Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
134/13.1GASPJ.C1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ALTERAÇÃO DE FACTOS
NULIDADE DA ACUSAÇÃO
Nº do Documento: RP20150408134/13.1GASPJ.C1.P1
Data do Acordão: 04/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se a acusação é omissa quanto a um dos elementos objectivos do crime imputado ao arguido não só é nula, como manifestamente infundada e como tal devia ter sido rejeitada.
II - O mecanismo da alteração de factos dos artºs 358º e 359º CPP não pode ser usado para justificar uma introdução de factos novos em julgamento, como forma de suprir a nulidade da acusação que foi indevidamente recebida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 134/13.1GASJP.C1.P1
São João da Pesqueira

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
(2ª secção criminal)

I. RELATÓRIO
No processo comum singular nº 134/13.1GASJP, da Instância Local de Moimenta da Beira, Secção de Competência Genérica, Comarca de Viseu, foi submetido a julgamento o arguido B…, com os demais sinais dos autos.
A sentença, proferida a 28 de março de 2014 e depositada no mesmo dia, tem o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decide o Tribunal:
I. Condenar o arguido, B…, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelos artigos 348º nº1 alínea a) e 69º nº1 alínea c) do Código Penal com referência ao artigo 152º nº3 do Código da Estrada, na pena principal de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de € 5,50 (cinco euros e cinquenta cêntimos), no montante global de € 495,00 (quatrocentos e noventa e cinco euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 meses, a contar, nos termos do artigo 69º nº3 daquele diploma e do artigo 500º nº2 do Código de Processo Penal, da entrega da carta de condução.
II. Advertir o arguido, nos termos dos artigos 69º nº3 do Código Penal e 500º nº2 do Código de Processo Penal, de que deverá proceder à entrega da carta de condução de que é titular, fazendo-o neste Tribunal ou em posto policial e no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º nº 1 alínea b) daquele Código.
III. Custas a cargo do arguido nos termos dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, bem como artigo 8º do Regulamento das Custas Processuais com referência à respectiva Tabela III em anexo.
IV. Comunique ao IMTT e à Autoridade Nacional para a Segurança Rodoviária.
Deposite (artigo 372º nº5 do CPP).
Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.”
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando a competente motivação, que remata com as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso tem como objeto a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
2. O recorrente vinha acusado da prática do crime de desobediência, p. e p. pelo art.º 348,nº 1 al. a) do código penal, por referência ao art.º 152 nº 3 do código da Estrada.
3. Sendo o recorrente condenado na prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, nº 1 a) do código penal e 69.º, nº 1 alínea c) do código penal por referencia ao artigo 152 nº 3 do código da estrada, na pena principal de 90 (noventa) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), perfazendo um total de 495,00 € (quatrocentos e noventa e cinco euros), bem como na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de seis meses, esta última a contar, nos termos do artigo 69º nº 3 daquele diploma e do artigo 500º nº 2 do código do processo penal, da entrega da carta de condução em tribunal ou em posto policial no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da presente sentença, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348º, n.º 1 alínea b) daquele código.
4. O recorrente não pode conformar-se com tal condenação, por entender não estarem provados os elementos constitutivos do crime de desobediência pelo qual vinha acusado e consequentemente aceitar a aplicação da pena acessória ao mesmo.
5. Para existir um crime de desobediência o recorrente teria de desobedecer a ordem da autoridade e no nosso entender tal não aconteceu,
6. O tribunal a quo julgou erradamente os factos, dando como provados os constantes em 1 a 5 da sentença e assim não deve ser- ex. vi folhas 107 dos autos.
7. No auto de notícia está escrito que houve recusa do teste ao álcool, sem que se diga se o teste era por ar expirado, pelo que não resulta de tal documento o facto constante no citado ponto 2, nomeadamente que exista ordem para se sujeitar ao exame de pesquisa de álcool fosse através de ar expirado, aliás nem sequer na prova oral/testemunhal gravada se diz, onde quer que seja, que foi dada ordem e qual o concreto exame de pesquisa de álcool e que se tenha sido dito ao arguido que "era por ar expirado".
8. Não basta dar "uma ordem", torna-se necessário que o arguido se tenha inteirado de facto do seu conteúdo e não se provou que arguido conhecia e queria todas as circunstâncias fácticas que o tipo descreve.
9. Quanto aos concretos pontos da matéria de facto, que consideramos terem sido erradamente julgados provados pelo tribunal a quo, sempre atenta a acusação que delimita os factos que o acusador imputa ao arguido, há na prova testemunhal várias contradições entre os depoimentos e a descrição do acontecimento pelos dois agentes intervenientes.
10. Resulta da prova testemunhal gravada, que o arguido não se encontrava a conduzir o trator, antes estava apeado e afastado do mesmo e que foi este que se dirigiu aos agentes da GNR para lhes perguntar o que estava a suceder na povoação onde reside para ali se encontrarem, na natural satisfação da curiosidade de observador da presença da GNR naquela ….
