Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1182/18.0T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAIS DE TRABALHO
Nº do Documento: RP202001271182/18.0T8VNG.P1
Data do Acordão: 01/27/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que traduz o modo como entre os Tribunais se faz a repartição do poder jurisdicional e revela a medida de jurisdição de cada um deles (sendo regulada pelas Leis de Organização Judiciária e pelas respetivas normas adjetivas constantes do Código de Processo Civil);
II - A competência absoluta em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica que serve de fundamento à ação, tal como a configura o Autor, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir no confronto com o pedido formulado.
III - Os tribunais judiciais têm competência residual, apenas lhes cabendo as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (cfr. consagração constitucional do nº1, do art. 211º, da Constituição da República Portuguesa e, ordinariamente, o nº1, do art. 40º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, e o art. 64º, do CPC);
IV - E dentro dos tribunais judiciais, em que também se estabelece uma especialização em função da matéria é aos juízos cíveis de cada tribunal de comarca que é atribuída a competência residual;
V - Aos tribunais de trabalho compete dirimir os litígios emergentes de relações de trabalho subordinado, como estatui o índice consagrado na al. b), do nº1, do art. 126º da LOSJ, fazendo-se nas restantes alíneas do referido nº1 uma enumeração de litígios, em matéria cível, da competência de tais tribunais;
VI - A repartição de competências entre os tribunais de trabalho e os tribunais comuns faz-se em função de o litígio emergir ou não de uma relação jurídica que se subsuma ao referido nº1 (a regular matéria cível).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1182/18.0T8VNG.P1
Processo do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 4

Relatora: Eugénia Maria de Moura Marinho da Cunha
1º Adjunto: Maria Fernanda Fernandes de Almeida
2º Adjunto: António Eleutério

Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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I. RELATÓRIO

Recorrente: B…
Recorridas: C…, S.A, e D…, S.A,

B…, residente na Rua …, n.º .., …, Vila Nova de Gaia, propôs a presente ação contra C…, S.A, com sede no …, n.º …, 7º, …, Algés, e D…, S.A, com sede na …, n.º .., Lisboa, pedindo a condenação destas a pagarem-lhe a quantia de 7.742,91 €, sendo 3.000,00€, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu.
Alegou, para tanto, que durante vários anos trabalhou para a primeira ré, tendo como principal função a de “Assistente de relacionamento com clientes”, sob ordens da mesma, sendo que esta o “cedeu” à segunda ré e que, no âmbito das referidas relações contratuais ao serviço das mesmas, percorreu milhares de kms, tendo transposto, vezes sem conta, scuts com as ditas viaturas das Rés sem nunca liquidar as passagens, obrigação que as proprietárias assumiram quando lhe entregaram os veículos, estando a manutenção dos mesmos a cargo da segunda ré, e que, após cessar o contrato de trabalho, passou a receber sucessivas notificações para proceder ao pagamento de passagens/portagens, cujo custo não havia sido liquidado pelas rés, sendo que, perante a recusa das mesmas em assumir os aludidos pagamentos a que se obrigaram e porque estava na iminência de ver o seu salário penhorado, os assumiu, o que lhe causou transtornos e danos.
As rés apresentaram contestação, onde se defendem designadamente por exceção, tendo a primeira ré, vindo, entre outras, arguir a incompetência do Tribunal em razão da matéria, escudando-se nos argumentos aduzidos em sede da decisão proferida num tal sentido, no âmbito da ação que correu termos na instância local cível de Vila Nova de Gaia, processo n.º 4401/15.1T8VNG (juntando cópia a fls 71).
Respondeu o autor pugnando, a fls 79 e segs, pela competência do Tribunal Comum por a causa de pedir da presente ação se fundar na obrigação das Rés de restituição de valores por ele pagos, que às Rés cabia pagar, nos termos alegados na p.i., e que como o não fizeram, se locupletaram à sua custa, tendo aquele Tribunal competência para todas as causas não atribuídas a outro Tribunal, o que se verifica in casu.
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O tribunal a quo proferiu decisão a julgar-se incompetente em razão da matéria para conhecer da presente ação, absolvendo, em consequência, as rés da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 99º n.º 1, 576º n.º 1 e n.º 2 e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.
