Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
379/18.8T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES DO NOTÁRIO
COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RP20180627379/18.8T8GDM.P1
Data do Acordão: 06/27/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 140, FLS 34-46)
Área Temática: .
Sumário: I - As decisões proferidas pelo Notário ao longo do processo de inventário são, em regra, impugnáveis judicialmente.
II - A competência para conhecer dessa impugnação é do tribunal de 1.ª instância, não apenas nas situações previstas nos artigos 57.º e 16.º do RJPI mas em todas as outras em que nos termos gerais do direito processual civil a decisão é passível de recurso.
III - O regime do artigo 76.º do RJPI refere-se somente aos recursos de apelação das decisões do tribunal de 1.ª instância, estabelecendo que as decisões judiciais interlocutórias só podem ser impugnadas no recurso de apelação da sentença judicial homologatória da partilha.
IV - As impugnações das decisões do notário seguem o regime dos aspectos em que o artigo 57.º e 16.º do RJPI coincidem e, quanto aos aspectos aí não previstos de forma coincidente, aplica-se subsidiariamente o regime do recurso de apelação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 379/18.8T8GDM.P1
Comarca do Porto
Juízo Família e Menores de Gondomar
Recurso de apelação

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
B..., divorciada, residente em ..., Valongo, requereu perante a Notária C..., com Cartório em Valongo, a abertura de inventário para separação de meações destinado a pôr termo à comunhão do património conjugal dos bens do dissolvido casal dela e de D..., que foram casados no regime da comunhão de adquiridos.
O requerido foi nomeado cabeça-de-casal, prestou declarações e apresentou relação de bens.
A requerente reclamou da relação de bens apresentada.
A Notária decidiu a reclamação, relegando para a conferência preparatória a decisão a proferir quanto ao passivo e valor dos bens e julgando parcialmente procedente a reclamação quanto ao aditamento à relação do direito de crédito pelas rendas devidas pelo cabeça-de-casal pela utilização de prédio comum do casal e à exclusão da relação das verbas 1, 2 e 3 (fols. 148 e seguintes).
Dessa decisão o cabeça-de-casal interpôs “recurso, que é de apelação, para o Tribunal de Comarca”, requerendo a revogação da decisão na parte em que determinou o aditamento de uma verba e a exclusão de três verbas da relação e designou data para a conferência preparatória sem decidir as questões colocadas nos autos pelas partes (fols. 170 e seguintes).
A Notária não admitiu o recurso dizendo que a apelação é o recurso “de decisão proferida por Tribunal de 1.ª Instância para o Tribunal da Relação” e que sendo a decisão interlocutória só pode ser impugnada a final com o recurso da homologação da partilha (fols. 192).
O cabeça-de-casal ainda reclamou para a Notária desta decisão, mas a Notária em vez de remeter a reclamação ao tribunal ad quem para conhecer da reclamação do despacho de rejeição de recurso, rejeitou ela mesma a reclamação (!).
O cabeça-de-casal apresentou recurso deste despacho para o Tribunal de Comarca, recurso que de novo foi rejeitado pela Notária com o fundamento de que o mesmo só pode ser interposto no recurso da decisão judicial de homologação da partilha.
O mesmo sucedeu com outro recurso apresentado por credores intervenientes relativamente ao indeferimento de um requerimento que haviam feito a reclamar um crédito sobre o casal.
Após diversas vicissitudes, foi proferido despacho determinativo da forma da partilha e elaborado o mapa de partilha.
Na sequência disso, a interessada B... reclamou do mapa acusando a falta da verba relativa às rendas que tinha mencionado na sua reclamação da relação de bens, cujo valor deve ser actualizado. A Notária pronunciou-se apenas sobre a reclamação da interessada B..., desatendendo-a.
A interessada apresentou ainda recurso para o Tribunal de Comarca de três despachos proferidos nos autos pela Notária, recursos que foram rejeitados pelo mesmo fundamento já antes mencionado a propósito de anteriores recursos.
Também reclamou o cabeça-de-casal acusando a falta no mapa de uma verba relativa ao montante que pagou ao E..., cujo valor deve ser actualizado pedindo-se para o efeito a esse banco que informe o valor que foi pago até ao momento, o que foi indeferido.
O processo foi remetido para o Tribunal Judicial para homologação do mapa e na ocasião o Mmo. Juiz a quo proferiu a seguinte decisão:
«O interessado D... interpôs recurso, para o tribunal de 1.ª instância, da decisão da Sra. Notária que conheceu da reclamação contra a relação de bens. A Sra. Notária rejeitou o recurso por a decisão não ser impugnável para o tribunal de 1.ª instância, mas através da apelação da sentença que homologue o mapa da partilha.
O interessado reclamou, dizendo que o recurso é admissível nos termos do disposto no art. 76/2 da Lei n.º 23/2013, de 5.03.
Apreciando.
Como nota Filipe César Marques (AAVV, Processo de Inventário – Guia Prático, Lisboa: CEJ, 2014, em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/civil/novo_processo_de_inventario.pdf, acesso a 8.02.2018), que vamos seguir de perto, na Lei n.º 23/2013, de 5.03, o juiz de primeira instância tem uma dupla função: interveniente por competência própria no processo de inventário e decisor em sede de recurso.
Na primeira veste, cabe ao juiz de primeira instância proferir a decisão homologatória da partilha (art. 66/1), da qual cabe recurso de apelação para o Tribunal da Relação (arts. 66/3 e 76/1); na segunda, cabe ao juiz de primeira instância decidir o recurso da decisão que indefira o pedido de remessa para os meios judiciais comuns (art. 16/4) e do despacho determinativo da forma da partilha (art. 57/4).
Desde logo salta à vista que o juiz de 1.ª instância tem competência para decidir o recurso do despacho determinativo da forma à partilha, mas não para decidir sobre as decisões interlocutórias do notário. Tal sucede porque a decisão de homologação da partilha compete-lhe e, logicamente, o recurso da decisão final é para o Tribunal da Relação, “arrastando” consigo os recursos de decisões interlocutórias do notário, conforme decorre do art. 76/2, que prevê que a competência para a apreciação dos recursos de decisões interlocutórias que sejam interpostos conjuntamente com o recurso da decisão de homologação da partilha cabe ao Tribunal da Relação.
A este propósito, importa dizer que o juiz de primeira instância, no momento em que é chamado a proferir a decisão de homologação da partilha, não sabe ainda se alguma das decisões interlocutórias proferidas pelo notário vai ou não ser impugnada pelas partes. De todo o modo, poder-se-á colocar em relação a estas decisões a questão da admissibilidade da sua alteração ou revogação pelo juiz.
Com efeito, tal possibilidade poderia ser admitida pois estas decisões interlocutórias não se tornam definitivas por não ter decorrido ainda o prazo de recurso no momento em que o juiz é chamado a proferir decisão homologatória da partilha. Tal solução, porém, não parece estar de acordo com a interpretação literal, sistemática e histórica do diploma.
O elemento literal é óbvio: o art. 66/1 refere “decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio”, apontando para a interpretação de que a decisão do juiz deve incidir apenas sobre a partilha stricto sensu e não sobre todos os actos praticados ao longo do processo.
