Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0110651
Nº Convencional: JTRP00032735
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: BURLA
BURLA RELATIVA A SEGUROS
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
FALSAS DECLARAÇÕES
COMPANHIA DE SEGUROS
INDEMNIZAÇÃO
DANOS PATRIMONIAIS
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RP200110030110651
Data do Acordão: 10/03/2001
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recorrido: 1 J CR GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recorrido: 138/99
Data Dec. Recorrida: 03/12/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO. REVOGADA A DECISÃO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CP95 ART217 N1.
Sumário: Não integra o crime de burla a conduta do arguido que, sendo proprietário de um motociclo interveniente num acidente num acidente de viação mas conduzido por terceiro que não estava legalmente habilitado a conduzi-lo, preencheu uma declaração amigável onde descreveu o acidente, referindo falsamente ser ele próprio o condutor, entregando-a em seguida à companhia seguradora que veio a pagar a terceiro a indemnização devida pelo acidente. O arguido procedeu assim visando levar a seguradora a não exercer o direito de regresso contra o verdadeiro condutor em relação ao valor da indemnização paga ao proprietário do outro veículo interveniente no acidente.
Não se tendo provado que o pagamento da indemnização não fosse devido, a seguradora não foi determinada pelo estratagema do arguido à prática de qualquer acto que lhe tenha causado prejuízo patrimonial. O que o arguido procurou foi evitar que a seguradora, após o pagamento devido da indemnização a terceiro, viesse exercer o direito de regresso, não sendo essa a situação que realiza o tipo de crime do artigo 217 do Código penal.
O arguido também não poderá ser condenado em indemnização civil pois a sua conduta não determinou prejuízo à seguradora, já que não impediu esta de vir a exercer o falado direito de regresso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

No -º Juízo Criminal de....., em julgamento de processo comum com intervenção do tribunal singular, foi proferida sentença que condenou o arguido Domingos.....
- na pena de 300 dias de multa a 350$00 diários, pela prática de um crime de burla qualificada p. e p. pelos artºs 217º e 218º, nº 1, do CP;
- a pagar a “Companhia Seguros A...., SA”, a título de indemnização, a quantia de 893.086$00, acrescida de juros de mora, desde a notificação do pedido, à taxa anual de 10 % até 16/4/199 e de 7 % a partir de 17/4/1999.
Dessa sentença interpôs recurso o arguido, sustentando, em síntese, na sua motivação:
- Houve erro notório na apreciação da prova dando-se como provados factos contrariados por relatório pericial.
- Dos factos dados como provados não pode concluir-se que o recorrente actuou “astuciosamente”.
- Falta, pois, um dos elementos do crime de burla.
- E, não havendo crime, não pode haver condenação em indemnização civil.
- Na determinação da medida da pena não se teve em conta o artº 71º, nº 2, alínea d), do CP.
- A medida da pena é exagerada.
- É igualmente exagerado o quantitativo diário da multa.
- Deve, pois, o recorrente ser absolvido ou, não se entendendo assim, reduzir-se a medida da pena e o montante diário da multa.
O recurso foi admitido.
Respondendo, o Mº Pº na 1ª instância defendeu a manutenção da sentença recorrida.
Nesta instância, o senhor Procurador-Geral Adjunto declarou concordar com essa resposta.
Colhidos os vistos, procedeu-se à realização da audiência com observância do formalismo legal.
Factos dados como provados (transcrição):
Em Maio de 1996, o arguido era proprietário do motociclo de matricula ..-..-FO e tinha-o segurado mediante contrato de seguro de responsabilidade civil na “Companhia de Seguros B....., SA”, através da apólice nº......
Em 16 de Maio de 1996, o referido motociclo foi interveniente num acidente de viação quando conduzido por Leandro....., pessoa que não estava legalmente habilitada a conduzir aquele tipo de veículo na via pública.
Nessa ocasião, o arguido decidiu levar a cabo um plano que conduzisse ao pagamento por parte da aludida companhia de seguros de indemnização ao outro veículo interveniente no acidente e evitar o consequente direito de regresso, já que o verdadeiro condutor do ..-..-FO não estava legalmente habilitado a conduzir na via pública o referido motociclo.
Com esse propósito, o arguido preencheu a declaração amigável onde descreveu o acidente e referiu ser o condutor do veículo ..-..-FO.
Apesar de saber que tal não correspondia à verdade, o arguido apresentou a referida declaração amigável nos escritórios de Guimarães daquela companhia de seguros em 22 de Maio de 1996.
Em 8 de Agosto de 1996 a “Companhia de Seguros B....., SA” pagou a quantia de 893.086$00 referente à indemnização devida pelo acidente.
