Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
351/20.8T9AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
REQUERIMENTO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
Nº do Documento: RP20210210351/20.8T9AVR-A.P1
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA (RECURSO DO MP)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A necessidade da fundamentação do requerimento, como acontece com qualquer outro requerimento, prende-se exclusivamente com a necessidade de se apresentarem argumentos que justifiquem a decisão que se pede, para que o decisor, o JIC, os possa avaliar e deferir ou indeferir a pretensão, sendo certo que esta decisão é susceptível de recurso, justificando-se também por esta via que o requerimento não seja uma carta em branco.
II - As situações enunciadas no art. 271.º do CPPenal que são susceptíveis de permitir a prestação de declarações para memória futura não são certas e inequívocas, no sentido em que é necessário precisar, especificar, as condições que permitem o enquadramento do caso numa das causa ali previstas, isto é, doença grave, deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, vítima de crimes de catálogo ou com relevância para o efeito.
III - O Ministério Público não teria dúvidas em justificar a pretensão de audição para memória futura de uma testemunha gravemente doente ou em vias de ir para o estrangeiro, previsivelmente impossibilitada de comparecer para ser ouvida em julgamento, juntando até documentação que suportasse a condição alegada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 351/20.8T9AVR-A.P1
Tribunal de Origem_ Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo de Instrução Criminal de Aveiro - Juiz 2
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
No âmbito do Inquérito n.º 351/20.8T9AVR, a correr termos no DIAP de Aveiro, por despacho de 15-06-2020, o Digno Magistrado do Ministério Público que conduzia o inquérito, após validar a constituição da arguida nos autos e ordenar outras diligências, determinou o seguinte (transcrição):
«Em face da idade da ofendida e dos factos em apreço, promovo a tomada de declarações para memória futura de B….
Ao Mmº JIC.»
Concluídos os autos à Senhora Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Aveiro (Juiz 2), pela mesma foi proferida, em 24-06-2020, a seguinte decisão (transcrição):
«Considerando a finalidade processual da tomada de declarações para memória futura, a circunstância de que a inquirição é levada a cabo pelo Juiz e as restrições processuais estabelecidas no art. 356.º do cód. Proc. penal. impõe-se ao Ministério Público apresentar descrever ao quadro fáctico sobre que a mesma deverá incidir.
Em consonância, devolva os autos ao Ministério Público para cumprimento do ora ordenado, a fim de, subsequentemente, se proceder à designação de data para tomada das declarações pretendidas.
*
Notifique.»

Devolvido o inquérito ao DIAP de Aveiro, pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi proferido o seguinte despacho, datado de 30-06-2020 (transcrição):
«Douto despacho de fls. , de 24/06/2020 do Mm.º JJC.
Visto.
Salvo o devido respeito, não se nos afigura que seja exigido no Código de Processo Penal ou em qualquer outro diploma que imponha a apresentação de “quadro fáctico” sobre o qual deva a testemunha ser inquirida pelo Mm.º Juiz.
Efectivamente o art.º 356.º não o exige.
Cito:
“Artigo 356.º
Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações
1 - Só é permitida a leitura em audiência de autos:
a) Relativos a actos processuais levados a cabo nos termos dos artigos 318.º, 319.º e 320.º; ou
b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas.
2 - A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestadas perante o juiz nos casos seguintes.
a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º,
b) Se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura;
c) Tratando-se de declarações obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas.
3 - É também permitida a reprodução ou leitura dc declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária:
a) Na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos: ou
b) Quando houver, entre elas e feitas em audiência, contradições ou discrepâncias.
4 - É permitida a reprodução ou leitura de declarações prestadas perante a autoridade judiciária se os declarantes não tiverem podido comparecer por falecimento, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade duradoira, designadamente se, esgotadas as diligências para apurar o seu paradeiro, não tiver sido possível a sua notificação para comparecimento.
5 - Verificando-se o disposto na alínea b) do n.º 2, a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o Ministério Público ou perante órgãos de polícia criminal.
