Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
316/14.9TUPRT.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: TERESA SÁ LOPES
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
RESPONSABILIDADE
REPARAÇÃO DO DANO
DIREITOS INDISPONÍVEIS
CONHECIMENTO OFICIOSO
RESPONSABILIDADE DO FAT
Nº do Documento: RP20220314316/14.9TUPRT.P2
Data do Acordão: 03/14/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSOS IMPROCEDENTES.
ALTERADA SENTENÇA OFICIOSA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - É ao empregador, em caso de violação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, que cabe reparar os danos provindos do acidente de trabalho de que haja sido vítima o trabalhador ao seu serviço – artigo 18.º, nºs 1 e 3, da LAT –, sem prejuízo do direito de regresso que lhe assista quando essa violação seja imputável a um terceiro.
II - Tratando-se de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores peticionados.»
III - Tendo ocorrido violação das regras de segurança por parte da Entidade patronal, o interveniente FAT responde nos precisos termos em que responderia a Entidade patronal, se, entretanto, esta não tivesse sido declarada insolvente, nos termos dos artigos 18° e 79°, ambos da Lei nº 98/2009, de 04/09, o que implica distinguir a respetiva responsabilidade relativamente à responsabilidade da Ré Seguradora.
(sumário extraído em parte do sumário proferido no Acórdão nº6652/18.8T8VNG.P1, referenciado nos autos)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo: 316/14.9TUPRT.P1
Tribunal da Comarca ..., Juízo do Trabalho ... – juiz ...
Relatora: Teresa Sá Lopes
1º Adjunto: Desembargador António Luís Carvalhão
2º Adjunto: Desembargador Domingos Morais
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
1. Relatório:
AA, em 06.12.2017, intentou ação especial emergente de acidente de trabalho contra Companhia de Seguros X..., S.A., C... Unipessoal, Lda. e I..., IP, representado pelo Centro Distrital ..., alegando ter sido vítima de acidente de trabalho do qual resultaram danos de natureza patrimonial e não patrimonial, peticionado seja proferida decisão a:
a) fixar ao Autor uma incapacidade permanente absoluta para a atividade profissional habitual;
b) condenar as Rés, na proporção da sua responsabilidade, no pagamento da uma pensão anual e vitalícia no valor de 5.534,06€, calculada nos termos do disposto no artigo 48º nº 3 alínea b) da Lei 98/2009 de 4 de Setembro;
c) condenar a 1ª Ré a prestar ao A. toda a assistência médica e cirúrgica, geral ou especializada, farmacêutica e hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde;
d) fixar uma nova data da consolidação das lesões sofridas pelo Autor;
e) em consequência do requerido em d) serem as Rés condenadas ao pagamento ao Autor, do valor devido a título de retribuições e subsídio de alimentação, relativo ao período em que padeceu de incapacidade temporária absoluta;
f) condenar a 1ª Ré no pagamento do valor de 1.392,35€, a titulo de despesas de deslocações para realização de consultas e tratamentos médicos, quer para o Hospital ..., quer para o Centro de Saúde ... quer para os tratamentos de fisioterapia que, entretanto, fez na Clinica..., em consequência do acidente de trabalho;
g) condenar a 1ª Ré no pagamento da quantia de 18,50€, como ressarcimento das despesas de transporte efetuadas pelo Autor ao Tribunal e ao Instituto de Medicina Legal, como consequência deste acidente;
h) condenar a 1ª Ré no pagamento do valor de 1.246,57€ a título de pagamento de taxas moderadoras, consultas medicas, tratamentos de fisioterapia, exames complementares e medicamentos, em consequência do acidente de trabalho;
Subsidiariamente, e caso não proceda o peticionado em a) e b),
i) condenar as Rés na proporção da sua responsabilidade no pagamento da quantia de 21.810,60€ como remissão da pensão anual de 1.433,87€ por incapacidade permanente parcial de 25,91%.
Subsidiariamente, e caso não proceda o peticionado em d) e e),
j) condenar a 1ª Ré ao pagamento do valor total de 15.811,60€, devido a título retribuições e subsídio de alimentação, relativo ao período em que padeceu de incapacidade temporária absoluta;
k) condenar as Rés ao pagamento de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, sobre cada uma das quantias referidas nos pedidos antecedentes, desde as respectivas datas de vencimento até efetivo e integral pagamento.

Em 11.12.2017 foi determinada a citação das Rés e da Segurança Social.
Foi citada a 1ª Ré e a Segurança Social.
Foi junta informação do Juízo do Comércio ... – Juiz ..., dando conta de que por sentença proferida em 15.11.2017, foi declarada a Insolvência da 2ª Ré.
A informação junta aos autos oriunda daquele Tribunal, não foi notificada às partes.

A 1ª Ré, Seguradora, apresentou a contestação, imputando ao Autor a responsabilidade pelo eclodir do acidente.

O ISS veio reclamar a quantia de €15.524,33 (quinze mil quinhentos e vinte e quatro euros e trinta e três cêntimos), pagos a título de subsídio de doença, no período decorrido entre 10 de março de 2014 a 27 de fevereiro de 2017.

Foi proferido o despacho saneador, nomeadamente, considerando-se que as partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias. Não foram conhecidas nulidades.
Foram fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória.

Instruiu-se e decidiu-se o competente apenso para fixação do grau de IPP.
Lê-se em tal decisão:
“Pelo exposto, decide-se que o sinistrado é portador de Incapacidade Permanente Parcial (I.P.P.) de 25,91%, desde 18.01.2016, data da alta médica.”.

Veio a realizar-se a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, de cujo dispositivo consta:
“Nestes termos, julgo totalmente improcedente por não provada a ação instaurada por AA contra a Companhia de Seguros X..., S.A., SA, e a C..., Unipessoal, Lda absolvendo dos pedidos, as mesmas.
Custas pelo Autor, sendo certo que o mesmo se encontra isento.”.

Não se conformando com o assim decidido, apelou o Autor.
Em 17.02.2020, foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
- anular todo o processado efetuado desde a junção aos autos da informação relativa à declaração de insolvência da 2ª Ré, Entidade empregadora, por falta de citação do Fundo de Acidentes de Trabalho, cuja intervenção nos autos deve oficiosamente assim ser suscitada, podendo o mesmo Fundo exercer na ação os direitos processuais que assistiriam à Entidade empregadora.
Sem custas.

Foi citado o Fundo Acidentes de Trabalho que deduziu contestação, pugnando pela improcedência da ação e pela sua absolvição.
Foi proferido despacho saneador.
Foi fixado o objeto do litígio e a base instrutória.

Foi realizada a audiência de julgamento.
Foi proferida sentença, a qual terminou com o seguinte dispositivo:
“Em face do exposto, julgo parcialmente procedente por provada a ação instaurada por AA e condeno a Ré Companhia de Seguros X..., S.A., a título da responsável subsidiária (nº 2 do artº 37º, da Lei n.º 100/97) e o Fundo de Acidentes de Trabalho (artº 1º do DL n.º 142/99, de 30 de abril, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL n.º 185/2007, de 10 de Maio), a pagarem àquele, com efeitos a partir de dia 19 de janeiro de 2016 (dia seguinte à data da alta)
a) a pensão anual e vitalícia de €4.647,87;
b) o subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de €4.303,73.
c) a quantia de €3.326,69, a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta.
d) a quantia de €18,50, a título de indemnização por despesas de deslocação desta.
e) a pagar o valor de €1.392,35, a titulo de despesas de deslocações para realização de consultas e tratamentos médicos, quer para o Hospital ..., quer para o Centro de Saúde ... quer para os tratamentos de fisioterapia que entretanto fez, na Clinica..., em consequência do acidente de trabalho;
f) a pagar o valor de €1.246,57 a título de pagamento de taxas moderadoras, consultas medicas, tratamentos de fisioterapia, exames complementares e medicamentos, em consequência do acidente de trabalho.
Vai ainda a Ré Companhia de Seguros X..., S.A. a prestar ao Autor toda a assistência médica e cirúrgica, geral ou especializada, farmacêutica e hospitalar e quaisquer outras, seja qual for a sua forma, desde que necessárias e adequadas ao restabelecimento do estado de saúde;
Condeno ainda a Ré Companhia de Seguros X..., S.A., e o Fundo de Acidentes de Trabalho, nos termos atrás referidos, a pagar à Segurança Social a quantia de €8.955,6, a título de prestações de subsídio de doença pagos por esta entidade ao Autor por força do mesmo acidente de trabalho.
A seguradora vai, ainda, condenada a pagar juros de mora incidentes sobre as prestações a cujo pagamento foi solidariamente condenada, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento, à taxa legal.
Custas a cargo do Autor e das Rés na proporção das respetivas sucumbências, sem prejuízo da isenção de que aquele goza.
Notifique e registe.
Valor da ação: € 23.890,81”.
Notificada, a Ré Seguradora veio interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:
“1 - Em sede de primeira audiência de discussão e julgamento, foi proferida Douta Sentença sob a Referência Citius nº ..., em 02/04/2019, na qual, concluindo-se pela descaracterização do acidente como sendo de trabalho, absolveu a demandada dos pedidos formulados.
2 - Em sede de segunda audiência de discussão e julgamento, foi proferida Douta Sentença sob a Referência Citius nº ..., em 09/07/2021, na qual, concluindo-se pela verificação do acidente como sendo de trabalho, embora por culpa da entidade empregadora, condenou a demandada no pagamento das respetivas indemnizações.
3 - Ambas as Doutas Sentenças foram proferidas pela mesma Excelentíssima Senhora Doutora Juíza; ou seja, em ambas as Doutas Sentenças a prova produzida, toda a prova produzida, foi apreciada e decidida pela mesma Excelentíssima Senhora Doutora Juíza.
4 - Perante a mesma prova, como é que a mesma Excelentíssima Senhora Doutora Juíza pôde decidir de forma tão distinta?
