Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6651/99.7TVPRT-J.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOSÉ SIMÕES
Descritores: INTERDIÇÃO
INABILITAÇÃO
SUCESSÃO DE LEIS NO TEMPO
PRINCÍPIO DA GESTÃO PROCESSUAL
Nº do Documento: RP201907106651/99.7TVPRT-J.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 700-A, FLS 182-185)
Área Temática: .
Sumário: I - A revogação operada pela Lei nº 49/2018 de 14/08, relativamente ao artº 948º al. d) do CPCivil tem aplicação imediata aos processos de interdição e inabilitação pendentes à data da sua entrada em vigor (14/02/2019).
II - Tendo tal Lei conferido ao Juiz o poder-dever de gestão processual, nada impõe agora que se proceda à audição do maior acompanhado.
III - As declarações do maior acompanhado mostram-se reguladas no artº 466º do CPCivil que remete para o artº 452º/2 do mesmo código, sendo, por isso, obrigatório indicar, de forma discriminada, no requerimento em que se requerem tais declarações, os factos sobre que hão de recair as mesmas.
IV - Tendo-se em tal requerimento apenas dito, de forma genérica, que a inquirição do maior acompanhado, iria esclarecer as questões suscitadas nos autos e no julgamento, não se mostram observadas as exigências impostas pelo aludido preceito legal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pº nº 6651/99.7TVPRT-J.P1
Apelação
(443)

Sumário:
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ACÓRDÃO

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO

B…, curadora do inabilitado C…, veio em 20/12/2018, nos autos de prestação de contas (apenso H) requerer para além do mais, que fosse inquirido o inabilitado, por se lhe afigurar ser indispensável a sua audição, dado o mesmo estar na posse dos conhecimentos que permitem esclarecer as questões suscitadas nos autos.

Na audiência de discussão e julgamento de 09/01/2019, (que foi adiada) após ter sida dada a palavra para se pronunciarem às ilustres mandatárias do autor e interveniente principal (as quais disseram nada terem a opor quanto à prestação de declarações de parte) e à Digna Magistrada do Mº Pº (que promoveu o indeferimento), foi proferido despacho a indeferir o requerido pela curadora.

Inconformada, veio a curadora apelar, apresentando alegações, cujas conclusões são as seguintes:
A) Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido na audiência de julgamento que teve lugar no dia 09.01.2019, transcrito na respectiva acta, na parte em que indeferiu a audição do inabilitado C…, requerida pela ora recorrente no ponto 3 do seu requerimento de 20 de Dezembro de 2018 (fls. 924 dos autos).
B) O despacho recorrido infringiu o disposto na alínea d) do artº. 948º do CPC, que determina a obrigatoriedade do inabilitado ser ouvido sobre as contas prestadas.
C) O regime legal da obrigatoriedade da audição do inabilitado, instituída, por aquela disposição de lei, visando a defesa dos interesses do inabilitado, é distinta e diferente do regime jurídico próprio do depoimento de parte regulamentado entre outros, pelos artºs. 452º e 461º do CPC.
D) O que vale por dizer que o regime da alínea d) do cit. artº. 948º não está sujeito ao espartilho e condicionamento do depoimento de parte.
E) A confusão dos dois regimes está na base do ilegal indeferimento da audição do inabilitado.
F) A alínea d) daquele artº. 948º considera – e bem – que são obrigatórios e relevantes as opiniões do inabilitado sobre o seu património e respectivas contas, embora esteja inibido de gerir esse seu património.
Nisso se distingue da situação de interdito.
G) Essa relevância é indispensável à boa decisão da causa, uma vez que é susceptível de trazer elementos importantes para a determinação da existência e da justeza das contas apresentadas.
H) É, assim, o aliás douto despacho recorrido nulo por inobservância do disposto na alínea d) do cit. artº. 948º, devendo ser revogado e ordenada a audição do inabilitado sobre as contas prestadas nestes autos.
I) Em cumprimento do disposto no nº 2 do artº. 637º do cit. Código, indica-se que o fundamento específico da recorribilidade é a inobservância pelo despacho recorrido do estabelecido obrigatoriamente na alínea d) do artº. 948º do CPC.
Nos termos expostos, deve o despacho recorrido ser revogado e ordenada a audição do inabilitado C… sobre as contas prestadas nestes autos em tudo quanto possam por ele serem esclarecidas.

