Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
110/21.0PAVCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NUNO PIRES SALPICO
Descritores: SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
DEVER DE REPARAÇÃO
Nº do Documento: RP20230419110/21.0PAVCD.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFEREÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - No dever de reparação previsto no artigo 51.º, n.º1, alínea a), do Código Penal, o Tribunal tem de atender aos critérios da indemnização civil, mas não está apenas sujeito a eles, podendo influir nos limites internos da indemnização outros parâmetros, como o elemento punitivo, embora o valor encontrado não possa ser superior ao dano sofrido; a sobrecompensação não é admissível, e os interesses públicos da punição extravasam os interesses da vítima, nunca podendo esta receber por eles.
II - Nos casos em que se verifica um dano, mas não se apura a sua concreta extensão, têm lugar os juízos equitativos respeitantes à indemnização civil (cfr artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, ex vi do artigo 129.º do Código de Processo Penal), mas igualmente e em particular o juízo de natureza penal presente no corpo do n.º 1 do artigo 51.º do Código Penal, que é eminentemente equitativo, expressando-se com os critérios da razoabilidade e proporcionalidade.
III - Nos critérios de equidade que fixem amplitudes de ponderação admissíveis nos vários parâmetros, entre um valor mínimo e máximo, é neste campo que podem operar razões de prevenção geral e especial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.110/21.0PAVCD.P1

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Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

Em processo comum com intervenção de Tribunal Singular que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila do Conde do Tribunal da Comarca do Porto, procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais.
Foi proferida sentença, julgando do seguinte modo:
Nestes termos, julgo a acusação pública procedente, por provada, e condeno a arguida AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, com dolo direto e na forma continuada dum crime de furto qualificado, p. e p. pelo disposto no art.º 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. f) i) e ii), do Código Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita à condição de pagamento de €1.500,00 (mil e quinhentos euros) à ofendida BB até ao termo do prazo de suspensão da pena em que foi condenada.
Declaro a perda a favor do estado da vantagem comprovada resultante da conduta criminosa da arguida, no valor de €102,00 (cento e dois euros), indeferindo a declaração de perda em montante que exceda tal valor.”
*
Não se conformando com a sentença a arguida AA veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação:
(…)
B) DA MATÉRIA DE DIREITO
(…)
– DA (DES)PROPORCIONALIDADE DA PENA APLICADA –
DA PENA DE PRISÃO SUSPENSA NA EXECUÇÃO.
68. Mesmo que se mantenha a factualidade dada como provada da sentença recorrida – o que apenas por mero raciocínio académico se admite – sempre deverá ser considerada EXCESSIVA a medida concreta da pena em que foi a Arguida condenada.
69. E para o que aqui importa, merecem especial destaque a ausência de antecedentes criminais e a adequada inserção social da arguida.
Ademais,
70. Veja-se que, a dar-se como provada a prática de algum ilícito por parte daquela, nunca o será nos mesmíssimos termos vertidos na acusação e na sentença a quo.
Desta feita,
71. Revela-se manifestamente excessiva a medida da pena de prisão (ainda que suspensa na sua execução) concretamente aplicada, pelo que se impõe a respetiva redução.
72. A admitir-se a verificação do crime que lhe vem imputado, e, nessa medida a aplicação de uma pena, esta deveria ser sempre pelo mínimo legal aplicável.
DA CONDIÇÃO DA SUSPENSÃO
73. Antes de qualquer comentário face à manifesta desproporcionalidade e excessividade do montante determinado, e à semelhança do que se mencionado anteriormente, não podemos deixar de referir que, pelos motivos supra expostos, não havendo crime, evidentemente não poderá ser aplicada qualquer pena e, nessa medida, qualquer condição a esta associada.
SEM PRESCINDIR…
74. Dado que sempre há quem possa deter entendimento distinto, repare-se que o Tribunal que fixa o pagamento de €1.500,00 (mil e quinhentos euros)23, é exatamente o mesmo que dá como provada a seguinte factualidade: “11) A arguida encontra-se de baixa, auferindo um subsídio mensal de €430,00. | 12) Reside com o marido, que aufere um subsídio de desemprego de €509,00. | 13) Residem em casa própria pela qual pagam amortização de empréstimo bancário no valor de €235,00 mensais.”
Perante isto,
75. Vemo-nos forçados a questionar se não terá aquele obliterado por completo o vertido no art.º 51.º, n.º 2 do CP, à luz do qual “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir.” (sublinhado nosso).
76. “De acordo com o princípio da razoabilidade, o juiz não deverá impor ao condenado um dever que seja desde logo previsível que ele não pode cumprir, pois isso equivaleria a um adiar da execução da pena.”
Por outras palavras,
77. No presente caso verificou-se precisamente o inverso, violando-se, desta feita, o princípio ora invocado.
78. Considerou que “se afigura de toda a justiça que tal pagamento reverta a favor da principal prejudicada pela conduta da mesma: a ofendida BB”?
Pois,
23 Acrescido do pagamento das custas processuais fixadas em 3UC (€306,00), e da perda a favor do Estado de €102,00, perfazendo um total de €1.908,00 (mil, novecentos e oito euros).
24 Cf. Acórdão do TRG, de 01-07-2013, Processo n.º 197/12.7GDGMR.G1.
79. Mas focando-se apenas e só nesses objetivos, acabou por determinar um montante completamente injustificado e descabido face à factualidade que ele próprio deu como provada!
Vejamos:
80.
- Não há dúvida de que a arguida é de condição social e económica modesta.
- Não há dúvida de que o rendimento mensal do seu agregado familiar, composto por si e pelo marido, ronda atualmente os €939,00 (novecentos e trinta e nove euros).
- Não há também dúvida de que àquele montante é deduzido o de €235,00, pago mensalmente para liquidação do empréstimo bancário.
- Não há dúvida de que, se assim é – e sem sequer trazer à equação todas as demais despesas fixas inerentes à alimentação, higiene, saúde, etc., que lógica e naturalmente detém –, no final do mês, este agregado apenas conta com a sóbria quantia de €704,00 (setecentos e quatro euros),
160. Ou seja, uma quantia inferior ao salário mínimo nacional, a dividir por duas pessoas.
161. Admitindo-se que o salário mínimo nacional corresponde ao valor abaixo do qual não é possível uma subsistência digna, e sabendo que o agregado da arguida se debate para sobreviver com menos do que isso por mês, é razoável, proporcional, e justificado o dever que lhe foi imposto como condição da suspensão?
Sinceramente, não vemos como!
162. Não se vê que essa finalidade seja melhor cumprida com a imposição à arguida do pagamento da quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos euros), quando o seu agregado, composto por duas pessoas, sobrevive com bem menos do que o que os nossos dirigentes nacionais consideram ser o mínimo de sobrevivência para uma pessoa apenas, em cada mês.
**
(…)

