Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6478/21.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: CONTRATO DE EMPREITADA
REGIME DOS CONTRATOS
RECEPÇÃO TÁCITA DA OBRA
RECEPÇÃO DEFINITIVA
CANCELAMENTO DA GARANTIA BANCÁRIA
Nº do Documento: RP202204216478/21.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estando o contrato de empreitada dos autos submetido, por vontade das partes, ao regime do Código dos Contratos Públicos, a obra considera-se tacitamente recebida se o dono da obra não agendar ou não proceder à vistoria no prazo de 30 dias a contar da notificação do empreiteiro para o efeito.
II - Considerando-se que a obra se encontra definitivamente recepcionada desde essa data, deve para além do mais ser declarado o cancelamento da garantia bancária subscrita pelo banco, aqui 2º Réu por inexistência do direito da 1ª Ré, empreiteira, de accionar a mesma.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 6478/21.1T8PRT.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Central Cível do Porto
Relator: Carlos Portela
Adjuntos: António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço



Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório:
M... S.A., sociedade anónima titular do número único de matrícula e pessoa colectiva ..., com sede na ..., ..., ... Trofa, veio intentar a apresente acção declarativa de condenação contra E..., S.A., pessoa colectiva número ..., com sede no Rua ... ... e Banco 1... S.A., pessoa colectiva número ..., com sede na Praça ... – Porto, alegando em síntese o seguinte:
A Autora é uma sociedade comercial que tem como actividade principal o comércio e transformação de materiais siderúrgicos (ferro e outros materiais) – conforme documento n.º 2 que se junta.
No âmbito da sua actividade comercial celebrou um contrato com 1ª Ré (à data K..., S.A. – (conforme documento n.º 3 que aqui se junta) um contrato de subempreitada, denominado “Subconcessão do ... – Lote ... e ... - ....” (cfr. documento n.º 4, que se junta e dá por integrado e reproduzido para todos os efeitos legais).
No âmbito do referido contrato de subempreitada, a Autora, concretamente cláusula 9.7, entregou à 1ª Ré (naquela data ainda K ...), entre outras, a seguinte garantia bancária, destinada a garantir o bom e pontual cumprimento das obrigações decorrentes do contrato:
- garantia bancária n.º ..., emitida pelo Banco 1... S.A., em 01.11.2010, nos termos da qual aquela instituição financeira se comprometeu a pagar à Primeira Requerida, enquanto beneficiária daquela garantia, qualquer quantia até ao limite máximo de 115.371,25€ (cento e quinze mil, trezentos e setenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), para cumprimento das obrigações assumidas à primeira solicitação que recebesse por escrito por parte daquela sociedade - conforme documento nº5 que se junta.
A subempreitada foi recepcionada, em 28.06.2011, pela Primeira 1ª Ré, ou seja, há mais de 5 anos a esta data.
Sucede ainda que, acordaram Autora e 1ª Ré, submeter o contrato de subempreitada às disposições legais previstas no Código dos Contratos Públicos – cfr. cláusla nº 9.6.
Em consequência, a Autora foi solicitando à 1º Ré a liberação parcial da garantia, tendo, nomeadamente em 19.01.2015, solicitado a liberação de 75% da garantia bancária em sub-judice, o que veio a acontecer em 19.06.2015, como se disse - cfr. documentos n.ºs 6 a 8, que aqui se juntam e cujo conteúdo aqui se dá como reproduzidos.
Foi assim que, em 25.01.2018 a Autora solicitou, uma vez mais, a liberação total da garantia bancária e ainda a realização de uma vistoria com vista à recepção definitiva da empreitada, tudo conforme documento n.º 9 que aqui se junta.
Não obteve a Autora qualquer resposta, até hoje…
O que significa que, “a obra considera-se tacitamente recebida se o dono da obra não agendar ou não proceder à vistoria no prazo de 30 dias ...”, cfr artigo 394 n.º 7 ex vi 398 n.º6, do CCP.
Isto para dizer que, nos termos legais e contratuais a recepção definitiva da obra deveria ter ocorrido em 28.06.2016, decorridos que estavam 5 anos desde a recepção provisória.
