Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1037/18.9T8MAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALEXANDRA PELAYO
Descritores: ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DO ARRENDAMENTO POR MORTE
COMUNICAÇÃO
COMPROVATIVO DA DEFICIÊNCIA
Nº do Documento: RP201812181037/18.9T8MAI.P1
Data do Acordão: 12/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 864, FLS.201-209)
Área Temática: .
Sumário: I - A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário.
II -Nada impede que o descendente portador de deficiência, na comunicação que faz ao senhorio tendo em vista a transmissão do direito de arrendamento, ao abrigo do disposto no art. 57º al e) do NRAU, venha a remeter àquele, apenas em momento posterior, o documento que protestou juntar, comprovativo da deficiência e respectivo grau, após ter sido submetido a Junta Médica, que entretanto requerera.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1037/18.9T8MAI.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto- Juízo Local Cível da Maia – J1

Relatora: Alexandra Pelayo
1º Adjunto: Vieira e Cunha
2ª Adjunta: Maria Eiró
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - RELATÓRIO
Na acção declarativa com processo comum que B… move a C…, a Autora pede a condenação do Réu a:
a) Reconhecer que a A. é única e legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua …, …, …. - …, Freguesia de …, Concelho da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número 163 e inscrito na matriz predial da respectiva freguesia com o artigo 1355;
b) Reconhecer a caducidade do contrato de arrendamento do aludido prédio urbano;
c) Restituir de imediato a fracção livre de pessoas e bens;
d) Ao pagamento de uma indemnização fixada em 300,00€ mensais desde o mês de Outubro até entrega efectiva do imóvel, a favor da Autora, pelos prejuízos emergentes pela não restituição da fracção e que até esta altura se cifram em 1.200€.
e) Ao pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia após o transito em julgado da sentença que o reu persista em não entregar o imóvel.
Para tanto e em suma invoca a caducidade do contrato de arrendamento por falecimento da arrendatária, sem que essa posição se tenha transmitido ao seu filho, o aqui Réu, por não se encontrar comprovado que à data daquele falecimento, o Réu padecia de uma deficiência de 60%.
Citado, contestou o Réu pugnando pela improcedência da acção, defendendo-se dizendo que após o falecimento da arrendatária, sua mãe, comunicou oportunamente á Autora o falecimento daquela, tendo-lhe ainda comunicado que sofria de grau de incapacidade superior a 60%, informando-a ter já solicitado a realização de uma Junta Médica para comprovar tal grau de incapacidade, vindo posteriormente a enviar-lhe o documento comprovativo de sofrer uma incapacidade de 68% atribuída pela Junta Médica.
Dispensada a audiência prévia, veio a ser proferido saneador-sentença, tendo o tribunal conhecido do mérito da causa e decidido nos seguintes termos:
“Julga-se a acção parcialmente procedente e:
- condena-se o réu a reconhecer que a autora é a única e legítima proprietária do imóvel identificado em 1 dos factos provados;
- absolve-se o réu de todos os demais pedidos.
Custas pela autora.”
Inconformada a Autora B… interpôs recurso, oferecendo as seguintes conclusões:
1. A recorrente não se pode conformar com a sentença proferida pela primeira instância;
2. Nos termos do art. 57 n.º 1 alínea e) do NRAU, o filho maior de idade que conviver á mais de um ano com o primitivo arrendatário e for portador de um grau de deficiência, comprovada, superior a 60 %, opera-se o direito á transmissão do arrendamento.
3. O tribunal a quo entendeu que a norma apenas exige que exista um determinado grau de incapacidade, no mínimo de 60% á data do falecimento do anterior inquilino, e que essa deficiência seja comprada, podendo-o fazer num momento posterior.
4. O tribunal a quo errou em tal interpretação já que, o que se exige é que á data do falecimento do arrendatário, o filho seja portador de deficiência superior a 60%, e que tal facto fique documentalmente provado aquando do exercício do direito, através de comunicação escrita.
5. O tribunal a quo, erradamente, deu como provado que o R. sofria de uma incapacidade física com grau comprovado superior a 60%.
6. O tribunal a quo alicerçou tal decisão em atestado médico de incapacidade multiuso que fixou grau de incapacidade em 23 de junho de 2017.
7. A primitiva arrendatária faleceu a 23/03 de 2017.
8. O atestado médico de incapacidade multiuso apenas clarifica que o grau de incapacidade fixado diz respeito á data da sua emissão, leia-se, 23/06/2017 e não, á data de 23/03/2017, momento temporal do óbito da primitiva arrendatária.