11. Mais resulta da mesma prova gravada que os agentes da autoridade nenhuma ordem lhe deram de sujeição ao" exame de exame de pesquisa de álcool através de ar expirado", antes o convidaram a tal, solicitando a sua adesão, mas jamais não lhe ordenaram tal acção.
12. No depoimento do Agente C…, a instâncias do Meritíssimo Juiz, a testemunha entrou em contradição com o seu depoimento ao minuto 16:26 a 17:46, refere-se:
Meritíssimo Juiz: Pronto o discurso... é isso que eu queria perceber... o Sr. disse que, o próprio discurso do arguido era suscitava dúvidas ou algo do género, nê porque? Consegue traduzir isso?
Agente C…: é assim nós estamos lá no fundo para uma situação ...mas ele ficou ... o Sr. B… chegou olhou muito assim para nos, muito sério, parado depois falou ... o que é que estão aqui a fazer ... o que é que a GNR esta a fazer... assim não posso, não vou estar a disser, não foi em tom irónico nem de gozo não vou tar a disser isso mas... uma pessoa as vezes poderia passar e não disser absolutamente nada e seguir a sua vida... o Sr. B… fez questão de intervir connosco por alguma razão.,.
13. Ora posteriormente e no seguimento do seu depoimento veio corrigir o que tinha dito, entrando assim em contradição, conforme se pode ver pelo seguimento do depoimento:
Meritíssimo Juiz: Mas foi por iniciativa do arguido que interagiu com o Sr. Agente ou foi o Sr. Agente que logo após ele sair do carro o abordou?
Agente C…: logo após abordei-o... mas depois tava-lhe a falar na, dos documentos, na questão de lhe fazer o teste do álcool e ele mesmo assim pois falou daquela questão... e ta aqui a GNR... e não sei que... quer disse...
14. No depoimento de uma das testemunhas de defesa apresentadas pelo recorrente, vem-se levantar a dúvida dos motivos pelos quais o recorrente foi "interpelado", a instância da defensora oficiosa de minuto 05:42 a 05:49,
Testemunha D…: não sei se foram eles que começar a falar ele... ou ele que começou a falar com eles... começaram a entrar em diálogo...
15. Já no âmbito de contradições entre os depoimentos dos Agente da GNR, há que atender a diversos momentos: No início do depoimento foi questionado o agente C… acerca de quem se encontrava junto do mesmo no momento a abordagem do recorrente, aquele referiu ao minuto 02:40 a 02:50, a instância da Procuradora adjunta o Ministério Público o seguinte:
MP: Sim?
Agente C…: Eu fiquei Junto da viatura,... o Cabo E… também estava ali junto mim e o Sargento é que esta um bocadinho mais distante.
No entanto no depoimento do agente E…, a instâncias da Procuradora adjunta do Ministério Público ao minuto 06:36 a 06:43, já se retiram outras conclusões:
Defensora Oficiosa:... quando o seu colega o abordou, o Sr. B… teve algum discurso menos próprio para o seu colega?
Agente E…: Eu só lá cheguei depois.
16. Já que no depoimento do agente C…, afirma este que o recorrente foi abordado pelos dois GNR, já o agente E…, refere o contrário: que chegou junto ao recorrente já em momento posterior.
17. Outra das contradições constantes no depoimentos dos GNR, refere-se ao momento da "abordagem" do recorrente, no depoimento do agente C… a instâncias da defensora oficiosa, ao minuto 11:00 a 11:10, refere que,
Defensora oficiosa: ... Então quando o Sr. Agente o abordou o Sr. B… já não estava no veículo...
Agente C…: É assim... tive de deixar que o Sr. B… estacionasse e saísse do veículo e assim o abordei de imediato.,.
18. Já no depoimento do agente E…, refere a instancias da defensora oficiosa a Minuto 06:21 å 06:25, que,
Defensora oficiosa: ...mas já estava fora do trator, estava em cima do trator? Agente E…: não, estava em cima do trator...
19. Já a testemunha D… referiu no seu depoimento a instâncias da defensora oficiosa no minuto 4:41 a 4:50 e 04:59 a 05:06
Testemunha D…:...os Senhores Guardas não saíam de o pé de mim. . .O Sr. B… quando parou o trator a 10/15m...parou o trator...
Defensora oficiosa: sim...
Testemunha D…: e dirigiu-se a pé para o café... -referindo-se a testemunha ao arguido, significando que este é que se dirigiu aos agentes, junto do café onde estes se encontravam com a testemunha em causa
E reitera,
Testemunha D…: portanto ao passar ...ao passar o Sr. B… pelos Sr. Guardas ... aquilo foi... prontos... quando me apercebi pronto, ...mas começaram logo a falar uns para os outros...
