que entrou em vigor em Julho de 2019, visou, nomeadamente, atenuar as diferenças entre as legislações dos Estados-Membros no que toca ao perdão de dívidas (cfr. artigos 20.º e 21.º).
II - Para transposição desta Directiva surgiu a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro a estabelecer um conjunto de medidas de agilização do processo de insolvência, entre as quais, a redução do período de cessão, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, que passou de 5 para 3 anos.
III – Foi ainda consagrada a possibilidade de extensão do período de cessão por um prazo máximo de 36 meses, uma única vez, aditando ao CIRE o artigo 242.º-A.
IV - Tal só poderá acontecer se se concluir pela existência de “probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”, ou seja, o quadro que se apresenta tem de permitir ao julgador antever, não uma probabilidade qualquer, mas uma probabilidade séria de que, nesse período alargado, o devedor venha a cumprir as suas obrigações a que sujeitou ab initio para obter a exoneração.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1536/18.2T8AMT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo de Comércio de Amarante - Juiz 2


Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I – Relatório
Nos autos supra referidos foi proferido o seguinte despacho:
Na sequência da entrada em vigor do artigo 10.º, n.º3 da Lei n.º 9/2022 de 11 de janeiro, mostra-se findo o período de exoneração a que alude o art.º 235.º do CIRE.
Sucede que, o art.º 242-A do CIRE veio conferir a possibilidade de ser prorrogado o período de cessão, desde que requerido antes do termo daquele período.
Ora, em fevereiro de 2022, o Sr. Fiduciário suscitou aquela questão, e a devedora veio dar a sua concordância
Cumpre apreciar:
Cremos ser de indeferir qualquer pedido de prorrogação do período de cessão.
Vejamos:
Estabelece o art.º 242-A, n.º3 do CIRE, citado supra, que a prorrogação apenas deve ser decretada se se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento pelo devedor. In casu, o comportamento da devedora não permite ao tribunal formular este juízo.
Com efeito, e como bem decorre do relatório elaborado, a insolvente havia já requerido a 05-05-2020 a regularização em prestações do valor que se encontrava em falta relativo ao 1.º ano de cessão, plano que não cumpriu.

De igual modo, não fez qualquer entrega do valor a ceder nos 2.º e 3.º anos de cessão.
Por outro lado, no último período da cessão, o rendimento da insolvente ascendeu a 3.269,19€, correspondendo o rendimento disponível apurado no período a 219,80€ e nada foi entregue, com excepção de duas entregas de 50,00€ cada no âmbito do pano de amortização do valor em falta relativo ao 1º ano de cessão.
Mostra-se em dívida o valor de 975,08€
Estes factos são reveladores da atitude incumpridora da devedora e não permitem formular um juízo de que, desta vez, tudo será diferente.
Assim sendo, indefere-se o pedido de prorrogação do prazo.
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Posto isto:

Notifique a devedora para, em 10 dias, entregar a quantia em divida, sob cominação de que o procedimento de exoneração do passivo restante poderá ser recusado.
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Decorrido o prazo concedido deverá o (a) Sr.(a) AJ informar do cumprimento, ou não, daquelas obrigações.
Prazo: 10 dias.”