6 - É proibida, em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.
7 - Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem corno quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos corno testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
8 - A visualização ou a audição de gravações de actos processuais só é permitida quando o for a leitura do respectivo auto nos termos dos números anteriores.
9 - A permissão de uma leitura, visualização ou audição e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.”
A alínea a) do n.º 2 do citado artigo remete apenas para o art.º 271.º do Código de Processo Penal que dispõe o seguinte e cito:
“Artigo 271.º
Declarações para memória futura
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações.
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.”
Assim, nos termos do n.º 1 deste artigo é apenas exigida para a tornada de declarações para memória futura, entre outros, a existência de requerimento do Ministério Público, sem que seja especificada qualquer outro tipo de exigência ou formalidade.
Nos presentes autos o n.º 2 do citado art.º 271.º impõe a realização da diligência.
Acresce que, a diligência requerida é um meio de prova em inquérito ainda não concluído.
Porém, já se encontra recolhido nos autos acervo probatório, nomeadamente auto de notícia/denúncia, inquirição de testemunhas, relatórios periciais e outros elementos que são o bastante para que se apure a matéria em apreço a ser inquirida a testemunha.
Das regras da experiência comum, resulta que neste tipo de criminalidade, que interfere com a reserva da vida privada e especialmente da intimidade das ofendidas, estas aquando da sua inquirição contam mais factos ou detalhes que não tinham mencionado antes e omitem alguns detalhes antes referidos, sem, claro está, seja alterado ou adulterado o essencial dos factos inquiridos.
Assim, qualquer exposição fáctica poderia pecar por excesso ou defeito, tendo em conta o novo meio de prova cujo teor ainda vai ser apurado.
Por outro lado, tendo em conta a idade da ofendida nos presentes autos, que ainda não foi inquirida, com vista a evitar a sua revitimização, pois seria inquirida pelo Ministério Público e seguidamente pelo Mm.º JIC, pretende-se evitar a sujeição da mesma a tal sofrimento e constrangimento.
Em face de ainda não ter sido inquirida a ofendida, não se mostram ainda determinados e apurados todos os factos que eventualmente possam vir a ser imputados ao arguido, tendo em conta que resultam de outros meios de prova que não as declarações da própria vítima.
Contudo, sem prejuízo dos elementos constantes nos autos, caso o Mm.º Juiz não retire dos mesmos o “quadro fáctico”, o que com certeza não sucederá[1], sempre se poderia socorrer do disposto no art.º 349.º do Código de Processo Penal, onde seguramente o Ministério Público sugerirá os esclarecimentos necessários à realização da diligência com sucesso.
A tudo isto acresce e questiona-se o seguinte: caso fosse a vítima ou as partes civis a requerer tal diligência, exigir-se-ia a apresentação do chamado quadro fáctico?
Sem mais, considerando ter sido dado cumprimento ao “ordenado”, remeta os autos ao Mm.º JIC para agendamento da diligência legalmente imposta.
DN».

Concluído de novo o processo à Senhora Juiz de Instrução, pela mesma foi proferido, em 07-07-2020, o seguinte despacho (transcrição):
«Nada a ordenar face ao decidido a fls. 61 dos autos.»
*
Inconformado com tal tramitação, veio o Ministério Público junto do DIAP de Aveiro interpor recurso do despacho da Senhora Juiz de Instrução de 24-06-2020, solicitando que seja revogada tal decisão e que se determine ao Tribunal a quo que agende a realização de diligência para tomada de declarações para memória futura já promovida.
Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões (transcrição):
«I. Nos presentes autos de Inquérito foi promovida a fls. 53 a tomada de declarações para memória futura da ofendida, B…, nascida a ../06/2006, alegadamente vítima de maus-tratos perpetrados na sua pessoa pela sua mãe, arguida nos autos.