20. Quanto à velocidade a que vinha o trator, consta as minutos 03:45 a 03:49 da gravação
Meritíssimo Juiz: Peço desculpa tem de descrever aquilo que viu...
Agente C…: o trator vinha com um bocado de velocidade...
Já no depoimento do Agente E…, a instância do Meritíssimo juiz refere ao minuto 11.24 a 1:32, que,
Meritíssimo Juiz: E a velocidade?...
Agente E…: aaahhh... velocidade não era elevada, 15 a 20 km por hora...
21. A testemunha D…, ao minuto 09.53 a 10.02, diz a esclarecimento da defensora oficiosa: "não senti... não senti qualquer tipo de... ele estava a fumar um cigarro... quando ele chegou estava a fumar um cigarro... não senti qualquer tipo de hálito de álcool..
22. A instância do MP, minuto 04:15 a 04:18 da gravação consta:
Agente C…: ... é foi-lhe solicitado para efetuasse o teste do álcool...
E ainda, ao minuto 13.50 A 13.52, a instâncias da defensora oficiosa, a mesma testemunha diz: "... seguidamente foi-lhe pedido para fazer o teste do álcool..."
23. Nunca tendo sido dito pelas testemunhas GNR que tivessem dado uma ordem ao arguido, para se sujeitar ao teste de álcool no sangue através de ar expirado.
24. O que se pode concluir da prova produzida é que não foi dada uma ordem ao arguido, que este fosse condutor de veículo, para se sujeitar ao exame de pesquisa de álcool através de ar expirado, pelo que não podia o tribunal ter dado como provados os factos constante na douta sentença recorrida.
25. De que não existe ordem dada ao arguido e que este não estava a conduzir um veículo resulta até da própria fundamentação da sentença em crise, onde o julgador escreve que o "arguido havia conduzido" um tractor, portanto não se preparava para iniciar a condução e já havia terminado a mesma, estando o veículo estacionado.
26. Aliás em consonância com a acusação pública, onde jamais consta da mesma que o arguido estava a conduzir veiculo motorizado, tivesse terminado tal condução ou iria iniciar a mesma - apenas e só que "No dia 13 de Novembro de 2013, cerca das 19h20, o arguido... foi interpelado, na …, em …, nesta comarca de S. João da Pesqueira, por uma patrulhada GNR que lhe solicitou que se submetesse a exame de pesquisa de álcool...... não existindo na narração dos factos do libelo acusatório que o arguido tivesse conduzido, estava a conduzir ou se preparava para iniciar a condução, nem tão pouco se refere a veículo motorizado ou que o arguido fosse peão interveniente em acidente de viação.
27. De notar, por ser relevante para a decisão justa da causa, que é o próprio tribunal a quo que a folhas 108 da sentença declara que foi perguntado ao arguido "se aceitava" submeter-se ao exame de alcoolemia.
28. Também da acusação pública resulta que a patrulha da GNR "solicitou" ao arguido que se submetesse a exame de pesquisa de álcool.
29. Face à narração dos factos constantes da acusação, resulta que os mesmos não constituem crime, isto é, não se verificam os requisitos do crime que vinha o arguido acusado, pois que nos termos do art. 348, nº 1 al. a) do código penal, disposição legal constante da acusação como aplicável, o arguido tinha de desobedecer a uma "ordem", e é punido por desobediência se disposição legal o cominar.
30. Resulta da acusação publica e da fundamentação constante a folhas 107 dos autos, isto é na própria sentença em crise, que ao arguido não foi dada uma ordem, mas feito um convite, nas palavras do ministério público "solicitou-se", nas do magistrado judicial do tribunal a quo "se aceitava" submeter-se ao exame de alcoolemia.
31. Acrescendo que, da "ordem" em causa, caso existisse, deveria constar e provar-se qual o concreto teste ou exame pedido ao arguido.
32. Invoca ainda a acusação pública como disposição aplicável, face ao art. 348, n.º 1 al. a) do código penal, atenta a data dos factos, o art. 152, n.º 3 do código da estrada, que dispõe " as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool são punidas por crime de desobediência".
Ou seja,
a) Os condutores; - denotando-se que não consta da acusação que o arguido conduzisse, acabava de conduzir ou ira conduzir veículo motorizado;
b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de transito - sendo que tal facto não consta também da acusação.
33. Face à evidente falta de factos na acusação para julgar e condenar o arguido, veio na data de 5-3-2014 em acto o tribunal a determinar a inclusão "na matéria de facto dada corno provado o seguinte facto:
"1- No dia 13.11.2013, cerca das 19: 20 horas, o arguido conduzia o respectivo tractor, estacionando-o na …, …, nesta comarca de São João da Pesqueira."
34. Sendo que, veio após a fazer constar na sentença em crise, nos factos provados o seguinte: "quando acabara de conduzir e estacionar o respectivo tractor"- note-se e já não "conduzia" o tractor, estacionando-o.