Contudo, dúvidas não restam quanto ao facto de que pelo menos tenha ocorrido em 08.03.2018 (a comunicação enviada em 25.01.2018 foi recepcionada em 06.02.2018, tudo conforme documento n.º 8)
Por esse motivo, foi novamente a 1ª Ré interpelada para a devolução e/ou cancelamento da referida garantia em 07.11.2018 e 20.02.2019, conforme documento n.ºs 10 que ora se junta, e cujo conteúdo se dá como reproduzido,
Acontece que a referida garantia bancária encontra-se em poder da 1ª Ré, não obstante a Autora já ter requerido, por diversas vezes, como se disse, àquela a sua extinção.
Sem prejuízo da eventual caducidade, o que é facto é que a 1ª Ré nunca denunciou à Autora quaisquer defeitos relativamente àquela empreitada.
Daqui resulta que a pretensão da 1ª Ré de accionamento da garantia bancária n.º ... prestada pela Autora, constitui um acto manifestamente infundado, ilegal, injusto e abusivo.
Assim:
A subempreitada que se encontra na génese da emissão da garantia bancária sub judice encontra-se já definitivamente entregue desde pelo menos de 08.03.2018.
Como se disse, nunca houve até à presente data qualquer comunicação de defeitos pela 1ª Ré à Autora.
Não existe, portanto, por parte da Autora qualquer incumprimento que legitime o accionamento da garantia n.º ....
Concluindo, os trabalhos da empreitada há vários anos que se encontram executados, a recepção provisória foi efectuada e também há muito que se verificou a recepção definitiva da empreitada.
Deste modo, o accionamento da garantia nº ... por parte da Primeira Requerida para se fazer pagar da quantia de 28.842,81€ (vinte e oito mil, oitocentos e quarenta e dois euros e oitenta e um cêntimos), muito menos da quantia 115.371,25€ (cento e quinze mil, trezentos e setenta e um euros e vinte e cinco cêntimos), é manifestamente uma pretensão abusiva e ilegal, pois como se disse, a mesma foi reduzida por ordem e indicação da 1ª Ré – conforme documento n.º 11 que se junta.
Na comunicação que dirige à 2ª Ré com vista à execução da garantia a 1ª Ré invoca o “não cumprimento integral das obrigações assumidas pela M..., S.A. … situação que obriga à substituição da mesma em obra…”, quando a empreitada está concluída há vários anos.
O que constitui uma actuação unilateral ilícita, de autotutela executiva, em manifesta violação do princípio da boa-fé, actuando em manifesto abuso de direito.
É de notar que no âmbito do período de garantia da obra em causa, a Autora esteve sempre disponível para prestar a assistência que fosse necessária, mas como se disse, nunca houve qualquer reclamação pela 1ª Ré.
Por isso, inexiste qualquer fundamento, quer contratual, quer legal, para o accionamento da referida garantia, que para além de abusivo e ilegítimo, prevarica, de forma flagrante, contra os princípios basilares das relações contratuais, mormente, o princípio da boa-fé, visando a obtenção de indevidos dividendos ou benefício.
Conclui tal alegação pedindo que a presente acção seja julgada totalmente procedente provada e em consequência:
2) Declarado o cancelamento da Garantia Bancária n.º ..., por declaração de inexistência do direito da 1ª Ré de a accionar, e
3) Condenada a 1ª Ré a abster-se de accionar total ou parcialmente a garantia bancária n.º ..., assim como ser a 2ª Ré condenada a abster-se de a pagar à 1ª Ré.
A 2ª ré Banco 1... S.A. devidamente citada, não apresentou contestação.
A 1ª Ré apresentou contestação a qual foi considerada extemporânea e por isso não foi apreciada.
Os autos prosseguiram os seus termos tendo sido considerados confessados os factos articulado pela Autora nos termos do nº1 do art.º 567º do CPC.
Foi dado cumprimento ao disposto no nº2 do mesmo artigo art.º 567º do CPC.
Proferiu-se decisão na qual se julgou a acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, se decidiu condenar a 1ª Ré a abster-se de, accionar a garantia bancária n.º ... emitida em 01 de Novembro de 2010, condenando-se ainda a 2ª Ré a abster-se de a pagar à 1ª Ré.