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Apresentou-se o Autor a interpor recurso de apelação de tal decisão, pugnando por que a mesma seja revogada e substituída por outra que reconheça a competência material do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia para conhecer do mérito da causa, formulando as seguintes
CONCLUSÕES:
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Saber se os Tribunais Comuns são materialmente competentes para conhecer de ação - proposta por ex-trabalhador (Autor) contra a ex-entidade patronal (Rés) com vista à condenação desta no capital e em indemnização por danos causados, por pagamentos por ele efetuados de portagens, referentes a passagens em scuts com viaturas que lhe foram entregues para o desempenho das suas funções, pagamentos que estas, aquando da entrega das viaturas, na pendência da relação laboral, se obrigaram a efetuar - ou se a competência cabe ao Tribunal de Trabalho.
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II.A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos provados, com relevância, para a decisão constam já do relatório que antecede, sendo o seguinte o teor da
DECISÃO RECORRIDA:

Através da presente ação, veio B…, residente na Rua …, n.º .., …, Vila Nova de Gaia, demandar a C…, S.A, com sede no …, n.º …, 7º, …, Algés, e a D…, S.A, com sede na …, n.º .., Lisboa, pedindo a condenação solidária das mesmas a pagarem-lhe a quantia de 7.742,21 €.
Para tanto, e no essencial, alegou que durante vários anos prestou serviços para e sob as ordens da primeira ré, sendo que por sua vez, esta, primeira ré, “cedeu” o autor à segunda ré. Mais alegou ainda, e por outro lado, que no âmbito das referidas relações contratuais percorreu milhares de km ao serviço das rés, tendo transposto vezes sem conta scuts ao volante das viaturas por ele melhor identificadas em sede da petição inicial, as quais lhe foram entregues a ele, autor, para desempenho das respetivas funções e cuja manutenção estava a cargo da segunda ré. Alegou ainda que a partir de determinada altura lhe começaram a aparecer sucessivas notificações para proceder ao pagamento de passagens/portagens, cujo custo não havia sido liquidado pelas rés, sendo que ele autor, e perante a recusa das mesmas em assumir os aludidos pagamentos e porque estava na iminência de ver o seu salário penhorado pela Autoridade Tributária, os assumiu. Alegou por último o autor que uma tal situação lhe causou transtornos.
Citas as rés contestaram, tendo a primeira ré, vindo, entre outras, arguir a incompetência material deste Tribunal, escudando-se nos argumentos aduzidos em sede da decisão proferida num tal sentido, no âmbito da ação que correu termos na instância local cível de Vila Nova de Gaia, processo n.º 4401/15.1T8VNG.
Respondeu o autor à referida exceção, defendendo a competência do Tribunal, por considerar que a causa de pedir subjacente à presente ação se baseia na restituição de valores por ele pagos à Administração Tributária, mas que deveriam ter sido pagos pelas rés, tendo, por tal razão, havido, injustificadamente e injustamente, um locupletamento destas à sua custa.
Posto isto, e de modo prévio à decisão a proferir nestes autos no que se refere à exceção de incompetência arguida, haverá que adiantar que a ação atrás melhor identificada é. Em termos de causa de pedir, a perfeita repetição da presente, sendo que naquela o autor refere de modo concreto que celebrou com a primeira ré dois contratos de trabalho temporário a termo certo.
Já no que se refere aos pedidos os mesmos apenas divergem, ainda que não relevantemente, nos valores peticionados, mormente no que se refere à indemnização a arbitrar por danos morais.
Passando então ao direito, de referir que nos termos do disposto no artigo 96º, do Código de Processo Civil, a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, sendo que, em conformidade com o n.º 1 do artigo 97º, também ele de um tal diploma, a incompetência pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo enquanto não houver sentença com trânsito em julgado.