O arguido agiu livre e conscientemente, bem sabendo que o teor da declaração amigável que apresentou à “Companhia de Seguros B....., SA” não descrevia a verdade, e que desse modo enganava a referida companhia de seguros, que não tinha fundamento para exercer o direito de regresso, causando-lhe desse modo prejuízo pelo menos de montante igual ao por ela pago a título de indemnização devida pelo acidente, prejuízo esse que ainda se encontra por ressarcir.
O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido foi submetido a exame às faculdades mentais e concluiu-se que o mesmo sofre de atraso mental ligeiro (debilidade mental) e epilepsia generalizada convulsiva e é imputável.
Por escritura de 2 de Dezembro de 1997, foi alterada a denominação social da ofendida “Companhia de Seguros B...., SA” para “Companhia de Seguros A....., SA”.
O arguido tem como habilitações literárias a 3ª classe; é operário fabril, auferindo o salário mensal de 66.000$00; a sua mulher também é operária fabril, recebendo o salário mensal de 66.000$00; tem uma filha com 8 anos de idade; e vive em casa do sogro, pagando a renda mensal de 3.000$00.
O arguido não tem antecedentes criminais.
Foram dados como não provados outros factos, designadamente que, aquando do acidente referido nos factos provados, era o arguido quem conduzia o motociclo ..-..-F0.
Fundamentação:
1. Sobre a decisão da matéria de facto:
Tendo sido feita a declaração a que alude o artº 364º, nº 1, do CPP, a Relação só pode sindicar a decisão da matéria de facto no âmbito do artº 410º, nºs 2 e 3, como resulta do artº 428º, nº 2, ambos do mesmo código.
E o recorrente invoca a existência do vício previsto na alínea c) do nº 2 daquele artº 410º.
Tal vício estaria em o tribunal recorrido ter dado como provado que o arguido
- “decidiu levar a cabo um plano que conduzisse ao pagamento por parte da aludida companhia de seguros de indemnização ao outro veículo interveniente no acidente e evitar o consequente direito de regresso, já que o verdadeiro condutor do ..-..-FO não estava legalmente habilitado a conduzir na via pública o referido motociclo”;
- “preencheu a declaração amigável onde descreveu o acidente e referiu ser o condutor do veículo ..-..-FO”; e
- “agiu ( ... ), bem sabendo que o teor da declaração
amigável que apresentou à Companhia de Seguros B...., SA não descrevia a verdade, e que desse modo enganava a referida companhia de seguros que não tinha fundamento para exercer o direito de regresso”,
quando ele sofre de algum atraso mental, como resulta do exame médico-forense de fls. 140 a 143, além de, não obstante ter frequentando a escola até aos 15 anos de idade, só ter completado a 3ª classe, não sabendo ler nem escrever.
Concretizando, diz o recorrente que, com um tal atraso mental, não tinha capacidade para elaborar aquele plano, nem podia saber que enganava a seguradora relativamente à questão do direito de regresso. Acrescenta que, pelo menos, haverá dúvidas de que tivesse essa capacidade e soubesse desse engano.
Não lhe assiste razão.
O facto de uma pessoa ter algum atraso mental (no caso, esse atraso até é ligeiro, sendo o recorrente imputável – cfr. fls. 142), não significa que ela não tenha capacidade para engendrar um plano com a simplicidade do aqui em questão: o recorrente só tinha de, ao preencher a declaração amigável, se fazer passar por condutor do motociclo na altura em que se deu o acidente. Note-se que não ficou provado que o recorrente, ao contrário do que alega, não sabe ler nem escrever.
E o ligeiro atraso mental do recorrente não impõe a conclusão de que ele não sabia que enganava a seguradora relativamente à questão do direito de regresso. Mesmo que o não soubesse até aí, pode ter sido informado disso na altura do acidente e actuado em função dessa informação.
Assim, não tendo o tribunal recorrido decidido contra prova tarifada (o relatório de exame médico-forense de fls. 140 a 143 não diz que o recorrente não tem capacidade para planear os factos em causa), não se evidenciando que o mesmo tribunal no caminho seguido até chegar à decisão de dar como provados os factos em discussão tenha violado qualquer regra da experiência comum, e não nos dando a sentença conta de qualquer dúvida que tenha sido resolvida em desfavor do arguido, tem de concluir-se pela não verificação do vício do erro notório na apreciação da prova.
Não se alega nem vislumbra qualquer outro dos vícios do nº 2 do artº 410º.
Também não vem arguida qualquer nulidade e nenhuma que seja de conhecimento oficioso se verifica.
É, pois, definitiva a decisão proferida sobre a matéria de facto.
2. O direito:
Nesta sede, diz o recorrente que não actuou astuciosamente.
Também aqui não tem razão.