No mais, absolveram-se as Rés do peticionado.
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A Autora veio interpor recurso desta decisão, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
Não foi apresentada resposta.
Foi proferido despacho onde se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
É consabido que o objecto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, é definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pela autora/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor dessas conclusões:
A. Resultou da prova documental junta aos autos, concretamente, do documento 9 junto pela Autora, que a 1ª Ré foi notificada para proceder à marcação de vistoria para efeitos de recepção definitiva da obra.
B. A 1ª RÉ não agendou nem respondeu.
C. Pelo que, resulta cristalino que a recepção definitiva ocorreu, tacitamente em 08.03.2018, sendo este um facto relevante em sede da qualificação jurídica a efectuar nos autos, deveria o mesmo ter sido considerado provado.
D. Compulsada a decisão revidenda constata-se que considerou como confessados pelas RR. os factos (TODOS) vertidos no articulado pela Autora.
E. Nomeadamente, que a recepção definitiva da empreitada em questão ocorreu pelo menos em 08.03.2018.
F. Acontece que, como decorrência daquela aquisição dos referidos factos para os autos, deveria o Mmº Juiz a quo ter dado como provado aquele facto, que é relevante para a decisão a proferir, o que, contudo, não ocorreu.
No provimento do recurso deverá, em alteração da decisão sobre a matéria de facto considerar-se provado que: “a recepção definitiva da empreitada em questão ocorreu pelo menos em 08.03.2018”.
G. o que, em revogação da decisão sobre a matéria de facto se requer seja, agora, considerado como provado e, consequentemente, passar a integrar o elenco dos factos julgados provados.
H. Resulta também dos factos confessados, e da prova documental (documento n.º 4 junto pela A.) que a A. e 1ª Ré submeteram o contrato de subempreitada às disposições legais previstas no Código do Contratos Públicos.
I. Constituindo o regime normativo a que o contrato foi expressamente submetido pela parte relevante para a qualificação jurídica a efectuar, deverá, em revogação da decisão sobre a matéria de facto, incluir-se na matéria de facto que “no omisso o contrato foi convencionalmente submetido pelas partes ao disposto no D.L. n.º 18/2008, de 29 de Janeiro”
Por outro lado, ainda:
J. Foi alegado pela recorrente (e considerado confessado), e é relevante para a subsunção jurídica a efectuar nos autos que em 25.012018 a Autora enviou comunicação à 1ª Ré, cuja recepção da mesma ocorreu em 06.02.20218 – igualmente conforme documento n.º 9 junto com a pi – solicitando a libertação da garantia bancária e a realização de uma vistoria para efeitos de recepção definitiva da obra.
K. Acontece que, foi apenas dado como provado que tal comunicação foi enviada e recepcionada em 06.02.2018 pela 1ª Ré, solicitando a libertação da garantia… (facto n.º 7.º).
L. Não obstante, deveria também ter sido adquirido para os autos a parte restante, e cuja prova documental do respectivo teor da referida comunicação se encontra junta aos autos.
M. Ora, sendo este um facto relevante em sede da qualificação jurídica a efectuar nos autos, deveria o mesmo ter sido considerado provado na totalidade, e em consequência em revogação da decisão sobre a matéria de facto se requer seja, agora, considerado como provado e, consequentemente, passar a integrar o elenco dos factos julgados provados, nos seguintes termos:
- Em 25.01.2018 a Autora solicitou à Ré E ..., por carta recebida em 06.02.02018, a libertação total da Garantia Bancária n.º ... e a realização de uma vistoria dos trabalhos para efeitos de recepção definitiva da empreitada.
-A Ré E ... não respondeu à carta recebida nem procedeu ao agendamento da vistoria para efeitos de recepção definitiva, pelo que, se considera verificada a recepção definitiva da empreitada desde pelo menos 08.03.2018.
N. É sabido que a sentença é nula quando o juiz deixe de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar (cfr. al. d), do nº 1 do art.º 615º do Cód. Proc. Civil.
O. Atenta a alegação da recorrente vertida nos artºs 1º a 9º, e do teor do documento 9 junto com a pi, não podia a sentença recorrida (como fez) ter considerado que só houve recepção provisória e nessa medida deve a garantia bancaria manter-se até à recepção definitiva.
