Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15060/19.2T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO
ERRO SOBRE O OBJECTO DO NEGÓCIO
NULIDADE DO NEGÓCIO
ANULAÇÃO DO NEGÓCIO
EFEITOS
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
REDUÇÃO DO PREÇO
Nº do Documento: RP2021092015060/19.2T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I- Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II- Constitui entendimento prevalecente que só existe contradição entre factos quando eles se mostrem absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir entre si.
III- O erro sobre o objecto do negócio nas suas qualidades pressupõe: a) que a vontade declarada esteja viciada por erro sobre o objecto do negócio ou as suas qualidades, e, por isso, seja divergente da vontade que o declarante teria tido sem tal erro; b) que para o declarante seja essencial o elemento sobre que recaiu o seu erro, de tal modo que ele não teria celebrado o negócio se se tivesse apercebido do erro; e c) que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade acima referida (artigos 247.º e 251.º do CCivil).
IV- Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio jurídico tem efeito retroactivo (ex tunc), devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (artigo 289.º, nº. 1, do Código Civil) e nada mais que isso, não podendo ser pedida quer a redução do preço quer a indemnização por lucros cessantes.
V- A venda de coisa defeituosa pode advir da falta das qualidades asseguradas pelo vendedor (cfr. artigo 913.º do CCivil).
VI- A redução do preço facultada pelo artigo 911.º do CCivil aplicável ex vi artigo 913.º onera o adquirente com a prova de que sem erro ou dolo teria igualmente adquirido o bem mas por preço inferior.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 15060/19.2T8PRT.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Central Cível do Porto-J2
Relator: Des. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra

Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, Lda., com sede na Rua …, n. …, 2º, S1, ….-… Porto, veio intentar esta acção declarativa sob a forma de processo comum contra C…, Lda., com sede na Rua …, n. …., ….-… …–Baião e contra D…, S.A., a citar na E…, sita na Rua …, n. …, ….-… Porto, alegando e invocando, em resumo e no essencial, ter direito a ver reduzido o preço do trespasse de estabelecimento comercial que outorgou (na qualidade de trespassária) com a ré C…, Lda. (na qualidade de trespassante), contrato que foi mediado pela ré D…, SA, em consequência de os réus, durante as conversações e conclusão do negócio, terem intencionalmente ocultado à autora que o contrato de arrendamento do local explorado pelo estabelecimento comercial terminará no ano de 2020, fazendo-lhe crer que seria um arrendamento “quase que vitalício”, o que viciou a sua vontade de contratar, pois que caso soubesse que o arrendamento em causa teria a duração de mais dois anos (a partir do trespasse), não teria contratado ou, pelo menos, não teria contratado pelos mesmos valores, bem como que não possuía licença administrativa para alojamento local, o que lhe causou os prejuízos e perdas de ganho que melhor descreve na sua petição inicial, que se dá por reproduzida, concluindo formulando os seguintes pedidos:
a) – redução do valor pago pelo trespasse acima melhor identificado, pelos factos e fundamento supra mencionados;
b) – Por via da citada redução, condenar ambas as Rés no pagamento da quantia de 52.000,00€ à Autora, pelos factos e fundamento supra mencionados;
c) – No pagamento da quantia à Autora da quantia de 441.987,91€, a título de lucros cessantes, pelos factos e fundamento supra mencionados;
d) – No pagamento de juros de mora, contados desde a data da citação, até efectivo e integral pagamento.”
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Contestou a segunda ré, D…, em resumo alegando ter mediado o negócio acima referido e ter comunicado atempadamente às partes toda a documentação e informação que lhe foi disponibilizada, não sendo responsável por quaisquer outras incidências anteriores ou posteriores ao negócio que mediou, concluindo pela sua absolvição (articulado de fls. 79 e ss., que se considera reproduzido).
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Contestou também a primeira ré, C…, Lda., alegando que na condução do negócio (trespasse) que efectuou com a autora, lhe deu conhecimento de toda a documentação em seu poder, nomeadamente no que se refere ao contrato de arrendamento do local e comunicações efectuadas pela senhoria até à data da outorga do contrato prometido, incluindo aquelas referentes a eventual transição para o NRAU, que considera não conterem os necessários requisitos para esse efeito, concluindo também pela sua absolvição (articulado de fls. 109 e ss. que igualmente se considera aqui reproduzido).
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Realizou-se a audiência prévia, com fixação do objecto da acção, elaboração dos temas da prova, admissão de requerimentos probatórios das partes e designação de data para audiência final (posteriormente alterada em consequência da situação pandémica).
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos, teve lugar a audiência de discussão e julgamento que decorreu com observância do legal formalismo.
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A final, foi proferida decisão que julgou a acção totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu as Rés dos pedidos contra elas formulados.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso concluindo com extensas alegações que aqui nos abstemos de reproduzir.