II. Tal diligência foi indeferida por falta de apresentação ou descrição de “quadro fáctico” a circunstanciar a mesma, sendo que tal exigência não se encontra legalmente prevista em qualquer normativo, nomeadamente tal exigência não é imposta pelo mencionado no despacho em crise art.º 356.º do Código de Processo Penal, nem pelo art.º 271.º do mesmo diploma legal.
III. Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 271.º é apenas exigida para a tomada de declarações para memória futura, entre outros, a existência de requerimento do Ministério Público, sem que seja especificada qualquer outro tipo de exigência ou formalidade, sendo a diligência requerida é um meio de prova em inquérito ainda não concluído.
IV. Porém, já se encontra recolhido nos autos acervo probatório, nomeadamente auto de notícia denúncia, inquirição de testemunhas, relatórios periciais e outros elementos que são o bastante para que se apure a matéria em apreço a ser inquirida a testemunha e tendo em conta a idade da ofendida nos presentes autos, com vista a evitar a sua revitimização, pois seria inquirida pelo Ministério Público e seguidamente pelo Mm.º JIC, pretende-se evitar a sujeição da mesma a tal sofrimento e constrangimento.
V. Sempre o Mm.º Juiz a quo se poderia fazer uso do disposto no art.º 349.º do Código de Processo Penal, onde seguramente o Ministério Público sugerirá os esclarecimentos necessários à realização da diligência, sem carecer da descrição de qualquer “quadro fáctico”.
VI. Caso fosse a vítima ou as partes civis a requerer tal diligência, não se vislumbra, nem se crê que fosse exigida a apresentação do chamado quadro fáctico.
VII. O despacho de que ora se recorre viola o disposto nos art.ºs 17.º, 256.º, 268.º n.º 1 alínea f) e 271.º do Código de Processo Penal e não procede à realização de uma diligência legitimamente promovida e cujo cumprimento deveria ter sido determinado pelo Mm.º Juiz a quo.
VIII. Assim, impõe-se que seja proferida decisão que imponha ao Mm.º Juiz a quo que determine a realização da diligencia que o mesmo não ordenou, como se lhe impunha, por falta de cumprimento de algo não legalmente exigível.»
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por entender que «o requerimento/promoção do Ministério Público a solicitar declarações para memória futura de uma determinada vítima terá de ser minimamente fundamentado, nomeadamente com uma breve referência ao crime indiciado em causa, à idade (e outras particularidades) da vítima e às normas legais atinentes.
Isto é, terá de ter, ainda que de forma sintética, um sucinto enquadramento fáctico e legal.»
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[2].
A única questão que cumpre apreciar é a de saber se quando o Ministério Público, no âmbito do inquérito, apresenta ao Juiz de Instrução requerimento a solicitar a realização de uma diligência de tomada de declarações para memória futura deve apresentar um quadro fáctico sobre o qual a mesma deverá incidir ou se apenas se lhe impõe que promova a realização da diligência sem mais.
*
Vejamos.
Estabelece o art. 271.º do CPPenal nos seus n.ºs 1 e 2 que, em fase de inquérito:
«1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.»
Ainda para efeito de prestação de declarações para memória futura mas agora em fase de instrução, determina o art. 294.º do CPPenal que:
«Oficiosamente ou a requerimento, o juiz pode proceder, durante a instrução, à inquirição de testemunhas, à tomada de declarações do assistente, das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações, nos termos e com as finalidades referidas no artigo 271.º».

A diferença que, claramente, se destaca quanto ao impulso necessário para realização da diligência em cada uma destas fases processuais é a que em fase de inquérito ela só pode ser determinada a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis e em fase de instrução ela pode ser decidida oficiosamente ou por requerimento.
Quando a lei se refere ao requerimento, designadamente, do Ministério Público (ou dos outros intervenientes referidos) não pode estar a pensar que a tramitação se basta com uma mera indicação para que se realize a diligência, de outro modo teria sido escolhido outro tipo de vocabulário como por indicação, por sugestão ou alguma expressão similar.