35. Perante a alteração dos factos constantes na acusação pública, na acta de 5.3.2014, bem como "a alteração da qualificação jurídica dos factos, punindo-se o arguido pelo crime de que vem acusado, com a pena acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69, n.º 1 al. c) do código penal", a defesa requereu prazo para defesa escrita, o que fez a folhas dos autos.
36. O arguido entende que o tribunal procedeu a uma alteração substancial dos factos nos termos do art. 359 do CPP, pois a introdução do facto "No dia 13.11.2013, cerca das 19: 20 horas, o arguido conduzia o respectivo tractor, estacionando-o na …, …, nesta comarca de São João da Pesqueira", como fez o tribunal a quo implica o acrescentar de factos pelo julgador que não constavam da acusação, assim a alterando e "corrigindo" para que consiga o julgador para efeitos de decisão condenatória julgar que se verifica a factualidade típica e a consumação do crime de que vinha acusado, além de implicar agravação da conduta do arguido.
37. A acusação pública, e reitera-se por ser deveras importante, consta apenas que "no dia 13 de Novembro de 2013, cerca das 19:20, o arguido ... foi interpelado, na …, em …", nada se dizendo acerca de estar ou não a conduzir e à cerca do tractor (veículo motorizado).
38. É coisa muito diferente o arguido foi interpelado (e mais nada ...) e outra coisa é dizer-se que conduzia ou acabava de conduzir um veículo automóvel (tractor), que é o que o tribunal acrescenta, alterando a acusação e introduzindo um facto em falta e que para a acusação proceder pretende o julgador dar como provado.
39. É a acusação que define o objecto do processo, devendo esta integrar a descrição fáctica dos acontecimentos, bem como todas as disposições legalmente aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica - ex vi art. 283, n.º 3 do CPP.
40. A alteração da qualificação efectuada pelo juiz do julgamento, mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação, uma vez que vem agravar a conduta e a existência de factos que são requisitos do preenchimento do tipo de crime pelo qual o arguido vinha acusado.
41. No seguimento de tal argumentação vem também no despacho proferido o tribunal a quo acrescentar à acusação a pena acessória de proibição de condução prevista no artigo 69, n.º 1 al. c) do CPP, no entanto o argumento utilizado pelo douto despacho não se aplica ao crime pelo qual o arguido vinha acusado- crime de desobediência.
42. O acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2008 de 25-06.2008, refere o seguinte: "Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob influencia de estupefaciente ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação entre as disposições legais aplicáveis, do nº 1 do artigo 69 do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 358 do Código do Processo Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 379 deste último diploma legal."
43. No elenco de crimes a que se refere o douto acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2008 não está o crime de desobediência, previsto e punido nos termos do artigo 348 n.º 1 al. a) do CPP e é este pelo qual o arguido vinha acusado, não cabendo nesse elenco por ser um crime de menor gravidade
44. O tribunal a quo após a audiência final altera e acrescenta factos à acusação, no caso, introduzindo o facto de condução de veículo automóvel em via publica pelo arguido e altera ainda a qualificação jurídica, pretendendo aplicar uma disposição legal e uma pena acessória, não indicada na acusação.
45.Tais alterações violam o princípio do acusatório, da legalidade e agravam a conduta e a situação jurídica do arguido e também a pena.
46. O fundamento jurisprudencial invocado pelo tribunal não se aplica ao caso concreto.
47. Trata-se de uma alteração substancial dos factos, a que o arguido se opôs, sendo em consequência nulo o despacho que assim decidiu e nula é a sentença que julgou provado tais factos.
48. Na verdade, a peça acusatória não identifica os factos relevantes para o preenchimento do tipo legal de crime em causa e veio o julgador fazê-lo, em vez de absolver o arguido,
49. Conforme consta do art. 13º e 348º da CP, o crime de desobediência não pode ser cometido por negligência, devendo o mesmo ser consciente e intencional e é manifesto que o arguido não tinha consciência da ilicitude que lhe é imputada, não havendo culpa nos termos do art. 17 do CP.
50. Assim não se verificou o preenchimento do tipo subjectivo do crime de desobediência, pois para tal tinha que se traduzir no incumprimento voluntario e consciente pelo recorrente o que não se verificou.
51. Há que invocar dos princípios norteadores do direito penal o "in dubio pro reo", no acórdão do STJ, no processo nº 07P1769, www.dgsi.pt, refere o seguinte: "o princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa...", devendo assim por observância aos referidos princípios invocados, tal duvida ser valorada no sentido de absolver o arguido.
52. No que tange à determinação da pena principal de multa o tribunal a quo na moldura penal abstrata de 10 a 120 dias, fixou a pena concreta em 90 dias de multa à taxa diária de 5,50€ e na pena acessória de proibição de conduzir com o limite mínimo de três meses e máximo de oito meses, decide fixar a sua duração em 6 meses.