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Devidamente notificados contra-alegou a Ré C…, Lda, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se a decisão recorrida padece das nulidades que lhe vêm assacadas pelo recorrente;
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
c)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1- A autora B…,Lda., é uma sociedade que se dedica á exploração de “Alojamento mobiliado para turistas”;
2- A primeira ré, C…, Lda., tendo um objecto social idêntico ao da autora, nomeadamente “Casa de hóspedes, hospedaria, construção e reparação de edifícios. Compra e venda de propriedades e arrendamento comercial”, explorava um espaço de Alojamento Local denominado por “F…”;
3- Tal “F…” é sita na Rua …, nº …./…., da União de Freguesias …, no Concelho do Porto, a que corresponde a descrição predial n. 1173 da freguesia …, tendo o artigo matricial U-10623 da União de Freguesias …, no Concelho do Porto;
4- O estabelecimento comercial acima identificado, foi trespassado pela primeira ré à autora, através de escritura pública realizada a 8 de Agosto de 2018 (documento de fls. 21 verso a fls. 24–doc. nº 4 junto com a petição inicial);
5- Tal negócio foi mediado pela segunda ré, D… (mesmo documento);
6- Desde pelo menos 2015 que os sócios da autora, nomeadamente o Sr. G… e H…, através de uma outra(s) sociedade(s) que detêm, vinham e continuam explorando o negócio de Alojamento Local, tendo constituído a sociedade autora expressamente para o negócio de trespasse acima referido;
7- Entre 25.05.2018 e 07.06.2018, foi celebrado entre as rés um contrato de mediação imobiliária, visando encontrar interessado no trespasse do estabelecimento comercial acima referido (documento de fls. 96, que se dá por reproduzido);
8- Na preparação do mencionado CMI colaborou a angariadora imobiliária I… (cláusula 10.ª do mesmo documento), tendo sido esta quem acompanhou a primeira ré, no negócio em causa e quem acompanhou os representantes da autora na visita ao local, aí mediando as propostas e contrapropostas entre as partes, até à conclusão do negócio;
9- No âmbito desse mencionado contrato, a segunda ré «(…) obriga-se a diligenciar no sentido de conseguir interessado no trespasse, pelo preço de €95.000,00 (noventa e cinco mil euros), desenvolvendo para o efeito, acções de promoção e recolha de informações sobre os negócios pretendidos e características dos respectivos imóveis. (…)» (cláusula 2.ª do CMI);
10- Aquando da celebração do CMI, a segunda ré solicitou à primeira ré todos os documentos necessários à promoção do imóvel, nomeadamente, o contrato de arrendamento e a licença de alojamento local, que lhe foram fornecidas;
11- A segunda ré, forneceu à autora toda a documentação que lhe foi entregue pela primeira ré, para que a autora a pudesse consultar, sendo que tal documentação incluía a troca de correspondência entre a primeira ré e a senhoria do imóvel;
12- Acordadas as condições do trespasse, em 16 de Julho de 2018 foi outorgado o contrato-promessa de trespasse de fls. 24 verso a fls., 26, que se dá por reproduzido;
13- Os proprietários do imóvel notificados para, querendo, exercer o Direito Legal de Preferência no Trespasse, notificação essa preparada pela segunda ré e enviada pela primeira ré aos referidos proprietários, indicando-se, além do mais, que o comprador seria “H… … ou quem este indicar” (documentos de fls. 26 verso a fls. 28 verso);
14- Com data de 30 de Agosto de 2018, a autora, B…, Lda., comunicou o trespasse aos senhorios, nomeadamente para efeitos de pagamento das rendas e emissão de recibos (documentos de fls. 30 a 32);
15- Com data de 26 de Setembro de 2018, a autora recebeu dos senhorios a carta de fls. 35 verso e 36 (que se dá por reproduzida), subscrita por advogado, em que, além do mais, se informava que o contrato de arrendamento iria “terminar em Novembro de 2020, nos termos da comunicação que foi dirigida à arrendatária C…, Lda. pela m/cliente, em 27.09.2017 e reiterada em 26.07.2018”;
16- A autora solicitou um estudo para a viabilidade do negócio em causa e que, perspectivando um negócio a 15 anos, com despesas fixas de 10.000,00€/ano (média) e um rendimento médio anual de 32.000,00€, estaríamos a falar de um lucro anual previsto de 22.000,00€, o que a 15 anos, estaria próximo dos 330.000,00€, ou de 260.700,00€ após impostos (sendo que o estudo baseou-se, na altura, apenas e só da exploração de 5 dos 9 quartos existentes);
17- Com base em tal estudo encomendado pela autora, até Novembro de 2020, esta não conseguiria sequer realizar o valor pago pelo trespasse;
18- Quando do pagamento da última prestação de 5.000,00€ relativa ao citado trespasse, a autora deduziu a quantia de 2.269,35€ à mesma, com fundamento na necessidade de solicitar serviços de topografia para terminar o registo de entidade exploradora de Alojamento Local e de implementação de sistema contra incêndios;
19- O local de exploração do estabelecimento comercial, foi tomado de arrendamento por documento particular celebrado em 15.05.1969 (doc. de fls. 114);
20- Esse contrato de arrendamento foi transmitido através de sucessivos trespasses, tendo a primeira ré adquirido por trespasse do estabelecimento comercial instalado no referido imóvel em 07.05.2001 (doc. de fls. 115 verso a 116 verso);
21- A actividade desenvolvida no local sempre foi, há já mais de 40 anos, a de casa de hospedes/hospedaria/residencial (doc. de fls. 117 e 118);
22- Sendo que, como referido, a ré que explorava o estabelecimento comercial naquele local desde o ano de 2001 (cfr. doc. de fls. 117 e 118, “Alvará nº …. e Averbamentos);
23- Em Junho de 2017 a ré registou a sua actividade de alojamento local junto da Câmara Municipal … (doc. de fls. 119 verso);
24- Enquanto explorou o estabelecimento comercial em causa, a primeira ré, respondeu às cartas do senhorio para passagem do contrato de arrendamento para o NRAU, declarando que consideravam sem efeito tais comunicações, por entenderem que não cumpriam os requisitos legais (cfr. a título de exemplo os documentos de fls. 123 verso a 127);
25- A autora perspectivava um contrato de arrendamento a um mais longo prazo, como acima referido, sendo que não outorgaria o trespasse caso o arrendamento se prolongasse por apenas mais dois anos.