É verdade que, como alega o recorrente, o requerimento em que o Ministério Público solicita ao JIC a realização de determinados actos, como a tomada de declarações para memória futura, não tem de obedecer a formalidades especiais.
Assim o especifica o art. 268.º, n.º 2, do CPPenal quando alude aos requerimentos apresentados pelo Ministério Público ao JIC para a prática de actos que só a este competem.
Mas não ter de cumprir formalidades especiais não é equivalente a não ter conteúdo. Significa apenas que a lei não impõe a obrigação de uma menção em especial, como acontece, por exemplo, nos recursos.
Um requerimento é uma peça processual onde é apresentada uma pretensão que é antecedida de argumentos, de facto e de direito, que, de acordo com o requerente, sustentarão a procedência do pedido.
Um requerimento do Ministério Público da natureza do que aqui se aprecia não deixa de ser também um acto decisório, já que, como entidade que dirige o inquérito, decide requerer a inquirição da vítima nos moldes previstos no art. 271.º do CPPenal, decisão com clara e importante repercussão na normal tramitação dos autos, em especial em fase de julgamento.
Por isso, nos termos do disposto no art. 97.º, n.ºs 3 a 5, o acto é sempre fundamentado, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
De todo o modo, o n.º 4 do art. 268.º do CPPenal dá resposta cabal a esta questão, referindo que o JIC decide com base na informação que, conjuntamente com o requerimento, lhe for prestada, podendo até dispensar a apresentação dos autos.
E se o recorrente bem vir os actos a requerer pelo Ministério Público ao JIC que se encontram expressamente elencados nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art. 268.º do CPPenal facilmente percebe que na prática dos Tribunais os requerimentos que os sustentam são sempre fundamentados, como acontece, por exemplo, para salientar os mais frequentes, com a aplicação de medidas de coacção ou realização de primeiro interrogatório judicial de arguido detido.
Não se percebe por que razão o requerimento dos autos será diferente.
Mas ainda que esta norma não existisse a solução teria de ser a mesma.
Veja-se que a diferença antes realçada quanto à legitimidade para desencadear a prestação de declarações para memória futura em fase inquérito ou em fase de instrução não é inócua.
Embora esta diferença possa parecer óbvia em face das entidades que dirigem uma e outra fase, o Ministério Público o inquérito (art. 53.º do CPPenal) e o Juiz de Instrução a instrução (art. 288.º do CPPenal), ela é de toda a relevância para aquilatarmos das diferenças na tramitação dos autos numa fase ou noutra no que respeita à decisão de tomada de declarações para memória futura de acordo com as regras previstas no art. 271.º do CPPenal.
É que se na fase de inquérito o JIC não pode oficiosamente decidir a realização da mencionada diligência, o que se percebe, pois o Ministério Público é que dirige o inquérito, ele é que decide que provas relevam para mais tarde sustentar uma acusação ou determinar um arquivamento. Não cabe ao JIC nesta fase estar de motu proprio a vasculhar o processo para procurar e encontrar razões para se proceder a determinada diligência.
Ora, se se aceita que o Ministério Público nada argumente que explique e justifique a razão pela qual entende que deve ser realizada uma diligência de tomada de declarações para memória futura e é o JIC quem vai compulsar a totalidade dos autos – à revelia do indicado no n.º 4 do art. art. 268.º do CPPenal –, à procura desses argumentos, encontramo-nos, na prática, perante uma diligência decidida oficiosamente pelo JIC, conduta que lhe está vedada em fase de inquérito.
A razão de ser da necessidade desta fundamentação, ao contrário do que parece ser o foco da argumentação do recorrente, mas também do Tribunal a quo, que não é muito claro nos motivos apresentados, não é a preparação de um quadro fáctico que sirva de guião, e até espartilho, para o JIC seguir na realização da diligência, pois é ele quem faz a inquirição, podendo o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civil e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais (art. 271.º, n.º 5, do CPPenal).