5 - Aquando da segunda audiência de discussão e julgamento, não foi produzida qualquer prova, tendo todas as partes dada por reproduzida toda a prova já carreada para os autos, documental e testemunhal.
6 - Não foi produzida, nem prova nova, nem prova complementar, à já existente nos autos; isso mesmo é visível da respetiva ata.
7 - Aquando da primeira audiência de discussão e julgamento, a resposta à matéria de facto foi produzida com base na conjugação entre a prova documental e a prova testemunhal, tendo a Excelentíssima Senhora Doutora Juíza beneficiado, quer do princípio da livre apreciação da prova, quer do princípio da Imediação.
8 - E formulou a sua convicção, designadamente quanto à prova documental, com base nesses mesmos princípios, concretamente através da apreciação e valoração da reação e postura, quer das testemunhas, quer do próprio demandante, que produziu depoimento em sede de declarações de parte.
9 - Não se entende, nem tão pouco se aceita, que, sobre a mesma prova, se produza valoração e juízos diferentes, só porque, nos dizeres da própria Douta Sentença, “o Tribunal mostrou-se sensível às considerações feitas em sede do Douto Acórdão do Tribunal da relação do Porto, de 17 de Fevereiro de 2020” (sublinhado e carregado nosso).
10 - O que foi determinado em sede desse mesmo Douto Acórdão foi que se anulasse todo o processado até à audiência de discussão e julgamento PARA QUE FOSSE CITADO O FAT E INTERVIESSE EM REPRESENTAÇÃO DA ENTIDADE EMPREGADORA, ENTRETANTO DECLARADA INSOLVENTE; NADA MAIS.
11 - Como tal, e nada havendo de novo em termos de meios de prova ou sua renovação, perante a mesma prova, TERIA A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA JUÍZA QUE TER DECIDIDO DA MESMA MANEIRA QUE ANTERIORMENTE DECIDIU.
12 - ISTO É, DANDO OS ARTºS 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º e 33º COMO PROVADOS, TERIA QUE SER DECIDIDA A DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE COMO SENDO DE TRABALHO.
13 - AO DECIDIR COMO DECIDIU, AO ARREPIO DA SUA PRÓPRIA CONVICÇÃO, A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA JUÍZA VIOLOU, DE FORMA CLARA E OSTENSIVA, QUER O PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA, QUER O PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO.
14 - ASSIM SENDO, TERÁ QUE SE CONCLUIR PELA DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE COMO SENDO DE TRABALHO.
15 - Ao decidir como decidiu, o Tribunal violou o disposto no nº 1 do artº 14º da Lei 98/2009, de 04/09, assim como violou, quer o princípio da livre apreciação da prova, quer o princípio da imediação.
NESTES TERMOS, dando provimento ao recurso e, por conseguinte, alterando a Douta Sentença recorrida no sentido de julgar improcedente a presente ação, absolvendo a demandada dos pedidos, com o que V. Exªs estarão a fazer, como aliás é timbre, INTEIRA JUSTIÇA!”.
O Sinistrado contra-alegou, formulando no final as seguintes conclusões:
“ 1. Vem a Y... SEGUROS, SA interpor recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, alegando que o recurso em causa "...visa a alteração da matéria de facto, assim como visa a alteração da solução de direito." (sublinhado e negrito nosso)
2. Nos termos do disposto nos artigos 1 n° 2 alínea a) do Código de Processo de Trabalho, adiante CPT e 640° do Código de Processo Civil, adiante, CPC, quando seja impugnada a matéria de facto, mormente a que a recorrente refere ser a alegada nos arts. 31°, 32°, 33° dos factos provados, existe um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respetiva fundamentação.
3. O ónus de impugnação previsto no art. 640°, n° 1, al. b) e c) e n° 2 do C.P.C. exige que o recorrente: especifique os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar, não sendo suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova (isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos facto sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso); a decisão que deve ser proferida sobre cada um dos factos impugnados, esclarecendo sobre o seu exato teor (isto é, a exata redação que pretende para cada um deles); e a indicação das passagens da gravação em que funda a sua sindicância, de novo para cada um dos depoimentos em causa.
4. Como está bem de ver, a R. não cumpriu o ónus que sobre si impendia nos termos do disposto no art 640 n° 1 do CPC, limitando-se a tecer considerações.
5. A falta de cumprimento do ónus de impugnação previsto no art. 640.°, n.°1 do CPC implica a rejeição imediata do recurso na parte afetada, uma vez que a lei não prevê a prolação de qualquer despacho de aperfeiçoamento dirigido à parte incumpridora.
6. Devendo V. Exas rejeitar de imediato o recurso a que responde na parte a que se refere a impugnação da matéria de facto.
7.Sem prescindir:
8. O presente recurso assenta na qualificação do acidente em crise como acidente de trabalho de que o Recorrido foi vítima e o direito indemnizatório do mesmo.
9. Não assiste qualquer razão à Recorrente.
10. A sentença em recurso está doutamente fundamentada e faz uma correta analise dos factos e aplicação do Direito, não merecendo qualquer reparo.
11.O douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 17.02.2020 anulou todo o processado determinando a intervenção do FAT, não pelo motivo único e exclusivo do FAT não ter intervindo ab initio, mas porque considerou que a impugnação efetuada pelo Apelante não ser inviável.
12. A Mma Juiz refere na sentença que: "Ora, o Tribunal mostrou-se sensível às considerações feitas, em sede do D. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de fevereiro de 2020.
Assim sendo procedeu-se à análise da prova produzida em sede de audiência e aos documentos juntos aos autos..."
13. Tal revela que de facto o tribunal a quo não se mostrou indiferente ao que o tribunal da Relação do Porto considerou levando a fazer um reexame e reanálise da prova produzida.
14.O acidente é de trabalho e como tal indemnizável nos termos do art. 1°, 2°, 8°, 23°, 39°, 48° e 71° da Lei 98/2009 de 4 de Setembro.
15. Veja-se que a 2ª Ré violou o previsto nos artigos 281.° e 282.° do CT.
16. Veja-se também o disposto nos arts. 18° e 79° da LAT.
17. O acidente em causa resulta da falta de observação das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho por parte da 2ªRé, sendo-lhe imputável tal omissão.
18. O circunstancialismo do acidente relativo à dinâmica e às razões que levaram a acontecer estão claramente patentes.
19. Tal acidente como se referiu supra poderia ter sido evitado se a 2ª Ré tivesse fornecido ao A. os equipamentos de segurança devidos, estando claramente demonstrado o nexo de causalidade adequada entre a omissão da 2ª Ré e o acidente.
20. 0ra como tal, e como supra alegado não estão preenchidos os requisitos cumulativos que descaraterizam o acidente dos autos e assim sendo o acidente em crise é um acidente de trabalho, nos termos do disposto no art. 8° da LAT,
21. Deve, pois, ser mantida a douta sentença proferida pela 1° instância, julgando-se totalmente improcedente o recurso interposto pela Recorrente. 
Nestes termos, deve o presente recurso ser rejeitado e improceder mantendo-se a sentença recorrida.”
O FAT interpôs recurso da sentença, terminando com as seguintes conclusões:
“1 - O FAT foi condenado solidariamente com a Ré seguradora, no pagamento ao sinistrado das prestações emergentes de acidente de trabalho.
2 - Contudo, não estabelece a Lei de acidentes de trabalho qualquer regime de solidariedade entre co-réus, sendo que o FAT, em substituição da entidade empregadora insolvente, responderá unicamente pelas prestações correspondentes ao salário não transferido.
3 - Tendo o acidente de trabalho a que reportam os presentes autos ocorrido em 14-01-2014, é- lhe aplicável a Lei n.° 98/2009, de 4 de setembro.
4 - Entendeu o Tribunal a quo que o acidente em causa se deveu a culpa da entidade empregadora, por violação das regras de segurança no trabalho.
5 - Nas situações de acidente ocorrido por falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade pela reparação recai sobre a entidade empregadora, sendo que cabe à seguradora o pagamento das prestações normais, caso não existisse atuação culposa da entidade empregadora.
6 - Tendo o FAT sido condenado em substituição da entidade empregadora, atenta a situação de insolvência desta última, apenas responderá pelo pagamento das diferenças relativas às indemnizações por incapacidades temporárias e pensões devidas, bem como pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respetiva proporção.
7 - O sinistrado auferia uma retribuição anual de 8.422,80€, não se encontrando transferida para a seguradora a quantia de 47,00€ x 11, pelo que o FAT apenas será responsável pelo pagamento das prestações calculadas com base nessa parcela retributiva, facto que não está devidamente contemplado na sentença.
8 - Não caberá a este Fundo proceder ele próprio ao cálculo das prestações da sua responsabilidade, pelo que os mesmos deverão estar fixados na parte decisória.
9 - Nestes termos, deverá ser revogada a sentença na parte em que condena o FAT solidariamente com a Ré seguradora, no pagamento das prestações fixadas ao sinistrado, devendo ser fixada a quota-parte da responsabilidade deste Fundo e, consequentemente, o valor das respetivas prestações.
10 - O FAT foi condenado, solidariamente, no pagamento ao sinistrado da quota-parte do subsídio por situação de elevada incapacidade;
11 - Dispõe o artigo 79°, n.° 4, da Lei n.° 98/2009, de 4 de setembro que quando a retribuição declarada para efeito do prémio seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição.
12 - O n.° 5 do mesmo artigo estabelece ainda que, no caso previsto no n.° 4, o empregador responde pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, bem como pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respetiva proporção.
13 - A cláusula 23° da apólice de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores por conta de outrem dispõe no n.° 1 que, no caso de a retribuição declarada ser inferior à real, o tomador de seguro responde pela parte das indemnizações por incapacidade temporária e pensões correspondente à diferença e, proporcionalmente, pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica.