53. O tribunal recorrido condena o arguido em penas muito próximas dos limites máximos (90 dias quando o limite é de 10 a 120 dias e 6 meses de proibição de conduzir, quanto os limites tidos em conta pelo tribunal são de três a oito meses, conforme fez constar da sentença).
54. Sendo de considerar que conforme dita o tribunal a quo, as exigências de prevenção são medianas, o arguido tem bom comportamento, não causou qualquer acidente e não causou perigo rodoviário, o crime de que vem acusado não se pode ter como grave no caso concreto, trata-se de uma pessoa trabalhadora que tem poucas posses (não tem património, vivendo de trabalho no campo e vive em casa dos pais), estando social e familiarmente inserido, tendo lhe sido deferido o pedido de proteção jurídica.
55. O tribunal a quo ao condenar o recorrente na pena de multa diária de 90 dias e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, violou os art.ºs 40, nºs1 e 2, 71, nº1 e 2 e o 72, nº 2 al. d) todos do Código Penal, por excesso, desadequação e desproporcionalidade.
56. O arguido necessita da carta de condução para poder tripular o tractor agrícola, pois se assim não for dada a idade dos pais com quem vive, os prédios rústicos que cultivam ficam ao abandono pois o arguido e os pais não têm condições económicas para suportar o pagamento de um salário a quem o conduza e transporte os frutos colhidos, que servem à alimentação da família do arguido, além de que impede ou muito dificulta que o arguido seja contratado para trabalhar para outrem, pois que é das regras da experiência comum, que para se ter emprego nos tempos actuais é necessário ter carta de condução, particularmente no local de residência do arguido (interior nortenho de Portugal) onde não há rede de transportes públicos.
57. Está inclusive provado que o arguido vive em casa dos pais, trabalha como agricultor para os pais e aufere 240,00€ mensais.
58. Na fixação da medida da pena acessória de proibição de conduzir é relevante o facto provado a 6 de folhas 107 dos autos, ou seja, o arguido não tem carro, pelo que a circulação através de tractor agrícola é fundamental à vida do arguido e família, sendo as exigências de prevenção especial e geral diminutas, acresce que o único meio de transporte do arguido não atingir velocidades elevadas, se limitar a circulação em zonas rurais e ser um meio também de trabalho e não apresentar perigosidade rodoviária que se possa ter como considerável.
59. O tribunal a quo priva o arguido do único meio de transporte e de trabalho que este usa, durante seis meses, ao fixar a pena acessória de proibição de conduzir durante tal período de tempo, ficando o arguido deveras fragilizado nas suas já muito parcas condições económicas de vida.
60. O tribunal a quo violou a lei e fez errada aplicação da mesma ao caso concreto, principalmente das normas legais art. 348, n.º1 al. a) do CP; art. 152, n.º 3 do Código da Estrada; art. 69 do CPP; art. 283, n.º3 do CPP; art.358, 359 e 379 do CPP e ainda o art. 17 do CP.
61. A sentença é nula.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V/Exas. deve o arguido ser absolvido do crime de desobediência.
Caso assim não se entenda deve ser dispensado de pena.
Por ultimo, a manter-se a condenação deve a mesma ser alterada fixando-se o quantitativo de número de dias da pena de multa e o período de proibição de conduzir em quantitativo inferior ao determinado e decidido pelo tribunal a quo.”
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O Digno Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
O recurso foi admitido, por despacho de 10.10.2014 (cfr. fls. 202).
O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, igualmente no sentido da improcedência do recurso.
Foi cumprido o artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal).
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1. Questões a decidir
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, as questões a decidir são:
A) Nulidade da sentença por alteração substancial dos factos;
B) Impugnação da matéria de facto, por erro de julgamento; o princípio do in dubio pro reo;
C) Exclusão da culpa, por falta de consciência da ilicitude, nos termos do artigo 17º do Código Penal;
D) Quantum das penas principal e acessória.
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2. Factos Provados
Segue-se a enumeração dos factos provados e respetiva motivação, constantes da sentença recorrida:
“Factos Provados
Da discussão da causa em julgamento resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. No dia 13 de Novembro de 2013, cerca das 19h20 e quando acabara de conduzir e estacionar o respectivo tractor na …, em …, nesta comarca de S. João da Pesqueira, o arguido B… foi interpelado por uma patrulha da GNR.
2. A referida patrulha da GNR solicitou ao arguido que se submetesse a exame de pesquisa de álcool, advertindo-o que a recusa à sujeição ao aludido teste o faria incorrer na prática do crime de desobediência.