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Factos não provados
Não se provou que:
1- Que as rés, por si mesmas ou conluiadas entre si, tenham ocultado da autora a troca de correspondência com os senhorios do imóvel, fazendo-lhe crer que o contrato de arrendamento era dos antigos, quase que vitalício, que não poderia transitar para o NRAU, bem como que os senhorios não tivessem autorizado a exploração comercial do local;
2- Que a autora tenha perdido a quantia líquida de 441.987,91€, em consequência de factos que lhe foram ocultados pelas co-Rés no citado negócio;
3- Que o contrato de arrendamento e negócio ali exercido agora pela autora, venha a cessar (tenha cessado) durante o ano de 2020;
4- Que tenha sido ocultado à autora que o Alojamento Local não estivesse autorizado pelo Senhorio, ou que não se tivesse concluído o processo de registo junto da Câmara Municipal …, que o sistema contra incêndios não estivesse em funcionamento e/ou implementado;
5- Que, quando das negociações e outorga do trespasse, o contrato de arrendamento já houvesse sido transferido para o NRAU, e fixado o prazo de términus do mesmo para o dia 30 de Novembro de 2019.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se a decisão recorrida padece da nulidade que lhe vem assacada pela recorrente.
Na conclusão 45ª afirma a recorrente que a sentença padece da nulidade prevista no artigo 615.º, nº al. c) do CPCivil.
De acordo com a alínea c) do nº 1 do citado artigo 615º a sentença é nulaquando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
A propósito desta nulidade diz, Lebre de Freitas[1] “entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se”.
E, como é jurisprudência pacífica, esta nulidade só se verifica quando os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao que se contém na sentença.
Como refere Antunes Varela[2] “Nos casos abrangidos pelo artigo 668.º nº 1 al. c), há um vício real de raciocínio do julgador (…): a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.
Por outro lado a respeito da obscuridade e ambiguidade da sentença, dizia o Professor Alberto dos Reis[3], que a “(…) sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes”, explicitando que “(…) num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos”, mencionando ser “(…) evidente que em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade” por “(…) se a determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Ora, é obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende. E é ambíguo o que se preste a interpretações diferentes.
Mas não é qualquer obscuridade ou ambiguidade que é sancionada com a nulidade da sentença pela alínea c) do nº 1 do citado artigo 615.º, mas apenas aquela que faça com que a decisão seja ininteligível. A ambiguidade ou obscuridade que possam ocorrer na sentença só integrarão a nulidade decisória prevista neste normativo se algum desses vícios tornarem a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, impedindo a compreensão da decisão judicial por fundadas dúvidas ou incertezas.
Isto dito é por demais que a recorrente labora em manifesto equívoco quando assaca a referida nulidade à decisão recorrida.
Com efeito, o que a recorrente afirma é que existe contradição na matéria de facto.
Acontece que isso não gera a nulidade da decisão mas apenas a anulação da decisão nos termos estatuídos no artigo 662.º, nº 2 al. c) com a remessa dos autos à 1ª instância para que se sane a contradição observando-se, se for caso disso o preceituado na al. b) do nº 3 do citado artigo 662.º.
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Improcede, desta forma, a citada conclusão.
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A segunda questão que vem colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões o recorrente impugnou a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Cumpridos aqueles ónus analisemos então este segmento recursivo.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
Efectivamente, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 607.º nº 5) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.[4]
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[5]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objectivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[6]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[7]
Importa, porém, não esquecer que, como atrás se referiu, se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.[8]
Tendo presentes estes princípios orientadores é altura de nos debruçarmos, em concreto, sobre a impugnação da fundamentação factual feita pelo recorrente sobre o ponto 11-do elenco dos factos provados e 1- a 5- dos factos não provados.
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Os pontos 11- da resenha dos factos provados tem a seguinte redacção:
A segunda ré, forneceu à autora toda a documentação que lhe foi entregue pela primeira ré, para que a autora a pudesse consultar, sendo que tal documentação incluía a troca de correspondência entre a primeira ré e a senhoria do imóvel.”
Propugna a recorrente que o citado ponto factual devia antes ter a seguinte redacção:
A segunda ré, forneceu à autora toda a documentação que lhe foi entregue pela primeira ré, para que a autora a pudesse consultar, sendo que tal documentação não incluía a troca de correspondência entre a primeira ré e a senhoria do imóvel, correspondência essa ocultada da autora.”
Para sustentar a referida alteração convoca, desde logo, a recorrente as declarações de parte do representante legal da Autora.
Nos termos estatuídos no artigo 466.º do CPCivil as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto (n.º 1); às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º–quanto ao dever de cooperação para a descoberta da verdade–e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior, relativa à prova por confissão das partes (n.º 2); o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (n.º 3).
Trata-se de disposição inovadora introduzida na novo CPCivil, mencionando-se na Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 113/XII, que está na origem da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que se prevê “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão”.