14 - A enumeração das prestações cujo cálculo tem em conta a retribuição transferida e das prestações cujo cálculo não tem em conta o valor da retribuição transferida é taxativa.
15 - Não tendo o subsídio por situação de elevada incapacidade qualquer correlação com a retribuição do sinistrado, fica o mesmo coberto pela responsabilidade exclusiva da seguradora.
16 - No caso em concreto, não deveria ter existido condenação do FAT no pagamento do subsídio por situação de elevada incapacidade.
17 - Assim, não poderá o FAT ser responsável pelo pagamento de uma prestação que, originariamente, não poderia estar a cargo da entidade empregadora, pelo que deverá a sentença ser revogada nesta parte.
18 - O pagamento da quantia de 3.326,69€ a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta (ITA) ficou apenas a cargo da Ré seguradora (conforme decorre da página 37 da sentença).
19 - Tal quantia contempla a dedução do montante de 8.955,60€ pago pela Segurança Social a título de subsídio de doença em período coincidente com a ITA.
20 - Sendo a seguradora responsável pelo pagamento da indemnização por ITA, deverá a obrigação de reembolso à Segurança Social incidir apenas quanto a esta Ré.
21 - Pelo exposto, nenhuma responsabilidade deverá recair sobre o FAT quanto ao reembolso à Segurança Social do subsídio de doença, já que nenhuma quantia terá a deduzir, motivo pelo qual deverá a sentença ser revogada quanto a esta condenação.”
Em remate, afirma que deve ser concedido provimento ao presente recurso nos seguintes termos:
a) Revogando-se a sentença recorrida na parte em que condena o FAT solidariamente com a Ré seguradora, no pagamento das prestações fixadas ao sinistrado, devendo ser fixada a concreta quota-parte da responsabilidade deste Fundo e, consequentemente, o valor das respetivas prestações;
b) Revogando-se a sentença recorrida na parte em que condena o FAT solidariamente no pagamento do subsídio por situação de elevada incapacidade, por se tratar de uma prestação que, originariamente, não poderia estar a cargo da entidade empregadora;
c) Revogando-se também a sentença na parte em que condena o FAT solidariamente no reembolso à Segurança Social do subsídio de doença, já que nenhuma quantia terá este Fundo a deduzir à indemnização por incapacidades temporárias por não ser responsável pelo seu pagamento.”
A Ré Seguradora contra alegou nos seguintes termos:
“Salvo sempre o devido respeito, que aliás é muito, a tese vertida e defendida no recurso do interveniente, além de desprovida de qualquer sentido, não tem qualquer respaldo na lei, em qualquer lei.
Deve-se, desde logo, lembrar e recordar qual o motivo pelo qual o interveniente FAT foi citado para intervir nos presentes autos: ESTAVA EM CAUSA A VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA POR PARTE DA ENTIDADE PATRONAL, ENTRETANTO DECLARADA INSOLVENTE.
O que o interveniente FAT defende teria aplicação, sim, se não fosse expressamente considerado e declarado que o acidente dos autos apenas ocorreu por manifesta violação das regras de segurança por parte da entidade patronal.
Aí, sim, só responderia pela parte do salário não transferido.
Todavia, uma vez que ocorreu violação das regras de segurança por parte da entidade patronal, o interveniente FAT responde nos precisos termos em que responderia a entidade patronal, se entretanto esta não tivesse sido declarada insolvente.
Apenas não responde o interveniente FAT, nem pelo agravamento das pensões, nem por eventuais danos morais.
No mais, responde pela totalidade da responsabilidade que cabe à entidade patronal insolvente, nos precisos termos dos art°s 18° e 79°, ambos da Lei 98/2009, de 04/09.
Aliás, não deixa de ser sintomático que o Interveniente nem sequer tenha indicado as normas legais ou princípios gerais de direito que tenham sido violados na Douta Sentença em recurso.
Precisamente porque, em face da matéria de facto dada como provada, não houve qualquer violação de normas legais ou princípios gerais de direito.
Repete-se, em face da matéria de facto, NESTE MOMENTO, dada como provada, pois a aqui respondente também interpôs recurso, quer de facto, quer de direito, na eventual procedência daquele.
Assim sendo, caso se mantenha a matéria de facto, terá sempre o interveniente FAT que reembolsar a aqui respondente de TODAS AS QUANTIAS JÁ POR ESTA DESPENDIDAS, ASSIM COMO AS QUE VENHA A DESPENDER.
Sobre tal direito de regresso não podem subsistir quaisquer espécies de dúvidas, devendo, por conseguinte, confirmar-se e reconhecer-se, de forma expressa, esse mesmo direito de regresso.
Deverão, assim, ser julgadas improcedentes por não provadas as 21 conclusões do recurso apresentado pelo interveniente FAT.
NESTES TERMOS, e nos melhores de direito aplicáveis, deve o recurso do interveniente FAT ser julgado improcedente por não provado, como é da mais inteira e salutar”.

Pronunciou-se o Exm.º Procurador Geral Adjunto, em suma, no sentido de rejeição do recurso quanto à matéria de facto pela 2ª Recorrente e, no mais, que ambos os recursos não obtenham provimento.
2. Objeto do recurso:
O objeto de cada um dos recursos, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635º, nº4 e 639º, nº1 do Código de Processo Civil), salvo as questões de conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608º, nº2, in fine, e 635º, nº5, do Código de Processo Civil), consubstancia-se nas seguintes questões:
Recurso da Ré Seguradora:
- impugnação da matéria de facto;
- descaracterização do acidente como acidente de trabalho;
Recurso do FAT:
- responsabilidade do FAT no pagamento das prestações fixadas ao sinistrado, do subsídio por situação de elevada incapacidade e no reembolso à Segurança Social do subsídio de doença.
3. Fundamentação:
3.1. Fundamentação de facto:
3.1.1. Na Sentença ficaram elencados os seguintes factos provados:
1. C... Unipessoal,Lda, celebrou com a Companhia de Seguros X..., S.A. um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice ....5, nos termos do qual aquela transferiu para esta a responsabilidade infortunística por acidentes que envolvessem o Autor, pelo salário de € 535,00 x 14 meses, acrescido de subsídio de alimentação no valor de € 37,80 x 11 meses.
2. O Autor é beneficiário da Segurança Social, inscrito com o nº ...4.
3. O Autor nasceu em .../.../1971.
4. No dia 14 de janeiro de 2014, o Autor encontrava-se a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da Ré C..., Unipessoal, Lda, executando serviços de limpeza de vidros.
5. Por incumbência da entidade empregadora, o Autor encontrava-se a limpar os vidros das janelas dos escritórios de um cliente da Ré, situados no 1.º andar do edifício.
6. Nessas circunstâncias, o Autor escorregou e caiu, sem qualquer tipo de apoio e auxílio, de uma altura aproximadamente de 4 m.
7. No dia 15 de janeiro de 2014, o Autor deslocou-se aos serviços clínicos da 1ª Ré a fim de ser acompanhado pelos respetivos serviços médicos.
8. Dado o seu quadro clínico, o Autor foi submetido a operação osteossíntese dos dois calcâneos, em 28 de janeiro de 2014, no Hospital ..., operação a cargo dos serviços clínicos da 1ª Ré.
9. Tendo tido alta três dias depois desta cirurgia.
10. Como contrapartida do seu trabalho, o Autor auferia os seguintes valores:
a. Retribuição base ilíquido de 535,00€ (14 vezes por ano);
b. Subsídio de alimentação diário de 1,80€ (37,80€ x11meses).
11. Em consequência da queda referida em 6.º, o Instituto da Segurança Social pagou ao Autor a quantia de € 15.524,33 a título de subsídio por doença no período decorrido entre 10.03.2014 e 27.02.2017.
12. O Autor é portador de incapacidade permanente parcial (IPP) de 25,91%.
13.O acordo referido em 4.º dos factos assentes foi celebrado verbalmente com a 2ª Ré, C... Unipessoal, Lda no dia 24 de julho de 2008 (resposta ao item 1º).
13. Para além dos valores referidos em 10), o Autor auferia o valor do passe de rede geral STCP (ABC), no montante de € 47,00 mensais (resposta ao item 2º).
14. Na sequência da queda referida em 6.º dos factos assentes, o Autor embateu direta e bruscamente com os pés no solo, tendo fraturado os calcanhares de ambos os pés (resposta ao item 3º).
15. Logo após a ocorrência do acidente, o Autor deu entrada no Hospital ... - Centro Hospitalar ..., tendo sido transferido para o Hospital ... (resposta ao item 4º).
16. Após a cirurgia referida em 8.º dos factos assentes, o organismo do Autor rejeitou o material de osteossíntese (resposta ao item 5º).
17. Tendo a 1ª Ré recusado a continuação do seu acompanhamento médico, o que o obrigou a recorrer à médica da USF... (resposta ao item 6º).
18. Uma vez que apresentava infeção e complicações pós-operatórias (osteomielite crónica), a médica do USF encaminhou o Autor para o Hospital ..., onde o mesmo veio a ser submetido a nova cirurgia, em 12 de abril de 2014, tendo tido alta em 2 de maio de 2014 (resposta ao item 7º).
19. O Autor iniciou tratamentos de fisioterapia na Clinica... no verão de 2014, com intervalos, por episódios de infeção, até fevereiro de 2015 (resposta o item 8º).
20. No dia 7 de julho de 2015, devido a nova infeção, o Autor deu entrada no serviço de ortopedia no Hospital ... e a 8 de julho de 2015 voltou a ser operado ao pé esquerdo (resposta ao item 10º).
21. Teve alta definitiva em 18 de janeiro de 2016 da consulta de ortopedia do Hospital ... (resposta ao item 11º).
22. O Autor esteve em situação de incapacidade temporária absoluta de 15 de janeiro de 2014 a 18 de janeiro de 2016, num total de 734 dias (resposta ao item 12º).