Quanto ao elemento sistemático, decorre da estrutura dada pelo legislador ao diploma que neste existem dois decisores em primeira instância, com competências distintas, é certo, mas claramente identificadas no art. 3.º/4 e 7: o notário tem uma competência genérica e ampla, ao passo que o juiz apenas tem competência para “praticar os actos que, nos termos da lei, sejam da competência do juiz”. Ora, ao juiz foram conferidos poderes de decisão em sede de recurso, no âmbito dos quais pode apreciar as decisões do notário, e poderes próprios no processo, que se traduzem na prolação da decisão de homologação da partilha. É no exercício destes, e não nos de recurso, que o juiz é chamado a proferir a decisão de homologação da partilha, pelo que não é lógico que possa nesse momento apreciar da regularidade de actos praticados pelo notário ao longo do processo. Aliás, precisamente por isso o legislador atribuiu a competência para apreciar o recurso das decisões interlocutórias ao Tribunal da Relação, e não ao juiz de primeira instância. Admitir-se que o juiz pudesse sindicar as decisões proferidas pelo notário ao longo do processo no momento da decisão de homologação da partilha seria, na prática, criar uma nova instância de recurso, o que dificilmente se encaixa no figurino dado pelo legislador ao Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário.
Por último, no que toca ao elemento histórico, não podemos esquecer que o legislador expressamente quis afastar o poder de “controlo geral do processo” que anteriormente chegou a ser consagrado, pelo que não se compreenderia que ao mesmo tempo que afasta aquele controlo por parte do juiz, pretenda permitir que este aprecie todas as decisões interlocutórias.
Conclui-se, portanto, que também quanto às decisões interlocutórias não pode o juiz pronunciar-se no momento da prolação da decisão homologatória da partilha.
No essencial, a actividade do juiz nesta fase processual resumir-se-á a suscitar e decidir nulidades que sejam de conhecimento oficioso (falta de citação, nulidade da citação edital, erro na forma de processo e falta de vista ou exame ao Ministério Público como parte acessória) ou que sejam válida e tempestivamente arguidas pelos interessados no processo.
Trata-se de um controlo meramente formal legalidade dos actos praticados no processo, mas sem que possa exercer um real e efectivo controlo da actividade do notário ao longo do processo.
Consequentemente, indefere-se a reclamação.
[…]
Nestes autos de inventário judicial requeridos para partilha do património comum do casal constituído por B... e D..., na sequência da respectiva dissolução por divórcio, homologo pela presente sentença a partilha do mapa de 23 de Outubro de 2017, adjudicando aos interessados os bens que nele, expressa e respectivamente, lhes foram designados para composição das respectivas meações.»
Ambos os interessados interpuseram, separadamente, recurso do assim decidido.
A interessada B... terminou as respectivas alegações do recurso, que destinou ao Tribunal de Comarca, com as seguintes conclusões:
I- O mapa de partilha, e consequentemente a composição dos quinhões mostra-se erradamente organizado.
II- Em primeiro lugar, o valor fixado para a verba 6 referente ao valor do estabelecimento comercial/activo imobilizado, ou valor de negócio, não foi devidamente apurado, porquanto a) não teve em conta o requerido acerca da documentação comprovativa que o inventariado disse ir entregar, e nunca o fez; b) não deu seguimento a diligência requerida para recolher elementos da Administração Tributária sobre viaturas registadas nos anos de 2010, 2011 e 2012; c) não atendeu ao contraditório apresentado em 14 de Março de 201, nomeadamente a listagem de viaturas que lhe foi anexo e que permitem indiciar que o valor do estabelecimento/valor do negócio era de cerca da 200.000,00€;
III- E não foi apurado, porque tendo sido apresentadas divergências pelas partes, a ilustre Notária recorrida relegou para a conferência preparatória a fixação do seu valor.
IV- Compulsando as actas das varias sessões da conferência preparatória realizadas em 10/02/2016, 10/03/2016, 04/04/2016, 28/10/2016 e 17/01/2017), nada consta acerca de decisão foi tomada quanto ao valor do estabelecimento, logo o valor do negócio não pode ser aceite.
V- Em face de tal grave omissão, o mapa da partilha elaborado nos ternos do art.º 59º do RJPI pela ilustre Notária não comtempla a realidade, pelo que não reúne condições para ser homologado, impondo-se a sua rectificação, o que desde já se requer.
VI- Não obstante ter sido efectuada pela inventariada recorrente, a competente reclamação do mapa de partilha, por não contemplar na fixação do valor da verba 10, o valor de rendas vincendas e relativas ao período entre Outubro de 2015 e Outubro de 2017, pelo valor de 24 meses x 2.020,00€ = 48.480,00€, tal reclamação foi denegada.
VII- E foi denegada pela alteração do critério seguido inicialmente pela ilustre Notaria quem reconhecia a existência de rendas vencidas num período de 39 meses calculados entre Julho de 2102 e Outubro de 2015, pelo valor global de 78.780,00€.
VIII- Esta contradição de critérios no apuramento das rendas, viola o princípio da economia processual e implica que inventariada recorrente se veja obrigada a vir reclamar o valor dessas mesmas rendas entretanto vencidas durante a tramitação dos presentes autos, até a data do despacho, propondo em Tribunal uma nova acção destinada a ver ressarcido o seu crédito.
IX- Além da violação do referido princípio da economia processual, a não consideração do critério de avaliação das rendas devidas entre a data do referido reconhecimento das rendas devidas e a data da elaboração do mapa da partilha, viola o princípio da equidade e a efectivação da justiça, acima invocado na introdução ao presente recurso (cfr. Ac. STJ de 17/05/2016, Ac. TRPorto 27/09/2011 e Ac. STJ 26/10/1976, BMJ 260º, 113)". Portanto devem ser acrescentadas ao Mapa da Partilha, o que expressamente se requer.
X- A ilustre Notaria ignorou a reclamação feita ao Mapa, tratando-o como um mero incidente processual, aplicando-lhe a taxa de justiça de 1 UC, prevista no nexo II da Portaria 278/2013 de 26 de Agosto, na redacção introduzida pela Portaria 46/2015 de 23 de Fevereiro!!!!
XI- Mas ainda e em relação com o valor do estabelecimento, foram indeferidos os requerimentos de 31/03/2016, posteriormente rectificado em 02/04/2016, em que se solicitou a nomeação de perito economista para auditoria as contas de F..., Lda (NIPC .........) para verificação de entradas e saídas de dinheiro referentes as verbas C e D da relação de bens, e da actividade desenvolvida na compra/venda de viaturas nos anos de 2011 a 2016, confrontando os registos contabilísticos com o histórico da Administração Tributaria
XII- Igualmente, a ilustre Notaria omitiu o requerimento de 27/10/2016, que reclamou um adicional de rendas pelo facto de o Cabeça-de casal, ter instalado no imóvel comum, uma outra sociedade de que é sócio, esta com um dos reclamantes da relação de bens – G... - requerimento esse em que requereu, ainda, que fosse solicitada a Repartição de Finanças competente, o histórico de viaturas registadas em nome do inventariado, este com o NIF ..........
XIII- E nada mais fez quando após a realização da conferência preparatória de 14/03/2017 e 22/03/2017, a recorrente invocou razões que já havia fundamentado no seu requerimento de 08/10/2015, quanto a sonegação de bens por não ter o inventariado D..., prestado a informação contabilística detalhada que permitisse aferir o "valor do negócio", elemento essencial para a efectivação de uma partilha equitativa.
XIV- Pronunciou-se a ilustre Notária recorrida, pela inadmissibilidade do recurso/reclamação apresentado em 24 de Julho de 2017, sobre a contagem de prazos que aquela determinou expressamente que decorresse em férias judiciais.
XV- O RJPI tem como normas subsidiárias as constantes do Código de Processo Civil, como, aliás consta do artigo 82.º da Lei 23/2013 de 5 de Março. Se dúvidas houvesse, são exemplo as múltiplas referências a aplicação de normas, procedimentos, intervenção obrigatória dos Tribunais, estão mencionadas no referido diploma.
