Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2658/20.5T8VNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI PENHA
Descritores: PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
FASE CONCILIATÓRIA
TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO
DIREITOS EMERGENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITOS IRRENUNCIÁVEIS
Nº do Documento: RP202112152658/20.5T8VNG-A.P1
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PROCEDENTE; REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: É inadmissível a renúncia aos direitos emergentes de acidente de trabalho, quer directa, quer indirectamente, através da falta de reclamação na tentativa de conciliação da fase conciliatória. Resulta da redacção dos arts. 111º e 112º, nº 1, do CPT, que esta apenas vincula as partes relativamente aos pontos directamente abordados e acordados e não para além destes.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2658/20.5T8VNG-A.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

B…, residente na Rua …, nº .., Hab. .., Vila Nova de Gaia, patrocinado por mandatário judicial, terminada a fase conciliatória do processo, veio intentar a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra C… – Companhia de Seguros, S.A., com sede no …, nº .., Lisboa, e D…, Lda., com sede no …, nº .., Lisboa.
Formula os seguintes pedidos:
a) Ser declarado que o acidente sofrido pelo Autor em 10/04/2019 e descrito no art. 1º da petição inicial é acidente de trabalho.
b) Ser declarado que o Autor sofreu incapacidade temporária absoluta nos períodos compreendidos entre 11/04/2019 e 07/05/2019, e entre 16/05/2019 até 13/09/2019, num total de 148 dias, e que sofreu incapacidade temporária parcial de 65% nos períodos compreendidos entre 08/05/2019 e 15/05/2019, e entre 14/09/2019 até 09/04/2020, num total de 217 dias.
c) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 1.368,11 a título de indemnização pela diferença de 15% de incapacidade temporária parcial ainda não paga pela Seguradora (diferença entre a incapacidade de 50% paga e a incapacidade efectiva de 65%), acrescida de juros de mora desde o vencimento até efectivo e integral pagamento.
d) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor a pensão anual, vitalícia e actualizável, com base no salário anual ilíquido de € 21.923,22 e na IPP que lhe vier a ser atribuída em exame por Junta Médica, com vencimento a partir do dia 10/04/2020, dia seguinte ao da alta, acrescida de juros de mora desde esse dia até efectivo e integral pagamento.
e) Ser a Ré condenada a assegurar ao Autor a assistência médica e cirúrgica, geral ou da especialidade oftalmológica, incluindo todos os elementos de diagnóstico e de tratamento necessários, e toda a assistência medicamentosa e farmacêutica regular, que se mostrem necessárias e adequadas ao seu estado de saúde e à sua capacidade para o trabalho ou de ganho, bem assim como à recuperação para a sua vida ativa.
f) Ser a Ré condenada a suportar as despesas de reparação ou renovação dos dois pares de óculos – escuros e normais – que constituem as ajudas técnicas de protecção ocular já fornecidos ao Autor, que se venham a revelar necessárias, ocorridas por deterioração em consequência de uso ou desgaste normal, adequadas ao seu estado de saúde e à sua capacidade para o trabalho ou de ganho, bem assim como à recuperação para a sua vida ativa.
g) Ser a Ré condenada a pagar ao A. a quantia de € 93,62 a título de reembolso de despesas havidas com medicamentos e deslocação em viatura própria a consulta oftalmológica a Coimbra relacionada com o sinistro laboral, e autorizada pelos serviços da Ré.
h) Ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de € 15,00 por este gasta em transportes para se deslocar a este Tribunal e ao INML, no Porto.
i) Ser a Ré condenada nos juros de mora, à taxa legal, desde a data de vencimento de cada uma das quantias pecuniárias acima referidas, até efectivo e integral pagamento.
j) As custas e demais encargos processuais a cargo da Ré, por só ela, em exclusivo, ter dado causa à presente acção.