AA veio interpor recurso, concluindo:
A. Vem o presente recurso interposto do douto despacho do Meritíssimo Juiz a quo, que determinou o indeferimento do pedido de prorrogação do prazo, que teve como fundamento a atitude incumpridora da recorrente.
B. Não pode a aqui recorrente concordar tal decisão, uma vez que a mesma sempre pautou por dar cumprimento às suas obrigações.
C. Mais se refere, a recorrente, de modo a dar cumprimento às suas obrigações, requereu o pagamento prestacional dos valores objeto de cessão em dívida, o qual foi deferido.
D. Note-se, que a recorrente, não procedeu ao pagamento dos valores devidos, uma vez que se encontrava numa situação de dificuldades económicas, dado a situação pandémica que vivenciamos.
E. Para piorar a situação, a recorrente tem que prover ao sustento do seu agregado familiar de forma isolada, agregado esse composto pela recorrente e pela sua filha, dado que o progenitor não procede ao pagamento da pensão de alimentos devida à menor.
F. Relativamente à intervenção do fundo, a mesma não ocorre dado que o rendimento per capita do agregado familiar é superior ao IAS, no valor de EUR.4,52 (quatro euros e cinquenta e dois cêntimos).
G. Desta forma, dando cumprimento às obrigações por si assumidas, a recorrente tentou através do pagamento prestacional, proceder à liquidação dos referidos valores.
H. Ora tal período ainda não terminou, e como tal não se pode deduzir que haja uma atitude incumpridora por parte da recorrente, ainda no decorrer de tal período.
I. Ora considerando o caso em concreto, entende a recorrente que forneceu os elementos suficientes e idóneos que possibilitassem mostrar que não procedeu ao pagamento dos valores objeto de cessão devido às suas dificuldades financeiras.
J. Ora, o respetivo agregado familiar é composto pela recorrente e pela sua filha, sendo o rendimento daquele o único meio de subsistência da família, como anteriormente referido.
K. A lei 9/2022, de 11 de Janeiro, no artigo 10.º n.º 3, refere que nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data da entrada em vigor da referida lei, nos quais haja sido deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de sessão do rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data da entrada em vigor da lei em apreço, devem terminar.
L. Ora, segundo o artigo 12.º do Código Civil, regra geral, a lei só dispõe para o futuro contudo, nos casos em que lhe seja atribuída eficácia retroativa, presumem-se ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
M. Sucede que, ainda que a eficácia retroativa seja admitida ao caso em concreto, a mesma tem que garantir o respeito pelos princípios presentes na Constituição da Républica Portuguesa.
N. Exigir a realização de um pagamento, de forma imediata, após a conceção ao insolvente do pagamento em prestações do montante em dívida à massa insolvente, resulta uma clara violação do princípio da segurança e proteção da confiança que integra o princípio do Estado de Direito Democrático.
O. Este princípio impõe a existência de um mínimo de certeza jurídica e segurança dos direitos das pessoas relativamente às expectativas juridicamente criadas a que está imanente uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do estado.
P. Deste modo, a dimensão subjetiva da segurança jurídica que o Tribunal Constitucional retira do princípio do Estado democrático relaciona-se com o princípio da proteção da confiança, que censura alterações súbitas de normas em cuja continuidade os cidadãos tenham depositado expectativas legítimas que tenham sido alimentadas pelos poderes públicos, neste caso em concreto, pela decisão do Meritíssimo Juiz.
Q. Assim, a insolvente pautou a sua vida, de modo a conseguir cumprir com o pagamento do montante objeto de cessão que se encontra em falta, através das referidas prestações.
R. Sucede que, a alteração legislativa e a exigência de proceder ao pagamento do valor em falta, na sua totalidade, de forma imediata, põem em causa a sua subsistência, como suprarreferido.
S. Face ao exposto, solicita-se que seja prorrogado o período de cessão pelo período de tempo indispensável ao cumprimento do acordo de pagamento deferido, dando cumprimento ao artigo 242.º A do CIRE.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÃO DAR PROVIMENTO AO RECURSO, SUBSTITUINDO O DESPACHO REQUERIDO POR OUTRO QUE DETERMINE O DEFERIMENTO DO PEDIDO DE PRORROGAÇÃO DO PERIODO OBJETO DE CESSÃO PELO TEMPO NECESSÁRIO AO PAGAMENTO DA TOTALIDADE DAS PRESTAÇÕES ANTERIORMENTE DEFERIDAS.
COMO É DA MAIS ELEMENTAR E ABSOLUTA JUSTIÇA

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se deve ser deferido o pedido de prorrogação do período de cessão nos termos do artigo 242º-A do CIRE.

II – Fundamentação de facto
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra

III – Fundamentação de direito
A Directiva n.º 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, que entrou em vigor em Julho de 2019, visou, nomeadamente, atenuar as diferenças entre as legislações dos Estados-Membros no que toca ao perdão de dívidas (cfr. artigos 20.º e 21.º).
Constatou-se que estas diferenças entre os Estados-Membros acarretam custos adicionais a suportar pelos investidores quando avaliam o risco de os devedores incorrerem em dificuldades financeiras, importando reduzir estes custos e atenuar o recurso àquilo que se designa o Forum Shopping entre as diferentes legislações, uniformizando-as dentro do que é possível e apropriado a cada realidade.
Neste desiderato e para transposição desta Directiva, surgiu a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro a estabelecer um conjunto de medidas de agilização do processo de insolvência, entre as quais, a redução do período de cessão no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, permitindo assim aos devedores, pessoas singulares, o acesso mais rápido a uma segunda oportunidade.
Na exoneração do passivo restante (artigo 235. º do CIRE) passou de 5 para 3 anos o período de cessão.
O Parlamento Europeu chegou à conclusão que o prazo estipulado para reabilitação ou perdão dos devedores não poderia ser superior a três anos, sob pena do instituto se poder tornar desfavorável tanto para o devedor quanto para o credor.
Pretende-se proporcionar ao insolvente “uma reeducação financeira, um agir economicamente responsável e não caracterizar o período da cessão (na legislação supranacional nomeado como “perdão”) como um prazo de penitência por factos que quase nunca contribuíram, efetivamente, nem concorreram de forma direta para a obtenção do resultado alcançado”. – Vide Vyvian de Azevedo Avena, Cessão do Rendimento Disponível: Ceder para Ganhar, Dissertação de Mestrado Ciências Jurídico-Empresariais, Universidade Lusófona do Porto, in https://recil.ensinolusofona.pt/bitstream/10437/12951/1/Tese%20Vyvian%20Avena.pdf.
Procurou-se mais uma vez equilibrar os interesses em presença no estabelecimento de um prazo razoável para que os credores possam reaver seus créditos. Em equilíbrio estão sempre os interesses dos devedores de boa-fé que precisam de protecção e de uma segunda oportunidade e os dos credores que precisam de ser ressarcidos.
A referida lei n.º 9/2022 veio, contudo, consagrar a possibilidade de extensão do período de cessão por um prazo máximo de 36 meses, uma única vez, aditando ao CIRE o artigo 242.º-A.
Na verdade, esta hipótese de prorrogação do período de cessão do rendimento disponível até três anos pode, afinal, levar a que o período total venha agora a ser superior ao que estava fixado antes desta alteração, dado que pode chegar aos seis anos.
Isto é possível porque a Directiva em referência prevê, no seu artigo 23.º, n.º 2, al. a), uma possível derrogação ao regime nela previsto (cfr. artigos 20.º e 21º), permitindo aos Estados-Membros fixar um prazo mais longo para o perdão da dívida.
Durante o período de cessão, o devedor vincula-se a uma série de obrigações (cfr. artigo 239.º, n.º 4 do CIRE), designadamente as de exercer uma profissão remunerada ou diligentemente procurar uma, não ocultar ou dissimular rendimentos que aufira ou não criar vantagens especiais para determinados credores. A violação dolosa destas obrigações é fundamento, nomeadamente para a cessão antecipada do procedimento de exoneração ou para a sua revogação (cfr. artigo 243.º, n.º 1, al. a) e artigo 246.º, n.º 1 do CIRE).
Também neste período, o fiduciário notifica a cessão dos rendimentos do devedor àqueles que tenham direito a havê-los e afecta os montantes recebidos, no final de cada ano em que dure a cessão, aos pagamentos pela lei estabelecidos (cfr. artigo 241.º, n.º 1 do CIRE).
Desde que não haja lugar à cessão antecipada do procedimento de exoneração, findo o período de cessão, o juiz decidirá pela concessão da exoneração do passivo restante, salvo quando se verifique um dos fundamentos que teria permitido a cessação antecipada do procedimento (cfr. artigos 243.º e 244.º do CIRE).
E agora, nos termos destas alterações, o juiz poderá também decidir pela prorrogação do período da exoneração, mas apenas desde que tenha havido requerimento fundamentado do devedor, de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência (se ainda estiver em funções) ou do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o comportamento do devedor.
Vale a pena então transcrever o inovador artigo 242.º-A “Prorrogação do período de cessão
1 - Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado:
a) Do devedor;
b) De algum credor da insolvência;
c) Do administrador da insolvência, se este ainda estiver em funções; ou
d) Do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respetiva prova.
3 - O juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional.”
O que se pretende naturalmente com esta prorrogação é evitar que, ao fim de três anos de sacrifícios do devedor, exista uma provável decisão de recusa de exoneração do passivo restante, permitindo-se, por este meio, que um período adicional de esforço da sua parte possa conduzir à exoneração pretendida.
Mas isso só pode acontecer se se concluir pela existência de “probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional”.
No entendimento de Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra: Almedina, 2019,pág. 559, que nos parece interessante, o período da exoneração do passivo restante é uma espécie de regime de prova a que o devedor é submetido.
Só passando por este regime de prova de forma adequada é que lhe será concedida a exoneração.
Agora, mesmo neste período de teste, a lei permite a prorrogação do período de cessão mas apenas se se prefigurar uma probabilidade séria de cumprimento no período objecto da prorrogação.
Ou seja, o quadro que se apresenta tem de permitir ao julgador antever, não uma probabilidade qualquer, mas uma probabilidade séria de que, nesse período alargado, o devedor venha a cumprir as suas obrigações a que sujeitou ab initio para obter a exoneração. É preciso que alguma coisa se evidencie no processo que possa levar o juiz a uma convicção de que derradeiramente o devedor vai cumprir.
A situação descrita no despacho é a seguinte:
Com efeito, e como bem decorre do relatório elaborado, a insolvente havia já requerido a 05-05-2020 a regularização em prestações do valor que se encontrava em falta relativo ao 1.º ano de cessão, plano que não cumpriu.
De igual modo, não fez qualquer entrega do valor a ceder nos 2.º e 3.º anos de cessão.
Por outro lado, no último período da cessão, o rendimento da insolvente ascendeu a 3.269,19€, correspondendo o rendimento disponível apurado no período a 219,80€ e nada foi entregue, com excepção de duas entregas de 50,00€ cada no âmbito do pano de amortização do valor em falta relativo ao 1º ano de cessão.
Mostra-se em dívida o valor de 975,08€”
Assim, temos de conceder que não existe qualquer fundamento que autorize o julgador a considerar haver uma probabilidade séria de que, nesse período da prorrogação, a devedora se apresente conscienciosamente cumpridora.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido.

Custas pela apelante nos termos do artigo 248 do CIRE.

Porto, 13 de Setembro de 2022
Ana Lucinda Cabral
Rodrigues Pires
Márcia Portela

(A relatora escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.)