Também de acordo com o artigo 126º da Lei n.º 62/2013, compete às seções do trabalho conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de relações de trabalho subordinado
Ora, estabelecido o direito e passando aos factos a ter em atenção, de salientar que, e de acordo com o alegado pelo autor nestes autos, o mesmo faz radicar a ação na existência de um contrato de trabalho, ao abrigo do qual lhe foram entregues quatro viaturas, com as quais, e com vista ao desempenho das respetivas funções, ele, autor, percorreu milhares de quilómetros ao serviço das rés. Mais faz radicar na circunstância de, nessas deslocações que fez, ter passado em scuts cujo pagamento teve que assumir, ainda que tardiamente e já depois de cessada a relação laboral existente, pese embora o mesmo incumbisse às referidas rés.
De ter ainda em atenção que, e conforme se refere no Acórdão de 17.09.2012, do Tribunal da Relação do Porto, disponível em www.dgsi.pt, “[a] utilização, pelo trabalhador, de um veículo automóvel do empregador, com todos os custos a cargo deste, (…) pode configurar um mero instrumento de trabalho, porque é usado durante e por causa da prestação laboral, (…) o veículo foi atribuído para uso total, profissional e pessoal e que tal uso constituiu um elemento essencial do contrato de trabalho (…)”.
Também e por outro lado, de referir, como de resto é referido na decisão atrás citada, que na competência material relevará, essencialmente, a parte qualitativa da causa, ou seja, sujeitos, objeto e causa da lide, tal como referido por Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, I, p. 646.
De salientar ainda, e por último, que a decisão proferida no âmbito da ação atrás referenciada se encontra no âmbito do caso julgado formal, valendo pois, e tão somente no âmbito da ação em que foi proferida.
Todavia, e concordando este Tribunal com os argumentos que levaram à prolação de uma tal decisão e estando-se perante, como já se realçou, perante duas ações, na substância, perfeitamente idênticas entre si, nada obsta à prolação de decisão no mesmo sentido propugnado por aquela.
Por conseguinte, e em função do exposto, por se considerar que a presente ação radica, e não obstante a qualificação legal invocada pelo autor para a mesma, na existência da relação de trabalho estabelecida entre o autor e as rés, tem que se concluir no sentido deste Tribunal ser incompetente, em razão da matéria. para o seu conhecimento.
Julgo pois, e na procedência da exceção arguida, incompetente este tribunal em razão da matéria para conhecer da presente ação, absolvendo, em consequência, as rés da instância, ao abrigo do disposto nos artigos 99º n.º 1, 576º n.º 1 e n.º 2 e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.
Custas a cargo do autor.
Notifique e registe.
Fixa-se de valor à ação 7.742,91 €.
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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
- Da incompetência dos Tribunais comuns, por competentes serem os do Trabalho
Arguida a exceção dilatória da incompetência absoluta dos Tribunais Comuns, por a competência jurisdicional para apreciar o litígio, que tem por objeto questões emergentes de relação laboral, pertencer aos Tribunais de Trabalho, o tribunal a quo julgou tal exceção procedente.
A questão a decidir na presente apelação traduz-se em saber se os Tribunais Comuns são competentes, em razão da matéria, para conhecer da presente ação, instaurada pelo ex-trabalhador (Autor) contra a ex-entidade patronal (Rés), com vista à condenação solidária destas a pagarem-lhe importâncias referentes aos pagamentos por ele efetuados de portagens com as viaturas que lhe foram entregues para o desempenho das suas funções ao serviço daquelas, pagamentos esses que efetuou após a cessação do contrato de trabalho, os quais eram da responsabilidade das mesmas, que, aquando da entrega dos veículos, os assumiram, e que ao não pagarem se enriqueceram à sua custa e lhe causaram danos, cujo ressarcimento, igualmente, pede.
Vejamos.
A competência é regulada pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas normas processuais respetivas (art. 60º do CPC).
Encontrando-se o poder jurisdicional repartido entre os tribunais, cada um deles detém a sua fração própria, a qual constitui a sua competência, existindo regras de competência que determinam como é feita tal repartição. “Essas regras atribuem competência aos tribunais, tomando em consideração os termos (objetivos e subjetivos) que caracterizam cada acção. Conforme os casos, a competência determina-se pelo pedido formulado pelo autor, pelo tipo de acção que pretende instaurar, pelo recurso que se pretende interpor, pelo lugar da ocorrência dos factos, pela residência das partes, etc.” [1].