23. Como consequência direta e necessária do acidente, a nível funcional, o Autor sofreu e apresenta as seguintes lesões e sequelas:
- Marcha claudicante, com recurso a ajudas técnicas (uma canadiana ). Membro inferior direito:
- cicatriz cirúrgica irregular e deprimida, em L, com dor referida ao toque localizada na face lateral do calcanhar e inferior à região maleolar com 10,5 cm de comprimento total.
- limitação da mobilidade articular do tornozelo ara todos os movimentos: extensão passiva máxima de 10º graus, flexão passiva máxima de 2º graus, sem movimentos de inversão e eversão;
- dor referida ao dorso do pé na flexão e a área do tendão de aquiles durante a execução do movimento de extensão do tornozelo;
- não consegue realizar agachamentos, não consegue caminhar em pontas o pés, nem em calcanhares;
Membro inferior esquerdo:
- cicatriz cirúrgica deprimida com dor referida à palpação, localizada na face lateral do calcanhar e inferior à região maleolar, com uma porção linear horizontal com 7 cm de comprimento de onde partem duas porções lineares e verticais, a mais posterior com 7 cm de comprimento e a mais anterior com 3,5 cm de comprimento;
- limitação da mobilidade articular do tornozelo para todos os movimentos: extensão passiva máxima de 30º graus, flexão passiva máxima de 8º raus, sem movimentos de inversão e eversão;
- dor referida à área anatómica do tendão de aquiles, durante a execução do movimento de extensão do tornozelo;
- não consegue realizar agachamento;
- não consegue caminhar em pontas dos pés, nem em calcanhares.(resposta ao item 13º).
24. Como consequência direta e necessária do acidente, o Autor apresenta as como sequela a dificuldade na marcha necessitando de apoio de canadianas ou de 3ª pessoa (resposta ao item 14º).
25. Ainda em consequência do acidente, o Autor encontra-se incapacitado para o exercício da sua atividade profissional habitual (resposta ao item 15º).
26. O Autor necessitará ainda de ajudas medicamentosas recorrentes e consultas da especialidade de Medicina Física e de Reabilitação para a avaliação da necessidade de realização de tratamentos por essa especialidade (resposta ao item 16º).
27. Desde a data do acidente até à presente data, encontra-se a ser seguido pelo SNS, mormente Centro de Saúde ... e ..., e continua a estar incapacitado em absoluto para o trabalho habitual (resposta ao item 17º).
28. O Autor ainda se encontra em tratamento das lesões sofridas na sequência do acidente que foi vítima (resposta ao item 18º).
29. O Autor por força do acidente de que foi vítima, suportou e tem suportado todas as despesas de deslocações para realização de consultas e tratamentos médicos, quer para o Hospital ..., quer para o Centro de Saúde ... quer para os tratamentos de fisioterapia que entretanto fez, na Clinica..., cujo montante total é de €1.392,35 (resposta ao item 19º).
30. Ainda em consequência do acidente, o Autor gastou €18,50 em deslocações para o tribunal e para o INML (resposta ao item 20º).
31. Bem como teve despesas no valor de €1.246,57 a título de pagamento de taxas moderadoras, tratamentos de fisioterapia, exames complementares, medicamentos e consultas médicas (resposta ao item 21º).
32. O Autor sente-se triste por se ver com dificuldades de se locomover (resposta ao item 22º).
33. O Autor era, antes do acidente, uma pessoa saudável e independente, sociável, trabalhando de forma muito ativa (resposta ao item 24º).
34. O Autor era, antes do acidente, dotado de agilidade, nomeadamente ao nível dos seus membros, gostava de praticar desporto, movimentos que na sequência das lesões e sequelas referidas do presente articulado, se encontram drasticamente limitados (resposta ao item 25º).
35. Após o acidente e como consequência do mesmo, o Autor sente dores, tornou-se uma pessoa triste, sentindo-se fisicamente diminuído (resposta ao item 26º).
36. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 4.º e 5.º da matéria assente, o Autor colocou-se do lado de fora das janelas, em cima de uma cobertura de chapa ali existente e efetuou a limpeza da janela direita, pelo lado de fora da mesma (resposta ao item 27º).
37. Posteriormente o Autor circulou pela cobertura exterior até à janela do lado esquerdo, com o intuito de ali realizar a sua limpeza, estando a cerca de 4,5 metros do solo (resposta ao item 28º).
38. Entretanto, quando se preparava para se sentar no parapeito da janela, em virtude de a mesma se encontrar húmida, o Autor escorregou na cobertura, acabando por cair de pé (resposta ao item 29º).
39. Na altura em que caiu ao solo, o Autor não fazia uso de qualquer equipamento de segurança, nem individual, nem coletivo (resposta ao item 30º).

3.1.2. De harmonia com o disposto no artigo 662º, nº1 do Código de Processo Civil (ex vi do artigo 1º, nº 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho), o Tribunal da Relação deve alterar a decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto foram reforçados na atual redação do Código de Processo Civil.
Abrantes Geraldes, (in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, pág. 230) refere que, “… a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”. Apesar de (obra citada, pág. 245), “... a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662º não poder confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”.
Na reapreciação da força probatória das declarações de parte, dos depoimentos das testemunhas e dos documentos, importa ter presente o princípio da livre apreciação, como resulta do disposto nos artigos 607º, nº5 e 466º, nº3, ambos do Código de Processo Civil e 396º e 366º.
Dito de outro modo, cabe à Relação, enquanto tribunal de 2ª instância, reapreciar, não apenas se a convicção expressa pelo tribunal de 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os restantes elementos constantes dos autos revelam, mas, também, avaliar e valorar, de acordo com o princípio da livre convicção, toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objeto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento da matéria de facto.
Preceitua ainda o artigo 640º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil:
« 1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
(…)».
Como se lê no Acórdão do STJ de 01.10.2015, in www.dgsi.pt, “Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão. (…)”, (sublinhado nosso).
Servindo-nos também do texto do acórdão desta secção de 22.10.2018, proferido no processo 246/16.OT8VLG.P1, (Relatora Desembargadora Rita Romeira, no qual foi 1ª adjunta a aqui relatora):
«Verifica-se, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação da decisão de facto, não se satisfaz com a mera indicação genérica da prova que na perspetiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o Tribunal “a quo”, impõe-lhe a concretização quer dos pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância como a especificação das provas produzidas que, por as considerar como incorretamente apreciadas, imporiam decisão diversa, quanto a cada um dos factos que impugna sendo que, quando se funde em provas gravadas se torna, também, necessário que indique com exatidão as passagens da gravação em que se baseia, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.
Além disso, nas palavras, (…) de (Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2014, 2ª edição, págs. 132 e 133), “O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto;”.
Sobre este assunto, no (Ac.STJ de 27.10.2016) pode ler-se: “…Como resulta claro do art. 640º nº 1 do CPC, a omissão de cumprimento dos ónus processuais aí referidos implica a rejeição da impugnação da matéria de facto.”…(…).».
Ainda a este propósito, lê-se no Acórdão desta secção de 15.04.2013 (relatora Paula Leal de Carvalho, in www.dgsi.pt, também citado no acórdão de 22.10.2018), “Na impugnação da matéria de facto o Recorrente deverá, pois, identificar, com clareza e precisão, os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda, o que deverá fazer por reporte à concreta matéria de facto que consta dos articulados (em caso de inexistência de base instrutória, como é a situação dos autos).
E deverá também relacionar ou conectar cada facto, individualizadamente, com o concreto meio de prova que, em seu entender, sustentaria diferente decisão, designadamente, caso a discordância se fundamente em depoimentos que hajam sido gravados, identificando as testemunhas por referência a cada um dos factos que impugna (para além “de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição.”».
Concluiu a Apelante que nada havendo de novo em termos de meios de prova ou sua renovação, na audiência de discussão e julgamento realizada após a citação do FAT, em conformidade com o decidido no Acórdão anterior, proferido nos autos, devia dar-se como provada a matéria dos itens 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º e 33º da base instrutória.
Não deu a Apelante cumprimento ao disposto no artigo 640º, nº1, alíneas b) do Código de Processo Civil.
Limitando-se a alegar e concluir que dando a matéria dos artigos 27º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º e 33º da base instrutória como provados teria que ser decidida a descaracterização do acidente como sendo de trabalho, a Apelante não particulariza qualquer meio de prova sobre a matéria que pretende fique provada, nem tão pouco se pronuncia sobre os meios de prova considerados e a ponderação efetuada e expressa na motivação da sentença recorrida a respeito daqueles, para a convicção formada pelo Mmº. Juiz a quo.
Impõem-se assim a rejeição da impugnação, o que se decide.
3.2. Fundamentação de direito:
3.2.1. Caracterização do acidente como acidente de trabalho:
O acidente a que se reportam os autos, aconteceu em 14 de Janeiro de 2014.
O Autor é um trabalhador por conta de outrem (itens 4º e 12º dos factos provados) e nessa qualidade reclamou a reparação decorrente da LAT, tendo a 2ª Ré celebrado com a 1ª Ré um contrato de seguro de acidentes de trabalho, (artigos 1º e 2º do Decreto-lei nº159/99 de 11.05.).
De harmonia com o disposto no artigo 8° nº 1 da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, caracteriza-se como de trabalho o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Por isso, atendendo ainda ao disposto no artigo 3º da LAT, são pressupostos da existência de um acidente de trabalho, o vínculo laboral entre o sinistrado e a entidade responsável, bem como a verificação de uma relação de causalidade entre os vários elementos constitutivos supra referidos.
Face às posições desde logo assumidas pelas partes nos respetivos articulados, não restam dúvidas de que o acidente sofrido pelo Sinistrado se caracteriza como um acidente de trabalho, uma vez que ocorreu no local e no tempo de trabalho.
A Ré Seguradora invoca a responsabilidade da Empregadora na eclosão do acidente, com fundamento na violação de normas de segurança - alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 14º da Lei 98/2009, de 4 setembro - concluindo que se encontra tal acidente descaracterizado.
