Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2070/16.0T9VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
TEMPO DOS FACTOS
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
Nº do Documento: RP201711152070/16.0T9VFR.P1
Data do Acordão: 11/15/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 57/2017, FLS 14-22)
Área Temática: .
Sumário: I- A falta de indicação da circunstância temporal dos factos não equivale a ausência de “narração dos factos” não sendo a acusação manifestamente infundada.
II- É uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação.
III – Se durante a audiência surgirem factos relevantes para a decisão que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximas das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados ex novo e se vierem a provar integrá-los no processo sem violação do artº 32º 1 e 5 CRP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 2070/16.0T9VFR.P1
Origem: Comarca de Aveiro- Juízo Local Criminal de St.ª M.ª Feira- Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I- RELATÓRIO
O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B..., nos termos constantes de folhas 83-85, imputando-lhe a coautoria material de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea e), todos do Código Penal.
Remetidos os autos para a fase de julgamento, foi proferido despacho de saneamento do processo, declarando a acusação pública manifestamente infundada, por falta de narração dos factos – mais especificamente por aí não ter sido descrito o momento temporal da prática dos factos – e rejeitando-a, ao abrigo do preceituado no artigo 311º, n.º 2, alínea a) e n.º3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
Inconformado com tal decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso, acabando por formular as seguintes conclusões:
«1. Nos autos à margem identificados foi deduzida acusação pública contra o arguido B..., nos termos constantes do despacho de fls. 83-85, imputando-lhe a prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, n.º1, 204º, n.º 2, alínea e), por referência ao disposto no artigo 202º, alínea e), todos do Código Penal.
2. Remetidos os autos a julgamento, foi proferido despacho de saneamento do processo, declarando a acusação pública manifestamente infundada, por falta de narração dos factos, ao abrigo do preceituado no artigo 311º, n.º2, alínea a) e n.º3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, porquanto não foi descrito o momento temporal da prática dos factos.
3. A invocada nulidade do despacho de acusação (nos termos do artº 283º, nº3, do CPP), não integra qualquer nulidade “insanável” e por isso, não poderia ser oficiosamente declarada, como o foi, atento o elenco taxativo das nulidades insanáveis previsto no artigo 119º do Código de Processo Penal e o disposto no art. 120º, n.º1 do mesmo diploma legal.
4. O momento temporal da prática do facto, não configura qualquer elemento essencial do crime de furto imputado, pelo que não é tal omissão suficiente para se equiparar a uma falta de narração dos factos.
5. Tal omissão não é suscetível de prejudicar o direito de defesa do arguido, em conformidade com o disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, porquanto do despacho de acusação encontra-se concretizado o objeto do processo (o arguido tem conhecimento do local, dos objetos subtraídos e do modo de atuação).
6. A acusação contém todos os factos que justificam a aplicação da pena ao arguido, e que são configuradores do elemento objetivo e subjetivo do referido crime – o arguido subtraiu coisa alheia guardada em interior de habitação, por meio de escalamento, mais fazendo-o de forma livre, deliberada e consciente ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. A omissão da descrição do momento da prática dos factos não consubstancia causa de “nulidade” ou de “rejeição” da acusação, podendo ser colmatada por força do disposto no art. 358º do Código de Processo Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória (tal como ocorreu no PCC n.º 426/15.5PAVFR conforme certidão que se juntou).
8. O despacho recorrido violou o disposto nos artigos 119º, 120º, 283º, n.º1, al. b), 311º, n.º2º, al. a) e n.º 3º, al. b) todos do Código de Processo Penal.
9. O Tribunal a quo, ao assim decidir, extravasou os seus limites cognoscíveis, indo muito para além dos poderes a que se encontrava vinculado, conhecendo de questões que não poderia conhecer, porque não verificadas, pelo que a decisão recorrida enferma de nulidade, em conformidade com o disposto no artigo 379º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal.
10. Pelo que deverá tal despacho ser revogada e substituída por outro que ordene o recebimento dos autos e a marcação de data para julgamento.»
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O arguido respondeu ao recurso, resumindo a sua posição nos seguintes termos:
«1.ª- O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B..., imputando-lhe a prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao disposto no artigo 202.º, alínea e), todos do Código Penal.
2.ª- Remetidos os autos a julgamento, foi proferido despacho de saneamento do processo, rejeitando a acusação pública deduzida contra o arguido, por falta de narração dos factos que integrariam a descrição do tipo de ilícito, ao abrigo do preceituado no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), ambos do Código de Processo Penal.