O MP em primeira instância respondeu ao recurso, referindo em síntese:
(…)
DO ERRO NA DETERMINAÇÃO DA MEDIDA CONCRETA DA PENA: A arguida/recorrente entende que a pena que lhe foi concretamente aplicada é excessiva pugnando pela sua redução ao mínimo legal aplicável mais referindo que a condição imposta para a suspensão (pagamento da quantia de €1.500,00 à ofendida), atentas as condições económicas da arguida, dadas como provadas na sentença condenatória viola o artigo 51.º, n.º 2 do Código Penal. Entendemos, porém, que também neste concernente não lhe assiste razão à, como iremos demonstrar: A moldura abstrata prevista no artigo 204, n.º 2, do Código Penal, prevê a punição da prática do crime de furto qualificado por qualquer uma das suas alíneas com uma pena de prisão de dois a oito anos (existindo diversos crimes de furto qualificado punidos em tais termos ao longo da prática do crime continuado, o que impõe a aplicação de tal moldura nos termos do art. 79º do Código Penal). Conforme resulta da sentença sub judice foram devidamente ponderadas: «(…)As necessidades de prevenção geral, que são médias-altas, pois este género de crime é cada vez mais habitual nos dias que correm, gerando um sentimento de insegurança crescente na comunidade, face ao desrespeito pela propriedade alheia, pretendendo a sociedade a reafirmação da valia da norma violada, especialmente quando os crimes implicam a violação de espaços mais íntimos ou privados, como o é uma habitação. Os factos foram praticados com dolo direto, a mais grave das modalidades de culpa. No tocante às exigências de prevenção especial as mesmas são baixas, em face da inexistência de antecedentes criminais da arguida e a adequada inserção social. Aumentando todavia de forma a clara as necessidades de punição temos a falta de interiorização do desvalor da conduta por parte da arguida, negando (a nosso ver, e salvo o devido respeito por entendimento contrário, sem qualquer fundamento) a prática dos factos, e nunca se tendo preocupado em devolver integralmente as peças subtraídas ou sequer pedir desculpa à ofendida. Ainda aumentando as necessidades de punição temos aqui a circunstância do furto ter sido praticado aproveitando uma ligação de maior confiança existente entre ofendida e arguida, instituída quando foi encarregue de tratar da sua tia, realizando ainda alguns favores à ofendida, traindo esta última essa confiança existente pela forma comprovada. Em face do exposto, tem o Tribunal como justa a aplicação de uma pena de três anos de prisão pela prática do crime aqui em apreço Atenta a medida da pena de prisão aplicada, será abstratamente possível substituí-la por proibição do exercício de profissão, função ou atividade ou suspensão da pena de prisão – cfr. arts. 46º, n.º 1 e 50º do Código Penal. Determinando-se a suspensão da execução da pena de três anos de prisão aplicada por igual período – cfr. art. 50º, n.º 5 do Código Penal.» Isto posto, parece-nos terem sido valoradas pela sentença todas as circunstâncias relevantes, bem como estarem reunidos os requisitos legais de fundamentação das decisões judiciais no tocante à determinação concreta da pena a aplicar à arguida/recorrente, encontrando-se devidamente fundamentada e justificada a pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução, sendo que, ao contrário do que defende a arguida/recorrente e atenta a moldura do crime pelo qual foi condenada, tal pena situa-se muito perto do limite mínimo da mesma moldura. No que concerne à modalidade da suspensão da execução da pena de prisão, também questionada pela arguida/recorrente, importa referir que a suspensão da execução da pena de prisão pode ser simples ou com imposição de deveres (artigo 50.º, n.os 2 e 3, do Código Penal). Quanto a esta última modalidade, afirma o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente, pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea».
O dever enunciado tem, em primeira linha, uma finalidade reparadora (reparar o mal do crime) mas, por via dela, fortalece a finalidade da pena enquanto visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Com efeito, limitando-se a suspensão da execução da pena de prisão ao pronunciamento da culpa e da pena, deve encontrar-se, por razões de justiça e equidade, outra maneira de fazer sentir à comunidade e ao condenado, os efeitos da condenação (() Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., p. 1160, embora assinalando o fortalecimento da função retributiva da pena.). Do que se trata, em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição (() Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 353.). O pagamento da indemnização, na medida em que representa um esforço ou implica até um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas também como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se, assim, como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafática das expectativas da comunidade (() Cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1999, proc. n.º 665/99, sumariado por Manuel de Oliveira Leal Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, 1.º Volume, Editora Rei dos Livros, 2002, p. 681.). A obrigação deve responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são ideias básicas do Estado de Direito. No caso concreto, não obstante os factos dados como provados na sentença sub judice acerca das condições socioeconómicas da arguida/recorrente, o pagamento da quantia de €1.500,00 à ofendida como condição da suspensão da pena não ultrapassa as reais capacidades de pagamento desta arguida, pelo que não é, por essa via uma condição ferida de irrazoabilidade, em violação do disposto no art.º 51.º, n.º 2, do Código Penal. Importa não olvidar que o Mm.º Juiz a quo cuidou de fixar um prazo longo para o cumprimento da condição da suspensão, correspondendo ele exatamente ao período de suspensão da pena de prisão em que a arguida foi condenada: três anos. Se pago de forma faseada, tal pagamento ocorreria em 36 prestações, o que daria em media 41 euros mensais (valor que a arguida poderá reter mensalmente). Assim vistas as coisas entendemos que esse valor não equivale a uma drástica diminuição da qualidade de vida da arguida e respetivo agregado familiar, pelo que não se vislumbra qualquer violação do disposto no art.º 51.º, n.º 2, do Código Penal.
(…)
*