A incompetência de um tribunal é a insusceptibilidade desse “tribunal apreciar determinada causa por os critérios determinativos da sua competência lhe não concederem uma medida de jurisdição suficiente para essa apreciação.
A lei infere a existência de quatro tipos de incompetência do tribunal: a incompetência absoluta, a incompetência relativa, a violação de pacto privativo de jurisdição e a preterição de tribunal arbitral”[2].
A incompetência absoluta provém de infração das regras da competência legal internacional e da competência legal interna material e hierárquica.
Sendo que a “nível interno, mais concretamente no âmbito dos tribunais judiciais, a competência reparte-se em função da matéria, da hierarquia, do valor da causa e do território (nº2 do art. 60º; cfr. também o nº1, do art. 37º da LOSJ)”,verifica-se que, no que respeita à referida competência em razão da matéria, o art. 211º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”. Por outro lado o nº2, do referido artigo estabelece que “Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas”.
O nº1, do art. 40º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovado pela Lei n.º 62/2013, de 26/01, e o art. 64º, do CPC, fazem a transposição para a lei ordinária dos princípios constitucionais, consagrando aquele preceito que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e este que “São da competência dos Tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, estabelecendo-se, assim, a competência residual[3] dos tribunais judiciais no confronto com as restantes ordens de tribunais constitucionalmente consagradas.
A competência em razão da matéria atua no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais, impondo-se casuisticamente verificar se tal competência para conhecer dessa causa se encontra atribuída a outras ordens jurisdicionais, sendo que, caso o não esteja, a competência para conhecer do caso caberá aos tribunais judiciais. Estes, “e só estes surgem como a ordem de jurisdição também vocacionada para o julgamento das questões que a lei não inclui na esfera de competência de Tribunais integrados noutras jurisdições, o mesmo é dizer que a jurisdição dos Tribunais Judiciais está dotada de uma força expansionista, só comprimida através da presença de jurisdições com caráter especial” [4].
Pressupõem tais normas a existência de várias ordens jurisdicionais.
Os tribunais judiciais têm, pois, competência residual, abarcando todas as questões cuja apreciação não seja atribuída a tribunais de outra ordem jurisdicional. Já na esfera dos tribunais judiciais, em que também se estabelece uma especialização em função da matéria, a competência residual é atribuída aos juízos cíveis de cada tribunal de comarca, nos termos estabelecidos pela LOSJ[5].
No caso, estão em causa critérios de repartição da competência entre os tribunais de trabalho e os tribunais comuns.
O artigo 65º, do CPC, estatui que “As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada”.
Escreve José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[6] em anotação ao referido artigo, “O preceito remete para o art. 40-2 LOSJ, que afirma que a LOSJ “determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de 1ª instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada”. Compreende-se, assim, a referência, no preceito anotado, quer aos “tribunais” quer às “secções”.
As várias secções de competência especializada dos tribunais de comarca encontram-se enumeradas no art. 81-2 LOSJ, sendo depois tratadas autonomamente, no que à sua competência em razão da matéria respeita, no art. 117 LOSJ (secções cíveis), (…), nos arts. 126 e 127 da LOSJ (secções do trabalho)…”.
Assim, “dentro dos tribunais judiciais foi incrementada a especialização em função da natureza das questões. Tal resulta fundamentalmente dos arts. 79º a 83º e 111º e ss. da LOSJ[7].