E quanto a isso a jurisprudência tem sido categórica e nem podia ser de outra maneira. O JIC, na realização da diligência, não pode estar orientado e limitado por qualquer modelo de inquirição previamente delineado pelo Ministério Público. Tem de ver todo o processo, tem de conhecer todos os elementos que dele constam e a partir desse conhecimento realizará a diligência conforme entender que melhor salvaguarda os interesses que procura assegurar.
Neste sentido, veja-se a título de exemplo, o acórdão da Relação de Coimbra de 22-11-2017[3], onde se determinou que:
«I - Na tomada de declarações para memória futura, o juiz não está vinculado a qualquer delimitação do objeto feito pelo Ministério Público.
II - O juiz está vinculado aos factos fornecidos pelos autos, a investigar, que se indiciam e que constituem o objeto da investigação. III - Sendo permitido ao Ministério Público, aos mandatários, do assistente e das partes civis e ao defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.»

A necessidade da fundamentação do requerimento, como acontece com qualquer outro requerimento, prende-se exclusivamente com a necessidade de se apresentarem argumentos que justifiquem a decisão que se pede, para que o decisor, o JIC, os possa avaliar e deferir ou indeferir a pretensão, sendo certo que esta decisão é susceptível de recurso, justificando-se também por esta via que o requerimento não seja uma carta em branco.
Quando olhamos para a promoção (e não requerimento) do Ministério Público ficamos sem saber se o seu pedido se justifica ou não, pois o mesmo refere apenas que «Em face da idade da ofendida e dos factos em apreço, promovo a tomada de declarações para memória futura de B….»
Não se sabe se a relevância da idade da ofendida é por ser nova ou velha, não se sabe que tipo de factualidade está em causa, que tipo de ilícito se indicia, que interesses ou perigos se colocam com a não realização da diligência.
O JIC pode ir vasculhar o processo para perceber o que está em causa? Pode. Mas não é a tramitação correcta, pois a sua intervenção não é oficiosa nesta fase.
E na verdade, as situações enunciadas no art. 271.º do CPPenal que são susceptíveis de permitir a prestação de declarações para memória futura não são certas e inequívocas, no sentido em que é necessário precisar, especificar, as condições que permitem o enquadramento do caso numa das causa ali previstas, isto é, doença grave, deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, vítima de crimes de catálogo ou com relevância para o efeito.
O Ministério Público não teria dúvidas, cremos, em justificar a pretensão de audição para memória futuro de uma testemunha gravemente doente ou em vias de ir para o estrangeiro, previsivelmente impossibilitada de comparecer para ser ouvida em julgamento, juntando até documentação que suportasse a condição alegada.
E o JIC, perante os elementos apresentados, decidiria ser acerta ou infundada tal pretensão, por exemplo, por considerar que as condições não eram tão extremas como descritas.
Relativamente aos crimes de catálogo – tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual (art. 271.º do CPPenal) ou violência doméstica (arts. 23.º e 33.º da Lei 112/2009, de 16-09) – ou com relevância para o efeito (ao abrigo da Lei de Protecção de Testemunhas, Lei 93/99, de 14-07) passa-se exactamente o mesmo.
Em primeiro lugar, é necessário alegar que se está perante um crime que se enquadra num desses perfis.
Para isso, necessita o Ministério Público de descrever sumariamente o tipo de condutas que se investigam. Não se trata de realizar uma pré-acusação mas tão-somente de identificar o tipo de comportamentos em investigação e enquadrá-los num dos tipos de crime apontados.
Será ainda relevante que indique a idade da vítima e a sua relação com o alegado agressor.
A idade porque da mesma poderá decorrer a obrigatoriedade, ou não, da diligência, de acordo com o disposto no art. 271.º, n.º 2 do CPPenal, e bem assim o grau de fragilidade da vítima, sendo a proximidade ao agressor um factor de agravamento deste último parâmetro. Quanto mais frágil ou fragilizada a vítima mais se justifica a tomada de declarações para memória futura.