XVI- Reza o artigo 138.º, n.º 1 do CPC que "O prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho de juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes".
XVII- O presente processo de inventário não é um processo urgente. A reclamação/recurso apresentado estava, portanto, em tempo, pois na data em que foram proferidos o processo deveria observar a norma processual que manda suspender os prazos em férias judiciais.
XVIII- Na justificação para o indeferimento, a Sra. Notária afirmou que a fixação de prazo inicialmente fixada em 10 de Julho de 2017, e que foi reclamada atempadamente, se tratava de uma "mera advertência", o facto é que no dito despacho se disse entre outras coisas, que o prazo era contínuo e não se suspendia em férias judiciais. Este inédito entendimento contende com a Lei processual aplicável aos Autos, bem como a prática corrente por parte de outros Cartórios Notariais.
XIX- "As citações e notificações aos interessados no inventário, ou respectivos mandatários judiciais, para os actos e termos do processo para que estão legitimados, nos termos do artigo anterior, e das decisões que lhes respeitem, são efectuadas nos termos do Código de Processo Civil." Assim o afirma o Art.º 6.º n.º 2 da Lei nº 23/2013 de 05 de Março!
XX- O artigo 82º da Lei n.º 23/2013 de 5 de Março determina que "em tudo o que não esteja especialmente regulado na presente lei, é aplicável o Código de Processo Civil e respectiva legislação complementar".
XXI- Mais, o processo de inventário só finda com a sentença homologada por juiz, o que determina que o processo se mantenha com a natureza judicial. O processo de inventário não é um processo administrativo, nem fiscal, é um processo todo ele subsidiariamente desenvolvido segundo as regras do Código de Processo Civil.
XXII- Ao processo de inventário é aplicável a regra de contagem de prazos prevista no art.º 138.º n.º 1, do CPC que diz: "o prazo processual, estabelecido por lei ou fixado por despacho de juiz, é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais, salvo se a sua duração for igual ou superior a seis meses ou se tratar de actos a praticar em processos que a lei considere urgentes.", o que não era o caso.
XXIV- O despacho proferido sobre uma reclamação apresentada, é uma decisão interlocutória, ou melhor, não sendo uma sentença, é uma decisão ordinária, logo susceptível de recurso nos termos do art.º 630.º n.º 1 do CPC.
XXV- A ilustre Notaria no Despacho sobre a forma de partilha adjudicou os quinhões em compropriedade assim procedendo na elaboração do mapa de partilha.
XXVI- Esta decisão é contraria é contrária ao disposto no artigo 58.º da Lei n.º 23/2013, n.º 1, alíneas b) e suas sub-alíneas i) e ii), logo se pugna pela sua inadmissibilidade perante a Lei e Jurisprudência.
XXVII- Na conferência de interessados não apresentar licitações. Também não foram os interessados questionados sobre a venda judicial, como deveria ter sido feito, para, dessa forma, distribuir equitativamente o produto da venda pelos mesmos na proporção dos respectivos quinhões.
XXVIII- A decisão tomada, mantém a compropriedade que é uma forma de comunhão no acervo patrimonial, pelo que contende com o pedido que suporta os presentes Autos, que é o direito de fazer cessar a comunhão, e com a causa de pedir que consista partilha e na descrição, avaliação e adjudicação pelos interessados, com o fim de terminar a comunhão. E não foi esta a decisão adequada para que a partilha se fizesse em igualdade, sem benefício de um, e detrimento do outro dos interessados.
XXIX- Impondo a compropriedade, a decisão implica que a interessada/recorrente se veja compelida a, no futuro, recorrer aos tribunais para, em acção de divisão da coisa comum, fazer cessar a compropriedade, com a inerente perda de tempo, gastos com custas e honorários, e demais inconvenientes, todos eles perfeitamente evitáveis se aplicado o princípio da economia processual.
XXX- O regime legal do inventário visa a partilha igualitária e justa com o equilíbrio possível. E este equilíbrio passava, também, pelo acordo quanto a composição dos quinhões, ou, como deveria ter sido observado, um acordo sobre a adjudicação em compropriedade, acordo esse que não se verificou, nem sequer foi tentado.
XXXI- Assim, não tendo sido apresentadas licitações nem obtido o acordo para adjudicar em compropriedade os bens, e como muito bem se concluiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Maio de 2016 - proc. 2862/08.4TBMTS.P1.S1 publicado in http://dgsi.pt "os bens que não tiveram licitações devem ser objecto de venda judicial, tendo em conta o valor da avaliação feita no processo, após o que se procederá em conformidade às operações de partilha, atribuindo-se o produto resultante da venda (dinheiro) na proporção necessária ao integral preenchimento dos quinhões".
Pelo exposto, e sempre com o douto suprimento de V. Exas. devem ser os presentes autos saneados de todas as irregularidades processuais, mandado corrigir nos seus diversos aspectos, revogadas as decisões tomadas quanto a forma da partilha e elaboração do respectivo mapa da Partilha, determinando-se as medidas correctivas que justamente se impõem, o mesmo será dizer que não seja proferida decisão homologatória, o que se requer.
O cabeça-de-casal terminou as respectivas alegações, do recurso que denominou de apelação e destinou ao Tribunal da Relação, com as seguintes conclusões:
«1º A decisão de exclusão da verba 1 nos termos do n° 3° do artigo 574º do C.P.C. viola a própria norma legal invocada. A cominação em causa é diferente em função de se tratar de facto pessoal ou não e de esse facto não poder deixar de ser conhecido pelo impugnante quando afirma desconhecer o mesmo facto.
2º Para evitar a aplicação errada da cominação, no caso concreto do processo de inventário, prevê a lei a obrigatoriedade da apresentação de prova com a impugnação e a faculdade de oficiosamente o julgador determinar essa prova. Artigo 31º
3º A Srª Notária não o fez e a cominação "escolhida" foi a errada já que o facto é pessoal e não pode deixar de ser do conhecimento da impugnante. 574º nº 3 do C.P.C.
4º Ao mesmo tempo, e dada a não confissão por parte do cabeça-de-casal - 35° n° 3 do regime jurídico, os interessados deveriam ter sido notificados para se pronunciar, o que não ocorreu, violando a norma legal.
5° Relativamente às verbas 2 e 3, também eliminadas, a interessada não requereu a sua eliminação; A Srª Notária extrapolou e foi para além do requerido.
6º Na verba 2 foi requerido que se junta-se extracto e na verba 3 requereu-se fosse informada a que conta -em nome pessoal- se referia.
7º No caso da verba 2 já foi entregue o extracto e na verba 3, conta bancária da reclamante, foi requerido, nos termos do artigo 27º do regime, que a mesma reclamante fosse notificada para fornecer os elementos necessários á inclusão.
8º Tal não sucedeu, em violação clara da lei.
9º No que diz respeito à nova verba, 10, acrescentada no despacho na sequência da reclamação, duas consequências: A admissão da verba e o valor da mesma.
10º Quanto à admissão, face ao silêncio do cabeça-de-casal, a cominação de admissão por acordo não tem, aqui, aplicação: O cabeça-de-casal não é no processo de inventário o réu noutra acção. O cabeça-de-casal está para além de interessado e, por isso, a cominação é inaplicável.
11º Por isso o regime especial do inventário, para além da imposição de junção de prova com a reclamação, obriga a notificação dos restantes interessados - 35º, nº 3 - no caso do silêncio do cabeça-de-casal e compromete o Sr. Notário com as diligências probatórias determinadas oficiosamente - 31º, nº 1 e 2.