9. Inexiste nos autos qualquer elemento que ateste ou comprove e permita corroborar o entendimento do tribunal, de que á data de 23/03/2017, o R. seria já portador de grau de incapacidade superior a 60%.
10. A prova do grau de incapacidade á data do óbito da primitiva arrendatária, incumbia ao R.
11. O R. não logrou provar o seu grau de incapacidade, se é que dispunha do mesmo, á data de 23/03/2017.
12. O tribunal a quo recorreu a fenómenos de adivinhação, para fixar um grau de incapacidade á data de 23/03/2017.
13. O tribunal a quo extrapolou os limites que a Lei lhe confere no princípio do limite da livre a apreciação de prova
14. Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações, o Tribunal “a quo” ao decidir, como decidiu, violou, expressamente, o disposto no art. 57.º n.º 1 alínea e) do NRAU e o disposto no Dec.-Lei n.º 202/96 de 23 de Outubro, com a redacção introduzida pelo Dec.- Lei n.º 174/97 de 19 de Julho, pelo que ter-se-á verificado a caducidade do contrato de arrendamento, nos termos do estatuído na alínea d) do art. 1051.º do CC, não existindo qualquer título que justifique a ocupação da habitação em causa pelo R. decidir nos termos em que o fez, violou, para alem do mais, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto nos artigos artºs 607, 615º, nº.1, alínea c), todos do CPC, artigo 342º, do CC.
Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida e substituindo-se por Douto Acórdão que julgue a acção procedente, com as demais consequências legais.
Contra-alegou o Réu pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.
II - OBJETO DO RECURSO
As questões decidendas consistem em saber se a lei impõe que aquando da comunicação ao senhorio para efeitos da transmissão do direito ao arrendamento a que alude o art. 57 n.º 1 alínea e) do NRAU tenha de se encontrar já comprovado documentalmente o grau de deficiência igual ou superior a 60% do descendente, importando ainda apurar se inexiste nos autos qualquer documento demonstrativo que na data do óbito do primitivo arrendatário, em 23/03/2017, o R. era já portador de grau de incapacidade superior a 60%.
III – FUNDAMENTAÇÃO
Com interesse para a decisão, por acordo das partes, foram julgados provados, os seguintes factos:
1 - A autora é dona e legítima proprietária de um prédio urbano sito na Rua …, …, …. - …, Freguesia de …, Concelho da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o número 163 e inscrito na matriz predial da respectiva freguesia com o artigo 1355.
2 - O imóvel supra identificado adveio á propriedade da A. por sucessão,
3 - Sendo que, nessa altura já se encontrava arrendado a D…, locatário originário, sendo que foi a transmissão de locador devidamente notificada.
4 - Aquele contrato de arrendamento, destinado a habitação do arrendatário, terá sido celebrado a 1 de Janeiro de 1968 entre o referido D… (pai do Réu) e E….
5 - O valor das rendas, e por força das actualizações legais encontra-se hoje cifrado em 22,50€.
6 - Em meados do mês de Junho de 2017, a A. recepcionou em sua casa missiva remetida pela Associação de Inquilinos e Condóminos do Norte de Portugal, cujo assunto foi intitulado ”Comunicação do óbito e de transmissão da posição de arrendatário” - cfr. doc n.º 6 junto à petição inicial e se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
7. Naquela missiva, declarando-se representantes do associado C…, comunicam o óbito de F…, ocorrido a 23.03.2017.
8 - Mais comunicam a residência no locado pelo seu representado há mais de 12 anos bem como que o mesmo seria portador de deficiência, e cujo excerto se transcreve: “Acresce que aquele é portador de deficiência igual ou superior a 60%, aguardando, neste momento, a realização da Junta Médica destinada a atestar o referido grau de incapacidade (cfr. docs. 4 e 5.)”.
E continua…
“Assim, resulta do exposto que falta apenas apurar o grau de deficiência do nosso associado de modo a comprovar o preenchimento de todos os requisitos que determinam a transmissão da posição de arrendatário da sua falecida mãe para o nosso associado”
9 - Como documentos a atestar a alegada incapacidade de 60% juntou um requerimento dirigido à Exma Delegada de Saúde do Norte, entregue a 16/05/2017 para efectivação de junta medica.
10 - No requerimento entregue declara: “Nunca foi submetido a junta médica para avaliação do grau de incapacidade.”