P. De facto, tendo os autos por objecto a declaração de inexistência do direito da 1ª Ré, porque há muito que caducou, e tendo inclusivamente ficado provado que,
Q. Nunca houve qualquer denunciada de defeitos da obra à Autora, resulta claro na prova da inexistência do direito da 1ª Ré, e em consequência é mister é que tal factualidade – reconhecimento da verificação da recepção definitiva – fosse conhecida e decidida na sentença, o que não ocorreu.
R. Assim, por não se ter pronunciado sobre questão que deveria apreciar, a sentença é nula - o que se argui com as legais consequências.
S. Ainda quando se entenda diversamente (o que se não concede), não poderá “data venia”, não se decidir pelo cancelamento da garantia bancária.
T. Pois, ficou provado que 1ª Ré agiu com má-fé e a accionou sem qualquer fundamento a garantia bancária,
U. Sendo que, perante tal decisão/motivação, continua a fica a mercê da1ª Ré sem mais, e sem qualquer justificação voltar a executá-la.
V. Pelo que, deverá a sentença a ser parcialmente revogada, e deverá, “data venia”, decidir-se, pela procedência da totalidade do pedido da Autora, isto é, decidir-se também no sentido do cancelamento da Garantia Bancária n.º ....
W. Foi violado o disposto nos artºs 607º-4 e 615º-1 do Cód. Proc. Civil.
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Perante o antes exposto, resulta claro que são as seguintes as questões suscitadas neste recurso:

1ª) A impugnação da decisão da matéria de facto;
2ª) A nulidade da decisão (por omissão de pronúncia);
3ª) A revogação da decisão recorrida e a procedência do pedido de declaração do cancelamento da garantia bancária por declaração de inexistência do direito da 1ª Ré de a accionar.

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Estando em causa, como está, a decisão proferida sobre a matéria de facto importa recordar aqui qual o conteúdo dessa mesma decisão.
Assim na mesma foram dados como provados os seguintes factos:
1º. A Autora tem por objecto social o fabrico, tratamento de superfícies por galvanização por imersão a quente e por pintura, montagem, instalação e reparação de estruturas e partes metálicas.
2º. Em 22 de março de 2010, a Autora e a Ré E..., S.A., à data com a razão social K..., S.A., subscreveram o documento intitulado “Documento de Adjudicação n.º ... – Contrato de Subempreitada”, cujo teor se dá aqui por reproduzido , tendo por objeto a realização pela primeira para a segunda de “trabalhos de guardas metálicas” na empreitada designada de “Subconcessão do ... – Lote ... e ... – Obras de Estrada”.
3º. No âmbito do acordo referido no ponto 2.º, a Autora entregou à E ... o original do documento intitulado “Garantia Bancária n.º ...”, subscrito pelo Réu Banco 1... S.A., a pedido da Autora, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito: Garantia Bancária n.º ... K..., S.A. (...) Em nome e a pedido de M..., S.A., (...) vem o Banco 1... S.A., (...) pelo presente instrumento prestar a favor da sociedade K..., S.A., (...) uma garantia bancária no valor de EUR 115.371,25 (...), destinada a garantir o bom e pontual cumprimento das obrigações assumidas pela M..., S.A., perante a beneficiária no âmbito do contrato de subempreitada de “fornecimento e montagem de guardas metálicas de segurança” da empreitada de “Subconcessão do ... – Lote ... e ... – Obras de Estrada”, entre ambas celebrado. Por força da presente garantia, este banco obriga-se a pagar imediatamente à beneficiária K..., S.A., qualquer importância até ao indicado valor de EUR 115.375,25 (...), quer seja a título de dívida originária, quer de juros ou de qualquer outra natureza ou causa, logo que esta lho solicitar por escrito, com simples invocação da origem do crédito, mas sem necessidade de qualquer outra invocação, formalidade ou produção de prova, não podendo o banco escusar-se a fazer-lhe tal pagamento sobre qualquer pretexto ou fundamento.
4º. Em 28 de Junho de 2011, após a Autora ter concluído a obra referida no ponto 2. - factos provados –, a Ré E ... recebeu-a provisoriamente.