12º Quanto ao valor, sujeito a decisão do julgador, por maior razão, pressupõe o cumprimento da obrigação de notificação dos interessados, conforme previsto no artigo 35º, o que não foi feito. É um formalismo legal que acautela a justiça na partilha.
13º Quanto ao requerido pelo cabeça-de-casal, alteração de uma verba e adição de três verbas, a omissão de pronúncia é violadora da lei. As reclamações à relação de bens podem ser apresentadas até á Conferencia Preparatória - 32º, nº 5 - e a Srª Notária logo que recebido requerimento de adição ou reclamação da relação de bens deve notificar os restantes interessados - 31º - o que não aconteceu.
14º Foi marcada conferência preparatória sem que tivessem sido resolvidas as questões suscitadas susceptíveis de influir na partilha, em violação clara do artigo 47º do regime jurídico.
15º Elaborou a partilha em flagrante violação do decidido na conferencia preliminar, eliminando verbas do activo e do passivo que foram reconhecidas pelos interessados porque se recusou a reclamar das Instituições bancárias a informação sobre o montante exacto em causa face a ausência de resposta e/ou resposta errada de uma delas.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, revogada a decisão da Srª Notária na parte em que decide eliminar as verbas 1, 2 e 3 da relação de bens e acrescentar uma nova verba á mesma relação e, em consequência, declarado nulo tudo o processado após; Se assim não se entender, deve ser revogada a decisão de marcação da conferencia preparatória sem que todas as questões susceptíveis de influir na partilha sejam resolvidas e, em consequência, declarado nulo tudo o processado após; Se assim não se entender, deve ser revogado o despacho de 08/08/2017 por violar o decidido na conferencia preparatória de 17/01/2017 e, em consequência, declarado nulo tudo o processado após.»
Não consta (do expediente remetido) que tenha sido apresentada resposta aos recursos.
O Mmo. Juiz a quo fixou à acção o valor processual de €352.780,00, correspondente ao activo constante do mapa da partilha, admitiu os recursos e mandou subir os autos a esta Relação.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida em primeiro lugar qual é o tribunal competente em razão da hierarquia para conhecer das impugnações judiciais que os interessados ao longo do processo apresentaram de decisões proferidas pela Notária, conhecendo dessas impugnações apenas no caso de se julgar competente em razão da hierarquia.

III. Os factos:
Os factos que relevam para a decisão a proferir são os que constam do relatório que antecede (já que nenhuns outros elementos constam do processo remetido a esta Relação).

IV. O mérito do recurso:
A insólita tramitação do processo, bem elucidativa, aliás, do mérito da configuração processual vigente do processo de inventário e da (falta de) segurança dos interessados sobre os termos processuais, deixa à vista que antes de entrar na apreciação do recurso de apelação da sentença judicial homologatória do mapa de partilha, cabe decidir uma questão prévia.
Trata-se de saber se as decisões do Notário proferidas ao longo do processo sobre as questões levantadas pelos interessados sobre a relação de bens, mais propriamente sobre quais são os bens comuns a partilhar, como devem eles ser relacionados e qual o seu valor para efeitos do mapa de partilha, são passíveis de serem impugnadas judicialmente e, na afirmativa, qual o regime dessa impugnação e quem é competente para conhecer dessa impugnação.
Esta questão ajuda a responder a uma perplexidade que os autos revelam: o juiz a quo entende que para homologar o mapa de partilha não tem de apreciar nenhuma daquelas questões e pode proferir a respectiva sentença quaisquer que sejam os vícios das decisões proferidas ao longo do processo e da sua influência no conteúdo da partilha (convertendo a sua sentença numa mera chancela), e entende, em consequência, que a Relação deve conhecer das questões suscitadas pelos interessados numa espécie de recurso per saltum para a Relação, em que caberá a esta conhecer de recursos não de decisões judiciais mas de decisões do Notário, sem que previamente a 1.ª instância sobre elas se haja pronunciado.
Mesmo na sua actual versão, o processo de inventário decide conflitos de direitos entre os interessados e conforma juridicamente esses direitos, operando uma modificação nas respectivas esfera jurídica. Por conseguinte, continua a ser um processo de natureza jurisdicional, um processo que decide, regula e conforma direitos materiais num exercício de soberania próprio dos tribunais e dos órgãos jurisdicionais.
Do ponto de vista teórico pode discutir-se até que ponto no actual regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 23/2003, de 5 de Março (doravante RJPI), a atribuição de competências ao notário para decidir questões compreendidas nos diversos momentos em que se decompõe a partilha retira ao processo de inventário (total ou parcialmente) a natureza de processo judicial e de processo subordinado à reserva de competência jurisdicional dos tribunais.
Cremos, no entanto, que, na prática, na prática essa discussão é estéril porquanto é o próprio RJPI a consagrar que o processo de inventário termina com uma sentença judicial e que a sentença de homologação da partilha é da competência directa e exclusiva do juiz.
Tal demonstra que não obstante a intenção de desjudicialização do processo de inventário, este continua a ser, ao menos em parte, um processo jurisdicional, cuja decisão final é da competência jurisdicional do tribunal, ainda que no ínterim haja actos que são dirigidos e praticados pelo notário, ao qual cabe, inclusivamente, competência para decidir questões interlocutórias prévias à sentença homologatória da partilha.
Se é invulgar haver entidades não jurisdicionais a exercer poderes de decisão em processos judiciais[1], já seria, queremos crer, incompreensível que o juiz exercesse competências e proferisse decisões jurisdicionais fora do âmbito de processos com essa natureza.
Vejamos algumas das características do actual RJPI que nos permitem compreender não só o seu objectivo como os seus trâmites[2].
O regime aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, prosseguiu e incrementou o propósito de desjudicialização parcial do processo de inventário iniciado pela Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, procedendo, por comparação com esta lei, à clarificação e reforço do papel do órgão não jurisdicional decisor - o notário - na tramitação dos actos e termos do processo.
A finalidade do processo continuou a ser a partilha do acervo hereditário ou o relacionamento dos bens que o integram (inventário arrolamento), assim como a partilha do património comum do casal.
Ao notário foi atribuída competência para a condução e decisão do processo de inventário, apesar do que este não perdeu totalmente a sua natureza judicial. Com efeito, o sistema instituído é um sistema compósito, na medida em que, apesar de ter convertido o notário no titular principal do processo, continua a reservar aos tribunais a prática de determinados actos, tanto em primeira instância como em via de recurso.
A competência dos cartórios notariais e dos tribunais em matéria de inventário encontra-se estabelecida no artigo 3.º do RJPI.
Nos termos do n.º 1 do artigo 3.º, compete «aos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão efectuar o processamento dos actos e termos do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra». Nos termos do n.º 4 da norma cabe ao notário «dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios judiciais comuns».
Por sua vez, nos termos do n.º 7 do artigo 3.º do RJPI compete ao tribunal da comarca do cartório notarial onde o processo foi apresentado, «praticar os actos que», de acordo com tal regime, «sejam da competência do juiz».
Quanto à entidade encarregue da tramitação do processo de inventário, o RJPI assenta na repartição material de competência entre os cartórios notariais e os tribunais, caracterizada pela atribuição «ao notário [d]a competência (regra) para a prática, em geral, de todos os actos e termos do processo de inventário» e pela especificação dos «actos (excepções à regra)» reservados «à competência do Tribunal» (cf. Eduardo Sousa Paiva/ Helena Cabrita, in Manual do processo de inventário: à luz do novo regime, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 19).