3.ª- O Ministério Público, discordando com o decidido, recorreu de tal despacho.
4.ª- Ora, salvo o devido respeito, a decisão, a decisão do tribunal a quo não merece qualquer reparo.
5.ª- Referiu o Ministério Público que, de facto, não consta da acusação pública a circunstância temporal da prática dos factos.
6.ª- Todavia, questionou:
“- Será que tal omissão é suficiente para determinar a rejeição da acusação, por manifestamente infundada, em conformidade com o disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal?
- Tal omissão fere, irremediavelmente, as garantias de defesa do arguido?
- A verificação de tal nulidade é assim do conhecimento oficioso?
- Em que medida tal facto contende com a verificação do ilícito imputado ao arguido?
- Por fim, não poderia o Tribunal a quo em momento ulterior, nomeadamente, tendo por base o disposto no art. 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aditar tal facto e, consequentemente, apreciar as demais questões (alegada inimputabilidade em razão da idade do agente) em que baseou o seu raciocínio?”
7.ª- Ora, dispõe o artigo 311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quanto ao “saneamento do processo”, que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (…).
8.ª- E acrescenta o n.º 3 que “para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: (…) b) quando não contenha a narração dos factos (…).
9.ª- Por outro lado, para se entender melhor em que consiste aquela “narração dos factos” temos que recuar no Código de Processo Penal, concretamente ao n.º 3 do artigo 283.º, que refere que “a acusação contém, sob pena de nulidade: (…) b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática (…).”
10.ª- Ora, com o respeito que é devido, não poderia a lei ser mais clara no que a esta matéria diz respeito ou, por outras palavras, quanto à sua interpretação e aplicação.
11.ª- No caso em apreço, concretamente na acusação do Ministério Público, não consta, em momento algum, o tempo da prática dos factos – como aliás refere o Ministério Público nas suas alegações de recurso -,
12.ª- Sendo que, uma vez que tal referência era possível – como volta a referir o Ministério Público –, estamos, sem dúvida, perante uma omissão, isto é, perante a falta de narração de um facto,
13.ª- Não justificável pelo seu desconhecimento ou qualquer outra impossibilidade, como vimos.
14.ª- Posto isto, o tribunal a quo limitou-se, e bem, a aplicar lei: quando a acusação não contém a narração dos factos (designadamente o tempo da sua prática), considera-se (além de nula, nos termos do artigo 283.º, n.º 3 do CPP) manifestamente infundada, e, por esse facto, pode ser rejeitada,
15.ª- Dentro dos poderes que são concedidos ao Mmo. Juiz nesta fase do processo.
16.ª- A exata e correta aplicação da lei demonstra, pois, que aquela omissão foi (e é) suficiente para se classificar a acusação como “manifestamente infundada” e para se determinar pela sua rejeição. 17.ª- Por outro lado, o “problema” da nulidade da acusação pública, ao abrigo do preceituado no artigo 283.º, n.º 3 do CPP, é questão que se soma ao dilema da rejeição da acusação por “manifestamente infundada”, e não necessariamente consequência uma da outra.
18.ª- Isto é, não é requisito para a rejeição da acusação pública, por “manifestamente infundada”, que a mesma seja nula, por não preencher os requisitos do artigo 283.º, n.º 3 do CPP,
19.ª- Embora possa haver essa coincidência, como será o caso.
20.ª- Todavia, mesmo não tendo sido sanada, antecipadamente ao saneamento do processo, essa nulidade (sem levantar por aqui a questão da oportunidade e possibilidade de sanação dessa nulidade, que entendemos não se aplicar ao caso), “a acusação pública vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial”,
21.ª- Nos termos do disposto no artigo 311.º do CPP.
22.ª- E nesta fase – saneamento do processo – recebidos os autos, é que o presidente irá despachar no sentido, por exemplo, de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada (com base num dos quaisquer motivos elencados no n.º 3 do artigo 311.º do CPP).
23.ª- Mais, nos presentes autos, não houve lugar a instrução, pelo que, como também resulta claro da citada disposição legal (artigo 311.º, n.º 2 do Código de Processo Penal), o tribunal a quo tinha poderes para proferir despacho no sentido que o fez.
24.º- Ora, este é o entendimento de muita da jurisprudência portuguesa.