O recorrente quis fazer crer à sua seguradora que era ele o condutor do motociclo na altura do acidente, quando na realidade esse condutor era outra pessoa, que não estava habilitada a conduzir, visando levá-la a não exercer o direito de regresso contra o verdadeiro condutor em relação ao valor da indemnização paga ao proprietário do outro veículo interveniente no acidente. E para isso lançou mão de um meio engenhoso e adequado a enganar sobre aquele facto a seguradora: o preenchimento da declaração amigável a relatar o acidente, dando-se aí como condutor do motociclo, e a entrega desse documento à seguradora.
É nesse meio engenhoso e adequado a enganar que reside o elemento astúcia.
Mas, apesar de o arguido ter agido com astúcia, os factos provados não integram o crime de burla.
Para que este crime se verifique é necessário, como resulta do artº 217º, nº 1, do CP, que o agente, além do mais, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determine outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial.
No caso, o prejuízo patrimonial da “Companhia de Seguros B...., SA” estaria em ela, convencida de que o condutor do motociclo na altura do acidente era o arguido e não uma pessoa não habilitada a conduzir, não ter exercido o direito de regresso que a lei lhe atribuía. Esse prejuízo não reside no pagamento por parte dessa companhia de seguros da indemnização de 893.086$00 ao proprietário do outro veículo interveniente no acidente. Não se provou que esse pagamento não fosse devido. A seguradora até alegou no pedido civil que o era.
Assim, a “Companhia de Seguros B....” não foi determinada pelo estratagema do arguido à prática de qualquer acto que lhe tenha causado prejuízo patrimonial. O que o arguido visou e terá conseguido com tal estratagema foi levar a seguradora a abster-se de praticar actos tendentes à reconstituição do seu património, mediante o exercício do direito de regresso contra o condutor do motociclo, após o pagamento devido da indemnização ao terceiro. Mas, não é essa a situação que realiza o tipo de crime p. e p. pelo artº 217º do CP. Aí exige-se que aquele sobre quem incide o meio enganoso seja por este determinado a praticar actos, actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais. E, como se disse, a “Companhia de Seguros B....., SA” não foi determinada a praticar quaisquer actos, designadamente que lhe causassem prejuízo patrimonial.
Diferente seria, ou poderia ser, dependendo da concepção de património que se tenha, se o meio enganoso usado pelo arguido levasse a companhia de seguros a praticar qualquer acto de que resultasse a perda do direito de regresso.
Não pode, pois, manter-se a condenação do arguido pela prática do crime de burla.
É certo que com o seu comportamento ele cometeu um crime de falsificação de documento, mas tal ilícito não pode aqui ser considerado, visto que não faz parte do objecto do processo, nem, consequentemente, do recurso.
E também não pode manter-se a condenação do arguido em indemnização civil.
Efectivamente, não obstante se estar perante um acto ilícito do arguido, de tal acto não resultou para a “Companhia de Seguros B...., SA” o prejuízo que alegou – o não recebimento da quantia de 893.086$00 –, correspondente ao valor que podia exigir, exercendo o direito de regresso, ao condutor do motociclo, e não ao arguido.
É que a conduta do arguido não impediu aquela companhia de seguros de exercer o falado direito de regresso. Apenas pode ter levado a que esse direito não pudesse ser exercido de imediato. Na verdade, o arguido apresentou à “Companhia de Seguros B...., SA” a declaração amigável onde falsamente mencionava ser na altura do acidente o condutor do motociclo em 22/5/1996, e essa seguradora soube pelo menos em 18/12/1996, data em que apresentou a queixa de fls. 9 a 13, que o condutor do motociclo não era o arguido, mas sim uma pessoa que não se encontrava habilitada a conduzir esse veículo. O direito de regresso podia, pois, ser exercido nessa altura. Se o não foi, por isso não pode ser responsabilizado o arguido. A este só pode ser atribuída responsabilidade por eventuais prejuízos resultantes do facto de a seguradora não ter podido exercer o direito de regresso enquanto não soube que o motociclo era conduzido por pessoa não habilitada. Mas, não é esse o fundamento do pedido dos autos.
Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em dar provimento ao recurso, ainda que por fundamentos diferentes do invocados, revogando a sentença recorrida e absolvendo o arguido da acusação e do pedido civil.
As custas da parte civil, em ambas as instâncias, são a pagar pela demandante “Companhia de Seguros A...., SA”.
Na parte penal não há lugar a custas. Os honorários do defensor oficioso nomeado nesta Relação, previstos no nº 6 da Tabela anexa à Portaria nº 1200-C/2000, de 20/12, são da responsabilidade do Cofre dos Tribunais.
Porto, 03 de Outubro de 2001
Manuel Joaquim Braz
Luís Dias André da Silva
Joaquim Matias de Carvalho Marques Pereira
Joaquim Costa de Morais