Alega, em síntese, que: No dia 10/04/2019, em Vila Nova de Gaia, quando trabalhava como Gerente de Postos de Abastecimento Combustível, sob as ordens, direcção e fiscalização da “E…, S.A.”; Quando verificava a dobradiça da tampa de uma arca frigorífica, uma mola saltou e atingi-o no olho direito; À data do acidente, o Autor exercia as funções de Gerente de Postos de Abastecimento de Combustíveis, e auferia o salário anual global de € 21.923,22; Como consequência desse acidente, resultaram para o Autor ferida córneo-escleral grave e perda de conteúdo do olho direito; A responsabilidade infortunística por acidentes de trabalho encontrava-se transferida, para a Ré, titulado pela apólice nº ………., com base na retribuição e subsídios referidos; A data de consolidação médico-legal das lesões do Autor é 10/04/2020; padeceu de incapacidades temporárias, que não foram pagas na totalidade; o exame do INML não prevê a totalidade das sequelas decorrentes das lesões; As sequelas determinam a necessidade de receber cuidados médicos, medicamentosos e farmacêuticos, para toda a vida; Sendo ainda necessário o acompanhamento regular por oftalmologista, para controlo e vigilância dos sintomas, e evolução e adaptação das terapêuticas mais adequadas ao estado de saúde do Autor em cada momento; Teve despesas que não foram objecto de discussão na tentativa de conciliação, por manifesto lapso do Autor.
Foi proferido despacho no qual se decidiu a final: “indefere-se liminarmente a presente petição inicial.” Os autos prosseguiram para realização de junta médica solicitada pela ré seguradora.
Fixou-se à acção o valor de € 5.000,01.
Inconformado, interpôs o sinistrado o presente recurso de apelação, em separado, formulando as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso do Despacho proferido pelo Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia – Juiz 2 – que indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada, por via da qual o recorrente pretendeu dar início à fase contenciosa dos autos de acidente de trabalho em que é sinistrado.
II. Por se tratar de decisão que rejeita o identificado articulado e, decorrentemente, o requerimento para realização de junta médica e demais meios de prova ali requeridos, é a mesma susceptível de recurso de apelação, nos termos previstos no art. 79º-A, nº 2, alínea d) do CPT.
III. Nos termos do disposto no art. 79º, alínea b) do CPT, é sempre admissível recurso para a Relação nos processos emergentes de acidente de trabalho.
IV. Do Auto de Não Conciliação constante da fase conciliatória, constata-se existir divergência entre o sinistrado e a seguradora não só quanto à questão da incapacidade (grau), mas também quanto aos períodos de incapacidades temporárias (absolutas e parciais) sofridas pelo sinistrado e respectivas percentagens, e ainda no que se refere às lesões sofridas pelo recorrente como consequência do acidente de trabalho dos autos (nexo causal).
V. Nos termos conjugados do disposto nos arts. 117º, nº 1, alínea a) e 138º, nº 2 do CPT, a apresentação da petição inicial é o acto processual próprio para dar início à fase contenciosa quando estejam em causa questões para além da previsão da alínea b) do art. 117º, nº 1, que implicam alegação de factos pelas partes nos respectivos articulados, saneamento do processo, indicação de meios de prova, julgamento com produção de prova e Sentença.
VI. Uma vez que a expressão “resultado da perícia médica”, constante do nº 2 do art. 138º do CPT, abrange apenas o grau e natureza da incapacidade a atribuir na IPP a fixar ao sinistrado.
VII. No caso dos autos, as divergências identificadas na conclusão IV, impõem ao Tribunal que, sem prejuízo da realização da Junta Médica como meio de prova privilegiado para comprovação dos correspondentes factos, não rejeite outros meios de prova coadjuvantes do pretendido resultado.
VIII. Como seja a análise da documentação junta aos autos e da informação e demais documentação cuja junção ao processo pela Ré Seguradora foi requerida pelo Autor, mas também a prova testemunhal que se poderá revelar útil e até mesmo essencial, concretamente o depoimento do Médico assistente do sinistrado.