Neste tribunal de recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, referindo em síntese que a impugnação à decisão da matéria de facto deverá improceder. Assim nas conclusões do recurso quanto à medida da pena, contudo, refere que “Assim, concorda-se que a pena de 3 anos de prisão aplicada, próxima do seu limite mínimo, (2 anos) é adequada e proporcional às finalidades da punição e à culpa manifestada na prática os factos típicos. Concorda-se ainda, pelas razões já mencionadas que existe uma prognose favorável para a suspensão da execução da pena aplicada, como bem atendeu o tribunal a quo.
No entanto, considera-se desajustado o período de suspensão da execução da pena, atenta a baixa necessidade de prevenção especial que se faz sentir no caso concreto, de acordo com o mencionado pelo tribunal a quo, devendo tal período, em nosso entender, ser reduzido para metade. Também quanto à condição imposta se entende que a mesma é desadequada, não só porque é o próprio tribunal a considerar que não foi possível apurar o valor dos bens furtados, considerando improcedente o valor da vantagem criminosa de 4.500 euros, como era peticionado, fixando-a em 102,00 euros, como se entende que a condição económica da ofendida pedia outra ponderação. Deste modo, e quanto a este ponto concreto, entende-se que deverá o recurso ser procedente, baixando-se o período da suspensão da execução da pena para 1 ano e 6 meses e sem subordinação a condição de pagamento de quantia pecuniária.”
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Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal, nada mais foi acrescentado de relevante.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
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II. Objeto do recurso e sua apreciação.
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pela recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

É assim composto:

a) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e erro notório na apreciação da prova produzida;
b) a impugnação da matéria de facto;
c) a violação do princípio in dubio pro reo;
d) redução da medida concreta da pena e alteração do regime de suspensão da pena;
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Do enquadramento dos factos.