Conforme notado ainda na doutrina, a atribuição de competência-regra ao cartório notarial para a tramitação do processo de inventário assenta no facto de o notário - órgão próprio da função notarial - exercer as suas funções em nome próprio e sob sua responsabilidade, com respeito pelos princípios da legalidade, autonomia, imparcialidade, exclusividade e livre escolha (cf. artigo 10.º do Estatuto do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 26/2004 de 4 de Fevereiro) (cf. Carla Câmara/ Carlos Castelo Branco/ João Correia/ Sérgio Castanheira, Regime Jurídico do Processo de Inventário – Anotado, 2ª Ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 35).
Quanto à competência dos notários, de salientar que lhes foi atribuída não apenas uma competência residual - traduzida na faculdade de «dirigir todas as diligências do processo de inventário e da habilitação de uma pessoa como sucessora por morte de outra» (cf. artigo 3.º, n.º 4, do RJPI) -, como ainda um conjunto de competências específicas (cf. o elenco esboçado por Carla Câmara/Carlos Castelo Branco/João Correia/Sérgio Castanheira, in loc. cit., págs 37-38).
Desde logo, o notário tem competência para decidir todos os incidentes do inventário (artigo 14.º do RJPI), e as demais questões incidentais que possam colocar-se - por exemplo, a arguição de nulidade de citações e/ou notificações, cuja realização é levada a cabo com observância das formalidades previstas no Código de Processo Civil (artigo 6.º do RJPI).
Nos incidentes do processo do inventário, ao notário cumpre promover a realização das diligências probatórias requeridas pelas partes (artigo 14.º, n.º 1, do RJPI), designadamente a inquirição das testemunhas que tiverem sido arroladas (artigo 15.º, n.ºs 2 a 4, do RJPI), e, finda a instrução que deva ter lugar, estabelecer as questões relevantes para a decisão do incidente (o que não passa de uma tentativa naïve de esconder que lhe cabe julgar os factos provados e não provados) que, em princípio, lhe compete proferir (artigo 15.º, n.º 6, do RJPI).
Não será assim, apenas, se na pendência do inventário forem suscitadas questões que pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto e de direito, não devam ser decididas no processo de inventário. Nesses casos, o notário encontra-se legalmente vinculado a determinar a suspensão da tramitação do processo e a remeter as partes para os meios judiciais comuns até que ocorra decisão definitiva, identificando para o efeito as questões controvertidas e justificando fundamentadamente a sua complexidade (artigo 16.º, n.º 2, do RJPI).
Para além de oficiosamente decretável, a remessa das partes para os meios judiciais com fundamento na natureza ou complexidade das questões a decidir pode ter lugar a requerimento de qualquer interessado (cf. n.º 3 do artigo 16.º) e, no caso de o notário indeferir o pedido de remessa, dessa decisão cabe recurso para o tribunal competente (n.º 4), o qual «sobe imediatamente e tem efeito suspensivo» (cf. artigo 16.º, n.º 5).
Assim, caso seja deduzida oposição ao inventário, impugnada a legitimidade dos interessados citados ou a competência do cabeça de casal e/ou invocadas quaisquer excepções dilatórias (artigo 30.º, n.º 1, alíneas a) a d), do RJPI), o notário realizará as diligências probatórias tidas por necessárias - o que inclui não apenas as diligências requeridas pelas partes, como ainda aquelas que lhe é lícito oficiosamente determinar -, decidindo, em seguida, a questão suscitada no incidente (cf. artigo 31.º, n.º 3, do RJPI).
No caso de a oposição ao inventário incluir a impugnação do valor indicado pelo cabeça-de-casal para cada um dos bens constantes da relação apresentada, proceder-se-á à respectiva avaliação, que será realizada por um único perito, a nomear pelo notário, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Civil quanto à prova pericial (artigo 33.º, n.º 2, do RJPI).
Quando seja deduzida reclamação contra a relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal, é também ao notário que compete decidir da mesma, depois de ouvido o cabeça-de-casal e, caso este não confesse a existência dos bens cuja falta foi invocada, os demais interessados com legitimidade para se pronunciarem (cf. artigo 35.°, n.º 3, do RJPI).
Também neste caso, quando a complexidade da matéria de facto ou de direito tornar inconveniente a decisão incidental da reclamação, o notário está obrigado a abster-se de decidir e a remeter os interessados para os meios judiciais comuns (artigo 36.º, n.º 1, do RJPI), mantendo, todavia, a faculdade de, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes (n.º 3).
O juiz dispõe, por sua vez, de uma dupla competência no processo de inventário: por um lado, competência própria; por outro, competência de decisor em sede de recurso.
No exercício da competência própria, ao juiz cível territorialmente competente cabe proferir, nos termos do n.º 1 do artigo 66.º do RJPI, a «decisão homologatória da partilha constante do mapa e das operações de sorteio», decisão da qual cabe recurso de apelação para o Tribunal da Relação, nos termos do Código de Processo Civil (cf. n.º 3). Entre os actos da competência própria do juiz especificamente compreendidos na tramitação própria do processo de inventário, deve referir-se ainda a designação do cabeça-de-casal no caso de todas as pessoas referidas no artigo 2080.º do Código Civil se escusarem ou serem removidas (artigo 2083.° do Código Civil), bem como a decisão homologatória do acordo dos interessados que ponha termo ao processo de inventário na conferência, nos termos do disposto nos artigos 48.º, n.º 7, e 66.º, n.º 1, do RJPI.
A par destes actos, outros haverá que por se projectarem para lá dos interesses privados em conflito, só por um tribunal poderão ser praticados, pelo que o processo deverá ser remetido ao juiz para, ainda que por via incidental, proferir decisão no âmbito do processo de inventário (neste sentido, quanto ao levantamento do sigilo bancário ou dispensa de confidencialidade de certos dados a apresentar como meio de prova, cf. Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, Manual do processo…, cit., pág. 20, embora haja que anotar que tal referência não obsta a que a competência em razão da hierarquia para conhecimento desse incidente deva ser acatada).
Tal como tem competência para praticar determinados actos do processo de inventário, o juiz tem ainda competência para sindicar as decisões proferidas pelo notário, sempre que delas couber recurso para o Tribunal.
O RJPI menciona expressamente que são impugnáveis perante o juiz a decisão do notário que indeferir o pedido de remessa das partes para os meios judiciais comuns (artigo 16.º, n.º 4), bem como o despacho determinativo da forma da partilha (artigo 57.º, n.º 4) sempre que as partes não tiverem sido remetidas para os meios comuns - se o tiverem sido, é ao juiz que caberá, a título próprio, proferir o despacho determinativo da forma da partilha (artigo 57.º, n.º 3).
Para além das decisões expressamente referidas, vêm sendo assinaladas outras decisões que são susceptíveis de serem impugnadas perante o juiz de comarca, segundo o entendimento de que o elenco dos actos judicialmente impugnáveis, extraível do RJIP, não só não é taxativo, como é susceptível de ser complementado através da consideração de outros preceitos legais, provenientes de fonte diversa.
Para o efeito alude-se à interpretação extensiva ou à aplicação analógica de certas das normas contidas naquele regime - é o caso das decisões do notário que julguem procedentes excepções que ponham fim ao inventário, como sucede com a ilegitimidade, litispendência, caso julgado, entre outras (neste sentido, cf. Eduardo Sousa Paiva/ Helena Cabrita, loc. cit., pág. 20) -, ou invoca-se a consideração de preceitos oriundos de diplomas diversos.
Na situação analisada pelo já referido Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 843/2017, por exemplo, o tribunal judicial considerou passível de recurso a decisão proferida pelo notário no âmbito do incidente de impugnação do valor atribuído pelo cabeça-de-casal aos bens imóveis a partilhar no processo de inventário. No Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 28/2006 o recurso tinha por objecto a decisão do Notário de suspender o processo de inventário até ao pagamento dos honorários notariais e despesas, recurso que foi dirigido à 1.ª instância e por esta julgado, decisão da qual houve depois recurso para a Relação de Guimarães.