IX. A utilidade, ou mesmo essencialidade dos referidos meios de prova complementares, é tanto mais evidente quando está em discussão a determinação dos períodos e percentagens das incapacidades temporárias sofridas pelo recorrente, a repercussão que as sequelas sofridas têm na sua vida diária, pessoal e profissional, e ainda apurar a totalidade das lesões sofridas pelo Autor na sequência do acidente.
X. Além do mais, considerando que os créditos provenientes do direito às prestações em caso de acidente laboral são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis, sendo assim de natureza indisponível, tem para si o recorrente que não lhe deve ser negada a possibilidade de provar as despesas que alegou e a sua relação com o evento infortunístico, e também que o Tribunal pode e deve condenar a Seguradora no seu pagamento quando assim aconteça.
XI. Por todas as razões apontadas, não poderia a Tribunal “a quo” indeferir liminarmente e petição inicial, impondo-se-lhe, pelo contrário, a sua admissão e notificação da Seguradora para contestar, seguindo-se os ulteriores termos processuais.
XII. Subsidiariamente, ainda que se entenda que o recorrente está legalmente impedido de apresentar a petição inicial, sempre ao Tribunal “a quo” estava vedado indeferi-la liminarmente, impondo-se, declarando verificado o erro na forma do processo, determinar o prosseguimento dos autos com a tramitação prevista nos arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º do CPT.
XIII. Com aproveitamento de todo o processado na parte que respeita ao pedido de realização de Junta Médica, quesitos formulados pelo Autor e exposição factual que respeita a esta parte, por aplicação do disposto no art. 193º, nº 1 do CPC.
XIV. Ao decidir em sentido diverso do exposto na presente alegação, o Despacho recorrido violou o disposto no art. 117º, nº 1, alíneas a) e b) do CPT, art. 138º, nº 1 e 2 do CPT, e art. 193º, nº 1 do CPC.
A seguradora não apresentou alegações.
O Ilustre Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, tendo emitido parecer no sentido do provimento do recurso, parecer a que as partes não responderam.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 3 e 4, e 639º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
A questão colocada consiste em determinar da validade do indeferimento liminar da petição inicial apresentada pelo recorrente.
Importa considerar a factualidade descrita no relatório supra.
Do mérito do recurso
É o seguinte o teor do despacho sob recurso:
“Veio o A. apresentar petição inicial, nos termos do disposto no art. 117º nº 1 al. a) do CPT, a fls. 52 e seguintes e pelos fundamentos aí constantes.
Por sua vez, a Ré Seguradora, tinha vindo a fls. 45 e ss, apresentar requerimento nos termos do disposto no art. 117º nº 1 al b) do CPT, requerendo exame por junta medica.
Vejamos,
Os processos de acidente de trabalho têm uma tramitação especifica regida pelos artigos 99º e ss do CPT, iniciando-se com uma fase conciliatória dirigida ao Ministério Público, tendo por base a participação do acidente, a ser feita nos termos do artigo 90º e 92º da Lei 98/2009, de 04.09. Esta fase culmina com uma tentativa de conciliação nos serviços do MP (artigo 108º do CPT). Apenas se as partes não acordarem, nomeadamente, relativamente à existência e caraterização do acidente, nexo de causalidade entre a lesão e o acidente, retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau de incapacidade atribuída, poder-se-á dar inicio à fase contenciosa do processo (artigo 117º nº 1 al b) do CPT) em que o sinistrado, através de uma petição inicial, formulará a sua pretensão.
Nos presentes autos teve lugar, na fase conciliatória a tentativa de conciliação em 20.5.2021, na qual (transcrevemos):
Aberta a diligência pelo sinistrado foi dito:
Que no dia 10-04-2019, quando, em Vila Nova de Gaia, trabalhava como Gerente de Postos de Abastecimentos de Combustíveis, sob as ordens, direcção e fiscalização de E…, SA, com sede em …. …, ….-… …, foi vitima de um acidente de trabalho que consistiu em:
Quando verificava a dobradiça da tampa de uma arca frigorífica, uma mola saltou e atingiu-o no olho direito.