3. O arguido, não obstante a referida advertência, recusou-se a submeter-se ao exame de pesquisa de álcool.
4. Ao proceder como descrito, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de desobedecer a uma ordem que sabia legítima por resultar directamente de norma legal que a emanava e lhe fora regularmente comunicada, tanto mais que tinha sido expressamente advertido que a recusa de se submeter ao teste para pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática do crime de desobediência.
5. Mais sabia o arguido que a descrita conduta era proibida e punida por lei e que o fazia incorrer em responsabilidade criminal.
6. O arguido vive em casa dos pais, sendo solteiro e não tendo filhos. Trabalha como agricultor, auferindo € 240,00 - € 260,00, mensais. Não apresenta despesas com o pagamento de renda ou empréstimo para aquisição de habitação, não sendo possuidor de carro.
7. O arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais:
> Condenação em 11/11/2009, pela prática em 19/12/2008, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos artigos 292º nº1 e 69º do Código Penal, na pena principal de 55 dias de multa à taxa diária de € 6,00, no montante global de € 330,00, e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 5 meses, condenação essa transitada em julgado em 9/2/2009. A pena de multa encontra-se extinta pelo cumprimento.
Factos não provados:
Com relevância para a decisão da causa e da discussão da mesma em julgamento, não resultaram, “não provados” quaisquer factos.
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Motivação da decisão de facto:
O Tribunal formou a sua convicção com base no auto de notícia de fls. 3-4 e nos depoimentos dos agentes da GNR, C… e E…, mostrando-se menos relevantes, até pelo conhecimento apenas parcial dos factos por parte das duas testemunhas, os depoimentos dos depoentes, F… e D… e não tendo, de resto, o arguido, como constitui seu direito, prestado declarações em julgamento.
Com efeito, pelos dois agentes da GNR, C… e E… (o primeiro, agente responsável pela elaboração do auto de notícia de fls. 3-4) foi confirmado, de forma segura, isenta e, por isso mesmo, credível, ter o arguido, na data, hora e local referidos no ponto 1) dos factos provados, conduzido o respectivo veículo (um tractor) na …, fazendo-o, de forma suspeita (aos zigue-zagues) e estacionando-o posteriormente por detrás do jipe da patrulha daquela polícia que se encontrava no local em razão de uma outra ocorrência.
Mais referido foi pelos referidos agentes da GNR que, em função do modo como o arguido havia conduzido o respectivo veículo (aos zigue-zagues), aqueles resolveram interpelá-lo, notando que o mesmo emanava um cheiro a álcool, o que levou a testemunha, C…, a perguntar àquele se aceitava submeter-se ao exame de alcoolemia, o que o mesmo recusou, mesmo depois de muitas tentativas por parte dos referidos agentes policiais no sentido de o convencer a tanto e ainda que advertido, por diversas vezes, de que tal recusa o faria incorrer na prática de um crime de desobediência.
Como referido ainda pelas duas testemunhas, depois de verificarem que o arguido se recusava terminantemente a submeter-se ao referido teste de álcool, o mesmo foi encaminhado para o carro patrulha a fim de ser detido e apresentado em tribunal.
Nesta sequência, saliente-se que não infirmaram tais depoimentos – reitere-se - isentos e convictos dos referidos agentes da GNR, as declarações das testemunhas, F… e D… que igualmente se encontravam no local à hora dos factos (sendo o segundo depoente o alvo primacial da intervenção da referida polícia, na medida tinha sido denunciado por um crime de ameaça com arma, pretendendo a referida autoridade revistar o respectivo carro).
Com efeito, tais testemunhas, confirmando a condução e estacionamento por parte do arguido do respectivo tractor, apenas referiram que tais manobras não tinham sido realizadas de forma suspeita (nomeadamente, quanto à condução aos zigue-zagues), não tendo, de resto, os referidos depoentes ouvido o teor da conversa entre os referidos agentes da GNR e o arguido, porque se encontravam mais afastados, nem tendo tampouco referido qualquer outra circunstância donde resultasse ser a recusa deste em se submeter ao exame de álcool justificada.
Ainda que assim não fosse, saliente-se que qualquer veículo pode ser interpelado pela polícia no sentido de o respectivo condutor ser submetido a teste de álcool, não se afigurando necessário para tanto, e nos termos legais, que existam indícios do consumo de tal substância ou de uma condução perigosa, razão pela qual sempre tais depoimentos se revelariam inócuos para a infirmação dos depoimentos das referidas testemunhas, agentes da GNR.
Eis, pois, por que razão, na falta de qualquer meio de prova em sentido contrário e em face da credibilidade dos depoimentos dos referidos agentes da GNR, se deu como provado o teor dos pontos 1) a 3) dos factos provados.
Tendo em conta a prova de que o arguido foi advertido quanto às consequências criminais da recusa de se submeter ao exame de alcoolemia, dúvidas também não oferece a comprovação dos pontos 4) e 5) dos factos provados.