5º. A E ... nunca participou à requerente defeitos da obra referida no ponto 2.º - factos provados.
6º Em 29 de maio de 2015, a Ré E ... comunicou ao Reu Banco 1... S.A., que o valor da Garantia Bancária n.º ... seria reduzido em 75%, passando a ser de €28.842,81.
7º. Em 2 de Fevereiro de 2018, a Autora solicitou à Ré E ..., por carta por esta recebida em 6 de Fevereiro de 2002, a libertação total da Garantia Bancária n.º ....
8.º A Autora E ... não respondeu à carta referida no ponto 7.º − factos provados.
9.º Em 28 de Dezembro de 2020, a Ré E ... remeteu ao Réu Banco 1... S.A., a carta junta a fls. 63 v. e 64 da providência cautelar , onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito: Ao Banco 1... S.A. (...) Assunto:
Garantia Bancária n.º ..., de €11.5371,25 (...) O Presente accionamento tem por fundamento o não cumprimento integral das obrigações assumidas pela M... S.A. perante a nossa empresa, situação que obriga à substituição da mesma em obra, com danos para a beneficiária de montante muito superior ao da garantia ora accionada. Assim, serve a presente para solicitar a V. Exas que, nos termos da garantia prestada e no prazo máximo de 48 horas, procedam ao depósito da quantia de €115.371,25 na conta à ordem de que somos titulares (…).
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Como antes já vimos, neste seu recurso a autora/apelante pretende ver alterada a decisão de facto proferida, passando a constar dos factos provados a seguinte matéria:
- No contrato celebrado em 22.03.2010 entre partes – facto provado nº2 – foi estabelecido – art.º 21º que no omisso foi submetido pelas partes ao disposto no D.L. nº18/2008, de 29 de Janeiro.
- Em 25.01.2018 a Autora solicitou à Ré E ..., por carta recebida em 06.02.2018, a libertação total da garantia bancária nº... e a realização de uma vistoria dos trabalhos para efeitos de recepção definitiva da empreitada.
- A Ré E ... não respondeu à carta recebida nem procedeu ao agendamento da vistoria para efeitos de recepção definitiva, pelo que, se considera verificada a recepção definitiva da empreitada desde pelo menos 08.03.2018.
Vejamos, pois, se tal pretensão tem ou não fundamento.
É certo que nos autos foi aplicado o regime previsto no nº1 do art.º 567º do CPC, fazendo-se constar na decisão recorrida o seguinte:
“Foram considerados confessados os factos articulados pela A.”.
É sabido por todos que o réu, mais do que ter o direito, tem o ónus de contestar a acção. E isto porque a revelia (sendo operante) produz efeitos que lhe são desfavoráveis. Por isso mesmo é que uma das informações necessárias a transmitir ao réu aquando da sua citação diz respeito às cominações em que incorre em caso de revelia (cf. art.º 227º, nº2, in fine e art.º 563.º do CPC).
Assim a revelia operante tem por efeito a confissão dos factos articulados pelo autor, tal como estabelece o art.º 567º, nº1, in fine, sendo que este regime tem lugar quando o réu, apesar de não contestar, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, ou, pelo menos, haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada “confissão tácita ou ficta”.
Tal confissão distingue-se da confissão judicial expressa, que consiste numa declaração de ciência, através da qual se reconhece um fato cuja prova pertence à parte contrária (artigo 355ºe seguintes). Por sua vez, a confissão a que conduz a revelia operante não depende de qualquer declaração nesse sentido, bastando a própria inércia do demandado.
Nos termos legais, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, restará apenas decidir a causa “conforme for de direito” (cf. art.º567º, nº2, in fine).
Deste modo, confessados que passam a ter-se os factos articulados na petição, deixa de haver controvérsia nessa sede, limitando-se a questão à valoração jurídica desses mesmos factos.
No entanto, importa ressalvar que o estado de revelia operante em que se encontra o réu não conduz, sem mais, à procedência da acção (neste sentido cf. o art.º 567º, nº2, in fine).
Com a propositura da acção o autor formula determinada pretensão de tutela jurisdicional tendo por referência o quadro factual que verte na petição inicial.
Mais, por força da revelia tem-se por verificado nos autos esse quadro factual, mas não mais do que isso.