25.º- Por outro lado, refere o Mmo. Juiz a quo que “em todas as situações, a indicação da localização temporal dos factos imputados” – bem como de todos os outros factos que possam integrar o tipo de ilícito que é imputado ao agente – “é inegavelmente um fator determinante para regular o exercício do contraditório e bem assim para a averiguação da verificação dos pressupostos processuais”.
26.º- Partindo do princípio de presunção da inocência, o arguido não saberia sequer, no caso concreto, quando é que tinha cometido o ilícito que lhe é imputado!
27.º- Nesse sentido, jamais poderia exercer convenientemente (ou minimamente que fosse) o seu direito de contraditório e, por conseguinte, a sua defesa.
28.º- Mais, “no caso concreto, a indicação da data da prática dos factos que ao arguido são imputados é ainda mais determinante” – essencial, acrescentamos nós – “porquanto o arguido nasceu apenas no dia 13 de março de 2000, pelo que, considerando que a numeração dos autos é 2070/16, poderá inclusivamente colocar-se a dúvida quanto à inimputabilidade penal do arguido por via de idade inferior a dezasseis anos (artigo 19.º do Código Penal)”.
29.º- O Ministério Público, nas suas alegações de recurso, volta a não referir a localização temporal da prática dos factos imputados ao arguido, não lhe fazendo sequer uma mera referência ou alusão!
30.º- Só com um cuidado jogo de interpretação quer da acusação pública proferida nos presentes autos quer da certidão que acompanha o recurso do Ministério Público, extraída do PCC n.º 426/15.5PAVFR,
31.º- Ou, de facto, considerando a numeração dos presentes autos (2070/16),
32.º- É que podemos ter uma ideia de quando é que os factos terão ocorrido.
33.º- Ora, considerando que o arguido B..., no ano de 2016, tinha quinze ou dezasseis anos (só tendo completado dezassete anos de idade em 13 de março de 2017),
34.º- Era, por um lado, considerado inimputável, ao abrigo do disposto no artigo 19.º do Código Penal,
35.º- E, por outro, estaria sujeito à aplicação do regime previsto na Lei Tutelar Educativa, concretamente no seu artigo primeiro: “A prática, por menor com idade compreendida entre os 12 e os 16 anos, de facto qualificado pela lei como crime dá lugar à aplicação de medida tutelar educativa em conformidade com as disposições da presente lei.”
36.º- Com efeito, é também preciso não esquecer as finalidades da aplicação deste tipo de medidas aplicáveis ao menor, ao abrigo da Lei Tutelar Educativa (“as medidas tutelares educativas visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade”), diferentes das previstas no Código Penal.
37.º- Por outro lado ainda, poderia estar sujeito à aplicação das disposições previstas no Decreto-lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
38.º- Por último, cabe ainda esclarecer acerca da oportunidade de aditamento, em momento posterior, do facto faltoso (tempo), concretamente tendo por base o disposto no artigo 358.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
39.º- Relativamente à decisão do tribunal a quo, concretamente ao momento em que foi proferida, nada mais há a acrescentar ao que já foi dito: o Mmo. Juiz fê-lo ao abrigo das disposições legais que lhe permitem rejeitar a acusação pública, em fase de saneamento do processo, isto é, quando o recebe e analisa, e antes de marcar o julgamento; o tribunal a quo não fez nem mais nem menos que aquilo que está determinado por lei.
40.º- Por outro lado, relativamente àquele aditamento ser feito com base no disposto no artigo 358.º, n.º 1 do Código Processo Penal, a resposta da nossa parte só pode ser negativa: o arguido iria a julgamento sem saber os factos (tal como previsto no artigo 283.º, n.º 3 do CPP) de que era acusado!
41.º- Dá-se por reproduzida, por isso, a análise feita pelo Tribunal a quo a este respeito, e salienta-se: “No julgamento, o juiz encontra-se limitado pelos factos descritos na acusação: o juiz não decide nunca os termos da acusação, decide unicamente sobre a acusação já deduzida; está vinculado aos termos da acusação, tal como ela foi deduzida ou ao despacho de pronúncia (…)”.
42.º- No nosso entendimento, a “alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia”, prevista no artigo 358.º, n.º 1 do Código Processo Penal, não contende com a narração de factos que já deveriam constar da acusação, ao tempo do julgamento (antes até).
43.º- Trata-se da falta de um elemento essencial para a verificação de um ilícito, e não de uma mera alteração de alguma das suas circunstâncias, caraterísticas, contexto ou outro.