Acompanhamos o enquadramento legal efetuado na sentença recorrida na fundamentação da mesma que se transcreve (sem incluir as pertinentes referências jurisprudenciais):
“Tendo o acidente em apreço ocorrido a 14 de janeiro de 2014, é-lhe aplicável a Lei 98/2009, de 4 de setembro, em cujo nº 1 do artº 14º se dispõe que:
O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) for dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) (…)”.
Por seu lado estabelece o nº 2 de tal preceito que “Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente difícil entendê-la”.
E o nº 3, estabelece que “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão”.
Resulta pois que, nas als. a) e b) do nº 1 do citado preceito estão previstas duas diferentes situações, com pressupostos distintos, suscetíveis de conduzirem à descaraterização do acidente como acidente de trabalho.
Assim, para que o acidente de trabalho seja, no caso previsto no citado artº 14º, nº 1, al. a), descaracterizado é necessária, conforme refere o D. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de setembro de 2007, in www.dgsi.pt, a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
(a)existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei;
(b)violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima;
(c)que a atuação desta seja voluntária, ainda que não intencional, e sem causa justificativa;
(d)que exista um nexo de causalidade entre essa violação e o acidente.
Ora, conforme refere o D. Acórdão da Relação do Porto, de 7 de julho de 2016, in www.dgsi.pt, “(…) no que se reporta ao primeiro dos mencionados requisitos está o mesmo relacionado com o disposto no artº 17º, nº 1 al. a) da Lei 102/2009, de 10.09, em vigor desde 1 de outubro de 2009, nos termos do qual constituem obrigações do trabalhador “cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador;”.
E, no que se refere às instruções de segurança estabelecidas pelo empregador, não basta, porém, a sua existência, sendo necessário também que elas sejam transmitidas ao trabalhador. E, diga-se, não satisfaz também tal requisito o eventual conhecimento pelo sinistrado de noções ou regras de segurança decorrentes seja da sua experiencia profissional, seja do senso comum e/ou da prudência [caso este em que a descaracterização do acidente deverá ser equacionada porém no âmbito da situação prevista na al. b) do nº 1 do art. 14º, mas não já no âmbito da sua al.a)]. É necessário que, efetivamente, o empregador adote medidas/instruções expressas e concretas de segurança e que as transmita ao trabalhador.
(…)
Ora, estabelece o nº 1 do artº 282º, do Código do Trabalho/2009, que “o empregador deve informar os seus trabalhadores sobre aspetos relevantes para a proteção da sua segurança e saúde e a de terceiros”. Por seu lado estabelece o nº 3 daquele mesmo preceito que “o empregador deve assegurar formação adequada, que habilite os trabalhadores a prevenir os riscos associados à respetiva atividade (…)”.
Iguais obrigações decorrem do artº 127º do referido diploma legal ao estabelecer na alínea f) do nº 1, que constitui obrigação do empregador fornecer ao trabalhador a informação e a formação adequadas à prevenção de riscos de acidentes de trabalho.
Identicamente estabelece o nº 1 do artº 20º da citada Lei nº 102/2009, que o trabalhador deve receber uma formação adequada no domínio da segurança e saúde no trabalho, tendo em atenção o posto de trabalho em que se insere e o exercício de atividades de risco elevado que lhe estejam associadas.”
É a seguinte a redação do artigo 11º da Portaria 101/96, de 3 de Abril:
«11.º
Quedas em altura
1 - Sempre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas medidas de proteção coletiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de proteção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil.
2 - Quando, por razões técnicas, as medidas de proteção coletiva forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adotadas medidas complementares de proteção individual, de acordo com a legislação aplicável».
Lê-se no acórdão desta secção proferido no processo nº 104/14.2T4AGD.P1, «Este artigo, quanto ao uso de equipamento anti queda, não contém normas específicas [limita-se a estabelecer princípios gerais], remetendo para o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil, o Decreto nº 41821, de 11.08.58».
Estipula-se no Decreto Lei 50/05, de 25 de Fevereiro, (diploma que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva nº98/655/CEE, do Conselho, de 30.11., alterada pela Diretiva nº95/63/CE, do Conselho, de 05.12, e pela Diretiva nº2001/45/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27.06., relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde para a utilização pelos trabalhadores de equipamentos de trabalho):
Artigo 36º
«Disposições gerais sobre trabalhos temporários em altura
1 - Na situação em que não seja possível executar os trabalhos temporários em altura a partir de uma superfície adequada, com segurança e condições ergonómicas apropriadas, deve ser utilizado equipamento mais apropriado para assegurar condições de trabalho seguras.
2 - Na utilização de equipamento destinado a trabalhos temporários em altura, o empregador deve dar prioridade a medidas de proteção coletiva em relação a medidas de proteção individual.
3 - O dimensionamento do equipamento deve corresponder à natureza dos trabalhos e às dificuldades que previsivelmente ocorram na sua execução, bem como permitir a circulação de trabalhadores em segurança.
(…)».
Artigo 37.º
«Medidas de proteção coletiva
1 - As medidas de proteção coletiva destinadas a limitar os riscos a que os trabalhadores que executam trabalhos temporários em altura estão sujeitos devem atender ao tipo e características dos equipamentos de trabalho a utilizar.
2 - Sempre que a avaliação de riscos considere necessário, devem ser instalados dispositivos de proteção contra quedas, com configuração e resistência que permitam evitar ou suster quedas em altura.
3 - Os dispositivos de proteção contra quedas só podem ser interrompidos nos pontos de acesso de escadas, verticais ou outras.
4 - Se a execução de determinados trabalhos exigir, tendo em conta a sua natureza, a retirada temporária de dispositivos de proteção coletiva contra quedas, o empregador deve tomar outras medidas de segurança eficazes e, logo que a execução dos trabalhos termine ou seja suspensa, instalar esses dispositivos», (sublinhado nosso).
Em suma:
É inquestionável a obrigação de o empregador assegurar aos trabalhadores condições de segurança em todos os aspetos relacionados com o trabalho, devendo para o efeito aplicar as medidas necessárias, nomeadamente combatendo na origem os riscos previsíveis, anulando-os ou limitando os seus efeitos, dando prioridade à proteção coletiva em relação às medidas de proteção individual (Lei nº 102/2009 de 10/09, da qual se realça o disposto pelos artigos 15º e 17º quanto às obrigações gerais do empregador e do trabalhador, respetivamente).
Por sua vez, está o trabalhador obrigado a cumprir as prescrições de saúde e segurança no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador (cfr. artigos 15º e 17º, nº 1 alínea a) da Lei 102/2009, de 10/09 e o artigo 128º, nº 1, als. e) e j) do Código do Trabalho).
A posição da Ré Seguradora/Apelante no sentido de ser decidida a descaracterização do acidente como acidente de trabalho, assenta na alteração da matéria de facto provada o que não logrou a mesma conseguir.
Os factos a considerar são, pois, os referenciados na decisão recorrida, limitando-nos nós aqui a acompanhar a respetiva subsunção ao direito, nada mais tendo a acrescentar à mesma, atento o enquadramento legal considerado:
“Conforme já atrás ficou referido, o Autor trabalha sob as ordens, direção e fiscalização de “C..., Unipessoal, Lda, executando serviços de limpeza de vidros.
No dia 14 de janeiro de 2014, o Autor encontrava-se a trabalhar sob as ordens, direção e fiscalização da sua entidade empregadora, executando serviços de limpeza de vidros, a saber, os vidros das janelas dos escritórios de um cliente da Ré, situados no 1.º andar do edifício, serviço feito uma vez por mês.
Nestas circunstâncias de tempo e lugar, o Autor colocou-se do lado de fora das janelas, em cima de uma cobertura de chapa ali existente e efetuou a limpeza da janela direita, pelo lado de fora da mesma.
Posteriormente o Autor circulou pela cobertura exterior até à janela do lado esquerdo, com o intuito de ali realizar a sua limpeza, estando a cerca de 4,5 metros do solo.
Entretanto, quando se preparava para se sentar no parapeito da janela, em virtude de a mesma se encontrar húmida, o Autor escorregou na cobertura, acabando por cair, sem qualquer tipo de apoio e auxílio, de pé.
Na altura em que caiu ao solo, o Autor não fazia uso de qualquer equipamento de segurança, nem individual, nem coletivo, sendo certo que não ficou apurado que a entidade empregadora do Autor fornecera cinto, botas e capacete de segurança, incumbindo-lhe demonstrar que o fizera e que o Autor decidira não os usar.
Veio ainda a Ré Entidade Empregadora alegar que dera instruções expressas para, no dia do evento danoso, apenas efetuarem a limpeza interior dos vidros, visto estar a chover, tendo o Autor desobedecido.
Ora, não tendo a Entidade Empregadora e o FAT demonstrado ter facultado ao seu trabalhador, ora Autor, o equipamento de proteção individual e não tendo demonstrado ter o mesmo desobedecido a ordens/instruções a seguir no exercício da sua atividade, não pode, como pretendia a primeira, proceder a invocada descaracterização do acidente nos termos do artº 14º da Lei 98/2009, de 4 de setembro, não podendo o mesmo ser imputado à conduta do Autor.
Efetivamente, não ficou demonstrado a existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou previstas na lei, a violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte do Autor, cuja atuação fosse voluntária, ainda que não intencional, e sem causa justificativa e que existiu nexo de causalidade entre essa violação e o acidente.
Aqui chegados, afastada que está a responsabilidade do Autor pelo eclodir do acidente de trabalho, importa apurar se pelo mesmo foi responsável a Entidade Empregadora.
A este propósito estabelece o artº 18º da Lei 98/2009, de 4 de setembro que: 1.Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
(…)”;
A responsabilidade agravada da entidade empregadora em matéria de acidentes de trabalho, de acordo com o preceito atrás citado, exige:
a) a demonstração da inobservância das regras sobre a segurança, higiene e saúde no trabalho por parte da entidade empregadora;
b) que foi essa inobservância a causa adequada do acidente.