Auferia, à data do acidente, o salário anual de € 1.075,00 x 14 meses + € 6,41 x 22 x 11 meses (subsídio de alimentação) + € 107,50 x 12 meses (Prémio de Assiduidade) + € 336,00 x 12 meses (Prémio de Produtividade) (SA = € 21.923,22) e a sua responsabilidade estava transferida para a supra referida Seguradora.
Como consequência desse acidente resultaram-lhe as lesões descritas no auto de exame médico efectuado no INML e constante a fls. 30 a 32v. dos presentes autos, e em consequência do que ficou afectado de incapacidade permanente parcial com o coeficiente global de 32,10 %, COM A QUAL NÃO CONCORDA.
Não se encontra pago de todas as indemnizações devidas até à data da alta, não gastou qualquer quantia em honorários clínicos ou medicamentos e gastou a quantia de € 15,00 em transportes para se deslocar a este Tribunal e ao INML, no Porto.
Face ao exposto reclama:
1 - o pagamento, a partir do dia 10-04-2020, dia seguinte ao da alta, da pensãoanual e vitalícia a que vier a ter direito, calculada com base no Art. 48 nº 3 al c) daLei 98/2009 de 04/09, no salário atrás indicados e na I.P.P. que lhe vier a ser atribuída em Junta Médica.
2 - a quantia de € 15,00 despendida em transportes para se deslocar a este Tribunal e ao INML, no Porto;
3 - o montante de € 1.368,11 referente a diferenças nos períodos de IT's não paga;
4 - Finalmente reclama, sobre o capital de remição, os juros de mora que se contabilizarem à taxa legal anual de 4 % desde a data do seu vencimento até à data da sua efectiva entrega
5 - Aceita que o pagamento que lhe é devido seja efectuado por transferência bancária indicando, para o efeito, o IBAN da sua conta PT ………………….., juntando, neste momento o seu comprovativo.
Pelo legal representante da Seguradora foi dito que:
1 - a sua representada aceita o acidente dos autos como sendo de trabalho;
2- aceita o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões constantes no seu boletim de alta;
3 - não aceita os períodos de IT's atribuídos pelo INML, só mesmo aceitando as IT's e períodos de IT's que constam na sua documentação clínica;
4 - aceita pagar a quantia de € 15,00 despendido em transportes.
5 - aceita o salário reclamado pelo Sinistrado, ou seja € 1.075,00 x 14 meses + € 6,41 x 22 x 11 meses (subsídio de alimentação) + € 107,50 x 12 meses (Prémio de Assiduidade) + € 336,00 x 12 meses (Prémio de Produtividade) (SA = € 21.923,22);
6 - Não aceita, também, a IPP fixada pelo INML uma vez que os peritos médicos da sua representada são do parecer que o Sinistrado se encontra curado com uma IPP 24,34 %.7 - aceitando, assim, pagar uma pensão anual e vitalícia de € 3.735,28, a pagar em duodécimos e no seu domicílio, com inicio em 10-04-2020, dia seguinte ao da alta;
*
Daqui decorre inequivocamente, que apenas estão controvertidas as questões atinentes à IPP a atribuir decorrente das sequelas do acidente invocado nos autos, aceite já como de trabalho, e bem ainda os períodos e percentagem das incapacidades temporárias sofridas pelo sinistrado em consequência do acidente subjacente aos autos.
Assim, é legalmente inadmissível a apresentação de p.i, na qual o A venha invocar outras despesas de deslocação/transporte, para além dos 15,00 reclamados na tentativa de conciliação, e aceites pela Ré Seguradora; E bem ainda despesas com tratamentos, que na tentativa de conciliação declarou expressamente não ter despendido.
Concluímos assim que petição inicial apresentada não é o meio próprio e adequado ao A. satisfazer a sua pretensão para que lhe seja fixada uma IPP, e bem ainda as ITs decorrentes do acidente.