44.º- Se assim fosse, qual a relevância prática do artigo 311.º, n.º 2 e n.º 3 e do artigo 283.º. n.º 3, do CPP?
45.º- Ficariam vazios de sentido, dando-se o caso de chegarmos à fase de julgamento sem se conhecer os factos que nos levaram até lá, sem se conhecer os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
46.º- Em última instância, a própria acusação pública ficaria limitada na sua função: não levaria todos os factos essenciais até ao julgamento, sendo os mesmos aditados só naquele momento.»
Terminou as suas contra-alegações pedindo que o despacho impugnado seja confirmado, negando-se provimento ao recurso interposto.
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Já nesta 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, em que se pronunciou pela procedência do recurso.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
A única questão a decidir é a de saber se a falta de indicação, na acusação, do tempo ou data em que se terão verificado as ocorrências ajuizadas implica a falta de narração dos factos prevista na alínea b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, para efeitos de se considerar manifestamente infundada a acusação.
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Para melhor situar e concretizar a questão a decidir e na medida em dele constam os factos alegados na acusação, importa reproduzir o teor do despacho recorrido:
«O Ministério Público deduziu acusação contra o arguido B..., identificado a folhas 19, imputando-lhe a prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, alínea e), por referência ao artigo 202.º, alínea e), todos do Código Penal.
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Questões prévias
Da nulidade da acusação pública por falta de adequada narração dos factos:
A acusação (artigo 283.º) constitui a charneira entre o inquérito e o julgamento.
Trata-se duma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo: a atividade do tribunal só pode ser exercida se um determinado conjunto de factos lhe for submetido por um órgão independente do julgador. Acusação e defesa são, assim, dois polos dialéticos que não podem subsistir um sem o outro (Cunha Rodrigues). A defesa tem de estar, pois, numa situação de paridade relativamente à acusação. Nomeadamente, o processo não pode ser remetido para julgamento sem que o seu objeto tenha sido delimitado num documento (a acusação ou requerimento acusatório) que indique taxativamente os factos que o tribunal pode apreciar; e o arguido deve ter também a oportunidade de produzir um documento (a contestação) que contrarie o anterior. O arguido pode em julgamento questionar toda a matéria acusatória, sendo aí que o princípio do contraditório ganha a sua maior expressão, traduzindo-se no direito que o arguido tem de ser ouvido, de se defender e, designadamente, de se pronunciar sobre as alegações, as provas, os atos ou quaisquer iniciativas processuais da acusação. O princípio acusatório protege o arguido, na medida em que lhe assegura que uma condenação só poderá ter sucesso se dois órgãos da administração da justiça – o acusador e o tribunal —, independentemente um do outro, chegarem ao convencimento de que ele é culpado (Roxin).
O artigo 283.º impõe (nº 3) que a acusação contenha, sob pena de nulidade: a) as indicações tendentes à identificação do arguido; b) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada; c) a indicação das disposições legais aplicáveis (…).
In casu, é a acusação pública que vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial. Como tal, deve conter todos os elementos de uma acusação, de sobremaneira a matéria de facto que consubstancie o ilícito que se pretende imputar ao arguido.
Com efeito, regendo-se o processo penal pelos princípios do acusatório e do contraditório, a necessidade de uma tal demarcação tem subjacentes duas ordens de fundamentos, – um inerente ao objetivo imediato do julgamento: a comprovação judicial dos factos acusados (que, para que se possa demarcar o âmbito do objeto específico desta fase do processo e para que o arguido se possa defender, tem que reportar-se a imputação de factos concretos delimitados) e – outro implícito a uma finalidade mediata mas essencial: a demarcação do próprio objeto do processo, reflexo da sua estrutura acusatória com a correspondente vinculação temática do Tribunal, que, por sua vez, na medida em que impede qualquer eventual alargamento arbitrário daquele objeto, constituindo uma garantia de defesa do arguido, possibilita a este a preparação da defesa, assim salvaguardando o contraditório.
No julgamento, o juiz encontra-se limitado pelos factos descritos na acusação: o juiz não decide nunca os termos da acusação, decide unicamente sobre a acusação já deduzida; está vinculado aos termos da acusação, tal como ela foi deduzida ou ao despacho de pronúncia. Existindo duas ou mais acusações, como por vezes acontece, por ex., a do Ministério Público acompanhado pelo assistente, «(…) o juiz pode apenas acolher uma delas, quando entre si sejam incompatíveis, ou ambas, quando sejam complementares, mas não pode pronunciar o arguido por factos que sejam substancialmente distintos dos constantes numa daquelas acusações sob pena de nulidade da decisão instrutória (…).» (Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, p. 154).