Nos presentes autos sob a forma de processo comum com tribunal singular, o Ministério Público deduziu acusação contra
AA, nascida a .../.../1966, filha de CC e de DD, ajudante de cozinha, residente na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, com dolo direto e na forma continuada dum crime de furto qualificado, p. e p. pelo disposto no art.º 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. f) ii), do Código Penal.
Requereu ainda o Ministério Público a declaração de perda de vantagens a favor do Estado, quantificando o valor a ser pago em €4.500,00.
Regularmente notificada do recebimento da acusação a arguida apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos e arrolando prova testemunhal.
Foi realizada audiência de discussão e julgamento, que decorreu de acordo com todas as formalidades legais.
A instância mantém-se válida e não existem quaisquer nulidades, exceções ou questões prévias que se imponha conhecer.
Procedeu-se a alteração não substancial dos factos e da qualificação jurídica dos mesmos, devidamente comunicada.
II – Fundamentação de facto
A – Factos provados.
Com relevo para a decisão da causa provaram-se os seguintes factos:
1) A arguida prestou cuidados à irmã da ofendida BB, EE, desde 1 de dezembro de 2020 e até março de 2021, na residência da mesma, sita na Rua ..., Vila do Conde.
2) A ofendida, por sua vez, reside no mesmo edifício da sua irmã, mas no terceiro andar.
3) Tendo por base umas chaves da ofendida que a arguida subtraiu num acesso autorizado à sua residência, e posteriormente restituiu, a arguida procedeu à realização duma imitação das chaves da residência da ofendida.
4) Em período de tempo não concretamente determinado, mas dentro do período mencionado em 1), a arguida, fazendo uso das chaves subtraídas e imitadas da habitação da ofendida, conhecedora das rotinas da ofendida e da respetiva família, aproveitando os momentos em que não se encontrava ninguém em casa, dirigiu-se por diversas vezes à habitação da ofendida (o que fez, designadamente nos dias 1, 2, 5 e 6 de março de 2021) e retirou da referida residência e levou consigo, fazendo-os seus, os seguintes objetos e quantias monetárias, no valor total não concretamente apurado, mas superior a € 102,00, tendo algumas peças valor superior a tal quantia:
- Duas alianças de casamento em ouro branco, com as inscrições “EE” e “FF”;
-Duas alianças de casamento em ouro amarelo, com as inscrições “EE” e “FF”;
- Um par de brincos em forma de triângulo, em ouro amarelo;
- Um anel de ouro amarelo com uma esmeralda verde;
- Conjunto de um fio em ouro amarelo com um pendente em pedra preciosa de cor preta e brilhantes;
- Um par de brincos em ouro amarelo com uma pedra preta e brilhantes;
- Um anel em ouro amarelo com pedra preta e brilhantes;
- Um anel largo em ouro amarelo;
- Um fio em ouro amarelo com corais;
- Um fio em ouro amarelo e pérolas;
- Um par de brincos em ouro amarelo em forma de bola;
- Um par de brincos em ouro amarelo com o desenho de uma flor;
- Um fio em ouro amarelo com uma medalha;
- Um colar com várias voltas em pérola com um fecho em ouro amarelo em forma de laço;
- Um anel em ouro amarelo e branco;
- Uma cruz em ouro amarelo;
- Uma quantia em dinheiro superior a €100.
5) No dia 21 de maio de 2021, cerca das 07h00 na sequência de uma busca realizada à residência da arguida, sita na Rua ..., ..., Póvoa de Varzim, foi encontrada na posse da arguida, mais concretamente na cómoda do quarto da mesma:
- Um anel em ouro amarelo e branco;
- um anel em ouro amarelo com pedra preta;
- um par de brincos em ouro amarelo com uma pedra preta;
- um par de brincos em ouro amarelo com o desenho de uma flor;
- uma cruz em ouro amarelo;
- um fio em ouro amarelo com uma medalha;
- um fio em ouro amarelo com um pendente em pedra preciosa de cor preta;
- um brinco em ouro amarelo,
objetos que a ofendida reconheceu como sendo da sua propriedade e fazendo parte do conjunto dos objetos mencionados em 4) e que foram subtraídos pela arguida do interior da residência da ofendida.

6) A arguida quis fazer seus os bens supra referidos, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade da sua legítima dona, utilizando para o efeito umas chaves subtraídas e imitadas da residência da ofendida, das quais se apropriou sem consentimento, autorização ou conhecimento da ofendida causando-lhe uma diminuição patrimonial em valor não concretamente apurado, mas superior a €102,00, tendo agido livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, beneficiando da circunstância de, no decurso do referido lapso temporal, ninguém ter suspeitado da sua conduta, o que lhe diminui consideravelmente a culpa.
7) A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
8) Os objetos mencionados em 5) foram restituídos à ofendida.
9) A arguida não tem antecedentes criminais.
10) É tida como boa pessoa e amiga pelas pessoas com que habitualmente confraterniza.
11) A arguida encontra-se de baixa, auferindo um subsídio mensal de €430,00.
12) Reside com o marido, que aufere um subsídio de desemprego de €509,00.
13) Residem em casa própria pela qual pagam amortização de empréstimo bancário no valor de €235,00 mensais.
14) Tem o 6º ano de escolaridade.
B – Factos não provados.
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa, designadamente que:
a) No período de tempo referido em 1.º, EE encontrava-se, como ainda se encontra, acamada, em estado debilitado e sem falar.
b) A ofendida guardava uma cópia das chaves da sua residência num móvel do hall de entrada da casa da sua irmã.
c) Tendo sido essas chaves as utilizadas para aceder à residência da ofendida sem a sua autorização, nos termos mencionados em 4).
d) As entradas da arguida nos dias 1, 2, 5 e 6 de março de 2021 tenham sido realizadas com a autorização e a pedido da ofendida.
e) Para além dos objetos mencionados em 4) a arguida subtraiu também um relógio antigo de mesa em madeira com mostrador de corda e uma máquina de sumos.
f) A falecida EE tenha oferecido parte das peças mencionadas em 4) à arguida.
g) As peças mencionadas em 5) fossem pertencentes à arguida.
h) O valor dos objetos e quantias mencionados em 4) totalizasse a quantia de € 4.500,00.
(…)