Por isso, continua o juiz a ter de julgar a causa “conforme for de direito” e tal julgamento tanto pode conduzir à procedência da acção como não.
Daí que se fale no efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante, razão pela qual se o réu não contestar e a lei (art.º 364.º do Código Civil) ou as partes (art.º 223.º CC) exigirem documento escrito como forma ou prova de um negócio jurídico alegado na petição inicial e o autor não tiver junto esse documento aos autos, a falta de contestação não supre a falta daquele.
Ou seja, os factos que só por via do documento possam ser demonstrados não são considerados confessados (cf. art.º568º, alínea d).
A revelia não produz efeitos quando se trate de factos para a prova dos quais se exija documento escrito. Se por lei (art.364.º CC) ou por convenção das partes (art.223.º CC) for imposta determinada forma para a emissão de declarações negociais, a lei de processo não pode permitir que a eventual falta de contestação conduza a um resultado contrário ao exigido pela lei substantiva ou pela convenção.
Dito de outra forma, por princípio, a falta de contestação implica a confissão de todos os factos articulados pelo autor, nos termos do art.º 567º, nº1, salvo daqueles que, efectivamente, exijam prova documental para a sua demonstração.
Em caso de não impugnação também não se consideram assentes os factos que só podem ser provados por documento escrito (cf. art.º 364º CC) – art.574º nº2.
A este propósito e por ser relevante, impõe-se ter em conta aquilo que é um facto.
Facto é pois todo o acto humano ou acontecimento natural, qualquer dado da experiência, uma acção realizada, um acontecimento, o que existe, aquilo que é real.
E será jurídico se a lei lhe atribuir um efeito jurídico.
Por outro lado, importa recordar que no nº3 do art.º 607º do CPC está consignado o seguinte relativamente à forma como deve ser elaborada a sentença:
“Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz descriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.”
Regressando ao caso concreto o que verificamos é o seguinte:
Perante o antes exposto, resulta para nós evidente que o recurso da decisão de facto aqui interposto pela Autora não pode ser provido nos estritos termos em que é deduzido.
Isto porque grande parte da matéria que integra os novos pontos cuja integração na matéria dada como provada agora se requer, não são verdadeiros factos de acordo com a qualificação antes melhor referida.
E sendo assim e sendo certo que o mesmo recurso merece acolhimento, atento o disposto no nº1 do art.º 662º do CPC, a alteração proposta não pode ter lugar de acordo com o que agora vem requerido.
Assim sendo julga-se pois parcialmente procedente o recurso de facto aqui interposto e altera-se nos seguintes termos a decisão de facto proferida:
Factos provados:
1º. A Autora tem por objecto social o fabrico, tratamento de superfícies por galvanização por imersão a quente e por pintura, montagem, instalação e reparação de estruturas e partes metálicas.
2º. Em 22 de Março de 2010, a Autora e a Ré E..., S.A., à data com a razão social K..., S.A., subscreveram o documento intitulado “Documento de Adjudicação n.º ... – Contrato de Subempreitada”, cujo teor se dá aqui por reproduzido , tendo por objecto a realização pela primeira para a segunda de “trabalhos de guardas metálicas” na empreitada designada de “Subconcessão do ... – Lote ... e ... – Obras de Estrada”.
3º. No âmbito do acordo referido no ponto 2.º, a Autora entregou à E ... o original do documento intitulado “Garantia Bancária n.º ...”, subscrito pelo Réu Banco 1... S.A., a pedido da Autora, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito: Garantia Bancária n.º ... K..., S.A. (...) Em nome e a pedido de M..., S.A., (...) vem o Banco 1... S.A., (...) pelo presente instrumento prestar a favor da sociedade K..., S.A., (...) uma garantia bancária no valor de EUR 115.371,25 (...), destinada a garantir o bom e pontual cumprimento das obrigações assumidas pela M..., S.A., perante a beneficiária no âmbito do contrato de subempreitada de “fornecimento e montagem de guardas metálicas de segurança” da empreitada de “Subconcessão do ... – Lote ... e ... – Obras de Estrada”, entre ambas celebrado. Por força da presente garantia, este banco obriga-se a pagar imediatamente à beneficiária K..., S.A., qualquer importância até ao indicado valor de EUR 115.375,25 (...), quer seja a título de dívida originária, quer de juros ou de qualquer outra natureza ou causa, logo que esta lho solicitar por escrito, com simples invocação da origem do crédito, mas sem necessidade de qualquer outra invocação, formalidade ou produção de prova, não podendo o banco escusar-se a fazer-lhe tal pagamento sobre qualquer pretexto ou fundamento.