Vistos em traços largos o respetivo enquadramento jurídico importa agora analisar a acusação à luz de tais princípios.
Conforme é descrito na acusação pública:
O arguido B..., juntamente com C..., deslocaram-se ao estabelecimento de panificação, conhecido por D..., sito na Rua ..., em Santa Maria da Feira, e decidiram retirar do seu interior os objetos que fossem do seu interesse.
O arguido B..., dividindo tarefas entre si, abriram a janela sobreposta à porta de entrada e, forçando, abriram-na, acedendo ao interior do estabelecimento comercial.
Uma vez no seu interior, o arguido B... e C... apoderaram-se de rissóis, de carne, de peixe congelado, de latas de conserva de pêssego e de ananás, tudo no valor total de €.: 150,00.
De seguida, o arguido B... e C... abandonaram o local na posse de tais bens, fazendo-os coisas suas.
O arguido B... agiu de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços com C... e segundo o plano que gizaram, com o propósito comum alcançado de entrarem em estabelecimento comercial por uma janela e de se apoderaram dos bens que lhes interessassem, não obstante saber que não lhe pertenciam e que a sua conduta era proibida e punível por lei.”.
Ora, é precisamente relativamente a esta sumária descrição factual que precisamente se poderá perspetivar a nulidade da acusação pública, senão vejamos.
Com efeito, da acusação pública não consta a data em que alegadamente ocorreram os factos que ao arguido são imputados, sendo certo que nada se diz quanto à impossibilidade da sua determinação.
Assim sendo, torna-se, desde logo, inviável um eficaz, cabal e fundado exercício do direito de defesa, por não ser indicado um dos elementos de facto essenciais, a localização temporal da prática dos factos.
Efetivamente, em todas as situações, a indicação da localização temporal dos factos imputados é inegavelmente um fator determinante para o regular exercício do contraditório e bem assim para a averiguação da verificação dos pressupostos processuais.
No caso concreto, a indicação da data da prática dos factos que ao arguido são imputados é ainda mais determinante, porquanto o arguido nasceu apenas no dia 13 de março de 2000, pelo que, considerando que a numeração dos autos é 2070/16, poderá inclusivamente colocar-se a dúvida quanto à inimputabilidade penal do arguido por via de idade inferior a dezasseis anos (artigo 19.º do Código Penal).
Por conseguinte, da perfunctória análise do sumário enunciado factual vertido na acusação pública, parece claro que não são narrados factos suficientes para a imputação do apontado crime ao arguido, padecendo a mesma da nulidade prevista na alínea b) do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal.
De acordo com o artigo 311.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal: «Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.»; por sua vez o n.º 3 do mesmo preceito legal dispõe que: «(...) a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.».
Assim sendo, de todo o exposto, resulta claro que terá de ser rejeitada a acusação pública por falta de narração dos factos que integrariam a descrição do tipo de ilícito.
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Pelo exposto, nos termos que conjugadamente resultam do preceituado na alínea a) do n.º 2 e na alínea b) do n.º 3, ambos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, decido rejeitar a acusação pública deduzida contra o arguido B....
Sem custas criminais.
(…)»
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A questão a decidir
Como já vimos, a questão fundamental a decidir nos presentes autos consiste em saber se a falta de indicação, na acusação, do tempo ou data em que se terão verificado as ocorrências ajuizadas implica a falta de narração dos factos prevista na alínea b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, para efeitos da sua eventual rejeição por manifesto infundamento, nos termos da alínea a) do nº 2 do mesmo artigo.
A interpretação deste preceito não prescinde do seu cotejamento com o nº 3 do artigo 283º do mesmo diploma, onde se dispõe:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A indicação ainda que sintética dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) A indicação das disposições legais aplicáveis;
d) O rol, com o máximo de 20 testemunhas (…);
(…)”.
Assim, a acusação, no que respeita à narração dos factos, além dos elementos do crime de natureza subjetiva, deve, em princípio, ser precisa relativamente aos seguintes aspetos: quem cometeu o crime (relevante para a questão da autoria), quando (relevante para as questões da imputabilidade, do regime legal aplicável, da prescrição), onde (questão da competência do tribunal), como (questão do enquadramento típico) e porquê (questão da motivação).