Foram apresentadas contra-alegações pelo Mº Pº, sendo as respectivas conclusões do seguinte teor:
1- A recorrente requereu a audição do maior acompanhado C… no seu requerimento de 20/12/2018.
2- Tendo aquele comparecido foi dispensada a sua audição, sem que tivesse havido oposição da recorrente:
3- Entretanto, a recorrente considerou que a audição de C… é indispensável ao bom julgamento do pleito e requereu a sua audição.
4- O que veio a ser indeferido, pelo Tribunal a quo.
5- A recorrente alega que o despacho recorrido é ilegal por violação do disposto no art.º 948.º al. d) do Código de Processo Civil.
6- Ora, este normativo foi, entretanto, revogado pela Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, que entrou recentemente em vigor.
7- O art.º 26.º, do referido diploma contém normas referentes à aplicação da lei no tempo, desde logo, aos processos pendentes.
8- Daí não decorre que o artigo 948.º al. d) do Código de Processo Civil, apesar de revogado, se continue a aplicar aos processos pendentes.
10- Com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto, não existe assim qualquer imposição legal de audição do maior acompanhado nos processos de prestação de contas contra o acompanhante.
11- Acresce que, para além da anomalia psíquica - que determinou inicialmente a interdição de C… e posteriormente a inabilitação, o avanço da idade e a sua integração em lar residencial, longe da família, bem como a fragilidade emocional decorrente de tudo isso, leva-nos a concluir que a audição de C…, maior acompanhado, é irrelevante, sendo um acto meramente dilatório.
12- Assim, deverá ser indeferida a pretensão da recorrente.
Pelo exposto, o presente recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.

Foram dispensados os vistos legais.

II – QUESTÕES A RESOLVER
Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente importando decidir as questões nelas colocadas – e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso –, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – artºs. 635º, 639º e 663º, todos do Código Processo Civil.
Assim, em face das conclusões apresentadas, é a seguinte a questão a resolver por este Tribunal:
- Saber se ao indeferir a audição do inabilitado (agora maior acompanhado), o Tribunal a quo violou o disposto no artº 948º al. d) do CPCivil.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consideramos pertinentes os seguintes factos:
- Na audiência de julgamento realizada no dia 05/12/2018, tendo estado presente o inabilitado, a Il. Mandatária do A. prescindiu do depoimento de parte do mesmo.
- Sem oposição dos restantes intervenientes processuais.

O despacho recorrido é do seguinte teor:
«Requerimento refª 31053426 (ponto 3, de fls. 924) – Dir-se-á que, tendo o inabilitado estado presente na data agendada para o início da audiência de julgamento, com vista a prestar declarações de parte, declarações que foram prescindidas sem qualquer reparo pela curadora, e não se mostrando indicada a concreta matéria a que se pretende que o inabilitado preste declarações (como é exigência do nº 2 do artigo 452º do Código de Processo Civil, a qual decorre da remissão do artigo 466º do C.P.Civil para o regime do depoimento de parte), e estando em causa neste processo apenas questões de natureza patrimonial, que, por definição, estão excluídas do âmbito da capacidade do inabilitado, não se vislumbra relevância na diligência requerida, e o requerimento não cumpre as formalidades legais, pelo que se indefere».