4º. Em 28 de Junho de 2011, após a Autora ter concluído a obra referida no ponto 2. − factos provados –, a Ré E ... recebeu-a provisoriamente.
5º. A E ... nunca participou à requerente defeitos da obra referida no ponto 2.º - factos provados.
6º Em 29 de maio de 2015, a Ré E ... comunicou ao Reu Banco 1... S.A., que o valor da Garantia Bancária n.º ... seria reduzido em 75%, passando a ser de € 28.842,81.
7º. Em 25.01.2018 a Autora voltou a solicitar à Ré E ..., por carta recebida em 06.02.2018, a libertação total da garantia bancária nº... e a realização de uma vistoria a todos os trabalhos objecto da identificada subempreitada, a realizar no prazo de trinta dias a contar da recepção dessa mesma comunicação (cf. documentos juntos a fls. 55 v e seguintes).
8º Até hoje a Ré E ... não respondeu à referida carta.
9.º Em 28 de Dezembro de 2020, a Ré E ... remeteu ao Réu Banco 1... S.A., a carta junta a fls. 63 v. e 64 da providência cautelar , onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito: Ao Banco 1... S.A. (...) Assunto:
Garantia Bancária n.º ..., de € 11.5371,25 (...) O Presente accionamento tem por fundamento o não cumprimento integral das obrigações assumidas pela M... S.A. perante a nossa empresa, situação que obriga à substituição da mesma em obra, com danos para a beneficiária de montante muito superior ao da garantia ora accionada. Assim, serve a presente para solicitar a V. Exas que, nos termos da garantia prestada e no prazo máximo de 48 horas, procedam ao depósito da quantia de € 115.371,25 na conta à ordem de que somos titulares (…).
10.º - No contrato celebrado em 22.03.2010 entre partes – facto provado nº2 – foi estabelecido a Autora e a 1ª Ré acordaram submeter o mesmo contrato de subempreitada às disposições legais previstas no Código dos Contratos Públicos – cfr. cláusula 9.6.
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É pois com este conjunto de factos que devem ser apreciadas as restantes questões suscitadas no presente recurso.
Desde logo a nulidade, por omissão de pronúncia, da decisão recorrida.
Assim, nas suas alegações, (conclusões P e Q), a autora/apelante considera que a sentença é nula pelas seguintes razões:
“De facto, tendo os autos por objecto a declaração de inexistência do direito da 1ª Ré, porque há muito que caducou, e tendo inclusivamente ficado provado que, nunca houve qualquer denúncia de defeitos da obra à Autora, resulta claro na prova da inexistência, do direito da 1ª Ré, e em consequência é mister é que tal factualidade – reconhecimento da verificação da recepção definitiva – fosse conhecida e decidida na sentença, o quer não ocorreu.”
Ora todos sabemos que a quarta causa de nulidade prevista na alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC, abarca aquelas situações em que a sentença não se pronuncia sobre questões que o tribunal devia conhecer, por força do disposto no art.º 608º, nº2.
Perante tal definição e contrariamente ao que defende a autora/apelante neste seu recurso, parece-nos evidente que não estamos perante tal vício que a verificar-se, determinaria a nulidade da sentença proferida.
Assim, o que se constata é que na mesma decisão tal questão acabou por ser apreciada, ainda que de uma forma muito simples.
Na verdade, ao considerar como considerou que só houve recepção provisória da obra, o Tribunal “ a quo” acabou necessariamente por entender que no caso ficaram por provar os factos que eram necessários e suficientes para se ter como verificada a recepção definitiva da obra.
E a ser deste modo, tal entendimento não consubstancia em nosso entender qualquer omissão de pronúncia, podendo sim questionar-se a sua justeza de acordo com os elementos de facto e de direito ao dispor de quem decidiu.