O teor dos pontos 6) e 7) da matéria de facto dada como provada resulta, respectivamente, das declarações do arguido em julgamento e do CRC junto nos autos.”
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3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O arguido/recorrente B… alega ter sido condenado por factos diversos dos constantes da acusação e que integram uma alteração substancial destes, não obstante a sua oposição, o que implica a nulidade da sentença, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
Efetivamente, na sessão da audiência do dia 5 de março de 2014 e conforme consta da respetiva ata (cfr. fls. 89 e 90), foi proferido um despacho, com o seguinte teor:
“Tendo em conta o crime que o arguido vem acusado, determina o tribunal, para melhor contextualização dos factos descritos na acusação e nos termos do disposto no art.º 358º, nº 1 do C.P.P. (e só para tal finalidade), a inclusão na matéria dada como provada do seguinte facto:
1 – No dia 13.11.2013, cerca das 19:20 horas, o arguido conduzia o respetivo trator, estacionando-o na …, …, nesta comarca de São João da Pesqueira.
Mais comunica o tribunal, nos termos do disposto no art.º 358º, nº 1 do C.P.P., a referida alteração não substancial dos factos.
Acresce que, compulsada a acusação, verifica-se não mencionar a mesma a possibilidade de punição do arguido pelo crime de que vem acusado, com a pena acessória de proibição de conduzir prevista no art.º 69º, nº 1, al. c) do C. Penal.
Tendo em conta o AUJ n.º 7/2008 de 25.06.2008, deve o tribunal, sempre que entenda, nos termos da lei, aplicar tal pena acessória e comunicar ao arguido a referida alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos do disposto no art.º 358º, nºs 1 e 3 do C.PP, o que se faz, nos termos da aludida jurisprudência uniformizada.”
A tal alteração opôs-se o arguido, defendendo que a mesma integra uma alteração substancial dos factos, posição que reafirma no recurso.
Vejamos.
Compulsados os autos, constamos que o processo foi remetido para julgamento sem ter havido instrução, tendo a acusação sido recebida, nos termos do disposto no artigo 312º do Código de Processo Penal.
Assim, uma vez chegados à audiência, dada a natureza acusatória do nosso sistema processual penal, o tribunal a quo, de julgamento, estava naturalmente subordinado ao princípio da vinculação temática, só podendo atender a factos novos, diversos dos constantes na acusação, nos precisos termos dos artigos 358º e 359º do Código de Processo Penal.
Acontece que, in casu, apesar de na acusação se imputar ao arguido a prática “como autor material, de um (1) crime de desobediência, p. e p. pelos arts. 348º, nº 1, al. a) do Código Penal e 152ª, nº 3 do Código da Estrada”, da factualidade nela descrita consta apenas do seguinte:
“No dia 13 de Novembro de 2013, cerca das 19h20, o arguido B… foi interpelado, na …, em …, nesta comarca de S. João da Pesqueira, por uma patrulha da GNR que lhe solicitou que se submetesse a exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado, o que o arguido se recusou a fazer.
O arguido foi advertido pelos militares da GNR que a sua recusa à sujeição ao teste o fazia incorrer na prática do crime de desobediência.
Ao proceder como descrito, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de desobedecer a uma ordem que sabia legítima por resultar directamente de norma legal que a emanava e lhe fora regularmente comunicada, tanto mais que tinha sido expressamente advertido que a recusa de se submeter ao teste para pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática do crime de desobediência.
Mais sabia o arguido que a descrita conduta era proibida e punida por lei e que o fazia incorrer em responsabilidade criminal.”
Ora, como ressalta à evidência e desde já adiantamos, a factualidade vertida na acusação não integra a prática do imputado crime de desobediência, nem de nenhum outro ilícito penal.
Senão vejamos.
A norma incriminadora do artigo 348º, n.º 1 a), do Código Penal, dispõe que:
“Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se, uma disposição legal cominar, no caso, a punição de desobediência simples.”
Os elementos típicos da infração (desobediência simples), são assim:
a) a existência de uma ordem ou mandado substancialmente legítimo; a regular comunicação da ordem ou mandado; a emanação de autoridade ou funcionário competente; a existência de uma disposição legal a cominar, no caso, a punição da desobediência simples ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação; o não acatamento da ordem ou mandado (elementos objetivos);
b) o dolo, revelado no conhecimento pelo agente da situação típica e a actuação ciente da ilicitude da sua conduta (elementos subjetivos).
A ordem emanada pela autoridade competente para o ato, há-de ser formal e substancialmente legítima, para que a sua inobservância possa merecer tutela penal. Tendo o ato ordenado de estar numa relação de conformidade com a lei ou por ela ser autorizado.
Sendo de considerar ilegal o ato que careça de fundamentação ou que viole os princípios constitucionais de imparcialidade, de justiça e da necessidade, adequação ou proporcionalidade.