E, na verdade, o artigo126º, da Lei 62/2013 de 26/08 (LOSJ) estatui:
“1 - Compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível:
a) Das questões relativas à anulação e interpretação dos instrumentos de regulamentação coletiva do trabalho que não revistam natureza administrativa;
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
d) Das questões de enfermagem ou hospitalares, de fornecimento de medicamentos emergentes da prestação de serviços clínicos, de aparelhos de prótese e ortopedia ou de quaisquer outros serviços ou prestações efetuados ou pagos em benefício de vítimas de acidentes de trabalho ou doenças profissionais;
e) Das ações destinadas a anular os atos e contratos celebrados por quaisquer entidades responsáveis com o fim de se eximirem ao cumprimento de obrigações resultantes da aplicação da legislação sindical ou do trabalho;
f) Das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho;
g) Das questões emergentes de contratos de aprendizagem e de tirocínio;
h) Das questões entre trabalhadores ao serviço da mesma entidade, a respeito de direitos e obrigações que resultem de atos praticados em comum na execução das suas relações de trabalho ou que resultem de ato ilícito praticado por um deles na execução do serviço e por motivo deste, ressalvada a competência dos tribunais criminais quanto à responsabilidade civil conexa com a criminal;
i) Das questões entre instituições de previdência ou de abono de família e seus beneficiários, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de umas ou outros, sem prejuízo da competência própria dos tribunais administrativos e fiscais;
j) Das questões entre associações sindicais e sócios ou pessoas por eles representados, ou afetados por decisões suas, quando respeitem a direitos, poderes ou obrigações legais, regulamentares ou estatutárias de uns ou de outros;
k) Dos processos destinados à liquidação e partilha de bens de instituições de previdência ou de associações sindicais, quando não haja disposição legal em contrário;
l) Das questões entre instituições de previdência ou entre associações sindicais, a respeito da existência, extensão ou qualidade de poderes ou deveres legais, regulamentares ou estatutários de um deles que afete o outro;
m) Das execuções fundadas nas suas decisões ou noutros títulos executivos, ressalvada a competência atribuída a outros tribunais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
o) Das questões reconvencionais que com a ação tenham as relações de conexão referidas na alínea anterior, salvo no caso de compensação, em que é dispensada a conexão;
p) Das questões cíveis relativas à greve;
q) Das questões entre comissões de trabalhadores e as respetivas comissões coordenadoras, a empresa ou trabalhadores desta;
r) De todas questões relativas ao controlo da legalidade da constituição, dos estatutos e respetivas alterações, do funcionamento e da extinção das associações sindicais, associações de empregadores e comissões de trabalhadores;
s) Das demais questões que por lei lhes sejam atribuídas” (negrito nosso).
Ora, a “competência material do tribunal, como pressuposto processual que é, afere-se em função, não só do pedido, como também da causa de pedir, padronizada nos moldes em que a relação jurídica é configurada pelo A., com recurso aos chamados índices de competência que constam das diversas normas determinativas da competência.
“Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor.
E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão[8][9].
“A competência do tribunal, como pressuposto processual, corresponde à medida de jurisdição dos diversos tribunais, nomeadamente ao modo como entre eles se fraciona e reparte o poder jurisdicional (MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 88, e ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, 1985, pág. 196).
Internamente, o fracionamento ou repartição do poder de julgar deriva de vários fatores, designadamente em razão da matéria.
A competência em razão da matéria para as diversas espécies de tribunais, situados entre si no mesmo plano horizontal, sem qualquer relação de hierarquia, resulta da natureza da matéria alegada na ação, tendo por justificação o princípio da especialização, com as reconhecidas vantagens.
A natureza da matéria alegada na ação afere-se pela pretensão jurisdicional deduzida e pelo fundamento invocado ou pelo pedido e causa de pedir (MANUEL DE ANDRADE, ibidem, pág. 91), como, aliás, é entendido, pacificamente, pela jurisprudência”[10].
A distribuição da competência em razão da matéria afere-se “pelo pedido efetuado e pela causa de pedir (STJ 29-5-14, 1327/11)” [11], sendo que se impõe aferir da relação jurídica que se discute na ação, tal como é configurada pelo autor, seja quanto aos seus elementos objetivos (causa de pedir e pedido), seja quanto aos elementos subjetivos das partes[12].
Assim, bem se decidiu ao considerar-se ser pacífico que a competência se afere, desde logo, pela forma como o autor configura a ação, sendo esta definida pelo pedido, pela causa de pedir.
Com a presente ação pretende o A. a condenação das Rés a pagar-lhe as importâncias que teve de suportar relativas às notificações que recebeu da E…, F…, G…, Serviço de Finanças de reclamações de passagens/portagens, não liquidadas pelas Rés, referentes à utilização que fez ao percorrer quilómetros ao serviço das mesmas com veículos delas, sua entidade patronal, proprietárias dos mesmos que lhos entregaram, no exercício da sua profissão, alegando que lhe foi referido que tinha de ter apenas a preocupação de as abastecer de combustível, sendo tudo o mais a cargo delas, notificações aquelas que começou a receber após a cessação do contrato de trabalho.