No caso concreto, não se procurou alegar e concretizar perante o JIC que os factos investigados integravam crime de catálogo ou relevante para o efeito e que a vítima tinha alguma das características apontadas.
E só a apresentação destes argumentos poderia sustentar uma decisão fundamentada do JIC.
Fica-se a saber, através do requerimento de interposição de recurso, que a ofendida é menor e alegadamente vítima de maus-tratos perpetrados pela sua mãe. Antes dessa peça nada disto foi enunciado ou esclarecido.
Mas se é assim, há que concluir, contrariamente ao afirmado pelo requerente, que a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória mas apenas altamente recomendada, como resulta da conjugação do disposto nos arts. 67.º-A, n.º 1, al. b), do CPPenal e 21.º e 24.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 04-12.
Note-se que esta questão – obrigatoriedade ou não da tomada de declarações para memória futura – devia ser a primeira a ser justificada, não apenas invocada (que, aliás, também não foi), pelo Ministério Público no seu requerimento.
Com efeito, de acordo com o preceituado no art. 271.º, n.º 2, do CPPenal, «[n]o caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.»
Caso a situação dos autos se enquadrasse nesta previsão, impunha-se, no mínimo, que o Ministério Público referisse no seu requerimento que a testemunha x era vítima de certo tipo de facto, que os mesmos eram enquadráveis num dos tipos de crime aludidos na norma e que a vítima era menor, indicando os segmentos do processo que suportavam a sua alegação.
Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual encontram-se descritos nas Secções I e II do Capítulo V do Livro II do Código Penal, sendo eles:
Crimes contra a liberdade sexual
Artigo 163.º - Coacção sexual
Artigo 164.º - Violação
Artigo 165.º - Abuso sexual de pessoa incapaz de resistência
Artigo 166.º - Abuso sexual de pessoa internada
Artigo 167.º - Fraude sexual
Artigo 168.º - Procriação artificial não consentida
Artigo 169.º - Lenocínio
Artigo 170.º - Importunação sexual
Crimes contra a autodeterminação sexual
Artigo 171.º - Abuso sexual de crianças
Artigo 172.º - Abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável
Artigo 173.º - Actos sexuais com adolescentes
Artigo 174.º - Recurso à prostituição de menores
Artigo 175.º - Lenocínio de menores
Artigo 176.º - Pornografia de menores
Artigo 176.º-A - Aliciamento de menores para fins sexuais
Artigo 176.º-B - Organização de viagens para fins de turismo sexual com menores.

Ora, quanto falamos de maus-tratos normalmente não nos situamos no âmbito destes crimes de carácter sexual.
Por isso, a afirmação do recorrente de que a audição da ofendida para memória futura é obrigatória, ao abrigo da indicada norma, não tem, aparentemente (já que, em rigor, desconhecemos o conteúdo do inquérito), qualquer fundamento.
Se o Ministério Público, no seu requerimento, tivesse mencionado, em meia dúzia de palavras, o tipo de agressão de que a ofendida foi alvo já estaríamos em condições de perceber se a sua audição era obrigatória ou não. Aparentemente não era.
E nestes casos, isto é, em todas as situações em que não é obrigatória a tomada de declarações para memória futura ao abrigo do art. 271.º, n.º 2, do CPPenal, mas ainda estamos perante um certo tipo de criminalidade que permite ou aconselha essa diligência, o Ministério Público deve invocar também, para além das razões de facto e direito para o seu enquadramento jurídico num dos crimes com tal perfil, as razões do superior interesse da realização dessa diligência em detrimento do cumprimento pleno da imediação e do contraditório em julgamento, princípios estruturantes do nosso processo penal.
Estas outras razões terão a ver com a fragilidade das vítimas e com a preocupação, de que estamos todos cada vez mais conscientes, de não potenciar e repetir uma, e outra, e outra vez o seu sofrimento, preservando ainda a genuinidade do depoimento ao ser prestado o mais próximo possível da ocorrência.