III – Fundamentação de Direito
(…)
IV – Escolha e determinação da medida concreta da pena:
Aqui chegados cumpre proceder à escolha e determinação da medida concreta da pena aplicável à arguida. Dispõe o art. 40º, n.º 1, do Código Penal que a aplicação de penas e de medidas de segurança tem como finalidade a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. Por sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito legal dispõe que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida de culpa. Também o art. 71º, n.º1, do Código Penal dispõe que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Na interpretação destes preceitos normativos, e seguindo os ensinamentos de Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, pp. 227 e ss) descortinamos os três principais elementos que nos guiarão na determinação da medida concreta da pena: as exigências de prevenção geral, as exigências de prevenção especial e o limite da culpa. Ou seja, deverá o julgador atender às finalidades de prevenção geral (sobretudo positiva), no sentido de defesa dos bens jurídicos e do ordenamento jurídico, assegurando a estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade nas normas jurídicas violadas, preocupando-se igualmente em reintegrar e ressocializar o agente do crime, de forma a que o mesmo adote, no futuro, condutas conformes com os valores e bens tutelados pelo direito. Mais decorre dos preceitos citados que o nosso sistema assenta no princípio unilateral da culpa. Isto é, não pode haver pena sem culpa, e a culpa configura sempre um limite inultrapassável da pena. Nestes termos, e continuando a seguir a formulação de Figueiredo Dias, que perfilhamos, na determinação da pena concreta deve seguir-se o modelo que comete à culpa a função de determinar o limite máximo da pena, cabendo á prevenção geral fornecer uma moldura cujo limite máximo é o dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, cumprindo, por último à prevenção especial encontrar o quantum exato da pena dentro da referida moldura da prevenção, que melhor sirva as exigências de ressocialização do agente. Atender-se-á também ao disposto no art. 71º, n.º 2, do Código Penal, segundo o qual “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (sublinhado nosso). No que toca à escolha da pena, dispõe o art. 70º que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”. Aflora aqui um dos pensamentos fundamentais do sistema punitivo consagrado no Código Penal, que é o da reação contra as penas institucionalizadas ou detentivas, por sua própria natureza lesivas do sentido pedagógico e ressocializador que o atual Código Penal pretende imprimir à execução das penas. Partimos da moldura abstrata prevista no artigo 204, n.º 2, do Código Penal, que prevê a punição da prática do crime de furto qualificado por qualquer uma das suas alíneas com uma pena de prisão de dois a oito anos (existindo diversos crimes de furto qualificado punidos em tais termos ao longo da prática do crime continuado, o que impõe a aplicação de tal moldura nos termos do art. 79º do Código Penal).
As necessidades de prevenção geral, são aqui médias-altas, pois este género de crime é cada vez mais habitual nos dias que correm, gerando um sentimento de insegurança crescente na comunidade, face ao desrespeito pela propriedade alheia, pretendendo a sociedade a reafirmação da valia da norma violada, especialmente quando os crimes implicam a violação de espaços mais íntimos ou privados, como o é uma habitação.
Os factos foram praticados com dolo direto, a mais grave das modalidades de culpa.
No tocante às exigências de prevenção especial as mesmas são baixas, em face da inexistência de antecedentes criminais da arguida e a adequada inserção social. Aumentando todavia de forma a clara as necessidades de punição temos a falta de interiorização do desvalor da conduta por parte da arguida, negando (a nosso ver, e salvo o devido respeito por entendimento contrário, sem qualquer fundamento) a prática dos factos, e nunca se tendo preocupado em devolver integralmente as peças subtraídas ou sequer pedir desculpa à ofendida. Ainda aumentando as necessidades de punição temos aqui a circunstância do furto ter sido praticado aproveitando uma ligação de maior confiança existente entre ofendida e arguida, instituída quando foi encarregue de tratar da sua tia, realizando ainda alguns favores à ofendida, traindo esta última essa confiança existente pela forma comprovada.
Em face do exposto, tem o Tribunal como justa a aplicação de uma pena de três anos de prisão pela prática do crime aqui em apreço Atenta a medida da pena de prisão aplicada, será abstratamente possível substituí-la por proibição do exercício de profissão, função ou atividade ou suspensão da pena de prisão – cfr. arts. 46º, n.º 1 e 50º do Código Penal.