Alegou, pois, factos, em matéria cível, que, na sua ótica, constante da petição inicial, com que introduziu a ação em juízo, não podem deixar de ser emergentes de relações de trabalho subordinado.
Com efeito, as passagens em portagens, cujo custo está em causa, ocorreram em virtude da relação laboral, estando com ela relacionadas e dela emergindo. E alegando o Autor que toda a manutenção dos veículos em causa estava a cargo da sua entidade patronal, que a assumiu perante si, constata-se que a causa de pedir do pedido formulado não pode deixar de emergir da relação laboral.
O facto das notificações para pagamento das portagens (e respetivos pagamentos pelo Autor) serem posteriores à cessação do contrato de trabalho não retira à questão a natureza laboral, pois que na génese está a utilização dos veículos que as Rés entregaram ao seu trabalhador para que com eles circulasse, com assunção por aquelas perante este da obrigação de efetuar tais pagamentos[13]. Assim, a questão levantada na petição inicial da presente ação emerge, na verdade, de “relações de trabalho subordinado”.
Pretendendo o Autor, que justifica a utilização que fez de veículos das Rés pelo exercício de uma relação laboral, ser reembolsado e ressarcido pelos danos de pagamentos que efetuou decorrentes de alegada utilização ao abrigo do acordado em contrato de trabalho, configurada está uma questão que emergente é de “relações de trabalho subordinado”, dúvidas não havendo que a competência para conhecer do pedido do A., tendo em conta a respetiva causa de pedir, cabe aos Juízos do Trabalho e não aos Juízos Cíveis (estes só competentes se aqueles não o forem).
O pedido do apelante funda-se em obrigação assumida pelas Apeladas emergente do alegado contrato de trabalho subordinado invocando um direito seu decorrente daquela obrigação contratualmente assumida. E perante a pretensão formulada com o quadro fáctico que a funda, não pode existir qualquer dúvida de que os tribunais de trabalho são materialmente competentes para a ação.
O direito de crédito e o direito à indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, em matéria cível, invocado na ação tem por fundamento ou justificação obrigações contratualmente assumidas pelas Rés.
Deste modo, considerada a natureza do pedido e da causa de pedir da ação especificados, a competência material cabe aos tribunais de trabalho pois que se enquadra no âmbito do disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 126.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).
É, na verdade, o Juízo Cível incompetente em razão da matéria, para conhecimento do objeto do litígio, pois que, efetivamente, ele assenta em relação de trabalho estabelecida entre o autor e as rés. Alegadamente, o que esteve na base dos serviços que o Autor utilizou, geradores dos pagamentos que suportou e que reclama às Rés, lembrando-as da obrigação contratualmente assumida, emergem da alegada relação contratual laboral, de trabalho subordinado.
Por na definição da competência do tribunal a lei atender ao objeto da causa, encarado sob um ponto de vista da natureza da relação substancial, considerando os termos em que a ação se acha proposta – seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes), seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se reclama a tutela judiciária, o ato ou o facto de onde terá dimanado esse direito) - bem considerou o Tribunal a quo que em causa está uma relação de trabalho em que o Autor funda o seu direito sobre as Rés.
Alicerça o Autor a sua pretensão na relação laboral que invoca afirmando que circulou nas referidas scuts enquanto ao serviço das Rés, estando em discussão a violação de direitos de crédito ou de obrigações em sentido técnico, nelas se incluindo não só os deveres primários de prestação, mas também deveres secundários, tendo as partes, alegadamente, estabelecido uma relação contratual laboral, no âmbito da qual foram originados os referidos dispêndios, a suportar pelas Rés.
Fundando-se o pedido do Autor em condutas imputadas às Rés, como entidades patronais que foram, que alegadamente as torna responsáveis pelos valores em causa, o litígio tem subjacente relação jurídica laboral.
O conceito de relação laboral é decisivo para determinar a repartição de competências entre os Tribunais de trabalho e os Tribunais Comuns, na medida em que essa repartição se faz, em função do litígio cuja resolução se pede, emergir, ou não, de uma relação jurídica laboral. O conceito de relação laboral é erigido em pedra angular para a repartição da jurisdição entre os tribunais de trabalho e os tribunais comuns.