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita – nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º.
Os factos descritos na acusação em articulação com as normas consideradas infringidas pela sua prática (também obrigatoriamente indicadas no libelo acusatório) definem e fixam o objeto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal.
Segundo Figueiredo Dias [2] é a este efeito que se chama vinculação temática do tribunal e é nele que se consubstanciam os princípios da identidade, da unidade ou indivisibilidade e da consunção do objeto do processo penal, ou seja, os princípios segundo os quais o objeto do processo deve manter-se o mesmo, da acusação ao trânsito em julgado da sentença, deve ser conhecido e julgado na sua totalidade (unitária e indivisivelmente) e – mesmo quando o não tenha sido – deve considerar-se irrepetivelmente decidido.
Assim, na acusação devem ser mencionados todos os elementos da infração, através da descrição (ainda que sintética) dos factos que o arguido praticou, sendo perante este enquadramento factual e jurídico que o arguido terá oportunidade de elaborar a sua estratégia de defesa.
Com efeito, um processo penal de estrutura acusatória (como, embora mitigadamente, é o nosso, por imperativo constitucional) exige, para assegurar a integridade das garantias de defesa do arguido, uma necessária conexão entre a acusação e a sentença que, em princípio, coenvolverá a desconsideração no processo de quaisquer outros factos ou circunstâncias incriminatórias que não constem do objeto do processo, uma vez definido este pela acusação.
O Código de Processo Penal estabelece, com clareza, o papel preponderante do Ministério Público, enquanto entidade ‘dona’ do inquérito e por ele responsável, no que respeita à promoção do processo e à dedução da acusação (cf. artigos 48º e 53º deste diploma, com as compreensíveis limitações constantes dos artigos 49º a 52º do mesmo).
Ao juiz de julgamento, assim impedido de se pronunciar sobre a acusação, restaria o papel de direção da fase de julgamento (no que ao caso concreto interessa, visto que não foi requerida a instrução), balizado e limitado pelo conteúdo da acusação.
Todavia, o legislador processual penal limitou os efeitos extremos de um processo acusatório puro – que suporia uma inteira passividade do juiz perante a acusação pública e/ou particular – dotando o julgador de alguns instrumentos de proatividade na descoberta da verdade e na agilização do processo, em termos de se poder considerar o sistema processual português como acusatório mitigado.
Assim, o papel da alínea a) do nº 2 e das quatro alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal surgem como afloramentos desse tempero de oficiosidade/indagação, com vista a evitar que casos extremos de inépcia acusatória permitam a submissão a julgamento de cidadãos que se sabe que serão seguramente absolvidos, pretendendo evitar sujeitá-los, desnecessariamente, a um julgamento incomodativo ou mesmo vexatório.
As diversas alíneas do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal tendem a definir, neste momento processual, a área de atuação do juiz de julgamento, ao qual se impõe, no entanto, em obediência àquele princípio acusatório, que as interprete de forma cautelosa e mesmo restritiva.
Aliás, é este sentido restritivo da atuação do juiz no âmbito do despacho a que se refere o mencionado artigo 311º que a história do preceito nos mostra: na sua redação originária, este artigo não continha o atual nº 3, que veio densificar e restringir o conceito de acusação manifestamente infundada, face à proliferação de posições jurisprudenciais sobre o mesmo.
Na verdade, a não delimitação restritiva de tal conceito viria mesmo a possibilitar a consagração, em A.U.J., da possibilidade de rejeição da acusação por manifesta insuficiência da prova indiciária, através, nomeadamente, do acórdão do Plenário das secções criminais do S.T.J. de 17-02-1997, in DR. I-A, de 26 de março de 1997, entretanto caducado, com a introdução, pela Lei nº 58/98, de 25/8, do clarificador nº 3) [3].
Como se escreve de forma preclara no acórdão da Relação de Évora de 10/10/2006, no recurso 996/06-1, relatado por João Gomes de Sousa [4] “é interessante verificar que as várias alíneas daquele nº 3 vêm a consagrar uma forma de nulidade da acusação por referência a uma forma extremada do vício.
As nulidades da acusação estão previstas no artigo 283º, nº 3 do Código de Processo Penal. Como se sabe e em obediência ao princípio da taxatividade das nulidades processuais, estão construídas como nulidades sanáveis – cfr. artigos 118º a 120º do Código de Processo Penal.