11 - A 19 de Setembro por intermédio da Associação de inquilinos o R. remete nova missiva onde informa que é portador de deficiência superior a 60% (Cfr. doc n.º 8 junto à petição e que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais).
12 - A 10 de Outubro a Associação de Inquilinos remeteu nova missiva à autora e com ela cópia de atestado médico de incapacidade multiusos, datado de 23/6/2017, que refere que o réu é portador de deficiência que lhe confere uma incapacidade permanente global e definitiva de 68% e que a doença se reporta a 2016 – cf. documento nº 9 junto à petição.”
IV – APLICAÇÃO DO DIREITO AOS FACTOS:
A Recorrente interpôs a presente acção pedindo que seja declarada a caducidade do contrato de arrendamento que tem por objecto o prédio urbano sito na Rua …, …, Freguesia de …, Concelho da Maia, que terá sido celebrado a 1 de Janeiro de 1968 entre D… (pai do Réu) e E…, com os seguintes fundamentos: Ser a actual proprietária do imóvel, por o ter adquirido por sucessão e ter falecido o cônjuge do primitivo inquilino, F…, não se encontrando comprovada, na data da morte daquela inquilina, qualquer incapacidade de que o seu descendente, aqui Réu fosse portador.
A questão central que se coloca é assim uma questão de interpretação da norma contida no art. 57º do NRAU, no sentido de se saber se, na data do óbito da primitiva arrendatária tem de se encontrar já comprovada a deficiência igual ou superior a 60% do descendente que pretende a transmissão do direito de arrendamento, sob pena de, não estando aquela já comprovada documentalmente, não haver lugar á transmissão, interpretação que é defendida pela aqui Recorrente.
A Recorrente não põe em causa ter recebido a comunicação do falecimento da arrendatária (que deve ser feita por força do disposto no art. 1107.º do CCivil), nem que lhe tenha sido comunicado pelo descendente daquela ser portador de uma deficiência superior a 60%.
O que Autora defende é a irregularidade daquela comunicação, porque, por um lado, com a mesma não foi junto documento comprovativo de que que o aqui Réu era portador de deficiência, e por outro, porque mais tarde quando aquele vem a juntar tal documento, do teor do mesmo não resulta que o mesmo fosse portador de tal deficiência na data do óbito da mãe.
Vejamos se é assim.
Ambas as partes não põe em causa que tenha havido transmissão do direito ao arrendamento por morte do primitivo inquilino (D… (pai do Réu), ao seu cônjuge, F… (mãe do Réu).
Ora a mãe do Réu, F… faleceu no dia 23.3.2017, conforme resulta da certidão de óbito de fls. 11 verso, sendo indicada como última residência precisamente a Rua …, …, Maia.
Na data do óbito da arrendatária, encontrava-se em vigor o NRAU (aprovado pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro), diploma que veio restringir as hipóteses de transmissão do direito ao arrendamento, deixando de contemplar a transmissão do arrendamento a favor do “descendente que com ele convivesse há mais de um ano”.
Com efeito, o RAU aprovado pelo DL 321-B/90 de 15 de Outubro, no seu artigo 85.º estabelecia que:
“1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário ou daquele a quem tiver sido cedida a sua posição contratual, se lhe sobreviver:
(…)
b) Descendente com menos de um ano de idade ou que com ele convivesse há mais de um ano;”
O NRAU aprovado pela Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro veio restringir as hipóteses de transmissão do direito ao arrendamento, ao dispor o seguinte, no seu artigo 57.º:
“Transmissão por morte no arrendamento para habitação
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct”.
Ou seja, relativamente aos descendentes restringiu-se o âmbito da transmissão do direito ao arrendamento, que passou apenas a contemplar a transmissão, no que diz respeito aos descendentes aos filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior (art. 57º nº 1 al d) e ao filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct” (alínea e)).
Relativamente aos contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, como é o caso dos autos, aplica-se o regime de transmissão por morte constante dos art.s 57º e 58º do NRAU.
Com efeito, o NRAU veio dispor nas suas normas transitórias que é aplicável este novo regime aos contratos de arrendamento vigentes, estabelecendo no art. 26º nº 1 que os contratos celebrados na vigência do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90 de 15 de Outubro, passam a estar submetidos ao NRAU, com as especificidades dos números seguintes e no nº 2: “ Á transmissão por morte aplica-se o disposto nos art.s 56º e 57º”, aplicando-se este regime do art. 56º e 57º aos contratos anteriores ao RAU”.