É com esta preocupação que a Lei 93/99, de 14-07, Lei da Protecção de Testemunhas, tentou criar medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência (arts. 1.º, n.º 3, e 26.º, n.º 2).
Por isso, prevê a indicada Lei que «[d]urante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime» e que «[s]empre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal» - art. 28.º.
A apontada característica de fragilidade é recorrente nos casos de tráfico de pessoas, maus-tratos ou violência doméstica, como aparentemente será o dos autos, e, por isso, nesses processos muitas vezes a inquirição das vítimas é realizada apenas em inquérito e mediante as condições necessárias para que as declarações possam ser aproveitadas para memória futura, evitando-se uma desnecessária exposição em julgamento, principalmente nos casos em que a vítima é especialmente vulnerável (cf. arts. 67.º-A, n.º 1, al. b), do CPPenal e 21.º e 24.º do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015, de 04-12).
Mas a mesma Lei 93/99, de 14-07, não deixa de salientar que «[a]s medidas previstas na presente lei têm natureza excepcional e só podem ser aplicadas se, em concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à protecção das pessoas e à realização das finalidades do processo», sendo em qualquer caso «assegurada a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa» - art.º 1.º, n.ºs 4 e 5.
A ressalva que consta deste diploma vai ao encontro do que resulta já dos demais diplomas referidos.
A prestação de declarações para memória futura continua a ser uma diligência excepcional e quando não é obrigatória nos termos do disposto no art. 271.º, n.º 2, do CPPenal impõe um concreto juízo de ponderação entre os interesses de protecção da vítima e o da realização da justiça com pleno exercício da imediação e do contraditório.
São também esses argumentos que o Ministério Público deve juntar ao seu requerimento em ordem a convencer o JIC da justeza da sua pretensão.
Na situação dos autos o Ministério Público não o fez na promoção onde pediu inicialmente a prestação de declarações para memória futura e também não o fez depois do JIC ter rejeitado o seu pedido e de ter apresentando um novo requerimento, onde voltaram a faltar todos os referidos elementos, embora aqui tenha mencionado o interesse em evitar a revitimização da ofendida, peça que serviu essencialmente para expor o seu descontentamento face à posição do JIC.

Para finalizar e em suma, qualquer que fosse o enquadramento jurídico dos factos em investigação nos autos principais, impunha-se que o Ministério Público, no requerimento que apresentou ao abrigo do disposto no art. 271.º, n.º 1, do CPPenal enunciasse, em fundamentação sumária, os argumentos de facto e de direito que permitiam dar cobertura a uma das várias hipóteses que se deixaram explanadas em que tal diligência deve ou pode ser realizada, enunciando as peças que no processo apoiavam a pretensão.
Essa referência sumária, o sucinto enquadramento fáctico e legal na terminologia do Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, não tem como objectivo guiar e limitar o JIC na inquirição que venha a ser realizada, pois esse acto é da sua inteira responsabilidade, incumbindo-lhe estudar o processo e preparar a diligência.
Essa informação serve apenas, como em qualquer requerimento, para o Ministério Público apresentar ao JIC as razões do seu pedido em ordem a convencê-lo da sua pertinência.

Tudo quando se enunciou não impede que, caso não tenha ainda sido ouvida a ofendida, continue a ser de toda a pertinência aquilatar da possibilidade de a mesma prestar depoimento nos termos do disposto no art. 271.º do CPPenal, tendo em conta a aparente natureza do contexto factual em causa.

Nestes termos, embora por fundamento diverso do que consta do despacho recorrido, deve ser negado provimento ao recurso.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em manter a decisão recorrida.
Sem tributação (art. 522.º, n.º 1, do CPPenal).

Porto, 10 de Fevereiro de 2021
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
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[1] Nem sucedeu até ao presente em outros inquéritos, não se compreendendo a presente “exigência”.
[2] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[3] Proc. n.º 2057/16.3T9STR-A.C1, relatado por Luís Teixeira, acessível in www.dgsi.pt.