Todos os casos referidos no nº 3 do artigo 311º se contêm – de forma mais ou menos explícita - nas previsões das alíneas do nº 3 do artigo 283º. Daí que exista uma íntima conexão entre o nº 3 do artigo 283º e os números 2 e 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal.
Ali a previsão genérica das nulidades da acusação, que deverão ser tratadas de acordo com o regime geral das nulidades processuais, por referência ao regime da taxatividade e, por isso dependentes de arguição e sanáveis.
Aqui os casos extremos, indicados pelo legislador como de ameaça extrema aos princípios processuais penais com assento constitucional, reconduzindo-nos a um tipo de nulidade sui generis, insuperável ou insanável enquanto se mantiver ato imprestável, mas passível de correção pelo Ministério Público, a ponto de se permitir ao Juiz de julgamento a intromissão – atípica num acusatório puro – na acusação, de forma a evitar conduzir a julgamento casos em que seria manifesto isso se não justificar.
Assim, nos casos do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não obstante o não afirmar, o legislador veio a consagrar um regime de nulidades da acusação que, face à sua gravidade e à intensidade da violação dos princípios processuais penais contidos na CRP, são insuperáveis, insanáveis enquanto a acusação mantiver o mesmo conteúdo material.
De facto, a falta dos elementos referidos naquelas alíneas acarretaria uma gravíssima violação dos direitos de defesa do acusado, tornando inviável o exercício dos direitos consagrados no artigo 32º da CRP.
(...)
Em termos práticos, se ao juiz de julgamento não é permitido, em homenagem às dimensões material e orgânico-subjetiva da estrutura acusatória do processo, imiscuir-se ‘ex officio’, nas nulidades genericamente referidas no nº 3 do artigo 283º do Código de Processo Penal, já se lhe impõe que impeça a ida a julgamento de acusações nos casos contados previstos no nº 3 do artigo 311º
Deste modo, pode dizer-se que nem todas as nulidades da acusação previstas no nº 3 do artigo 283º têm como consequência uma acusação manifestamente infundada.
Os casos subsumíveis à figura da acusação manifestamente infundada devem ser claros e evidentes, como inculca a utilização, pelo legislador, do advérbio ‘manifestamente’.
Com esta orientação restritiva, encontramos, além dos já citados, e que seguimos mais de perto, outros arestos de tribunais superiores, de que salientamos:
- o acórdão da Relação de Évora de 29/3/2005, recurso nº 1616/04 [5], onde se sustenta que, apesar de no inquérito se ter determinado a data em que ocorreram os factos imputados aos arguidos e a mesma dever de constar da acusação, sob pena de se verificar uma nulidade relativa, o juiz não pode, por isso, rejeitar a acusação com esse fundamento;
- o acórdão da Relação de Lisboa de 16/05/2006 [6], onde se entende que “manifestamente infundada é a acusação que, por forma clara e evidente, é desprovida de fundamento, seja por ausência de factos que a suportem, (…), seja porque os factos não são subsumíveis a qualquer norma jurídico-penal, constituindo a designação de julgamento flagrante violência e injustiça para o arguido, em clara violação dos princípios constitucionais;
- o acórdão da Relação de Coimbra de 13/10/2010, publicado na Col.Jur., ano XXV, tomoIV, página 49, onde se entende que o fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objetivos e subjetivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante;
- o acórdão da Relação de Coimbra de 28/09/2016, no recurso 190/12.0GAVZL.C1 [7], onde estando em falta a localização da propriedade do assistente onde teriam ocorrido os factos, se entendeu que tal configurava apenas uma descrição imperfeita da localização dos factos imputados à arguida, “o que permite defender que a acusação enferma da nulidade (sanável) prevista no artigo 283º, n.º 3, al. b), do CPP, não assumindo, contudo, relevância bastante para tornar a acusação manifestamente infundada, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 311.º, n.º 3, al. b), do referido diploma legal”.
Na doutrina, Germano Marques da Silva [8] toma posição sobre a alínea b) do nº 3 do artigo 311º (“quando não contenha a narração dos factos”) do seguinte modo: “Se não há factos objeto da acusação, não pode haver processo, a relação é inexistente, não pode manter-se o processo e, por isso, o juiz não deve receber a acusação. A narração é defeituosa, mas suprível, constitui nulidade sanável, por isso, não é também causa de rejeição da acusação, se não for arguida”.