As passagens em portagens, cujo custo está em causa ocorreram na pendência da relação laboral, alegando o Autor que a manutenção dos veículos estava a cargo da sua entidade patronal, temos em que a causa de pedir emerge da relação laboral.
Destarte, o enquadramento do caso subsume-se à alínea b), do nº1, do artigo 126.º da LOSJ, pois que o direito que o Autor pretende fazer valer tem a sua génese em alegadas violações de obrigações das Rés – “em matéria cível” v. referido nº1 - decorrentes da relação jurídica laboral mantida com o Autor, irrelevante sendo a cessação da relação laboral ocorrida ulteriormente ao momento da utilização dos serviços de terceiros pelo Trabalhador (Autor) que geraram o montante peticionado, sendo, por isso e face ao que dispõe aquele preceito, competentes os tribunais de trabalho para a questão, emergente de “relações de trabalho subordinado”.
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O Tribunal de trabalho é, pois, competente para dirimir o litígio em que são demandadas entidades patronais, por obrigações contratualmente assumidas emergentes das “relações de trabalho subordinado”, não o sendo, por isso, o Juízo Cível, de competência residual.
Ora, a violação das regras de competência material integra uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, e que determina a absolvição dos Réus da instância (cfr. artigos 96º, nº1 e 2, do art. 97º, nº1, do art. 99º, al. a), do nº1, do art. 278º e al. a), do art. 577º, todos do CPC).
Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.

Porto, 27 de janeiro de 2020
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fernanda Almeida
António Eleutério
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[1] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª Edição, 2017, Almedina, pág 92
[2] Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência nos Tribunais Comuns, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1987, pág 54.
[3] Acs. do STJ de 10/12/2015, Processo 83/14 Sumários 2015, pág 688 e da Rel. Do Porto de 19/10/2015: Processo 1643/15.3T8PRT.P1. dgsi.net, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum, pág 164-165.
[4] Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum, pág 151.
[5] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol.I, 2018, Almedina, pág 92
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 3ª Edição, pág 142
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol.I, 2018, Almedina, pág 97
[8] Manuel de Andrade, NOÇÕES ELEMENTARES DO PROCESSO CIVIL, ed. 1993, reimpressão, págs. 90-91.
[9] Ac. do STJ de 10/4/2019, proc. 6632/18.3T8LSB-A.L1.S1 (Relator: Ribeiro Cardoso) acessível in dgsi
[10] Ac. do STJ de 14/12/2017, processo 3653/16.4T8GMR.G1.S1, (relator: Olindo Geraldes) acessivel in dgsi.
[11] Ibidem, pág 97
[12] Cfr., entre muitos, Acs. do STJ. de 20/6/2006, CJ STJ 2006, 2º, pág 121, de 7/4/2016, Processo 411/2014, Sumários, Abril 2016, pág 29, citado in Abílio Neto, Novo Código de Processo Civil Anotado, 4ª Edição, 2017, Ediforum, pág 165 e de 22/10/2015, Processo 678/11.0TBABT.E1.S1; Acs da Rel. Do Porto de 7/7/2016, Processo 30982/15.1T8PRT.P1 e de 10/11/2015, Processo 43048/15.5YIPRT; Ac. da Rel. de Lisboa de 10/3/2016, Processo 1245/14; Ac. da Rel. de Évora de 3/12/2015, Processo 502/14.1T8PRT.E1, todos in base de dados da dgsi.
[13] Cfr Ac. do STJ de 14/12/2016, proc. 1267/15.5T8FNC-A.L1.S1 (relator: Ribeiro Cardoso), acessível in DGSI, onde se decidiu “Sendo pedida a condenação da ex-trabalhadora no pagamento da indemnização estabelecida na cláusula penal, em consequência da violação da cláusula de confidencialidade, estão em causa questões emergentes de relações de trabalho subordinado, ainda que a violação tenha ocorrido após a cessação do contrato de trabalho, cabendo, por isso, a competência para a ação à secção do trabalho, nos termos do art. 126, nº 1, al. b) da LOSJ”.