Pelo exposto, indefere-se liminarmente a presente petição inicial.
Insurge-se o recorrente, alegando: “a discordância entre o sinistrado e a seguradora foi para além da questão relativa ao grau e natureza da incapacidade para o trabalho, nomeadamente, por também ter incidido sobre os períodos de IT’s, e percentagem das incapacidades temporárias, com reflexos na indemnização devida por estas incapacidades, mas também porque a Ré Seguradora apenas aceitou o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões constantes no seu boletim de alta. (…) Portanto, no caso dos autos é bem patente uma situação de divergência quanto às datas ou períodos de incapacidade temporária do sinistrado, em que para a melhor decisão dessa questão serão úteis ou mesmo imprescindíveis outros meios de prova para além da perícia por junta médica, designadamente, a prova documental existente nos autos e junta na fase conciliatória, e eventualmente a prova testemunhal que possa sobrevir como adequada a dirimir ou explicar a divergência da posição da Seguradora no que respeita à não aceitação dos períodos fixados pela própria. (…) Ainda no domínio da incapacidade que não aceitou, depois de identificar as sequelas omitidas no exame do INML que lhe demandam uma IPP superior aos 32,10%, e como decorrência dessas sequelas existentes e incapacidade de que padece, o A. sinistrado alegou a repercussão das mesmas no seu dia a dia, na sua vida pessoal e profissional, reivindicando como consequência directa, necessária e adequada, a prestação de cuidados médicos, medicamentosos e farmacêuticos para toda a vida, e até eventualmente cirúrgicos. (…) A Ré Seguradora, apenas aceitou o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões constantes no seu boletim de alta, pelo que sempre cumprirá indagar quais as lesões efectivamente sofridas pelo sinistrado como consequência do acidente. (…) estas despesas não foram objecto de discussão na tentativa de conciliação que teve lugar no dia 20/05/2021 por manifesto lapso do Autor, mas, rigorosamente, não tinham necessariamente que ser apreciadas na fase conciliatória, uma vez que não constam do elenco das matérias de que se deve conhecer nessa altura, (…)Ainda que se entenda que o recorrente está legalmente impossibilitado de apresentar a petição inicial – o que aqui se admite por cautela e dever de patrocínio – sempre ao Tribunal “a quo” estava vedado indeferi-la liminarmente, impondo-se, declarando verificado o erro na forma do processo, determinar o prosseguimento dos autos com a tramitação prevista nos arts. 117º, nº 1, al. b) e 138º do CPT, com aproveitamento de todo o processado na parte que respeita ao pedido de realização de Junta Médica, quesitos formulados pelo Autor e exposição factual que respeita a esta parte, por aplicação do disposto no art. 193º, nº 1 do CPC.”
Nos termos do art. 138º, nº 1, do CPT, quando não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, a parte requer, na petição inicial ou na contestação, perícia por junta médica.
Este artigo apenas preceitua que a perícia por junta médica, por discordância da realizada na fase conciliatória do processo, deve ser requerida na petição inicial da fase contenciosa, caso hajam outras questões a discutir na fase contenciosa, para além das que se relacionam com tal perícia. Efectivamente, como resulta do nº 2, do mesmo preceito, se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em simples requerimento.
A questão prende-se com a interpretação dos arts. 111º e 112º do CPT, e, em face desta interpretação, se pode considerar que na tentativa de conciliação a divergência das partes se reduziu a uma “discordância quanto à questão da incapacidade”, ou se ultrapassa esta.
Dispõe-se no art. 111º do CPT que dos autos de acordo constam, além da identificação completa dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que lhes são atribuídos e ainda a descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos referidos direitos e obrigações.
Acrescentando-se no art. 112º, nº 1, do mesmo Código, que, se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.