Assim, ainda que a data dos factos se revele deveras importante – seja para efeitos de determinação da imputabilidade do arguido à data dos factos, seja para a determinação do regime jurídico-penal (lex temporis) seja para aferir da existência de causas legais de extinção do procedimento, como a prescrição – ainda assim a sua omissão na acusação não deverá levar à rejeição da acusação como manifestamente infundada.
No caso que nos ocupa, embora constem dos autos, designadamente, peças processuais que possibilitariam a concretização, na acusação, do tempo em que os factos terão ocorrido (auto de notícia, auto de apreensão), entende-se que a mera omissão de indicação da data da prática dos factos pelo arguido está longe de configurar a hipótese da alínea b) do nº 3 do artigo 311º, que deverá ser interpretada de forma extrema, como de ausência total ou parcial, mas grave, “manifesta”, de factos.
A falta de indicação da circunstância temporal não deverá equivaler a uma acusação que “não contém a narração dos factos”, pois que os tem, sobretudo os que justificam a aplicação da pena ao arguido, e que são configuradores dos elementos objetivo e subjetivo do crime imputado.
Na verdade, da ausência da data não resulta que se possa afirmar que a acusação não poderá proceder ou que o arguido, de todo, se não possa dela defender.
Os factos constantes da acusação serão suficientes, mesmo que se venha a entender proceder ao seu complemento em audiência de julgamento, já que o tribunal não está impedido de o fazer, ainda que o considere como alteração não substancial, nos termos do artigo 358º do Código de Processo Penal.
Com efeito, é uma exigência do princípio da plenitude das garantias de defesa do arguido que os poderes de cognição do tribunal se limitem aos factos constantes da acusação; porém, se durante a audiência surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados “ex novo” e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32º nºs 1 e 5 da Constituição [9].
Como se refere no citado acórdão da Relação de Évora de 10/10/2006, não obstante “a acusação se destine a fazer-se valer de forma autónoma em julgamento, não deixa de ser uma peça provisória, a narração de “um pedaço de vida” a comprovar. É um ponto de partida factual e normativo passível de alteração ou correção, ao contrário do que acontece com uma sentença. E a alteração, a proceder – a mera localização temporal dos factos – nem sequer assume a natureza de uma alteração não substancial com relevo”.
Em conclusão, no caso em apreço, embora se possa afirmar que a acusação sofre da nulidade sanável contida no artigo 283º do Código de Processo Penal (logo, não suscetível de conhecimento oficioso), não é possível concluir por uma ausência manifesta de “facto juridicamente qualificado” a incluir na previsão da al. b) do nº 3 do artigo 311º do Código de Processo Penal, não se justificando por isso a rejeição da acusação por manifestamente infundada.
Entendemos, por isso, dever conceder provimento ao recurso.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogam a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que designe dia para realização da audiência de julgamento.
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Sem tributação.
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Porto, 15 de novembro de 2017
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
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[1] Tal decorre, desde logo, do disposto no nº 1do artigo 412º dos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, página 145.
[3] Cf. também o antecedente Assento do S.T.J. 4/93, publicado no DR, I série, de 26/3/1993, consagrando idêntica doutrina.
[4] Que tem como objeto um caso de omissão da data do trânsito em julgado da sentença que impôs o dever cuja omissão constituía o âmago do crime de desobediência qualificada aí em causa. A argumentação usada neste acórdão foi depois utilizada no acórdão da Relação de Coimbra de 21/04/2010, proferido no recurso nº 51/06.1TAFZZ.C1, com o mesmo relator (tratando-se aí de um caso de falta ou insuficiência de indicação do lugar do crime). Por sua vez, a mesma tese foi, de perto, seguida pelo recente acórdão desta Relação do Porto de 12-07-2017, proferido no recurso nº 2282/12.6T3AVR.P1, relatado por Eduarda Lobo (que trata de um caso de omissão da data do crime). Todos estes arestos são acedíveis em www.dgsi.pt.
[5] Relatado por João Sousa Cardoso e publicado na Col.Jur. ano XXX (2005), tomo II, páginas 267-269.
[6] Proferido no recurso nº 836/2006-5, relatado por Margarida Blasco, disponível in www.dgsi.pt.
[7] Relatado por Alcina da Costa Ribeiro, acedido em www.dgsi.pt.
[8] Em Curso de Processo Penal, volume III, 3ª edição, Editorial Verbo (2009), página 205.
[9] Cfr., neste sentido, o acórdão do T.Const. nº 130/98, DR., II Série, de 7/5/1998.