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Vem o presente recurso interposto pela curadora do inabilitado, do despacho de indeferimento da audição deste (agora maior acompanhado) nos autos de prestação de contas, pugnando pela audição deste.
Na audiência prévia realizada em 19/10/2016, nos presentes autos de prestação de contas, foi requerida pela ilustre mandatária do requerente, o depoimento de parte do inabilitado C…, à matéria dos artºs 19º, 20º, 36º, 45º, 52º e 53º da contestação.
Sem oposição, foi admitido o requerido depoimento de parte do inabilitado, na medida do que lhe fosse possível prestar.
Na audiência de julgamento de 05/12/2018, foi prescindido o depoimento de parte do maior acompanhado (inabilitado) sem que a ora recorrente se opusesse.
Por requerimento de 20/12/2018, a ora recorrente veio requerer a audição do maior acompanhado, por se lhe afigurar indispensável a sua audição, calma e paciente, uma vez que o inabilitado está na posse dos conhecimentos que permitem esclarecer as questões suscitadas nos autos e no julgamento.
O Tribunal a quo após dar cumprimento ao princípio do contraditório (artº 3º/3 do CPC) veio a indeferir a pretensão da ora recorrente, pelas razões que decorrem do despacho que supra se transcreveu.
A recorrente sustenta que o Tribunal a quo ao proferir tal despacho violou o disposto no artº 948º al. d) do CPCivil.
Vejamos se lhe assiste razão.
Tal como bem refere o Mº Pº nas suas contra-alegações de recurso, tal preceito legal foi revogado pelo artº 24º b) da Lei nº 49/2018 de 14/08.
E de acordo com o artº 26º da mesma Lei, com a epígrafe “Aplicação no tempo”, tal revogação tem aplicação imediata aos processos de interdição e de inabilitação pendentes aquando da sua entrada em vigor (nº 1) e o juiz utilizará os seus poderes de gestão processual e de adequação formal para proceder às adaptações necessárias nos processos pendentes (nº 2).
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 25º de tal Lei, a mesma entrou em vigor 180 dias após a sua publicação, ou seja, entrou em vigor em 14/02/2019, mostrando-se, assim, de facto, neste momento, tal norma (artº 948º al. d) do CPCivil) revogada, o que não ocorria à data da prolacção do despacho recorrido que foi proferido em 09/01/2019.
Assim, tendo determinado tal Lei que a revogação do artº 948º al. d) do CPCivil tem aplicação imediata e conferindo ao Juiz o poder-dever de gestão processual, nada impõe agora que se proceda à audição do maior acompanhado.
Deste modo, tratando-se de uma questão de aplicação da lei no tempo, neste momento, não é obrigatória a audição do inabilitado (maior acompanhado) sobre as contas prestadas pela curadora (representante do mesmo), embora o fosse à data da prolacção do despacho recorrido.
Importa, no entanto, aferir se sendo obrigatória a audição do inabilitado à data do requerimento para audição do mesmo e à data do próprio despacho recorrido, se o requerimento apresentado pela curadora/representante do acompanhado observa as formalidades legais e se é indispensável a audição deste.
O Tribunal recorrido entendeu indeferir o requerido não só porque não foi indicada a concreta matéria de facto a que o inabilitado deve prestar declarações, mas também porque estando em causa neste processo apenas questões de natureza patrimonial, as quais estão por definição excluídas do âmbito da capacidade do inabilitado e ainda porque o requerimento não obedece ao formalismo legal.
As declarações de parte mostram-se reguladas no artº 466º do CPCivil que remete para o artº 452º nº 2 do mesmo código, ou seja, quando sejam requeridas declarações de parte, deve indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que hão de recair tais declarações.
De facto, “sendo certo que as declarações de parte não podem incidir indiscriminadamente sobre toda a matéria de facto alegada, mas apenas sobre a matéria factual de que o declarante tenha conhecimento directo ou em que tenha intervindo pessoalmente (artº 466º nº 1 do CPC), incumbe ao respectivo requerente indicar no respectivo requerimento de prova, de forma discriminada, os factos por si alegados sobre que deverão incidir as suas declarações de parte, em conformidade com o disposto no artº 452º nº 2 ex vi do artº 466º nº 2, ambos do CPC” – cfr. ac. do TRP de 13/06/2018, pº nº 143/14.3T8PFR-B.P1, consultável em www.dgsi.pt
Ora, a representante do acompanhado limita-se no requerimento por si apresentado, de uma forma genérica, a dizer que a inquirição deste irá esclarecer as questões suscitadas nos autos e no julgamento, não observando, por isso, a exigência imposta pelo aludido preceito legal de discriminação da factualidade a que o acompanhado deve depor.
Por outro lado, atendendo a que nestes autos foram impugnadas certas despesas indicadas na conta-corrente apresentada pela representante do acompanhado entre Janeiro de 2011 e Dezembro de 2013, importando apurar nestes autos se determinadas obras e trabalhos tiveram lugar, não nos parece que as declarações do maior acompanhado que, nesta altura tem 90 anos de idade e se encontra integrado num lar sejam absolutamente indispensáveis para o fim visado no tema de prova.
Assim, sem necessidade de outros considerandos, é de concluir que, perante a ausência no requerimento da indicação da factualidade a que o maior acompanhado deveria depor, não se mostram observados os requisitos exigidos por lei para o decretamento do requerido.
De resto, cabe aqui salientar que tendo estado presente o inabilitado em audiência de julgamento realizada no dia 05/12/2018, a recorrente não se opôs a que o depoimento de parte do mesmo fosse prescindido mas, volvidos que foram 15 dias entendeu que a audição deste era indispensável para esclarecer “questões suscitadas nos autos e no julgamento”, o que não se entende.
Assim, pelos fundamentos expostos, improcedem as conclusões da apelante, confirmando-se a decisão recorrida.

V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação do Porto, em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pela apelante.

(Processado por computador e integralmente revisto pela Relatora)

Porto,10/07/2019
Maria José Simões
Abílio Costa
Augusto de Carvalho