Por seu lado, conforme refere o D. Acórdão da Relação de Coimbra, de 7 de abril de 2017, in www.dgsi.pt, a afirmação desse juízo de adequação causal exige a demonstração de que:
i) o acidente decorreu naturalisticamente da ação ilícita da empregadora sem a qual aquele acidente não teria ocorrido;
ii)a violação daquelas regras de segurança tornavam previsível a eclosão do acidente (juízo abstrato de adequação), nas concretas circunstâncias em que o mesmo ocorreu e com as consequências dele decorrentes (juízo concreto de adequação);
iii)o acidente representa a concretização objetivamente previsível de um dos perigos típicos que a ação da empregadora era suscetível de criar e que, justamente, justificaram a criação das regras de segurança violadas;
iv)a verificação do acidente não ficou a dever-se a circunstâncias contemporâneas da ação alheias ao modelo de perigo, não conhecidas do agente e para ele imprevisíveis, não tendo a realização do modelo de perigo sido precipitada por circunstâncias que o não integram.
Vejamos.
Estabelece o nº 2 do artº 281º do Código do Trabalho que “o empregador deve assegurar aos trabalhadores condições de segurança e saúde em todos os aspetos relacionados com o trabalho, aplicando as medidas necessárias tendo em conta os princípios gerais de prevenção.
Por seu lado, conforme decorre do nº 1 do artº 282º do mesmo diploma legal, “O empregador deve informar os trabalhadores sobre os aspetos relevantes para a proteção da sua segurança e saúde e a de terceiros”.
Ora, de acordo com o artº 3º da Portaria 53/71 de 3 de fevereiro, na redação da Portaria 702/80 de 22 de setembro, “São obrigações gerais da entidade patronal:
a)Cumprir as disposições do presente Regulamento, demais preceitos legais e regulamentares aplicáveis, bem como as diretivas das entidades competentes no que se refere à higiene e segurança do trabalho;
b) Adotar as medidas necessárias, de forma a obter uma correta organização e uma eficaz prevenção dos riscos que podem afetar a vida, integridade física e saúde dos trabalhadores ao seu serviço;
(…)
f) Fornecer gratuitamente aos trabalhadores os dispositivos de proteção individual e outros necessários aos trabalhos a realizar, assegurando a sua higienização, conservação e utilização;
(…)”.
Ora, sob a epígrafe “Cintos de Segurança” estabelece o artigo 151º da referida Portaria que:
1 - Os trabalhadores expostos ao risco de queda livre devem usar cintos de segurança, de forma e materiais apropriados, suficientemente resistentes, bem como cabos de amarração e respetivos elementos de fixação.
2 - Os cintos de segurança não devem permitir uma queda livre superior a 1 m, a não ser que dispositivos apropriados limitem ao mesmo efeito uma queda de maior altura.
(…)”.
Ora, ao contrário do que lhe incumbia, as Rés não conseguiram fazer prova de que a Entidade Empregadora colocara à disposição do seu trabalhador, o ora Autor o equipamento de proteção individual, a saber, o cinto, as botas e capacete de segurança, sendo certo que, na altura em que caiu, o Autor não fazia uso do mesmo. E concluímos nós que não fazia dele uso pois a Entidade Empregadora não lho entregara, estando, face ao risco de queda livre obrigada a fornecer o cinto.
O Autor escorregou e caiu de uma altura aproximadamente de 4 metros, sem qualquer apoio e auxílio, sendo de concluir que se estivesse munido do cinto de segurança, fazendo dele uso, tal queda seria evitada.
Os factos atrás demonstrados permitem ainda concluir que o não uso do cinto de segurança, dada a altura a que se encontrava o Autor, a 4 metros, a atividade a que se dedicava, a limpar os vidros das janelas situados num 1º andar, tornavam previsível a eclosão do acidente, ou seja, a queda, queda que se pretende evitar com a imposição da disponibilização e uso dos cintos de segurança.
Acresce que dos autos não ficou demonstrado que a queda do Autor se ficou a dever-se a circunstâncias contemporâneas da ação alheias ao modelo de perigo, não conhecidas do agente e para ele imprevisíveis, não tendo a realização do modelo de perigo sido precipitada por circunstâncias que o não integram.
Temos pois, demonstrada a responsabilidade da Entidade Empregadora no eclodir do evento danoso.”, (sublinhado nosso).
Improcede assim a Apelação da Ré/Seguradora.
3.2.2. Responsabilidade do FAT no pagamento das prestações fixadas ao Sinistrado, do subsídio por situação de elevada incapacidade e no reembolso à Segurança Social do subsídio de doença.
Lê-se na decisão recorrida:
“Atendendo a que a Entidade Empregadora foi declarada insolvente por sentença proferida a 15 de novembro de 2017, nos autos que sob o nº 242/17...., correram termos no Juízo do Comércio ... (J...), transitada em julgado a 7 de dezembro de 2017 e de acordo com o disposto no artº 1º do DL 142/99, de 30 de abril, com as alterações introduzidas pelo DL 185/07, de 10 de maio, que na al. a) do nº 1 do artº 1º estabelece que compete ao Fundo de Acidentes de Trabalho garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objetivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, será o Fundo de Acidentes de Trabalho, nos presentes autos responsabilizado pelas quantias que aquela teria de suportar.
Acresce ainda que, tendo a C... Unipessoal, Lda, celebrado com a Companhia de Seguros X..., S.A. um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice ....5, nos termos do qual aquela transferiu para esta a responsabilidade infortunística por acidentes que envolvessem o Autor, pelo salário de € 535,00 x 14 meses, acrescido de subsídio de alimentação no valor de € 37,80 x 11 meses, esta, nos termos do nº 3, do artº 79º da Lei 98/2010 de 4 de setembro, satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.
Temos pois, uma responsabilidade solidária da Companhia de Seguros e a responsabilidade do FAT.”
O acidente dos autos ocorreu em 14 de janeiro de 2014, sendo aplicável a Lei nº 98/2009, de 04 de Setembro (LAT), a qual regulamenta o regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.
A ação foi proposta em 06.12.2017.
Dispõe o artigo 7º da LAT que «é responsável pela reparação e demais encargos decorrentes de acidentes de trabalho (...), a pessoa singular ou colectiva de direito privado ou de direito público não abrangida par legislação especial, relativamente ao trabalhador ao seu serviço".
Daqui decorre que são os empregadores que, em primeira linha, respondem pela reparação do acidente, embora sejam obrigados a transferir essa responsabilidade para uma companhia de seguros que passará então a ser a responsável, nos termos do contrato de seguro - artigo 79º da LAT.
A reparação do acidente ao abrigo da lei dos acidentes de trabalho só pode, pois, em princípio, ser pedida à entidade empregadora ou à sua seguradora.
A ação destes autos foi movida também contra a Entidade empregadora, a qual foi declarada insolvente por sentença proferida em 15.11.2017, antes de ser proposta a ação e determinada a citação das Rés.
Dispõe o artigo 1º do Decreto-Lei nº 142/99 de 30 de Abril, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 185/07, de 10 de maio, sob a epígrafe «Criação e competências do Fundo de Acidentes de Trabalho»:
«1 - É criado o Fundo de Acidentes de Trabalho, dotado de personalidade judiciária e de autonomia administrativa e financeira, adiante designado abreviadamente por FAT, ao qual compete:
a) Garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objetivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável;».
A responsabilidade do FAT não é autónoma ou principal, mas antes subsidiária ou de garante do pagamento das obrigações que impendem sobre as entidades responsáveis pela reparação dos acidentes de trabalho.
Visa a intervenção do FAT garantir o recebimento pelo sinistrado da indemnização a que estava obrigado o responsável legal pelo seu cumprimento, ocupando o lugar da entidade responsável.
Como já decidido, o acidente dos autos ficou a dever-se a falta de observação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho pela Entidade empregadora – «Atuação culposa do empregador», a que alude o artigo 18º da LAT -, ocorrendo assim um agravamento da responsabilidade nos termos previstos em tal normativo.
Dispõe o artigo 18º, nº1 da LAT:
«1- Quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada e por empresa utilizadora de mão-de-obra, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança e saúde no trabalho, a responsabilidade individual ou solidária pela indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais.
(…)».
Nos termos do nº 3 do artigo 79º da LAT “verificando-se alguma das situações previstas no artigo 18º, a seguradora satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso”.
Acompanhando o Acórdão do STJ de 06.05.2015, in www.dgsi.pt:
“O regime estabelecido nesta Lei, relativamente ao envolvimento das seguradoras na reparação dos danos derivados destes acidentes, afasta-se do que resultava da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais), que previa no n.º 2 do seu artigo 37.º que «verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, n.º 1, a responsabilidade nele prevista recai sobre a entidade empregadora, sendo a instituição seguradora apenas subsidiariamente responsável pelas prestações normais previstas na presente lei».
De um regime de mera responsabilidade subsidiária, passou-se, na vigência da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, para um regime de responsabilidade a título principal, embora limitada, tal como no anterior diploma, às prestações que seriam devidas «caso não houvesse atuação culposa», consagrando-se, contudo, o direito de regresso contra os outros responsáveis.”, (realce e sublinhado nossos).
Justifica-se assim a alteração da decisão recorrida nos termos em que no dispositivo foi efetuada a condenação da “Ré Companhia de Seguros X..., S.A., a título da responsável subsidiária (nº 2 do artº 37º, da Lei n.º 100/97)”.
Não tem, ainda assim, razão o FAT quando concluiu que nas situações de acidente ocorrido por falta de observação das regras sobre segurança e saúde no trabalho, por culpa do empregador ou de outrem atuando no seu interesse, cabe à seguradora o pagamento das prestações normais, caso não existisse atuação culposa da entidade empregadora e que o FAT, condenado em substituição da entidade empregadora, atenta a situação de insolvência desta, apenas responderá pelo pagamento das diferenças relativas às indemnizações por incapacidades temporárias e pensões devidas, bem como pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respetiva proporção.