No caso concreto a aplicação de uma pena substitutiva de regime de proibição do exercício de profissão, função ou atividade não se afigura adequada, face às concretas exigências de prevenção especial e geral aqui presentes, e face à factualidade aqui em causa. Justifica-se todavia a substituição da pena única de prisão pela pena de suspensão da execução da pena de prisão, em função do disposto no artigo 50º, n.º 1 do Código Penal, segundo o qual “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” Assim, quando o tribunal aplica uma pena de prisão não superior a cinco anos tem o poder-dever de suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido. Este juízo de prognose não tem de assentar necessariamente numa certeza; basta que haja uma expectativa fundada de que a simples ameaça da pena seja suficiente para realizar as finalidades da punição, e consequentemente, a ressocialização em liberdade do arguido. Todavia, há um limite inultrapassável que o tribunal deve respeitar na consideração sobre o comportamento futuro do arguido: a defesa do ordenamento jurídico. Como escreve Figueiredo Dias, “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável – à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da pena de prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por essas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise.” (in, “Consequências Jurídicas do Crime, pp. 344)”.
No caso vertente, acredita-se que a solene advertência que lhe será dirigida com a presente condenação será suficiente para impelir a arguida ao respeito pelos demais cidadãos e seu património, sendo que a ameaça do cumprimento de pena de prisão levá-la-á a não mais praticar factos de natureza semelhante aos comprovados, orientando doravante a sua conduta de acordo com o Direito. Não sendo a sua reclusão (em prisão) adequada nem ressocializadora, sendo o cumprimento da pena em liberdade ainda consonante com as exigências de punição aqui presentes.
Determina-se assim a suspensão da execução da pena de três anos de prisão aplicada por igual período – cfr. art. 50º, n.º 5 do Código Penal. A suspensão da execução da pena de prisão pode assumir três modalidades: a suspensão simples, a suspensão com imposição de condições (deveres ou regras de conduta) e a suspensão com regime de prova.
No presente caso não se afigura que a suspensão simples da pena de prisão seja suficiente para acautelar as exigências de prevenção e as finalidades de punição aqui presentes. Impondo-se, enquanto elemento sancionatório, o pagamento de quantia pecuniária para que a arguida tenha consciência que o desvalor da sua conduta tem consequências efetivas, sendo que se afigura de toda a justiça que tal pagamento reverta a favor da principal prejudicada pela conduta da mesma: a ofendida BB. Quantia pecuniária que, face às condições económicas da arguida, e de forma a que tal sanção seja efetivamente sentida como punição, se fixa como correspondente a €1.500,00 a serem pagos até ao termo do prazo de suspensão da pena em que foi condenada.
V – Da perda de vantagem patrimonial:
Cumpre agora apreciar se se deve declarar perdida a favor do Estado a vantagem patrimonial decorrente da atividade criminosa, em valor de €4.500,00, conforme requerido pelo Ministério Público após a acusação. Tal perda alicerça-se no disposto nos arts. 110º e 111º do Código Penal. Seguimos o entendimento vertido no Ac. da Relação do Porto, Proc. 86/14.0IDPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, nos termos do qual “o fundamento da autonomia do instituto da perda de vantagens (artº 111º CP) resulta de o mesmo assumir uma natureza sancionatória análoga à da medida de segurança”, sendo que “a perda de vantagens deve ser decretada sempre que se verifiquem os seus fundamentos, não ficando dependente da reclamação do seu valor (v.g dedução do pedido civil) ou do sucesso dessa pretensão”.
No presente caso em função da factualidade comprovada é certo que a arguida retirou vantagem patrimonial da prática dos factos por si encetados, correspondente ao valor dos bens subtraídos e que acabaram por não ser restituídos. O valor concreto desses bens não foi no entanto concretamente apurado, podendo apenas concluir-se, face à sua natureza e número, que têm um valor sempre superior a €102,00. Assim, impondo-se a perda a favor do estado da vantagem patrimonial obtida em tal valor, não se poderá determinar tal perda em montante superior, designadamente nos indicados €4.500,00 requeridos pelo Ministério Público.
DECISÃO…”
*
Cumpre apreciar.
(…)