A questão de saber se o contrato de arrendamento se transmitiu ou caducou, por morte do arrendatário, tem de ser resolvida em função da lei vigente ao tempo em que ocorre o facto jurídico morte do arrendatário.
É nessa altura, de acordo com a lei vigente aplicável ao contrato, que opera ou não a sua caducidade, já que esta não carece de reconhecimento judicial para produzir os seus efeitos.
À data da morte da arrendatária é pois aplicável o art. 57º do NRAU.
Assim sendo, a questão que agora se coloca é precisamente aquela que constitui o cerne do presente recurso e que se prende com a questão da interpretação do art. 57º nº 1 al e) do NRAU.
Quanto á interpretação da lei, o art. 9º do Código Civil, fornece ao intérprete importantes factores a considerar na tarefa de interpretação das leis
Assim dispõe o nº 1 que “A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.”
E o nº 2 dispõe que “Não pode porém ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.”
Finalmente o nº 3, “Na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
A formulação legal contempla os elementos tradicionalmente apontados como os fatores a considerar na interpretação da lei (cfr. João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 17.ª reimpressão, 2008, pp. 181-185) : o elemento gramatical (a “letra da lei”) e o elemento lógico (o “espírito da lei”), onde se integram o elemento racional ou teleológico (ratio legis, o fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), o elemento sistemático (consideração das outras disposições que integram o instituto em que se insere a norma interpretanda e bem assim as disposições que regulam problemas normativos paralelos ou institutos afins, pressupondo-se que o conjunto normativo compõe um todo coerente) e o elemento histórico (a história evolutiva do instituto, os textos legais e doutrinais, nomeadamente estrangeiros, que inspiraram a norma interpretanda, os trabalhos preparatórios).
Relembramos o teor do excerto normativo a interpretar:
“1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
(…) e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 /prct”.”
Estamos perante uma opção legislativa que visou equilibrar dois interesses em confluência mas antagónicos: por um lado o direito à habitação do senhorio e, por outro, o do alegado inquilino, que se pretende concretizar no mesmo imóvel, direitos que se acabam por excluir um ao outro, porquanto cada um deles só pode satisfazer-se em detrimento do outro.
Na ratio do preceito detetam-se ainda “traços” da vertente vinculística do arrendamento, ao consagrar-se a transmissão do direito por morte do arrendatário. Porém, no objectivo do legislador, recorrendo-se agora ao elemento histórico sumariamente já analisado, o legislador pretendeu reduzir as situações que dão lugar á transmissão do direito, por morte do arrendatário, sendo que no que aos descendentes diz respeito, ficaram reduzidas a situações de descendentes menores ou ainda a estudar e aos descendentes com deficiência grave (igual ou superior a 60%).
Como vimos, na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
A interpretação da norma que Recorrente defende - “o que se exige é que á data do falecimento do arrendatário, o filho seja portador de deficiência superior a 60%, e que tal facto fique documentalmente provado aquando do exercício do direito, através de comunicação escrita” (cfr. ponto 4 das conclusões de recurso) - obrigaria que o descendente, (pessoa que além do mais, é portadora de deficiência grave) se encontrasse sempre previamente munido de um documento que comprovasse ser portador de incapacidade e que esse documento comprovasse ainda que essa situação se verificava numa data imprevisível, como é a da ocorrência da morte do ascendente.
Essa limitação mostra-se até desconforme ao princípio do acesso ao direito aos tribunais (art. 20º da CRP) e até o princípio da livre apreciação da prova, pois que limitaria de forma injustificada a possibilidade de discussão e de produção de meios de prova sobre o grau da incapacidade do descendente.
Como tem sido afirmado reiteradamente pelo Tribunal Constitucional, o direito à tutela jurisdicional efetiva para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, implica o "direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder 'deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras' (Acórdão n.º 86/88, Acórdão n.º 157/2008)" (v., entre tantos outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 530/2008, n.º 4, ou n.º 853/2014, n.º 9, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, a ratio da exigência legal da deficiência “com grau comprovado de incapacidade” tem a ver com a necessidade de se afastarem situações duvidosas, exigindo-se que a deficiência alegada pelo descendente seja efectiva e devidamente demonstrada por meio de prova adequado.
Exigir que tal demonstração ocorra de forma indiscutível aquando do exercício do direito, através de comunicação escrita, como pretende a Recorrente limitaria de forma inaceitável os princípios supra invocados, impedindo por exemplo a existência de discussão judicial quanto á existência ou não de incapacidade, quanto ao respectivo grau, repare-se que até de forma inaceitável para o próprio senhorio, que não podia por em causa o documento comprovativo entregue aquando da comunicação.