Com efeito, o que resulta de tais preceitos não é que cabe à seguradora o pagamento das prestações normais, caso não existisse atuação culposa da entidade empregadora, antes sim que sendo este o caso, aquela satisfaz, sem prejuízo do direito de regresso, o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, abrangendo a responsabilidade individual ou solidária da empregadora pela indemnização, a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador, ocorrendo assim um agravamento da respetiva responsabilidade.
Sem prejuízo do assim afirmado, justifica-se como adiante se explicitará, a alteração da decisão recorrida, uma vez que as importâncias em que a Ré Seguradora e o FAT devem ser condenados são distintas – artigos 18º, nº4 e 79 nº3 da LAT.
Igualmente não assiste razão ao FAT quando conclui que como o Sinistrado auferia uma retribuição anual de 8.422,80€, não se encontrando transferida para a seguradora a quantia de 47,00€ x 11, o FAT apenas será responsável pelo pagamento das prestações calculadas com base nessa parcela retributiva.
Como bem refere a Ré/Seguradora o que o interveniente FAT defende teria aplicação, sim, se não fosse expressamente considerado e declarado que o acidente dos autos apenas ocorreu por manifesta violação das regras de segurança por parte da entidade patronal.
Aí, sim, só responderia pela parte do salário não transferido.
Uma vez que ocorreu violação das regras de segurança por parte da Entidade patronal, o interveniente FAT responde nos precisos termos em que responderia a Entidade patronal, se, entretanto, esta não tivesse sido declarada insolvente, nos termos dos artigos 18° e 79°, ambos da Lei nº 98/2009, de 04/09.
Finalmente, carece de razão o FAT quando conclui:
- Não tendo o subsídio por situação de elevada incapacidade qualquer correlação com a retribuição do Sinistrado, fica o mesmo coberto pela responsabilidade exclusiva da seguradora;
- Sendo a Seguradora responsável pelo pagamento da indemnização por ITA, deverá a obrigação de reembolso à Segurança Social incidir apenas quanto a esta Ré.
Quanto ao subsídio de elevada incapacidade permanente, começamos por acompanhar a fundamentação do recente Acórdão desta secção de 15.12.2021 (Relator Desembargador Domingos Morais, aqui 2º Adjunto, in www.dgsi.pt):
“O artigo 79.º, nos n.ºs 4 e 5 da LAT, prescreve:
4 - Quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida.
5 - No caso previsto no número anterior, o empregador responde pela diferença relativa às indemnizações por incapacidade temporária e pensões devidas, bem como pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica, na respetiva proporção.”. (negrito nosso)
Por sua vez, no Anexo da Portaria n.º 256/11, de 05.07, a Cláusula 23.º, n.º 1 - Insuficiência da retribuição segura -, dispõe:
1 - No caso de a retribuição declarada ser inferior à real, o tomador do seguro responde:
a) Pela parte das indemnizações por incapacidade temporária e pensões correspondente à diferença;
b) Proporcionalmente pelas despesas efetuadas com a hospitalização e assistência clínica.”.
Neste contexto normativo, a jurisprudência vem entendendo que o subsídio por situação de elevada incapacidade permanente não integra a previsão do n.º 5 artigo 79.º, por ser taxativa a sua formulação: “O referido subsídio é devido, na totalidade, pela seguradora responsável, porque tem montante fixo, não dependente da retribuição auferida pela vítima, e porque se não encontra abrangido pela previsão do art.º 79º, nº 5, da referida Lei, sobre repartição de responsabilidades” – cf. acórdão do TRE de 20.04.2017, in www.dgsi.pt.;
[Ver ainda do mesmo T. R. Évora: acórdãos de 12.10.2017, proc. 447/13.2TTFAR.E1; de 26.10.2017, proc. 4205/15.1T8STB-A.E1 e de 20.4.2017, in CJ, 2017, T 2, p. 248.
No mesmo sentido tem decidido o T. R. Guimarães, com o argumento de que, quer a Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro, no seu artigo 79.º, n.º 5, quer a própria apólice uniforme (cláusula 23.ª), aprovada pela Portaria nº 256/11, de 05 de Julho, não prevêem que esse pagamento seja efetuado na proporção da responsabilidade transferida: acórdãos do TRG de 31.3.2020, proc. 1369/15.8T8BCL.G1; de 5.12.2019, proc. 2199/16.5T8BCL.G1 e de 4.2.2021, proc. 3086/19.0T8VNF.G1].”.
Sem prejuízo do assim entendido e dos reparos já efetuados à decisão recorrida, pela mesma ordem de razões com que se afastaram os demais segmentos do recurso do FAT, entendemos que ficou bem decidida a responsabilidade do FAT e a respetiva condenação a pagar ao Sinistrado, nomeadamente, o subsídio por situações de elevada incapacidade permanente e nos mesmos termos, a pagar à Segurança Social a quantia de €8.955,6, a título de prestações de subsídio de doença pagos por esta entidade ao Autor, por força do mesmo acidente de trabalho.
Tendo o acidente resultado da inobservância pela Empregadora de regras de segurança, a responsabilidade infortunística cabe à mesma, ou seja, é aquela a responsável pela reparação dos danos decorrentes do mesmo acidente, conforme resulta do artigo 18º da LAT.
Cabe assim ao FAT garantir o recebimento pelo Sinistrado da indemnização a que estava obrigada aquela responsável legal pelo seu cumprimento.
Em sede de conclusões, adiantou o FAT que a diferença de responsabilidades por parte da Ré Seguradora comparativamente com o FAT, não está devidamente contemplada na sentença recorrida.
Assim sucede, merecendo a sentença recorrida reparo, como se adiantou já.
Tendo a questão sido colocada, ainda que em termos diferenciados pelo FAT, afigura-se-nos que sobre a questão da responsabilidade agravada deste e da responsabilidade da Ré Seguradora não incide o caso julgado e, por consequência, também não se formou relativamente às demais questões ou sub-questões, como o são os valores da indemnização por incapacidade temporária e da pensão, que são consequência daquela.
Servimo-nos aqui da fundamentação do recente Acórdão desta secção de 18.10.2021, proferido no processo nº6652/18.8T8VNG.P1, (Relator Desembargador Nélson Fernandes, com intervenção como 2ª Adjunta da aqui relatora), com a referência jurisprudencial aí efetuada no excerto que se transcreve:
«Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de dezembro de 2018, que com a devida vénia acompanhamos (citação):
“(…) O direito do trabalhador, vítima de acidente de trabalho, à “justa reparação” tem assento no art. 59º, nº 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa.
Positivando este direito constitucional, estabelece o art. 283º, nº 1 do Código do Trabalho: “[o] trabalhador e os seus familiares têm direito à reparação de danos emergentes de acidente de trabalho ou doença profissional”, remetendo o art. 284º a regulamentação da referida reparação para legislação específica.
Preceitua por seu turno o art. 78.º da LAT: “[o]s créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam das garantias consignadas no Código do Trabalho.”
É por isso que nos termos do art. 114º do CPT, o acordo obtido na fase conciliatória do processo apenas é homologado pelo juiz “se verificar a sua conformidade com os elementos fornecidos pelo processo e com as normas legais, regulamentares ou convencionais”.
E que, estando “em discussão a determinação da entidade responsável, o juiz pode, até ao encerramento da audiência, mandar intervir na ação qualquer entidade que julgue ser eventual responsável” (art. 127º, nº 1 do CPT).
Estipula o art. 74º do CPT “[o] juiz deve condenar em quantidade superior ao pedido ou em objeto diverso dele quando isso resulte da aplicação à matéria provada ou aos factos de que possa servir-se, nos termos do artigo 514º do Código de Processo Civil, de preceitos inderrogáveis de leis ou instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho”.
Este dever oficioso do juiz, privativo do processo laboral, nos termos do qual “[o] tribunal pode movimentar-se na ação, sem que a limitação dos termos em que foi proposta ou contestada constitua impedimento a fazer coincidir o que é direito” – pretensão substantiva – “com a intenção do demandante em pedir tudo a quanto tem direito” – pretensão processual – “eventualmente condenando em conformidade” ([3]), contrapõe-se ao princípio do dispositivo estabelecido no art. 264º do CPC, pese embora também este não seja absoluto, mesmo no regime processual civil, como resulta da ressalva do art. 608º, nº 2, in fine, do mesmo diploma. (…)
Como é referido no acórdão desta 4ª Secção de 30.09.2004 ([5]) «[t]êm a doutrina e a jurisprudência feito uma distinção básica entre os direitos de existência necessária, mas que não são de exercício necessário, como é o caso do direito ao salário após a cessação do contrato, e os direitos cuja existência e exercício são necessários, como é o caso do direito a indemnização por acidente de trabalho do direito ao salário na vigência do contrato, considerando que a condenação “extra vel ultra petitum” só se justifica neste segundo tipo de direitos que têm subjacentes interesses de ordem pública, cabendo ao juiz o suprimento dos direitos de exercício necessário imperfeitamente exercidos pelo seu titular (ou seu representante).
Nestes casos, a atividade do julgador não deve confinar-se ao pedido formulado pelo autor no seu aspeto quantitativo e qualitativo, pois tal equivaleria a frustrar o carácter público e a finalidade social daquelas leis pela aceitação tácita e implícita da sua renunciabilidade. Com o dever que impõe ao juiz de definir o direito material fora, ou para além, dos limites constantes do pedido formulado, o legislador pretendeu reduzir ao mínimo aquele risco».
“O direito de reparação por acidentes de trabalho é um direito que a lei quer não só que exista, como também que seja exercido. É nestes direitos que a vontade das partes se torna irrelevante, quer no plano prático, quer no plano jurídico.