Revertendo novamente ao caso concreto, e partindo do princípio que a utilização na acusação do verbo solicitar tem o significado de ordenar (o que efetivamente também é duvidoso), temos que o ato ordenado ao arguido foi que se submetesse a exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado.
Ato que, na mesma peça processual acusatória surge, na parte das disposições legais aplicáveis, legitimado por referência ao artigo 152º do Código da Estrada.
Contudo, nos termos desta mesma disposição legal, apenas “devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: a) Os condutores; b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito; c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.”
Sendo, no nº 3 da mesma norma, cominada com a prática do crime de desobediência, unicamente a conduta das pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1, que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção de estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas.
Ora, da acusação formulada nos autos consta apenas que o arguido se encontrava na …, em …, não sendo por isso possível dela concluir que o arguido conduzisse um qualquer veículo na via pública, fosse um peão interveniente num acidente de viação ou, sequer, que se preparasse para iniciar a condução. Não sendo indicado qualquer motivo que legitime a ordem que lhe foi dada.
Neste contexto, temos de concluir que a acusação é omissa quanto a um dos elementos objetivos do crime imputado ao arguido, concretamente, a legalidade substancial da ordem que lhe foi dada.
Como tal, a descrita conduta do arguido não integra um comportamento tipificado pela lei como crime de desobediência, sendo, inclusive, absolutamente inócua em termos jurídico-penais.
De onde decorre a nulidade da acusação, porque proferida em desrespeito ao disposto no artigo no artigo 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, que impõe que ela contenha “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”.
Pelo que, tendo o processo seguido para julgamento, sem ter havido instrução, deveria a acusação ter sido rejeitada, não só por ser nula, mas também por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nºs 2, alínea a) e 3, alínea b) do Código de Processo Penal.
Só que tal não aconteceu e, nestas circunstâncias, em audiência, o Tribunal a quo tentou resolver o problema, integrando em julgamento factos novos, que davam conta de que, à altura, o arguido conduzia um veículo motorizado na via pública, o que conferia legitimidade substancial à ordem da GNR, para que se submetesse ao exame de pesquisa de álcool no sangue através do ar expirado. E, assim, juntamente com os factos descritos na peça acusatória, seria já possível considerar a conduta do arguido como típica.
Só que esta “solução” não se pode considerar a coberto do mecanismo da alteração não substancial dos factos, como entendeu o tribunal a quo.
É que, nos termos da definição legal do artigo 1º, al. f) do Código de Processo Penal, alteração substancial dos factos é “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
E, in casu, foram acrescentados elementos constitutivos do próprio tipo objetivo, com potencialidade para transformar uma conduta jurídico-penalmente inócua numa conduta típica, o que configura uma alteração substancial dos factos.
Contudo, aqui, nem mesmo a figura jurídica da alteração substancial dos factos se mostra adequada ao caso, na medida em que a integração dos factos novos não implica a imputação de crime diverso, implica é que uma conduta atípica, sem relevância jurídico criminal, se transforme em conduta típica, ou seja, numa conduta criminosa.
E, como resulta diretamente do disposto nos artigos 1º, alínea f), 358º e 359º do Código de Processo Penal, o mecanismo legal da alteração substancial e não substancial dos factos situa-se num outro plano, tendo sempre como pressuposto que na acusação, ou na pronúncia, se encontram devidamente descritos factos integradores de um tipo de crime.
Não se pode assim, em total desvirtuação dos objetivos do instituto da alteração substancial dos factos, usá-lo para justificar uma introdução de factos novos em julgamento, como forma de suprir a nulidade de uma acusação, que foi indevidamente recebida pelo juiz.
Assim, chegados à fase da audiência com uma acusação onde é descrita uma conduta atípica, não há mecanismo legal que permita reparar essa verdadeira anomalia do processo.
Neste sentido, ainda que quanto à falta, na acusação, de factos integradores do elemento subjetivo, foi inclusive já proferida pelo STJ decisão uniformizadora de jurisprudência, através do acórdão datado de 20.11.2014, proferido no processo 17/07.4GBORQ.E2-A.S1, publicado no DR, I série, nº 18, 27 de janeiro de 2015, p. 582 – 597 (disponível, também, em www.dgsi.pt), com o seguinte sumário:
“A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.”
De tudo assim decorrendo que, in casu, não sendo possível considerar a factualidade nova introduzida em julgamento pelo tribunal a quo e não constituindo crime a factualidade descrita na acusação, outra solução não resta senão a absolvição do arguido.
Procedendo o recurso por esta via e ficando prejudicado o conhecimento de todas as outras questões suscitadas.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso, em consequência do que se revoga a sentença recorrida, absolvendo-se o arguido do crime de desobediência que lhe era imputado na acusação.
Sem custas.
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Porto, 8 de abril de 2015
(Elaborado e revisto pela relatora)
Fátima Furtado
Elsa Paixão