Já na situação tratada no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.06.2017, proc. n.º 109/17.1YRCBR, in www.dgsi.pt, o recurso foi interposto (directamente para a Relação) da decisão do Notário sobre a reclamação da relação de bens. Na situação abordada no Acórdão da Relação de Évora de 05.04.2016, proc. n.º 38/16.6YREVR, in www.dgsi.pt, o recurso foi interposto (ninguém sabia muito bem para onde) da decisão de não produção de um meio de prova para instrução de um incidente do processo. E na situação examinada no Acórdão desta Relação de 26.04.2018, proc. n.º 9995/17.4T8VNG-A.P1, in www.dgsi.pt, a decisão do Notário impugnada judicialmente é relativa ao incidente do seu próprio impedimento. Não faltam pois exemplos de decisões do notário que foram impugnadas judicialmente e reapreciadas pelos tribunais, não obstante não serem situações em que o RJPI alude expressamente à possibilidade de recurso.
O conjunto de competências a que se fez referência leva a concluir que, não obstante a verdadeira desjudicialização do processo de inventário realizada através da transferência para os notários de uma parte substancial da tramitação do processo, o legislador continuou a confiar aos tribunais a resolução de todas as questões de maior complexidade fáctica e/ou jurídica suscitadas no respectivo âmbito, assim como manteve sob reserva de jurisdição a prática dos actos directamente conformadores da posição jurídica das partes, como seja a decisão homologatória do acordo dos interessados que ponha termo ao processo e, em particular, a decisão homologatória da partilha.
Pode dizer-se que a decisão homologatória da partilha é uma decisão da competência própria do juiz, que consubstancia o ato constitutivo em que culmina toda a actividade desenvolvida no âmbito do processo que, até esse momento, correu termos perante o notário, através do qual se atribui aos interessados a titularidade exclusiva dos direitos sobre os bens incluídos no acervo, hereditário ou conjugal, que passaram a caber-lhes, conformando, dessa forma, a respectiva esfera jurídica.
Embora a decisão homologatória da partilha traduza também o momento em que o juiz verifica a conformidade dos actos praticados durante a fase notarial, bem como a legalidade e a regularidade do processo, a amplitude do controlo judicial efectivamente implicado em tal decisão, além de não resultar claramente da lei, está longe de ser inequívoca.
A par dos que entendem que, apesar de não caber ao juiz o poder oficioso de introduzir as alterações ou modificações que entenda convenientes no mapa de partilha (ao contrário do que resultava do artigo 60.º da Lei n.º 29/2009), nenhum obstáculo se levanta a que enuncie os «actos que, em sede notarial, dev[a]m ser praticados» e/ou supra «as irregularidades que (…) detecte, inclusive em questões incidentais e decisões interlocutórias até então proferidas, que se tenham reflectido nas operações de partilha» (cf. Carla Câmara/ Carlos Castelo Branco/ João Correia/ Sérgio Castanheira, Regime Jurídico do…, cit., pp. 338 ss; em igual sentido, Eduardo Sousa Paiva/ Helena Cabrita, Manual do processo…, cit., p. 195), há também quem veja aqui um controlo meramente formal de legalidade, sem possibilidade de uma sindicância efectiva sobre a validade dos actos pretéritos praticados pelo notário (neste sentido, cf. Filipe César Vilarinho Marques, “A homologação da partilha”, Julgar, n.º 24, Coimbra, 2014, p. 155 e ss.).».
Na nossa opinião é possível ir mesmo mais longe.
Se o Notário profere decisões sobre conflitos de interesses e direitos dos particulares num processo que preserva ainda em parte a sua natureza jurisdicional, as decisões do Notário são, em regra, recorríveis. Desde que o valor processual do processo de inventário o permita e a decisão proferida supere o valor da sucumbência, em princípio, todas as decisões do Notário são recorríveis.
À imagem do que sucederia se as decisões fossem proferidas por um juiz num processo de inventário tramitado exclusivamente sobre a sua orientação e jurisdição, verificado o requisito do valor e da sucumbência, apenas não serão recorríveis, por aplicação analógica do disposto no artigo 630.º do Código de Processo Civil, as decisões do Notário proferidas no uso legal de um poder discricionário ou que sejam de mero expediente (artigo 82.º do RJPI).
A regra importada do Código de Processo Civil é, portanto, a recorribilidade, não a irrecorribilidade. Para que assim não sucedesse era necessário que o RJPI contivesse não algumas normas dispersas a dispor sobre o recurso de certas decisões, como se verifica, mas ao invés, uma norma expressa a prescrever que só eram passíveis de recurso as decisões do Notário expressamente previstas nesse diploma, isto é, a prescrever que em todas as restantes situações não era admissível recurso.
Essa disposição legal suscitaria óbvias reservas sobre a constitucionalidade da solução por violação do direito de acesso à Justiça e aos Tribunais e dos princípios da proporcionalidade e adequação inerentes ao Estado de Direito. Também por isso tal norma não existe. E não existindo, no âmbito do processo de inventário não se mostra afastada ou invertida a regra da recorribilidade.
Afinal de contas, o RJPI também só se refere ao recurso de apelação da decisão do juiz de 1.ª instância que homologue o mapa de partilha e não obstante ninguém questionará que as restantes decisões que ele venha a proferir ao longo do processo de inventário são impugnáveis perante a Relação … nos termos gerais.
A impugnação das decisões do Notário não constitui propriamente um recurso, na medida em que este é um mecanismo processual especificamente previsto no Código de Processo Civil para a impugnação das decisões judiciais perante instâncias judiciais de grau hierárquico superior. Trata-se, mais rigorosamente, de uma impugnação judicial de decisões não judiciais mas sujeitas ao controle jurisdicional.
Por esse motivo, deve entender-se que o paradigma dessa impugnação é o modelo dos artigos 57.º, n.º 4, do RJPI, que regula a impugnação do despacho do Notário determinativo da forma da partilha, e 16.º, n.os 4 e 5, que regula a impugnação do despacho de indeferimento do pedido de remessa das partes para os meios judiciais, o qual deve ser aplicado extensivamente a todas as impugnações judiciais de decisões do Notário no âmbito do processo de inventário[3].
Questão diferente consiste em saber qual o tribunal competente para conhecer da impugnação.
A resposta que vem dada no processo pela Notária e pelo Juiz de Comarca, com alegado apoio no artigo 76.º, n.º 2, do RJPI, consiste em considerar que como só está prevista a impugnação para a Comarca das decisões previstas nos artigos 57.º, n.º 4, e 16.º, n.º 4, desse regime, as demais decisões são decisões interlocutórias e a sua impugnação deve ser feita no recurso da decisão de partilha, pelo que sendo a sentença de partilha proferida pelo Juiz de Comarca o recurso das decisões interlocutórias é interposto para o Tribunal da Relação por ser o competente para conhecer do recurso da sentença de partilha (do Juiz de Comarca).
Com todo o devido respeito, discordamos desta interpretação, a qual, a nosso ver, faz uma leitura literal do artigo 76.º do RJPI que esquece a diferença entre impugnação judicial das decisões do Notário e os recursos das decisões judiciais do Juiz proferidas ao longo do processo e, sobretudo, olvida que entre os Tribunais existem graus de competência alicerçados na hierarquia.
Segundo o artigo 67.º do Código de Processo Civil, compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos.
Conforme o artigo 68.º do mesmo diploma, as Relações conhecem dos recursos e das causas que por lei sejam da sua competência e particularmente dos recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1.ª instância.