O regime excecional do artigo 74º do CPT só se justifica, realmente, considerando que a condenação em quantidade superior ao pedido, ou em objeto diverso dele, tem em vista o suprimento pelo juiz.
(…) Esta possibilidade de o magistrado judicial condenar para além do pedido, resulta da circunstância nada despicienda de estarmos na presença de direitos imbuídos de uma natureza muito específica. Respeitam a aspetos de assistência na doença e na invalidez. Buscam, portanto, a sua indisponibilidade absoluta em razões de interesse e de ordem pública, isto é, em interesses supra-individuais.
Destarte, é da mais elementar justiça material que, se o interessado não atua, exercendo os direitos com vista à indemnização por acidente de trabalho ou doença profissional (reitere-se, direitos de exercício necessário), o juiz se lhe deve sobrepor, atribuindo-lhe e arbitrando-lhe as indemnizações resultantes de previsão legal no ordenamento jurídico-laboral nacional” ([6]).
Temos assim por assente que, tratando-se, como se trata de direitos indisponíveis, o montante devido pela reparação do acidente é de conhecimento oficioso, devendo o juiz fixá-lo de acordo com as normas legais aplicáveis aos factos provados, independentemente dos valores peticionados.
Por consequência, não tendo ocorrido o trânsito em julgado da decisão sobre a matéria de facto e sobre a culpa da empregadora, ainda que a questão daqueles valores não tivesse sido suscitada, como foi, pelo Ministério Público no âmbito do disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, e apesar de nem a A. nem o MºPº terem apelado, deveria a Relação ter fixado a indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte de acordo com as normas legais e os factos provados, nos termos dos arts. 74º, do CPT, 608º, nº 2 e 663º, nº 2, ambos do CPC, estes “ex vi” do art. 1º, nº 2, al. a), do CPT. (…)”.»
Temos, pois, como justificada a pronúncia nos termos que seguem, em conformidade com o regime legal aplicável, à necessária concretização.
Ocorrendo «Atuação culposa do empregador», dispõe o artigo 18º, nº4 da LAT :
«4 - No caso previsto no presente artigo, e sem prejuízo do ressarcimento dos prejuízos patrimoniais e dos prejuízos não patrimoniais, bem como das demais prestações devidas por atuação não culposa, é devida uma pensão anual ou indemnização diária, destinada a reparar a redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte, fixada segundo as regras seguintes:
a) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho, ou incapacidade temporária absoluta, e de morte, igual à retribuição;
b) Nos casos de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, compreendida entre 70 % e 100 % da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível;
c) Nos casos de incapacidade parcial, permanente ou temporária, tendo por base a redução da capacidade resultante do acidente.»
Por seu turno, a condenação da Ré Seguradora é limitada às prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso:
Artigo 79º nº 3 da LAT:
«3 - Verificando-se alguma das situações referidas no artigo 18.º, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse atuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso.»
Assim sendo, como já referido, impõem-se diferenciar os montantes em que deve ser o FAT condenado daqueles em que deve ser a Ré/Seguradora condenada.
Na sentença recorrida os cálculos foram efetuados com base no salário de € 8.422,80, ou seja, incluindo € 47,00 do passe (ponto 13, o segundo, dos factos provados) fazendo tábua rasa da circunstância de essa parte não estar transferida para a Ré Seguradora (ponto 1 dos factos provados), o que desde logo implicava distinguir as responsabilidades.
Com efeito, dispõe o artigo 79º, nº 4 da LAT:
«4-Quando a retribuição declarada para efeito do prémio de seguro for inferior à real, a seguradora só é responsável em relação àquela retribuição, que não pode ser inferior à retribuição mínima mensal garantida».
Assim, percebe-se a alegação no recurso do FAT de não haver transferência de toda a responsabilidade, mas não acompanhado a conclusão retirada a esse propósito como supra se deixou já afirmado.
Ainda assim, consigna-se que o entendimento que temos é o de que o “passe” engloba a retribuição, pois o artigo 71º, nº 3 da LAT inclui na retribuição todas as prestações recebidas com carácter de regularidade que não se destinem a compensar o Sinistrado por custos aleatórios, o que não é o caso, já que o valor em causa se destina a ressarcir o valor do passe.
Assim, a retribuição anual a considerar a propósito da responsabilidade do FAT é de €8.422,80 e da responsabilidade da Ré Seguradora de €7.905,80.
Por outro lado, na sentença foi calculado o devido pela ITA (734 dias) com a fórmula do artigo 48º, nº 3, al. d) esquecendo a responsabilidade agravada.
Essa fórmula é necessária para se saber até onde vai a responsabilidade da Ré Seguradora, mas importa proceder ao mesmo cálculo considerando também a fórmula do artigo 18º, nº 4, al. a) da LAT, para se aferir a responsabilidade do FAT.
A retribuição diária reporta-se à retribuição mensal normalmente devida ao Sinistrado, como refere o artigo 71º, nºs 1 e 3 da LAT, mas porque a incapacidade temporária se pode prolongar no tempo, o artigo 50º, nº 3 da LAT refere que quando a mesma for superior a 30 dias há lugar ao pagamento do proporcional correspondente aos subsídios de férias e Natal, donde nessa situação para que se incluam tais proporcionais, a retribuição diária corresponderá, na prática, à 30ª parte da retribuição mensal, correspondendo esta à divisão da retribuição anual por 12 meses (em cada mês estará então ponderado o proporcional referido) .
Assim:
- responsabilidade da seguradora (art.º 48º, , nº 3, al. d)
€7.905,80 : 12 : 30 = €21,96 (RD)
€21,96 x 70% x 365 dias = €5.610,78
€21,96 x 75% x 369 dias = €6.077,43
TOTAL = €11.688,21
- responsabilidade total (do FAT) (artigo 18º, nº 4, al. a) da LAT):
€8.422,80 : 12 : 30 = €23,40 (RD)
€23,40 x 734 dias = €17.175,56
Acresce referir que na sentença recorrida foi calculado o devido pela IPP (25,91%) com IPATH com a fórmula do artigo 48º, nº 3, al. b) esquecendo a responsabilidade agravada.
Essa fórmula é necessária para se saber até onde vai a responsabilidade da Ré Seguradora, mas importa proceder ao mesmo cálculo considerando também a fórmula do artigo 18º, nº 4, al. a) da LAT, para se aferir a responsabilidade do FAT.
Assim:
- responsabilidade da seguradora (art.º 48º, , nº 3, al. b)
€7.905,80 x 70% = €5.534,06
€7.905,80 x 50% = €3.952,90
€5.534,06 - €3.952,90 = €1.581,16
€1.581,16 x 25,91% = €409,68
€3.952,90 + €409,68 = €4.362,58
- responsabilidade total (do FAT) (artigo 18º, nº 4, al. b) da LAT):
€8.422,80 x 100%
€8.422,80 x 70% = €5.895,96
€8.422,80 - €5.895,96 = €2.526,84
€2.526,84 x 25,91% = €654,70
€5.895,96 + €654,70 = €6.550,66
Quanto ao subsídio por situação de elevada incapacidade (artigoº 67º, nº 3 da LAT):
1,1 x €419,22 (IAS) = €461,14 x 12 = €5.533,70;
€5.533,70 x 70% = €3.873,59;
€ 5.533,70 – €3.873,59 = €1.660,11;
€1.660,11 x 25,91% (IPP) = €430,13;
€3.873,59 + €430,13 = €4.303,72.
Concluindo, a sentença recorrida será, em conformidade, alterada nos termos que anteriormente se afirmaram.
Improcede a Apelação do FAT.
4. Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedentes ambas as apelações, alterando-se ainda assim parcialmente a sentença recorrida para:
- Julga-se parcialmente procedente por provada a ação instaurada por AA, condenando-se:
1. O Fundo de Acidentes de Trabalho, a pagar ao Sinistrado, com efeitos a partir de dia 19 de janeiro de 2016 (dia seguinte à data da alta):
a) a pensão anual e vitalícia de €6.550,66;
b) o subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de €4.303,72;
c) a quantia de €17.175,56, a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta.
d) a quantia de €18,50, a título de indemnização por despesas de deslocação desta.
e) a pagar o valor de €1.392,35, a titulo de despesas de deslocações para realização de consultas e tratamentos médicos, quer para o Hospital ..., quer para o Centro de Saúde ... quer para os tratamentos de fisioterapia que, entretanto, fez, na Clinica..., em consequência do acidente de trabalho;
f) a pagar o valor de €1.246,57 a título de pagamento de taxas moderadoras, consultas medicas, tratamentos de fisioterapia, exames complementares e medicamentos, em consequência do acidente de trabalho.
2. A Ré Companhia de Seguros X..., S.A., sem prejuízo do direito de regresso que lhe assiste consagrado no artigo 79º, nº3 da LAT a:
a) a pensão anual e vitalícia de €4.647,87;
b) o subsídio por situações de elevada incapacidade permanente no valor de €4.362,58;
c) a quantia de €11.688,21, a título de diferenças de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária absoluta;
d) a quantia de €18,50, a título de indemnização por despesas de deslocação desta;
e) a pagar o valor de €1.392,35, a titulo de despesas de deslocações para realização de consultas e tratamentos médicos, quer para o Hospital ..., quer para o Centro de Saúde ... quer para os tratamentos de fisioterapia que, entretanto, fez, na Clinica..., em consequência do acidente de trabalho;
f) a pagar o valor de €1.246,57 a título de pagamento de taxas moderadoras, consultas medicas, tratamentos de fisioterapia, exames complementares e medicamentos, em consequência do acidente de trabalho.
Mantendo-se o demais decidido e constante do dispositivo da sentença recorrida.
Custas de cada uma das Apelações pelos respetivos Apelantes.

Porto, 14 de Março de 2022.
Teresa Sá Lopes
António Luís Carvalhão
Domingos Morais