Em suma, não padece pois a decisão recorrida do vício que lhe vem apontado.
É pois o momento de apreciar a última das questões suscitadas.
Como antes já vimos, na decisão recorrida o Tribunal “a quo” considerou o seguinte: “quanto ao segundo pedido, uma vez que só houve recepção provisória da obra, mantém-se a garantia bancaria prestada até à recepção definitiva da obra pelo dono da obra, cabendo julgar improcedente, nesta parte, a pretensão deduzida.”
Contra tal entendimento insurge-se a autora/apelante sendo as razões para tal posição as que constam das suas alegações as quais e segundo a mesma devem dar lugar à procedência do pedido formulado em 2) da petição inicial.
Como está provado, as partes submeterem o contrato de subempreitada melhor identificado no ponto 2º dos factos provados ao CCP (D.L. nº59/99 de 2 de Março, revogado pelo D.L. nº 18/2008 de 29 de Janeiro).
Segundo o disposto no nº7 do art.º 394º, aplicável por força do disposto no art.º 397º do mesmo diploma legal, a obra considera-se tacitamente recebida se o dono da obra não agendar ou não proceder à vistoria no prazo de 30 dias a contar da notificação do empreiteiro para o efeito.
E isto por força do que decorre do nº6 do art.º 398º, segundo o qual “são aplicáveis à vistoria e ao auto de recepção definitiva, bem como à falta de agendamento ou realização da vistoria pelo dono da obra, os preceitos que regulam a recepção provisória quanto às mesmas matérias.”
E também por força do que prescreve, os nºs 5, 6 e 7 do art.º 394º cuja redacção é a seguinte:
“5- Quando a vistoria for solicitada pelo empreiteiro, o dono da obra deve realizá-la no prazo de 30 dias contados da data da recepção da referida solicitação, convocando o empreiteiro nos termos do n.º 3.
6- O não agendamento ou realização atempada e sem motivo justificado da vistoria por facto imputável ao dono da obra tem os efeitos previstos no direito civil para a mora do credor.
7- No caso previsto no número anterior, a obra considera-se tacitamente recebida se o dono da obra não agendar ou não proceder à vistoria no prazo de 30 dias a contar do termo do prazo previsto no n.º 5, sem prejuízo das sanções a que haja lugar, nos termos da legislação aplicável, designadamente quando o empreiteiro não executou correctamente o plano de prevenção e gestão de resíduos de construção e demolição.”
Nos autos e como está agora provado que a Autora em 25.01.2018 requereu à 1ª Ré a realização de uma vistoria a todos os trabalhos objecto da identificada subempreitada, a realizar no prazo de trinta dias a contar da recepção dessa mesma comunicação (cf. ponto 7º dos factos provados).
Mais se provou que a tal solicitação não obteve a Autora qualquer resposta (cf. ponto 8º dos factos provados).
Sendo assim e atentas as regras antes melhor descritas, deve considerar-se que a obra em apreço se encontra-se definitivamente recepcionada desde o dia 08.03.2018.
Deste modo, tem pois razão a autora/apelante quando defende que encontrando-se a obra tacita e definitivamente recepcionada, na sentença recorrida dever-se-ia ter julgado também procedente o pedido por si formulado em 2) da petição inicial.
E não o tendo feito, impõe-se revogar nos termos propostos o que então ficou decidido.
Procede assim nesta parte o recurso aqui interposto.
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Sumário (cf. art.º 663º, nº7 do CPC):
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III. Decisão:
Pelo exposto e na procedência do recurso de apelação aqui interposto e, em consequência, julga-se a acção totalmente procedente, por provada, e, em consequência:
a) Declara-se o cancelamento da garantia bancaria nº125-02-170554, por declaração de inexistência do direito da 1ª Ré de a accionar;
b) Condena-se a 1ª Ré a abster-se de accionar total ou parcialmente a referida garantia;
c) Por último, condena-se a 2ª Ré a abster-se de pagar a referida garantia à 1ª Ré.
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Custas em ambas as instâncias a cargo da 1ª Ré (cf. art.º 527º, nºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.

Porto, 21 de Abril de 2022
Carlos Portela
António Paulo Vasconcelos
Filipe Caroço.