Por sua vez o artigo 69.º do Código de Processo Civil estabelece que o Supremo Tribunal de Justiça conhece dos recursos e das causas que por lei sejam da sua competência e especificamente dos recursos interpostos de decisões proferidas pelas Relações e, nos casos especialmente previstos na lei, pelos tribunais de 1.ª instância.
Correspondentemente o artigo 42.º da lei da organização do sistema judiciário aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, estabelece que os tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões, e, em regra, o Supremo Tribunal de Justiça conhece, em recurso, das causas cujo valor exceda a alçada dos tribunais da Relação e estes das causas cujo valor exceda a alçada dos tribunais judiciais de primeira instância.
Estas normas desenham uma hierarquia entre os tribunais, que tem na sua base a 1.ª instância e na cúpula o Supremo Tribunal de Justiça. Cada um destes tribunais conhece das acções e dos recursos compreendidos especificadamente na sua competência própria. As acções ou recursos que não estejam expressamente incluídos nas normas que definem a competência própria de cada um dos tribunais são decididas primeiro pela 1.ª instância, das decisões desta caberá recurso para a Relação e das decisões desta caberá recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, excepto nas situações particulares em que a lei preveja de forma expressa a possibilidade de recurso per saltum.
O artigo 76.º do RJPI, tal como, aliás, o artigo 644.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, ao preverem que as decisões interlocutórias sejam impugnadas no recurso da decisão final, não são normas sobre a competência para conhecer dos recursos, são normas que regem somente sobre o momento da interposição do recurso.
Não é por existir a previsão do n.º 3 do artigo 644.º do Código de Processo Civil que passam a poder ser impugnadas perante o Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, no recurso de revista, as decisões interlocutórias proferidas durante a tramitação processual … pela 1.ª instância; as quais têm de ser impugnadas perante a Relação, ou seja, no recurso de apelação. Porque haveria de ser diferente no processo de inventário, para mais quando as decisões não são sequer proferidas por um juiz mas antes por um órgão não jurisdicional?!
Não existe norma legal que atribua à Relação competência para conhecer de decisões interlocutórias proferidas por órgão não jurisdicional situado fora e aquém da estrutura jurisdicional hierárquica. Por esse motivo, por aplicação do disposto nos artigos 67.º e 68.º do Código de Processo Civil, a Relação não tem essa competência e, se não a tem, a competência é da 1.ª instância.
O artigo 76.º do RJPI rege, assim, sobre o recurso de apelação da sentença judicial de homologação do mapa de partilha. Nesse recurso poderão ser impugnadas as decisões interlocutórias proferidas pelo órgão jurisdicional recorrido, isto é, proferidas pelo juiz de 1.ª instância no decurso do processo de inventário, sejam elas as decisões proferidas em sede de competência própria ou já no exercício da competência de órgão de recurso. O n.º 2 do artigo 76.º do RJPI não se refere às decisões do Notário (por definição todas elas interlocutórias porque a decisão final do processo é sempre do juiz, ao qual compete, sempre, a homologação do mapa de partilha), porque estas são impugnáveis para o tribunal de comarca[4], apenas cabendo recurso para a Relação das decisões do Juiz de 1.ª instância.
Nesse sentido, pronunciaram-se já os Acórdãos a que antes se fez referência: Acórdãos da Relação de Coimbra de 09.05.2017 e 20.06.2017, da Relação de Évora de 05.04.2016 e da Relação do Porto de 26.04.2018, todos in www.dgsi.pt.
Neste último, relatado pela aqui 1.ª Adjunta, pode ler-se o que aqui se acompanha:
«O facto de no Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei 23/2013 de 5 de Março, não existir qualquer norma expressa que regulamente esta questão da impugnação em geral das decisões proferidas pelo notário, quando necessário, e em particular daquelas que são emitidas em incidente de incumprimento e suspeição, apenas nos pode levar a reconhecer que estamos perante uma lacuna da lei, que importa integrar de acordo com os princípios estabelecidos no art.º 10.º do C.Civil, ou seja, em primeiro lugar com recurso à avaliação das normas e princípios que resultam deste mesmo diploma. Parece-nos claro que tal competência não pode deixar de estar atribuída aos tribunais de 1ª instância. Senão vejamos.
Em primeiro lugar, considera-se que essa é a solução que melhor dá acolhimento e se integra na opção do legislador em contemplar a intervenção obrigatória, de dois intervenientes - notário e juiz de 1ª instância - no processo de inventário, ainda que em diferente medida, e a que corresponde à melhor articulação entre as diferentes competências de cada um, na tramitação daquele processo.
Em segundo lugar, porque essa é desde logo a solução prevista no novo RJPI para outras situações, em que é ao juiz de 1ª instância que é conferida a competência não só para a prática de actos jurisdicionais no âmbito do processo de inventário, como também para apreciar as decisões do notário em sede de recurso, como acontece na previsão do art.º 16.º n.º 4 já mencionado, ou para conhecer a impugnação da decisão deste sobre a forma à partilha, contemplada no art.º 57.º n.º 4 do RJPI.
Em terceiro lugar, importa considerar ainda a propósito da competência dos tribunais em razão da hierarquia, o disposto nos art.º 67.º e 68.º do C.P.C. Quanto aos tribunais de 1ª instância estabelece o art.º 67.º: “Compete aos tribunais de 1.ª instância o conhecimento dos recursos das decisões dos notários, dos conservadores do registo e de outros que, nos termos da lei, para eles devam ser interpostos”, enquanto o art.º 68.º relativamente às Relações, lhes confere competência para os recursos interpostos de decisões proferidas pelos tribunais de 1ª instância, para além daqueles que por lei sejam da sua competência.
Finalmente, mais se refere, que a situação do legislador contemplar a possibilidade de recurso das decisões dos notários e conservadores para o tribunal de 1ª instância não é aliás nova, sendo disso exemplo a previsão do art.º 3.º da Lei nº 82/2001, de 03 de Agosto, que dispõe sobre a remessa do processo para o tribunal competente para decidir o recurso da decisão do conservador; ou o art.º 10.º do Decreto-lei nº 272/2001, de 13 de Outubro, que estabelece que “das decisões do conservador cabe recurso para o tribunal judicial da 1ª instância competente em razão da matéria no âmbito da circunscrição a que pertence a conservatória.”
Não nos esquecemos do art.º 76.º do RJPI que se refere ao regime de recursos. Contudo, este artigo contempla o regime de recursos precisamente das decisões que venham a ser proferidas pelo juiz de 1ª instância no âmbito do processo de inventário, não se reportando ao recurso de qualquer decisão proferida pelo notário. O mesmo alude à aplicação do regime de recursos previsto no C.P.C. com referência ao recurso da decisão homologatória da partilha, decisão esta que cabe ao juiz, nos termos do art.º 66.º do RJPI e não ao notário. Como já se viu, no âmbito do processo de inventário o juiz também é chamado a decidir em primeira instância.
Só das decisões do tribunal de 1ª instância é que cabe recurso para o Tribunal da Relação; as decisões do notário não são decisões proferidas no âmbito da função jurisdicional pelo que delas não pode haver recurso directo para a Relação.
[…] … podemos retirar a seguinte conclusão: das decisões do notário proferidas em sede de processo de inventário, passíveis de serem impugnadas, é competente para conhecer da impugnação o juiz do tribunal de 1ª instância territorialmente competente, podendo recorrer-se, nos casos que não são expressamente previstos, ao procedimento análogo contemplado no art.º 57.º n.º 4 do RJPI que confere aos interessados a possibilidade de impugnarem judicialmente a decisão do notário sobre a forma à partilha. Das decisões proferidas pelo juiz de 1ª instância cabe recurso para a Relação, nos termos gerais, de acordo com o regime de recursos previsto no art.º 76 do RJPI e C.P.C.».