Finalmente, agora quanto ao critério da unidade do sistema, que acima fizemos referência, a interpretação da Recorrente não se mostra igualmente conforme com o disposto no art. 1107.º do CCivil que precisamente regula a forma da comunicação que deve ser feita por morte do arrendatário, dizendo o seguinte:
“1 - Por morte do arrendatário, a transmissão do arrendamento, ou a sua concentração no cônjuge sobrevivo, deve ser comunicada ao senhorio, com cópia dos documentos comprovativos e no prazo de três meses a contar da ocorrência.
2- A inobservância do disposto no número anterior obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão.”
Ou seja, se é certo que a comunicação deve ser acompanhada dos documentos comprovativos, a não junção dos mesmos não impede a transmissão do contrato de arrendamento, apenas confere ao senhorio o direito a ser indemnizado pelos prejuízos que tal situação lhe tenha acarretado.
Daí que seja manifesta a falta de razão da Recorrente, sendo que na situação em apreço, nada impedia o descendente de solicitar prazo, como solicitou, para mais tarde juntar o documento demonstrativo da sua incapacidade, com a justificação de que iria ser submetido a Junta Médica, já requerida.
Quanto á segunda questão suscitada pelo Recorrente, esta tem a ver com o teor do facto 12 dos facto provados e com a interpretação do documento que foi junto para a demonstrar a incapacidade sofrida pelo Recorrido.
Referimo-nos ao atestado médico de Incapacidade Multiuso junto a fls. 35 verso, o qual mostra-se emitido pela entidade competente e comprova que o Recorrido é portador de uma incapacidade permanente global de 68%, com carácter “definitivo” e ainda que a “doença reporta-se a 2016”, tal como consta nas “Obs”,
Não se bastando a lei com uma qualquer incapacidade, mas com aquela que seja superior, e exceda, os 60%, a lei não estabelece, em parte alguma do texto do diploma legal em análise, qual a entidade que deverá certificar o grau dessa incapacidade.
A avaliação de incapacidade é calculada de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), por uma Junta Médica de Incapacidade, cujo Presidente passará o respectivo Atestado Médico de Incapacidade Multiuso obedecendo aos princípios gerais de utilização da referida Tabela (TNI).
A tabela médica (TNI) - ANEXO I da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI) - tem valor indicativo, e destina-se à rigorosa avaliação e pontuação das incapacidades resultantes de alterações na integridade psico-física do doente, tal como resulta da conjugação do DL 352/2007 de 23.10, que aprovou as Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil e do Decreto-Lei n.º 202/96, de 23 de Outubro, com as alterações do 291/2009 de 12.10, que estabelece o regime de avaliação das incapacidades das pessoas com deficiência, tal como definido no artigo 2.º da Lei n.º 38/2004, de 18 de Agosto, para efeitos de acesso às medidas e benefícios previstos na lei para facilitar a sua plena participação na comunidade.
Daí que, estando em causa um juízo técnico e científico, tal como se entendeu no Ac RL (de 16.2.2012, disponível in www.dgsi.pt), “em tais circunstâncias, o Réu deve, pelo menos, requerer exame pericial destinado a que os respectivos peritos se pronunciem e comprovem o seu grau de incapacidade superior a 60%, avaliação a calcular de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades.”
O aqui Recorrido, para efeitos do preceituado na alínea e) do art. 57º do NRAU submeteu-se a perícia médico-legal que certificou e comprovou a verificação desde requisito legal.
Não obstante o exame médico ter sido realizado em data posterior á do óbito da primitiva inquilina, do relatório pericial resulta que o Recorrido era já portador de deficiência “definitiva” “de 68%” e que tal deficiência existe desde 2016 – pois no atestado ficou expressamente consignado, no campo destinado às Observações que “a doença reporta-se a 2016” , expressão que não pode ter outro entendimento senão a apreendida pelo tribunal a quo e vertida no facto 12 dos factos provados, que é a de que tal deficiência (definitiva e com grau de 68%) existe desde 2016, e como tal, já se verificava na data do óbito da arrendatária, ocorrido em Março de 2017.
Terá pois o recurso que improceder na sua totalidade.
VI - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 1ª secção cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.

Porto, 18 de Dezembro de 2018
Alexandra Pelayo
Vieira e Cunha
Maria Eiró