Determinação da pena.
Pretende a arguida recorrente a reapreciação da pena e do seu regime de suspensão.
Com efeito, nas prioridades gradativas do esquema legal, não só o Tribunal “A Quo” depois de cominar a medida concreta, depois de ponderar as circunstâncias do caso, a densidade das exigências de prevenção, formulou um juízo de prognose favorável, vindo a cominar a pena de substituição concretizada na execução suspensa da pena de prisão nos termos do art.50º nº1 do CP.
Assim, no crime furto qualificado cometido, há a ponderar a elevada ilicitude evidenciada pela circunstância da arguida haver repetidamente invadido a habitação, e o interior do quarto da ofendida, onde a mesma evidenciou uma operacionalidade furtiva apreciável e relativamente organizada, não só logrando subtrair as chaves da habitação, como fez cópias da mesma, e estudando os hábitos da ofendida, introduziu-se por diversas vezes na habitação, subtraindo repetidamente vários valores em ouro e em dinheiro.
Aferindo a pena concretamente aplicada pelo Tribunal “A Quo”, face à moldura penal abstrata do crime de furto qualificado previsto e punido pelo art.204º nº2 do CP de 2 a 8 anos de prisão, com uma amplitude de 6 anos, a pena concreta de 3 anos de prisão cominada ao crime de furto corresponde a 1/6 da amplitude da pena, o que face à gravidade do delito e às elevadas exigências geral e, contrariamente ao que se sustenta, as exigências de prevenção especial mostram-se relevantes, resultando da falta de arrependimento, associada à eficácia delitual demonstrada pela arguida, a qual empreendeu diversas diligências criminosas, assim como o limite da culpa, muito elevado, afigura-se uma pena concreta excessivamente benévola, não merecendo a censura que se pretende.
Perante a atitude da arguida que se mantém distanciada da reconciliação com os valores protegidos pela ordem jurídica, não confessando os factos, nem revelando o menor arrependimento, ou qualquer atitude de ressarcimento, evidencia a mesma uma censurável indiferença, com défice de auto-crítica, mas sobretudo agrava as exigências de prevenção a operacionalidade delitual revelada pela arguida, não obstante a sua primariedade.
Ante a inserção sócio-familiar da arguida, e a ausência de antecedentes criminais justificam o juízo de prognose favorável nos termos do art.50º nº1 do CP, contudo, a aposta nesse juízo só surtirá o desejado efeito ressocializador com uma pena dotada de elementos necessários à recuperação, maturação e mutação da atitude da arguida, o que passará inevitavelmente, pela fixação de deveres de reparação como decidiu o Tribunal “A Quo”.
Contrariamente ao que foi sustentado no parecer do Digno Procurador Geral Adjunto, o tempo de suspensão de 3 anos fixado pelo Tribunal é o adequado, assumindo-se como a temporalidade necessária à arguida cumprir o seu elementar dever de ressarcimento, o qual integra a natureza da pena (Ac da RE de 14/07/2015, processo 4249/99.4JALRA-G.E1, in www.dgsi.pt “O dever de pagar a indemnização devida ao lesado, como condição da suspensão da execução da pena de prisão, é instrumentalizado à prossecução das finalidades das penas, com as limitações (e mesmo os sacrifícios) que lhes são inerentes, pelo que o condenado não pode tomá-lo como se de uma mera obrigação civil se tratasse”.). Uma suspensão dotada de deveres, em particular com o dever de reparação, é por inerência, um regime melhorado, com melhor aptidão para alcançar os fins da pena, sobretudo, quando comparado com uma suspensão da pena vazia de conteúdo, cujo decurso do tempo, sem o cumprimento de qualquer dever ou regra de conduta, pode contribuir para uma má interpretação da pena por parte dos arguidos, em particular, quando se pretende reduzir esse tempo de suspensão para um mínimo de 1 ano e seis meses. Nesse caso, a curta expressão do tempo de suspensão da pena, alteraria dramaticamente os seus fins, distorcendo a gravidade do ilícito cometido.
Recorda-se que a reparação do mal cometido, não persegue apenas o cumprimento das exigências de prevenção geral, mas igualmente visa promover o apaziguamento das exigências de prevenção especial (neste sentido “Ac da RE de 12/04/2016, processo 41/12.5GASRP.E1, in www.dgsi.pt “A obrigação de reparação do mal do crime como condicionante da suspensão da prisão cumpre uma importante função adjuvante das finalidades da punição, contribuindo para a reinserção social do arguido (que se reabilita colmatando os efeitos do seu ato criminoso), facilitando a reposição da situação do lesado antes do cometimento do crime, permitindo em suma “cuidar ao mesmo tempo do delinquente e da vítima”). Sobre este ponto é necessário convocar o Sr Juiz Desembargador Dr José Alberto Carreto quando discorre sobre as vantagens da reparação à vítima no âmbito da suspensão da pena de prisão, com particular destaque para: a reinserção do criminoso; na atitude de reparação, que exige o reconhecimento de uma conduta contra o direito; a reparação pode ser experimentada pelo criminoso como algo mais justo que a pena, levando ao reconhecimento das normas (ver “A Suspensão Parcial da Pena de Prisão e a Reparação do Dano”, p.126 e 127, Coimbra, 2017).