Também no Acórdão da Relação de Évora se pode ler o seguinte que depois é repetido no Acórdão da Relação de Coimbra de 20.06.2017:
«[No RJPI]… nada nos permite concluir que se tenha instituído um regime legal de recursos directos das decisões do Notário para o tribunal da Relação e não, primeiro, para o tribunal da 1ª instância e, daí, depois, para a Relação, dentro das regras normais do Código de Processo Civil. Claro que o legislador poderia ter introduzido esse sistema do recurso per saltum, optando então por libertar, quase por completo, os tribunais de comarca dos processos de inventário (passando o encargo para os tribunais da Relação). Mas se fosse essa a sua intenção, deveria tê-lo formulado expressamente. Ao invés, nem de forma implícita (e, muito menos, de maneira expressa) se extrai daquele citado diploma qualquer revolução nos recursos dos senhores Conservadores e Notários – que são interpostos, como é sabido, usualmente, em primeira linha, para os tribunais de comarca, conforme aos respectivos Códigos de Registo.»
Qualquer destas decisões cita ainda em apoio da sua interpretação a seguinte doutrina:
Para Eduardo Sousa Paiva e Helena Cabrita, in Manual do Processo de Inventário à Luz do Novo Regime, Coimbra Editora, 2013, pág. 230, «o regime de recursos previsto no RJPI e no CPC (…) apenas se aplica a decisões tomadas pelo tribunal e não pelo notário, uma vez que as decisões tomadas por este último apenas poderão ser objecto de impugnação para o Tribunal de 1.ª instância territorialmente competente nos casos especialmente previstos na lei ou nas situações que temos vindo a apontar
Para Augusto Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, 6.ª edição, Almedina, 2015, págs. 83 e 84: «…a despeito da natureza jurídica dos actos decisórios do Notário – deve ser aqui aplicado o regime subsidiário dos recursos civis (ex vi do cit. Art. 82.º do RJPI) vale dizer que a discordância da decisão notarial interlocutória deve manifestar-se através dum requerimento de impugnação para o Juiz dirigido ao Notário (CPCiv., art. 637.º-1).»
Para Tomé Ramião, in O Novo Regime do Processo de Inventário, Quid Juris, 2014, a págs. 194 e 195, o artigo 76.º, n.º 2, do RJPI refere-se às decisões judiciais uma vez que do artigo 644.º, n.º 2, do Código de Processo Civil decorre que o recurso de apelação tem por objecto uma decisão proferida por um tribunal de 1.ª instância, razão pela qual «não é admissível uma espécie de recurso “per saltum” para o Tribunal da Relação de uma decisão proferida pelo notário. O recurso para este tribunal superior tem necessariamente de ter por objecto uma decisão jurisdicional
Concluamos agora: i) as decisões proferidas pelo Notário ao longo do processo são impugnáveis judicialmente e a competência para conhecer dessa impugnação é do tribunal de 1.ª instância, não apenas nas situações previstas nos artigos 57.º e 16.º do RJPI mas em todas as outras em que nos termos gerais do direito processual civil a decisão é passível de recurso; ii) o regime do artigo 76.º do RJPI refere-se somente aos recursos de apelação das decisões do tribunal de 1.ª instância, estabelecendo que as decisões judiciais interlocutórias só podem ser impugnadas no recurso de apelação da sentença judicial homologatória da partilha; iii) as impugnações das decisões do notário seguem o regime dos aspectos em que o artigo 57.º e 16.º do RJPI coincidem e, quanto aos aspectos aí não previstos de forma coincidente, aplica-se subsidiariamente o regime do recurso de apelação.
Aplicando essa solução ao caso em apreço, apura-se que o tribunal de 1.ª instância era e é o competente em razão da hierarquia para conhecer das impugnações judiciais das decisões da Notária proferidas ao longo do processo e impugnadas pelos interessados.
Não tendo as impugnações sido recebidas nos devidos termos pela Notária e tendo o processo sido concluso ao juiz do tribunal de 1.ª instância apenas para prolação da sentença homologatória da partilha, esse tribunal devia conhecer então das impugnações judiciais apresentadas.
Não o tendo feito e tendo proferido sentença homologatória da partilha, o Mmo. Juiz a quo incorreu em nulidade por excesso de pronúncia ao conhecer de uma questão de que (nesse contexto) ainda não podia conhecer.
Por conseguinte, afirmando-se a competência em razão da hierarquia do tribunal de 1.ª instância para conhecer das impugnações judiciais deduzidas ao longo dos autos pelos interessados, a sentença homologatória da partilha é anulada. Fica ainda prejudicado o conhecimento das restantes questões.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em declarar a incompetência desta Relação, em razão da hierarquia, para conhecer das impugnações judiciais das decisões da Notária apresentadas pelos interessados ao longo do processo, ordenando a baixa dos autos à 1.ª instância para o efeito. Mais anulam a sentença homologatória da partilha e os actos subsequentes.
Custas dos recursos pelos recorrentes.

Porto, 27 de Junho de 2018.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto431)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
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[1] Pouco frequente, mas não impossível e, tão-pouco, inconstitucional, uma vez que o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar que não existe no texto constitucional, «qualquer estrita correspondência entre separação de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, exprimindo até a referência à interdependência dos órgãos do Estado constante do artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, uma lógica de colaboração e articulação funcional» (cf. v.g. Acórdãos do TC n.º 395/2012 e 510/2016, in www.tribunal constitucional.pt). A propósito da concessão de poderes sancionatórios a autoridades independentes, refere Paula Costa e Silva, in As autoridades independentes. Alguns aspectos da regulação económica numa perspectiva jurídica, Revista O Direito, Ano 138.º. III, págs. 558-559, que «a prática do exercício da função judicial por órgãos não judiciais», com preterição da competência judiciária, constitui uma tendência «relativamente consolidada entre nós», que tem vindo a impor-se de forma «paulatinamente acentuada» (Apud Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 843/2017, loc. cit).
[2] Na descrição que se segue seguiremos com grande aproximação a descrição que se encontra no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 843/2017, de 13.12.2017, in www.tribunalconstitucional.pt.
[3] Estes dois preceitos apresentam semelhanças no tocante à interposição do recurso (imediata) e ao respectivo efeito (suspensivo) que serão consequentemente aplicáveis às demais impugnações. Mas apresentam também diferenças significativas no tocante ao prazo de interposição do recurso (num caso 15 no outro 30 dias) e à apresentação das alegações (num caso incluída no requerimento de interposição, no outro não), o que constitui uma lacuna e dificulta sobremaneira o estabelecimento do regime comum ou regime-regra da impugnação judicial das decisões do Notário. Deve entender-se que nas impugnações não especificadas os aspectos da impugnação que estes preceitos não definem (definem o momento da interposição do recurso e o seu efeito, não definem o mais: prazo de interposição, apresentação das alegações e modo de subida) deverão ter um regime análogo ao das disposições do Código de Processo Civil sobre o recurso de apelação (que o artigo 82.º do RJPI manda aplicar subsidiariamente ao processo de inventário).
[4] A nosso ver, conforme nota anterior, as decisões interlocutórias do Notário serão todas impugnáveis de imediato e não apenas a final, por aplicação extensiva do regime de impugnação judicial das decisões do Notário no processo de inventário dos artigos 57.º e 16.º, justificada pela natureza especial desta impugnação por comparação com os recursos judiciais.