No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Outubro de 2019, processo 5068/17.8T8LRA-A.C1, acessível em www.dgsi.pt, entendeu-se que: “Do confronto daqueles normativos (artigos 111º e 112º do CPT) podemos concluir que não é possível a posterior discussão de questões acordadas em auto de conciliação, nem o posterior conhecimento de questões não apreciadas nem referidas nesse auto. Os efeitos delimitadores da tentativa de conciliação no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho limitam a reclamação ou a proibição de questões que aí não foram suscitadas.”
Seguramente que é este o entendimento seguido no despacho sob recurso.
Não é esta, porém, a posição que se tem seguido nesta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto. Conforme se refere no acórdão deste Tribunal de 16 de Dezembro de 2015, processo 19/14.4TUVNG.P1, acessível em www.dgsi.pt, citado pelo Ilustre Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “Do teor do citado normativo [art. 112º do CPT] conclui-se que só os factos admitidos por acordo, e consignados na acta de tentativa de conciliação, é que são considerados assentes, todos os outros com interesse para a decisão da causa passam a ser factos controvertidos e, como tal, sujeitos a discussão na fase contenciosa da acção – cf. artigo 131.º, n.º 1, alíneas c) e d) do CPT).” Este mesmo colectivo pronunciou-se no mesmo sentido no acórdão de 11 de Abril de 2018, processo 3273/15.0T8PNF.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt, no qual se acrescenta, a propósito de despesas não reclamadas no processo, ainda que já efectuadas: “não há caso julgado quanto a esta questão. O tribunal a quo não foi confrontado com o pedido destas despesas na sentença e, logo, não emitiu qualquer pronúncia sobre elas. O tribunal quando fez constar da sentença que “Foram-lhe pagas todas as indemnizações e demais despesas acessórias que eram devidas até à data da alta", procede a uma afirmação genérica e parte do que foi alegado pelas partes. Ora, nem a sinistrada nem a autora sujeitaram ao tribunal qualquer pedido de apreciação sobre essas despesas.”
Efectivamente, conforme se salienta no acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Novembro de 2019, processo 1989/16.3T8AVR.P1, igualmente acessível em www.dgsi.pt, “No campo da reparação emergente de acidente de trabalho, prevista na Lei 98/2009, de 04.09, os direitos dela decorrentes têm natureza indisponível como decorre do disposto no art. 78º do citado diploma, o qual dispõe que: “[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho”. E, bem assim, no art. 12º da citada Lei, nos termos do qual: “1. É nula a convenção contrária aos direitos ou garantias conferidos na presente lei ou com eles incompatível. 2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos conferidos na presente lei. 3. (…)” Por outro lado, essa irrenunciabilidade, e consequente indisponibilidade, estende-se também à questão da determinação da entidade responsável pela reparação, não podendo o titular do direito à reparação prescindir do direito de que porventura possa ser titular em relação a alguma das entidades que pudessem eventualmente vir a ser responsabilizadas (seguradora ou empregadora).”
Assim, entende-se ser inadmissível a renúncia aos direitos emergentes de acidente de trabalho, quer directa, quer indirectamente, através da falta de reclamação na aludida tentativa de conciliação. Como, em nosso entender, resulta da redacção dos referidos arts. 111º e 112º, nº 1, do CPT, esta apenas vincula as partes relativamente aos pontos directamente abordados e acordados pelas partes e não para além destes.
No mesmo sentido veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 26 de Setembro de 2019, processo 144/07.8TTLMG.2.G1, acessível em www.dgsi.pt, de cujo sumário consta: “O processo destinado à efectivação de direitos emergentes de acidente de trabalho, atenta a imperatividade, indisponibilidade, irrenunciabilidade e oficiosidade que lhes são inerentes, pode ser reaberto para conhecimento de direitos que, por qualquer razão, não tenham sido apreciados até à decisão final, só se verificando caso julgado relativamente aos que foram expressa e concretamente apreciados.” Vejam-se ainda os acórdãos do STJ de 14 de Dezembro de 2006, processo 06S789, igualmente acessível em www.dgsi.pt, e de 11 de Maio de 2017, processo 1508/10.5TTLSB.L1.S1, acessível em www.direitoemdia.pt.