Quanto à questão suscitada sobre o montante indemnizatório, desde já, deve referir-se que, “in casu”, não se apurou o valor líquido dos prejuízos causados, quando o Tribunal “A Quo” apurou o facto “…causando-lhe uma diminuição patrimonial em valor não concretamente apurado, mas superior a €102,00.”. Portanto, não se apurou o valor concreto do prejuízo, apenas se sabendo ser superior a 102€, também não resultando dos factos provados características mais precisas das peças de ouro. Ora, é nos casos em que existindo dano, mas não se apurando a sua concreta extensão, que têm lugar os juízos equitativos respeitantes à indemnização civil, cfr.art.566º nº3 do CC ex vi art.129º do CPP, mas igualmente e em particular o juízo de natureza penal presente no corpo do nº1 do art.51º do CP assim como em todas as suas alíneas, e que é eminentemente equitativo, expressando-se com os critérios da razoabilidade e proporcionalidade, campo de aplicação “ex professo” deste preceito e do próprio conceito de equidade, e com o qual se definirão os contornos dos deveres arbitrados.
Neste dever de reparação o Tribunal tem de atender aos critérios da indemnização civil, mas não está apenas sujeito a eles, podendo influir na indemnização outros parâmetros, como o elemento punitivo. Seja como for, o montante tem de estar racionalizado e o valor encontrado nunca poderá ser superior ao dano sofrido. A sobrecompensação não é admissível, e os interesses públicos da punição extravasam os interesses da vítima, nunca podendo esta receber por eles.
A fixação da reparação tem como limite máximo o dano, podendo influir nos limites internos as razões da punição.
Vistos os critérios de ponderação, no caso dos autos, o juízo equitativo que versará sobre o montante indemnizatório, para além do mais, deve assentar nos parâmetros da razoabilidade que incida sobre as diversas variáveis em questão, concretamente, que entre Dezembro de 2020 e Março de 2021 o valor da grama de ouro oscilou de 49€ a 47€ (pela cotação oficial do ouro, cfr. proteste investe), assumindo-se, por isso, o valor mais baixo como referência, ou seja, 47€ a grama; e se descontarmos as peças pertença da irmã EE (identificadas nos parágrafos 1 a 4 do ponto 4 dos factos provados), assim como as que foram recuperadas (recenseadas no ponto 5 dos factos provados) sobram 6 peças que representam o prejuízo da ofendida, cujo peso, por defeito, equitativamente se pondera em 2 gramas a 3 gramas por peça (num critério evidentemente conservador, dado que, por regra, cada peça apresentará um peso superior a 2 ou até 3 gramas), que, in casu, se optará por 2,5 gramas, dadas as exigências de prevenção geral e especial, in casu, deve a expressão da reparação refletir o grau de censura adequado à arguida (ou seja na amplitude detetada pela equidade, razões punitivas podem determinar um agravamento), assim se encontrando um valor 705€, porém, com esse montante, muito provavelmente a ofendida não compraria nunca 6 peças usadas num ourives (os quais, por regra, duplicam o valor do peso do ouro), também porque o ouro sofreu um agravamento no seu valor cotado, hoje na ordem dos 59€ a grama. E se é discutível que a lesante tenha de suportar a totalidade desse agravamento da cotação, contudo, os critérios previstos no art.562º do CC, mandam a reposição da situação patrimonial da ofendida, acaso não houvesse a ofensa, onde interessará em particular a comercialização e compra de ouro usado em ourives. Assim, sobre o valor de 705€, deverá recair um agravamento de 30% que atenda a estes interesses (do comércio de ourives de peças usadas e à valorização subsequente), assim se fixando o prejuízo em cerca de 923€, a que se somam os 100€ em dinheiro subtraído, no valor global de 1.023€, nesta medida devendo ser reduzida a indemnização, importando nesta parte alterar o que fora decidido pelo Tribunal “A Quo”.
Com a fixação deste valor, deixam de ser prementes os argumentos de razoabilidade impostos pelo art.51º nº2 do CP, porque inteiramente cumpridos, face ao período temporal em questão e à capacidade económica apurada.
Como resulta dos fundamentos expostos, o recurso apenas merecerá provimento quanto ao montante indemnizatório.
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DISPOSITIVO.
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso da arguida no que concerne à alteração da matéria de facto provada com modificação da redação do ponto 4º dos factos provados, nos termos supra referidos, passando a arguida estar condenada nos seguintes termos:
Nestes termos, julga-se a acusação pública procedente, por provada, e condena-se a arguida AA pela prática, em autoria material, na forma consumada, com dolo direto e na forma continuada dum crime de furto qualificado, p. e p. pelo disposto no art.º 203.º, n.º 1, 204.º, n.º 2, al. e) e 202.º, al. f) i) e ii), do Código Penal, na pena de três anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita à condição de pagamento de €1.023 (mil e vinte e três euros) à ofendida BB até ao termo do prazo de suspensão da pena em que foi condenada.

Mais se nega provimento à restante parte do recurso; e consequentemente, nos termos e fundamentos expostos, manter a decisão do Tribunal a quo, na restante parte.

Sem custas pela arguida recorrente considerando a procedência parcial do recurso.

Notifique.



Porto, 19 de Abril 2023.
(Elaborado e revisto pelo 1º signatário)

Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
Pedro Afonso Lucas