A relevância probatória destas declarações tem sido objecto de apreciação em sede de jurisprudência, salientando-se diferentes acórdãos proferidos por este Tribunal da Relação.
Dúvidas não existem de as declarações de parte que, diga-se, divergem do depoimento de parte, devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado.
Não se pode olvidar que, como meio probatório são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção.
Efectivamente, seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, sejam eles documentais ou testemunhais, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.
Não obstante o supra referido, o certo é que são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que as partes tenham conhecimento directo).
Todavia, tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (466.º, n.º 3, do CPCivil) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.
A afirmação, peremptória e inequívoca, de as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado n.º 3 do artigo 466.º do CPC.
Mas compreende-se que, tendencialmente as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar.
Neste contexto de suficiência probatória, e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova (e só assim pode ser, respeitando o princípio que se consagra no artigo 466.º, n.º 3 do CPC) parece-nos claro que nunca pode estar em causa a violação da norma constitucional que salvaguarda a tutela efectiva do direito (artigo 20.º, n.º 5, da CRP).
Evidentemente que, perspectivando de modo inverso o problema, também a admissão da prova por declaração de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos constitutivos do direito invocado por mero efeito das declarações favoráveis, não deixaria de violar a norma constitucional, na medida em que, num processo de partes como é o processo civil, deixaria sem possibilidade de defesa–e aí, sem tutela efectiva–a parte contrária.
Como assim, a prova por declarações de parte, nos termos enunciados no artigo 466.º do Código de Processo Civil, é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão, na certeza de que a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias e que, neste enquadramento, a declaração de parte que é favorável e que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie, será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir.
Ora, como se torna evidente sob este conspecto, as declarações de parte do representante legal da Autora, para além de interessadas num desfecho favorável da lide, são vagas.
Todavia, ainda assim delas, se retira que o depoente solicitou a documentação à funcionária da 2ª Ré-I… e que ela inicialmente não lha facultou, ou seja, tudo levar a crer que posteriormente lha terá facultado, mais referido que teve conhecimento do contrato de arrendamento.
Depois refere que sempre “acreditou” por o negócio estar a ser intermediado pela “E1…”, mas sem nunca especificar no que acreditava, para depois rematar que nunca celebraria o negócio.
Portanto, desde depoimento não se pode retirar que à recorrente não lhe terá sido facultada toda a documentação e que, portanto, lhe terão sido ocultadas as comunicações existentes entre a 1ª Ré e a senhora do imóvel.
Vem depois a apelante trazer à colação o depoimento da testemunha J…, colaborador da “E1…”-D… que intermediou o negócio.
O que esta testemunha refere é que verificou que o contrato de arrendamento era de 1969 e que seria o que estava em vigor; que a Autora sabia que era um contrato antigo; que sabiam das comunicações anteriores, mas que não as valoraram por não terem os requisitos; posteriormente verificou o processo/dossier e constatou que nele se encontrava essa documentação e comunicações dos senhorios.
Na suas palavras: “percebo a importância dessas duas cartas, da existência ou não no processo, pelo que me apercebi, a E1… já sabia dessas cartas eu, para lhe ser muito sincero, não me recordo sequer de as ter tomado como importantes porque sempre foram a minha de pensamento, lá está, que estaríamos a passar um contrato sem termo à luz daquela que seria a Lei do 67…ainda que dou como verdade o facto de eu ter falado directamente com o nossos serviços… que de facto existia já no processo a informação de duas cartas, ok, julgo que não sei se de 2013 2014, ou 2012 2013 mas que foi tido sempre a apreciação, quer do proprietário, quer enfim daquela que foi a nossa analise jurídica que de facto aquelas cartas não fariam por si só a passagem para o NRAU. Faltava a notificação do proprietário para que pudesse começar então aquele momento zero de contagem de dias de passagem para um contrato a termo (…)
O que se retira deste excerto de depoimento é que as referidas comunicações já existiam no processo da intermediadora “E1…” e que não foram valoradas por estarem a pensar num contrato sem termo, mas daí não se segue que elas não fossem do conhecimento da Autora, ou que todos os elementos desse processo não lhe tivesse disso facultados para análise.
É que uma coisa é acreditar, como refere o representante legal da Autora que tudo estaria bem, ou seja, que seria um contrato vitalício (por ser intermediado pela E1…), outra coisa absolutamente distinta é não atentar no tipo de negócio que estava a ser celebrado e fazer, porventura, tábua rasa daquilo que à Autora já tinha conhecimento, ou seja, das comunicações que já constavam do dossier entre a primeira Ré e senhoria do imóvel.
Portanto, da concatenação destes meios probatório não se pode conscienciosamente afirmar, para além de toda a dúvida razoável, que à Autora não lhe tivesse sido ido facultado toda a documentação existente no processo da intermediadora e, concretamente, as mencionadas comunicações entre a 1º Ré e a senhoria do imóvel.
Aliás, diga-se, é de todo inverosímil que alguém celebre um contrato de trespasse sem que se tenha chamado a si todos os elementos referentes ao arrendamento do local onde iria funcionar o estabelecimento comercial, elemento mais que preponderante para o tipo de negócio em causa.
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Refere depois, a recorrente que, entre o ponto 11- e 25- da resenha dos factos provados existe contradição insanável.
Salvo o devido respeito, não se divisa onde exista a referida contradição.
Com efeito, um ponto não é excludente do outro, ambos versam sobre realidades distintas, sendo que, constitui entendimento prevalecente que só existe contradição entre factos quando eles se mostrem absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir entre si.
Portanto, contradição existe apenas na intencionalidade, no âmbito subjectivo da apelante e não nos factos em si, sendo que só esta é que conta.
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Impugna depois a recorrente o ponto 1- do elenco dos factos não provados.
O citado ponto tem a seguinte redacção:
Que as rés, por si mesmas ou conluiadas entre si, tenham ocultado da autora a troca de correspondência com os senhorios do imóvel, fazendo-lhe crer que o contrato de arrendamento era dos antigos, quase que vitalício, que não poderia transitar para o NRAU, bem como que os senhorios não tivessem autorizado a exploração comercial do local”.
Alega a recorrente que o citado ponto deve transitar para a resenha dos factos provados com a seguinte redacção:
As rés, por si mesmas ou conluiadas entre sim ocultaram da autora a troca de correspondência com os senhorios do imóvel, fazendo-lhe crer que o contrato de arrendamento era dos antigos, quase vitalício, mas passível de transitar para o NRAU, bem como que os senhorios não autorizaram, de forma expressa e por escrito a exploração comercial de alojamento local do imóvel trespassado”.
Como se torna evidente quanto à primeira parte do citado facto não pode o mesmo ser dado como provado face à inalteração do ponto 11- da resenha dos factos provados, além de que, como já supra se referiu não existe qualquer contradição entre este facto e ponto 25-também dos factos provados.
Pois que, o ponto 11- diz respeito à documentação entregue pela Recorrida à apelante e o ponto 25- diz respeito à perspectiva desta para o arrendamento.
Quando à 2ª parte do citado facto, como se torna evidente a recorrente não podia desconhecer por ter tido acesso a ele, que tipo de contrato de arrendamento estava em vigor para local objecto de trespasse, como aliás, resulta das declarações de parte do representante legal da Autora e do depoimento da testemunha J…, além de que, sendo a Autora uma sociedade que se dedica á exploração de “Alojamento mobiliado para turistas” não podia desconhecer que não existem contratos de arrendamento vitalícios no nosso ordenamento substantivo.
No que se refere à 3ª parte do citado ponto não se descortina em que se fundamenta a referida alteração.
Desde logo, no documento nº 11 junto com a petição inicial não se refere o afirmado pela recorrente na sua conclusão 60ª.
O que aí se refere é a estranheza de que a 1ª Ré tivesse registado a actividade de alojamento local para o locado, pois que no contrato de arrendamento não se faz referência a tal nem o consentimento escrito foi dado pelo senhorio.
Acresce que no ponto factual em causa não se faz qualquer referência a alojamento local, mas sim à exploração comercial do local.
Ora, já está dado como assente no ponto 19- do elenco dos factos provados que o local de exploração do estabelecimento comercial, foi tomado de arrendamento por documento particular celebrado em 15.05.1969.
Como, assim não pode agora a recorrente tresmudar o facto dando-lhe nova roupagem factual que dele não constava.
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Os pontos 3-, 4- e 5- do elenco dos factos não provados têm, respectivamente a seguinte redacção:
“- Que o contrato de arrendamento e negócio ali exercido agora pela autora, venha a cessar (tenha cessado) durante o ano de 2020;
- Que tenha sido ocultado à autora que o Alojamento Local não estivesse autorizado pelo Senhorio, ou que não se tivesse concluído o processo de registo junto da Câmara Municipal …, que o sistema contra incêndios não estivesse em funcionamento e/ou implementado;
- Que, quando das negociações e outorga do trespasse, o contrato de arrendamento já houvesse sido transferido para o NRAU, e fixado o prazo de términus do mesmo para o dia 30 de Novembro de 2019”.
Alega a recorrente que os referidos factos deviam ter sido dados como provados com a seguinte redacção:
O contrato de arrendamento e negócio ali exercido agora pela autora, no entendimento do Senhorio, cessa (tenha cessado) em Novembro de 2020, facto esse desconhecido da autora”.
“Foi ocultado à autora que o Alojamento Local nunca foi autorizado, de forma expressa e por escrito pelo Senhorio.
“Que, quando das negociações e outorga do trespasse, o contrato de arrendamento já havia sido transferido para o NRAU e fixado o prazo de terminus do mesmo para o dia 30 de Novembro de 2020, pelo menos no entendimento da Senhoria, facto esse não comunicado à autora”.
Analisando.
No ponto 3- da resenha dos factos não provados o que consta é que não se provou que “o contrato de arrendamento e negócio ali exercido agora pela autora, venha a cessar (tenha cessado) durante o ano de 2020”.
Ou seja, não se provou essa realidade, isto é, que o contrato de arrendamento e negócio ali exercido agora pela autora, venha a cessar ou tenha cessado durante o ano de 2020.
Como assim, não se entende que facto é que a recorrente dê como provado.
Que o referido contrato cessou?
É que a redacção proposta pela apelante para esse facto é anódina e, por conseguinte, sem qualquer relevância em termos de subsunção jurídica segunda as vária soluções plausíveis da questão de direito.
Não há duvida que nos termos do artigo 611.º, nº 1 do CPCivil deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da acção, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.
Portanto, querendo a recorrente espelhar nos autos outra realidade, ou seja, que o contrato de arrendamento tinha entretanto cessado devia ter providenciado por isso apresentando articulado superveniente (cfr. artigo 588.º do CPCivil).
Diga-se, aliás, que o que se retira da análise dos autos é que quer esse ponto quer os subsequentes que a apelante pretende que se dêem como provados têm como base probatória e dela foram retirados, a missiva junta como documento nº 11 com a petição inicial endereçada pelos mandatários da senhoria ao mandatário da apelante e que o tribunal já deu como reproduzida no ponto 15- dos factos provados.
Ou seja, o facto que se podia dar como provado era o teor dessa comunicação, e isso já o tribunal recorrido fez como se referiu.
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No que se refere à autorização do alojamento local o que se deu como não provado é que tenha sido ocultado à autora que o alojamento local não estivesse autorizado pelo senhorio.
Com nova redacção pretende a recorrente que se dê como provado uma outra realidade, isto é que nunca houve autorização escrita por parte do senhorio para prestação de serviços de alojamento local no arrendado.
Acontece que, já está provado nos autos que em Junho de 2017 a 1ª Ré registou a sua actividade de alojamento local junto da Câmara Municipal … (cfr. ponto 23- dos factos provados).
Ora, nos termos do D. Lei 124/2014 de 29/08 o registo do estabelecimento de alojamento local faz-se com a mera comunicação prévia dirigida ao Presidente da Câmara Municipal territorialmente competente (cfr. artigo 5.º, nº 1), sendo que, da referida mera comunicação prévia devem obrigatoriamente constar as seguintes informações (cfr. artigo 6.º nº 1):
(…)
d)- Cópia simples do contrato de arrendamento e, caso do contrato não conste prévia autorização para a prestação de serviços de alojamento ou subarrendamento, documento autenticado contendo tal autorização do senhorio do imóvel, no caso de o requerente ser arrendatário do imóvel.
(…)
Como assim estando registado o estabelecimento de alojamento local na Câmara Municipal …, seria um contraditório dar como provada a referida falta de autorização do senhorio.
Porque das duas uma, ou existia no contrato de arrendamento prévia autorização do senhorio para a prestação dos referidos serviços, ou então existia documento autenticado contendo tal autorização.
Acresce que, não existe notícia nos autos de que o presidente da Câmara … tivesse cancelado o referido registo por existir qualquer desconformidade em relação a informação ou documento constante da mera comunicação prévia (cfr. artigo 9.º, nº 1 do citado D. Lei).
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Quanto ao 5- ponto dos factos não provados, para além de no ponto 15- dos factos provado, como já acima se referiu, se ter dado já como reproduzido o teor da missiva constante dos autos como documento nº 11 junto com a petição inicial, o certo é que, tal como o ponto 3-, com redacção proposta pela recorrente nenhum interesse têm para a decisão da causa em termos das várias soluções plausíveis da questão de direito.
Na verdade, sob este conspecto é irrelevante o entendimento da senhoria, sendo que, como já supra se referiu, não está demonstrado nos autos que o referido contrato de arrendamento já tivesse cessado.
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Vejamos por último o ponto 2- da resenha dos factos não provados.
Este ponto tem a seguinte redacção:
Que a autora tenha perdido a quantia líquida de 441.987,91€, em consequência de factos que lhe foram ocultados pelas co-Rés no citado negócio”.
Propugna a recorrente que o referido facto devia constar dos factos provados com a seguinte redacção:
A autora, em consequência dos factos que lhe foram ocultados pelas co-Rés no citado negócio, perdeu a quantia liquida de, pelo menos 260.700,00€”.
Refere, desde logo, a recorrente que o referido facto está em contradição com o ponto 16- dos factos provados.
A este respeito valem, mutatis mutandis, as mesmas considerações feitas a propósito dos 11- e 25-, um facto não excludente do outro. Na verdade, a realização do estudo prévio sobre os lucros que a recorrente podia auferir, nada tem que ver os prejuízos que efectivamente sofreu.
Isto dito, pergunta-se como dar como assente que a recorrente perdeu a referida quantia liquida?
Acaso está demonstrado nos autos que o contrato de arrendamento cessou no ano 2020?
Como se pode dizer então que a suposta ocultação dos factos lhe causou esse prejuízo? Qual a relação de causa e efeito entre essas realidades?
O referido ponto encerra uma simples conclusão.
Com efeito, para se chegar ao referido montante era necessário que estivessem alegados os danos sofridos e a sua avaliação decorrentes dessa ocultação, coisa que manifestamente nos autos não se encontra provado nem sequer alegado.
Mas ainda que assim não fosse qual a base probatória para dar como assente o referido facto?
Certamente que não com base nas declarações de parte do representante legal da Autora e depoimento da testemunha J… que se limitaram a dizer, relativamente ao aspecto em questão, que o estabelecimento em causa seria para explorar por um período de cerca de 10/15 anos.
Mas como daí extrair os danos sofridos? Ou mesmo que a recorrente perdeu a referida quantia liquida de € 260.700,00€?
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Destarte, temos de convir, salva outra e melhor opinião, que as discordâncias que a apelante convoca para que se imponha uma decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto em causa, não são de molde a sustentar a tese que vem por ela expendida, pese embora se respeite a opinião em contrário veiculada nesta sede de recurso, havendo que afirmar ter a Mmª juiz captado bem a verdade que lhe foi trazida ao processo, com as dificuldades que isso normalmente tem.
Numa apreciação distante, objectiva e desinteressada esta é a única conclusão lícita a retirar, reflectindo a fundamentação dos factos provados e não provados os meios probatórios trazidos aos autos que não podiam conduzir a conclusão diversa, que sempre teria de ser alicerçada em certezas e sem margem para quaisquer dúvidas.
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Improcedem, desta forma as conclusões 1ª a 92ª formuladas pela recorrente.
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Permanecendo inalterada a decisão da matéria de facto vejamos, então, se a subsunção jurídica que dela fez o tribunal recorrido se encontra, ou não, correcta, com o que passamos à análise da segunda questão posta no recurso.
Como se evidencia dos autos e concretamente da petição inicial, a recorrente estruturou a acção, no que à responsabilidade da 1ª diz respeito, com base no erro sobre o objecto de negócio (cfr. artigos 24º, 26º e 92.º da petição inicial) (cfr. artigo 251.º do CCivil), já que é manifesto não se tratar do erro previsto no artigo 252.º, do mesmo Código, visto que, além de as partes não terem reconhecido por acordo a essencialidade do motivo o erro não pode recair ou referir-se ao objecto do negócio.[9]
O artigo 251.º do Código Civil sob a epígrafe “Erro sobre a pessoa ou sobre o objecto do negócio” dispõe:
O erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário ou ao objecto do negócio, torna este anulável nos termos do artigo 247”.
Por sua vez, este artigo 247.º do mesmo diploma sob a epígrafe “Erro na declaração” preceitua:
Quando, em virtude de erro, a vontade declarada não corresponda à vontade real do autor, a declaração negocial é anulável, desde que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que incidiu o erro”.
Dos textos legais transcritos decorre que a relevância do erro sobre o objecto do negócio ou as suas qualidades pressupõe:
a) que a vontade declarada esteja viciada por erro sobre o objecto do negócio ou as suas qualidades e por isso seja divergente da vontade que o declarante teria tido sem tal erro (vontade conjectural ou hipotética);
b) que, para o declarante, seja essencial o elemento sobre que recaiu o seu erro, isto é, decisivo para o declarante, por tal forma que ele não teria celebrado o negócio se se tivesse apercebido do erro;
c) que o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade referida na anterior alínea.[10]
Atento o disposto no artigo 342.º, nº 1 do Código Civil cabia à Autora provar os factos integrantes da facti species das citadas normas, ou seja, os pressupostos e requisitos do erro que invocou.
Acontece que, de relevante sob esta matéria, apenas se encontra provado que a Autora perspectivava um contrato de arrendamento a um mais longo prazo, como acima referido, sendo que não outorgaria o trespasse caso o arrendamento se prolongasse por apenas mais dois anos (cfr. ponto 25- dos factos provados).
Ora, ainda que se admitisse que o referido facto integrava o primeiro e o segundo dos pressupostos[11] a verdade é que não está provado que a primeira Ré conhecesse a essencialidade desse erro.
Na verdade, em nenhures da resenha dos factos provados consta qualquer ponto que possa integrar esse pressuposto, ou seja, que a 1ª Ré sabia que a Autora só outorgaria o contrato de trespasse, caso o contrato de arrendamento fosse por um período de longo prazo.
Aliás, diga-se, que mesmo que a impugnação da matéria fosse procedente e, portanto, a mesma fosse alterada no sentido propugnado pela recorrente, nunca o referido pressuposto se podia dar como verificado.
Por outro lado, mesmo a dar-se como provado a existência de erro sobre o objecto do negócio, nunca os pedidos formulados pela recorrente podiam ser julgados procedentes.
É que tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio jurídico tem efeito retroactivo (ex tunc), devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado (artigo 289.º, nº. 1, do Código Civil) e nada mais que isso, pois que a redução prevista no artigo 292.º do mesmo diploma legal diz respeito apenas ao caso de o fundamento da invalidade ser relativo, isto é, afectar apenas uma parte do conteúdo negocial.
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Mas ainda que se recentre a subsunção jurídica no âmbito da venda de coisa defeituosa, já que, não obstante as especificidades próprias de um contrato de trespasse de estabelecimento comercial/industrial, na parte que lhe seja aplicável, o mesmo acaba por se reconduzir a um contrato de compra e venda, a solução não se altera.
Analisando.
O artigo 913.º do Código Civil sob a epígrafe “Remissão” estatui:
1. Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente, em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.
2. Quando do contrato não resulte o fim a que a coisa vendida se destina, atender-se-á à função normal das coisas da mesma categoria”.
Os Professores Pires de Lima e Antunes Varela[12] escreveram:
“(...) este artigo 913.º cria, efectivamente, um regime especial para as quatro categorias de vícios que nele são destacadas:
a) Vício que desvalorize a coisa;
b) Vício que impeça a realização do fim a que ela é destinada;
c) Falta das qualidades asseguradas pelo vendedor;
d) Falta das qualidades necessárias para a realização do fim a que a coisa se destina”.
A venda da coisa pode considerar-se defeituosa quando, numa perspectiva de “funcionalidade”, contém: “Vício que a desvaloriza ou impede a realização do fim a que se destina; falta das qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina. Nesta medida, diz-se defeituosa a coisa imprópria para o uso concreto a que é destinada contratualmente–função negocial concreta programada pelas partes–ou para a função normal das coisas da mesma categoria ou tipo se do contrato não resultar o fim a que se destina (art.º 913º, nº 2)”.[13]
A coisa é defeituosa se tiver um vício ou se for desconforme atendendo ao que foi acordado. O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado.
Os vícios e as desconformidades constituem defeito da coisa”.[14]
No caso em apreço estaríamos perante a hipótese em que a coisa (por referência ao contrato de trespasse) não tinha as qualidades asseguradas pelo vendedor, ou seja, o arrendamento do local onde funcionaria o estabelecimento comercial não seria um arrendamento longo mas de duração de apenas dois anos.
Todavia, respigando o quadro factual que nos autos se mostra assente, não existe qualquer ponto donde se retire que esse hiato temporal havia sido assegurado pela 1ª ou 2ª Ré à Autora e, só estando provado esse pressuposto, é que haveria venda de coisa defeituosa nos moldes supra referidos.
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Acresce que, ainda que se enveredasse pela verificação da facti species do artigo 913.º do CCivil, ou seja, pela verificação, de venda de coisa defeituosa, nunca a recorrente poderia pedir a redução do preço do trespasse.
Efectivamente, para que se possa pedir a redução do preço é necessário que se prove que sem a parte viciada o comprador teria igualmente adquirido os bens mas por preço inferir, ou seja, no caso concreto tinha de estar provado que a apelante mesmo sabendo do erro ou mesmo dolo, sempre teria outorgado o contrato de trespasse mas por um preço inferior.
Acontece que, como resulta do ponto 25- dos factos provados o que dele resulta é precisamente o contrário, isto é, que apelante não outorgaria o trespasse caso o arrendamento se prolongasse por apenas mais dois anos.
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Isto dito quanto à primeira Ré, analisemos agora, a responsabilidade da 2ª Ré.
Sem dúvida que o artigo 17.º da Lei 15/2013 de 08/02, fixa uma série de deveres para com os interessados, prescrevendo o artigo 7.º nºs 4 e 5 do mesmo diploma legal a necessidade da existência de um seguro de responsabilidade civil destinado ao ressarcimento dos danos patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de acções ou omissões das empresas, dos seus representantes e dos seus colaboradores, sendo considerados terceiros todos os que, em resultado de um ato de mediação imobiliária, venham a sofrer danos patrimoniais, ainda que não tenham sido parte no contrato de mediação imobiliária.
Entre os deveres que ao caso importam destacam-se os seguintes:
c)- Propor aos destinatários os negócios de que for encarregada, fazendo uso da maior exactidão e clareza quanto às características, preço e condições de pagamento do imóvel em causa, de modo a não os induzir em erro.
Porém, a matéria factual que nos autos resultou provado não alberga a violação dos referidos deveres.
Como assim, também em relação à mesma a acção tinha que soçobrar.
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Uma última nota para enfatizar que sendo relevante, como parece que seria no caso em apreço, a durabilidade do contrato de arrendamento relativo ao local onde funcionaria o estabelecimento comercial, e tendo a Autora tido acesso ao contrato de arrendamento como afirmou o seu representante legal, não procurou a mesma inteirar-se, com a segurança que se impunha, junto de pessoas habilitadas para o efeito, sobre os meandros jurídicos a que estaria sujeito e, concretamente, sobre a sua efectiva durabilidade.
É que, em rectas contas, não eram as Rés que tinham o dever de o informar sobre o recorte jurídico a que estraria sujeito o contrato de arrendamento em causa, estas apenas tinham que lhe entregar o referido contrato, como o fizeram (cfr. pontos 10- e 11- dos factos provados e o próprio representante legal admitiu nas suas declarações de parte).
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Improcedem, assim, as conclusões 93ª a 102ª formulada pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente, por não provada, e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela recorrente (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 20 de Setembro de 2021.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] In “Código de Processo Civil Anotado”, volº 2, Coimbra, 2001, pág. 670.
[2] Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 671.
[3] In “Código de Processo Civil Anotado”, Volume V, pág. 151.
[4] De facto, “é sabido que, frequentemente, tanto ou mais importantes que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, etc.”-Abrantes Geraldes in “Temas de Processo Civil”, II Vol. cit., p. 201) “E a verdade é que a mera gravação sonora dos depoimentos desacompanhada de outros sistemas de gravação audiovisuais, ainda que seguida de transcrição, não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância” (ibidem). “Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores” (Abrantes Geraldes in “Temas…” cit., II Vol. cit., p. 273).
[5] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[6] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[7] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Ac. Rel. Porto de 19 de Setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de Dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt
[9] Cfr. Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, 579; Galvão da Silva, C. J. 1993, tomo 2, 14 e 15; Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, edição de 1973, 575; Castra Mendes, Teoria Geral do Direito Civil, volume II, 103 e 235.
[10] Cfr. Horster, obra citada, 562 e seguintes; Mota Pinto, obra citada, 577 e seguintes, Castro Mendes, obra citada, 79 e seguintes; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, quarta edição, notas dos artigos 247 e 25.
[11] Cremos que para a referida verificação do primeiro pressuposto era necessário que estivesse provado, e não está, que o contrato tivesse cessado nos referidos dois anos.
[12] In Código Civil Anotado, vol. II, 2.ª edição, pág. 187.
[13] Cfr. “Compra e Venda de Coisas Defeituosas-Conformidade e Segurança”, de Calvão da Silva, pág. 41.
[14] Cfr. “Direito das Obrigações”–de Pedro Romano Martinez, edição de Maio 2000, pág. 122-123.