Analisando o caso concreto.
Consta do “auto de não conciliação”:
1. “Como consequência desse acidente resultaram-lhe as lesões descritas no auto de exame médico efectuado no INML e constante a fls. 30 a 32v. dos presentes autos, e em consequência do que ficou afectado de incapacidade permanente parcial com o coeficiente global de 32,10 %, COM A QUAL NÃO CONCORDA.”
2. “Não se encontra pago de todas as indemnizações devidas até à data da alta, não gastou qualquer quantia em honorários clínicos ou medicamentos e gastou a quantia de € 15,00 em transportes para se deslocar a este Tribunal e ao INML, no Porto.”
3. “Face ao exposto reclama: (...) 3 - o montante de € 1.368,11 referente a diferenças nos períodos de IT's não paga.”
4. “Pelo legal representante da Seguradora foi dito que: (...) 3 - não aceita os períodos de IT's atribuídos pelo INML, (...) 6 - Não aceita, também, a IPP fixada pelo INML, (...)”.
Como se pode verificar da leitura do auto de “não conciliação”, os únicos pontos de acordo dizem respeito à caracterização do sinistro como acidente de trabalho, embora se trate de uma conclusão, pressupõe-se que tal afirmação constitua aceitação dos factos que descrevem o sinistro antes referidos, a remuneração do sinistrado e a despesa então reclamada.
Na petição inicial o autor conclui pedindo, além do já resultante do “auto” referido e alegando os factos causais de tais pedidos:
e) Ser a Ré condenada a assegurar ao Autor a assistência médica e cirúrgica, geral ou da especialidade oftalmológica, incluindo todos os elementos de diagnóstico e de tratamento necessários, e toda a assistência medicamentosa e farmacêutica regular, que se mostrem necessárias e adequadas ao seu estado de saúde e à sua capacidade para o trabalho ou de ganho, bem assim como à recuperação para a sua vida ativa.
f) Ser a Ré condenada a suportar as despesas de reparação ou renovação dos dois pares de óculos – escuros e normais – que constituem as ajudas técnicas de protecção ocular já fornecidos ao Autor, que se venham a revelar necessárias, ocorridas por deterioração em consequência de uso ou desgaste normal, adequadas ao seu estado de saúde e à sua capacidade para o trabalho ou de ganho, bem assim como à recuperação para a sua vida ativa.
g) Ser a Ré condenada a pagar ao A. a quantia de € 93,62 a título de reembolso de despesas havidas com medicamentos e deslocação em viatura própria a consulta oftalmológica a Coimbra relacionada com o sinistro laboral, e autorizada pelos serviços da Ré.
Tratando-se de questões não analisadas na tentativa de conciliação, nos termos já pontados supra, não se pode considerar que esteja vedado ao sinistrado formular os pedidos em questão em petição inicial, nos termos do art. 138º, nº 1, do CPT. Por outro lado, no despacho recorrido não se faz menção aos tratamentos e despesas médicas futuras alegadas pelo sinistrado.
Conforme refere o Ilustre Magistrado do Ministério Público, “Sinistrado e seguradora não se conciliaram e não apenas quanto à questão da incapacidade. Não havendo conciliação tem lugar a fase contenciosa do processo. E, neste caso, Autor e Ré requereram, a abertura da fase contenciosa; o Autor apresentando a petição inicial, e a Ré, o requerimento para realização de junta médica.”
Nestes termos, procede a apelação, anulando-se a decisão a fim de o Tribunal fazer prosseguir os autos com admissão da petição inicial formulada pelo autor.
Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão sob recurso, a qual deverá ser substituída pelo despacho de citação da ré demandada, ou de aperfeiçoamento da petição inicial, se for o caso, e consequente tramitação processual.
Custas na proporção do vencimento/decaimento que vier a ser decidido a final, em virtude da seguradora recorrida não ter apresentado alegações.

Porto, 15 de Dezembro de 2021
Rui Penha
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes