Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3791/09.0YYPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: ALUGUER OPERACIONAL
CLÁUSULA PENAL
ABUSO DE DIREITO
MÁ FÉ
Nº do Documento: RP201505043791/09.0YYPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Num contrato de aluguer de longa duração é válida a cláusula penal que, em caso de resolução contratual por parte do locador, obriga o locatário a pagar àquele uma indemnização no montante de quarenta e cinco por cento do valor total da rendas vincendas, na data em que a resolução contratual produz efeitos.
II - Para existir abuso do direito, tem que existir um direito, ou uma faculdade abusivamente exercidas, não se preenchendo a figura nos casos em que inexistem o direito ou a faculdade jurídica em causa.
III - Não obstante os recorrentes não invoquem expressamente a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, tal como a questão vem por eles colocada e tendo em conta a liberdade de qualificação jurídica de que goza o tribunal (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), deve entender-se que foi suscitada a nulidade da decisão recorrida por omissão de conhecimento da matéria do abuso do direito.
IV - A litigância de má fé é de conhecimento oficioso e pode ser suscitada em via de recurso, ainda que não haja sido invocada em primeira instância, mas o pedido indemnizatório fundado em litigância de má fé cometida no tribunal a quo carece de ser deduzido perante esse tribunal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 3791/09.0YYPRT-A.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 3791/09.0YYPRT-A.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
1. Num contrato de aluguer de longa duração é válida a cláusula penal que, em caso de resolução contratual por parte do locador, obriga o locatário a pagar àquele uma indemnização no montante de quarenta e cinco por cento do valor total da rendas vincendas, na data em que a resolução contratual produz efeitos.
2. Para existir abuso do direito, tem que existir um direito, ou uma faculdade abusivamente exercidas, não se preenchendo a figura nos casos em que inexistem o direito ou a faculdade jurídica em causa.
3. Não obstante os recorrentes não invoquem expressamente a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, tal como a questão vem por eles colocada e tendo em conta a liberdade de qualificação jurídica de que goza o tribunal (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), deve entender-se que foi suscitada a nulidade da decisão recorrida por omissão de conhecimento da matéria do abuso do direito.
4. A litigância de má fé é de conhecimento oficioso e pode ser suscitada em via de recurso, ainda que não haja sido invocada em primeira instância, mas o pedido indemnizatório fundado em litigância de má fé cometida no tribunal a quo carece de ser deduzido perante esse tribunal.
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório[1]
A 19 de Março de 2012, por apenso à execução, para pagamento de quantia certa nº 3791/09YYPRT, então pendente na 1ª secção, do 1º Juízo de Execução do Porto, B…, Lda., e C… vieram deduzir oposição à acção executiva que lhes foi movida por D… pedindo a extinção da acção executiva ou, subsidiariamente, a sua redução para valor não superior a cinco mil euros.
Fundamentam a oposição na alegação, em síntese, de que assinaram a livrança exequenda em branco, para garantia do cumprimento das obrigações que para eles resultavam da celebração de um contrato de aluguer de veículo sem condutor. Afirmam que o preenchimento da livrança, no valor de € 15.054,39, efectuado pela exequente, foi abusivo, uma vez que, no momento em que o veículo objecto de tal contrato foi entregue à exequente e em que veio a ser preenchido o título, encontravam-se pagos todos os valores devidos, atinentes àquele contrato, com excepção da cláusula penal. Por outro lado, pretendem que o valor desta cláusula (€ 12.106,43) é exagerado, impondo-se reduzi-lo a um máximo de € 5.000,00, atendendo a que o veículo foi voluntariamente restituído em boas condições e foram pagos todos os montantes devidos até à data da restituição.
A exequente contestou, invocando a nulidade da sua notificação para os termos da oposição, em virtude de ter sido efectuada pela Sra. Mandatária dos opoentes e, à cautela, impugnou alguns dos factos articulados pelos opoentes, pugnando pela total improcedência da oposição.
Os opoentes foram notificados para ratificação do processado e em resposta vieram oferecer procuração forense outorgando poderes para ratificação do processado.
Ordenou-se a notificação da contestação aos opoentes para, querendo, se pronunciarem sobre a nulidade processual arguida pela exequente.
A 18 de Fevereiro de 2013, E…, Lda. veio informar que a exequente D… se fundiu por incorporação na requerente, pedindo, em consequência, que seja admitida a substituir a sociedade extinta por fusão por incorporação, pretensão que foi deferida por despacho proferido a 25 de Fevereiro de 2013.
Designou-se uma infrutífera tentativa de conciliação, após o que foi indeferida a nulidade processual arguida pela exequente, procedeu-se à condensação da factualidade considerada relevante para a boa decisão da causa, discriminando-se os factos assentes dos controvertidos, estes últimos a integrar a base instrutória e fixou-se o valor da causa no montante de € 15.123,68.
As partes ofereceram as suas provas.
Realizou-se a audiência final, numa sessão, já na Instância Central da Comarca do Porto, na 1ª Secção de Execução, J2, após o que foram proferidas respostas à matéria vertida na base instrutória, logo seguidas de sentença que julgou a oposição parcialmente procedente, determinando-se o prosseguimento da acção executiva para pagamento do capital de € 13.026,75, acrescido de juros de mora, à taxa legal, a contar de 25/1/2009, sobre € 920,32, e a contar de 23/4/2009, sobre € 12.106,43.
A 17 de Novembro de 2014, inconformados com a sentença, os opoentes interpuseram recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
1. A livrança foi preenchida com o valor de € 15.054,39, incluindo uma indemnização fixada contratualmente que se entende não ser devida.
2. O contrato de aluguer foi resolvido em Fevereiro de 2009 e nessa data apenas estava em dívida (há dia) uma única renda no valor de € 920,32, valor que a livrança contempla.
3. Dias antes da resolução, foram pagas 3 rendas no valor de 920,32 cada. O que sucedeu pós interpelação para pagamento sob pena de resolução do contrato.
4. A Apelada pagou essas rendas, confiando que o contrato se mantinha, e ainda assim de forma insidiosa, a Locadora decorridos 10 dias após vencimento da renda seguinte, resolveu o contrato, o que se integra verdadeiro abuso de direito.
5. Abuso esse que deve ser declarado nos termos do disposto no artigo 334º do CC que a decisão recorrida ignorou.
6. Acresce que a sentença recorrida considerou válida e não excessiva a indemnização no valor de € 12.106,43 que a Locadora pretende cobrar, decisão que o Tribunal ad quem não poderá manter.
7. Com efeito, manter tal decisão seria acolher um comportamento abusivo da Apelada, uma vez que o veículo em causa estava praticamente novo (apenas tinha 16 meses), e valia, no mínimo € 45.000,00, o que significaria que a Locadora Apelada tivesse maior lucro com o incumprimento do contrato.
8. Por outro lado, manter a decisão recorrida seria proteger um comportamento que se revela abusivo, porquanto a Locadora resolveu o contrato de forma arbitrária e até de má fé, dias depois da Locatária ter regularizado o seu débito e ainda pretende cobrar uma indemnização excessiva e desproporcionada por danos que no caso inexistem.
9. E não se diga que a Apelada tem direito a esta quantia em virtude da desvalorização do veículo durante os 16 meses de vigência do contrato, pois que, o risco da desvalorização neste tipo de contratos corre por conta do locatário que paga rendas elevadíssimas que já o incluem, como sucedeu no caso dos autos.
10. Deve assim considerar-se a cláusula 24º do contrato dos autos relativamente proibida e como tal nula, nos termos do disposto nos artigos 12º e 19º do DL 446/85 de 25 de Outubro e artigos 280º e 294º do CC, normas que a sentença recorrida violou, por não aplicação ao caso dos autos.
11. Acresce ainda que, ficou demonstrado nos autos um preenchimento abusivo da livrança relativamente a outras quantias que lhe foram apostas, reduzindo-se o seu valor em conformidade mas esquecendo o Tribunal a quo de apreciar a má fé da Apelada que é evidente e como tal deve ser condenada como litigante de má fé, em multa e indemnização condigna fixar com equidade pelo Tribunal.
12. Em suma, deve o Tribunal considerar que no caso concreto de um ALD de um veículo automóvel praticamente novo que é voluntariamente entregue à Locadora é manifestamente desproporcionado consagrar-se como válida uma indemnização equivalente a 45% do valor das rendas vincendas, sob pena de se reconhecer como válido um enriquecimento ilegítimo.
13. Sem prescindir, a Locadora ao resolver o contrato, depois de receber 3 rendas que estavam em atraso e sem interpelar novamente a Locatária, abusou de um direito, o que não pode ser considerado legítimo pelo Tribunal, face o disposto no artigo 334º do CC.
14. É que A conduta da Locadora no caso dos autos configura desde logo um verdadeiro venire contra factum proprium, na medida em que deu a entender à Locatária que não iria resolver o contrato se ela pagasse, como pagou, as 3 rendas que estavam em atraso.
15. Ao resolver o contrato e exigindo a indemnização fixada nesse mesmo contrato, pretende exercer um direito que se encontra em total contradição com a sua conduta anterior, em que fundadamente a outra parte confiou, o que configura abuso de direito.
16. Ou, dito de outra forma, manifesta-se o abuso de direito por parte da Locadora pela existência de "uma conduta anterior" que, "objectivamente interpretada face à lei, bons costumes e boa fé, legitima a convicção de que tal direito não será exercido.
17. Pelo que, não sofre dúvidas que a conduta da Locadora, anteriormente descrita, em conjugação com um preenchimento abusivo da livrança, faz com que o presente direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da Justiça e ofende clamorosamente o sentimento jurídico.
18. O acto da Autora traduz-se num verdadeiro acto emulativo - aquele que é utilizado com o propósito único de prejudicar outrém como bem ensina VAZ SERRA, "Abuso do Direito", BMJ, 85, pág. 253.
19. A sentença recorrida para além do mais violou e colocou em causa o princípio da tutela da confiança.
A recorrida contra-alegou extensamente pugnando pela total improcedência do recurso.
Com o acordo dos Excelentíssimos Juízes-adjuntos, atendendo à circunstância do objecto do recurso apenas versar sobre matéria de direito que tem sido amplamente discutida jurisprudencialmente, dispensaram-se os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos recorrentes nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redacção aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
2.1 Da nulidade da cláusula penal prevista no nº 5, da cláusula 21ª, do contrato de “aluguer operacional de veículos sem condutor”[2];
2.2 Do exercício abusivo do direito de resolução por parte da recorrida;
2.3 Da litigância de má fé da recorrida ao preencher a livrança exequenda incluindo nela, indevidamente, valores a título de outros débitos em atraso e de recondicionamento.
3. Fundamentos de facto exarados na sentença recorrida não impugnados pelos recorrentes, expurgados de referências probatórias, inexistindo fundamento legal para a sua alteração oficiosa
3.1
A exequente é portadora da livrança[3] que contém, no local destinado à identificação do beneficiário, a identificação da exequente (alíneas A e B dos factos assentes).
3.2
No local destinado à identificação do subscritor, consta a identificação da executada B…, Lda., e, no local destinado à assinatura do subscritor, a assinatura do representante legal da mesma executada (alínea C dos factos assentes).
3.3
A mesma livrança contém ainda as seguintes datas de emissão e de vencimento e o seguinte valor: 24/10/2007; 23/4/2009; € 15.054,39 (alínea D dos factos assentes).
3.4
No verso da referida livrança aparece a assinatura do executado C…, sob a menção “bom por aval ao subscritor” (alínea E dos factos assentes).
3.5
A executada sociedade celebrou com a exequente, em 24/10/2007, o contrato intitulado “aluguer operacional de veículos sem condutor” (alínea F dos factos assentes).
3.6
Pelo referido contrato, a exequente declarou dar de aluguer à executada sociedade, e esta declarou receber em aluguer, o veículo automóvel, de marca Mercedes-Benz, com a matrícula ..-EN-.., pelo prazo de 48 meses, mediante o pagamento mensal de € 847,52 de aluguer, € 56,34 de manutenção, € 24,13 de gestão de impostos e € 5,00 de selagem (alíneas G, H e I dos factos assentes).
3.7
Aquele contrato veio a ser declarado resolvido pela exequente, com fundamento em incumprimento por parte da executada sociedade (alínea J dos factos assentes).
3.8
A exequente é ainda portadora do documento intitulado “pacto de preenchimento de livrança”, datado de 24/10/2007 e assinado pelo representante legal da executada sociedade e pelo executado C… (alínea K dos factos assentes).
3.9
Mediante tal documento, a executada sociedade declarou ter subscrito uma livrança, em cumprimento do contrato de aluguer operacional de veículos que outorgou com a exequente, podendo esta preencher a livrança, em caso de incumprimento do pontual pagamento das quantias efectivamente vencidas e não pagas à data do seu preenchimento (alínea L dos factos assentes).
3.10
No mesmo documento, o executado C… declarou, na qualidade de avalista, conhecer e aceitar o teor do contrato de aluguer operacional de veículos de que a livrança avalizada constitui garantia (alínea M dos factos assentes).
3.11
No momento em que foram apostas na livrança exequenda as assinaturas que dela agora constam, a mesma encontrava-se em branco (alínea N dos factos assentes).
3.12
Foi a exequente quem, posteriormente, apôs na livrança os restantes elementos que ela agora contém, designadamente, os referidos em D) (alínea O dos factos assentes).
3.13
A exequente remeteu à executada sociedade a carta datada de 13 de Abril de 2008 e mediante a qual, declarou à executada sociedade que, em consequência da resolução do contrato mencionado em F), preencheu a livrança referida em A), pelo montante de € 15.054,39, constituído pelas seguintes parcelas:
• rendas e outras retribuições vencidas e não pagas …… € 920,32
• outros débitos em atraso …………………€ 1.179,78
• indemnização ……………………………………….. € 12.106,43
• recondicionamento ………………………… .. € 546,48
• juros de mora ……… € 301,38 (alíneas P e Q dos factos assentes).
3.14
A executada sociedade restituiu à exequente o veículo mencionado em G), em 2 de Março de 2009 (alínea R dos factos assentes).
3.15
A declaração de resolução referida em J) foi efectuada pela exequente e recebida pela executada sociedade em Fevereiro de 2009 (resposta ao artigo 2º da Base Instrutória).
3.16
Apesar de ter aposto na carta referida em P) a data de 13/4/2008, a exequente pretendia datá-la de 13/4/2009, tendo a menção ao ano de 2008 resultado de lapso de escrita, pois a carta foi efectivamente enviada em 13/4/2009 (respostas aos artigos 3º a 5º da Base Instrutória).
3.17
O valor de € 920,32, mencionado em Q), reporta-se à manutenção, gestão de impostos e aluguer do veículo ..-EN-.. relativo ao período de 25/1/2009 a 24/2/2009 (resposta ao artigo 11º da Base Instrutória).
4. Fundamentos de direito
4.1 Da nulidade da cláusula penal prevista no nº 5, da cláusula 21ª, do contrato de “aluguer operacional de veículos sem condutor”
Os recorrentes suscitam nas conclusões das suas alegações a nulidade da cláusula penal prevista no nº 5, da cláusula 21º do contrato de “aluguer operacional de veículos sem condutor”, em que a opoente sociedade outorgou na qualidade de locatária. Para tanto, fundam-se no disposto nos artigos 12º, 19º, alínea c) e 23º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais aprovado pelo decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro e nos artigos 280º e 294º, estes do Código Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
Antes de mais, cumpre salientar que os recorrentes não curaram de, no momento próprio, alegar factos que permitam concluir que a cláusula cuja validade ora questionam constitui uma cláusula contratual geral, o que liminarmente obsta a que esta questão possa proceder. De facto, não basta para tanto que do contrato em causa conste a menção de que as cláusulas constituem condições gerais, sendo necessário que sejam vertidos nos articulados os factos bastantes para firmar a conclusão de que se trata de cláusulas contratuais gerais, pois que o contrato é um mero meio de prova de factualidade que tenha sido oportunamente alegada nos articulados, ou que se configure como matéria concretizadora ou complementar de factualidade essencial vertida nos articulados e sobre a mesma tenha incidido o contraditório.
Não obstante este óbice inicial que se acaba de referir e prevenindo entendimentos díspares da mesma questão, prossigamos na sua análise.
De acordo com o disposto no artigo 12º do decreto-lei nº 446/85, as cláusulas contratuais gerais proibidas por disposição deste diploma são nulas nos termos neles previstos.
“São proibidas, consoante o quadro negocial padronizado, designadamente, as cláusulas contratuais gerais que […] consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir” (artigo 19º, alínea c), do decreto-lei nº 446/85).
As nulidades previstas no decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro são invocáveis nos termos gerais (artigo 24º do citado decreto-lei), pelo que, são de conhecimento oficioso, em consonância com o disposto no artigo 286º do Código Civil.
Daí que, não obstante esta nulidade substantiva não haja sido suscitada perante o tribunal a quo e de se tratar de uma questão nova que apenas perante o tribunal de recurso foi suscitada, tratando-se de vício de conhecimento oficioso, deve este tribunal conhecer dele, apesar de nessa parte o objecto do recurso não se traduzir, como em regra deve, numa reapreciação de questão conhecida na decisão recorrida.
A cláusula cuja nulidade é suscitada pela recorrente tem o seguinte conteúdo:
- “A resolução do contrato de aluguer operacional de veículo sem condutor celebrado pela locadora com os fundamentos previstos nas alíneas a), d) e e), constitui o Locatário na obrigação de pagar à Locadora, a título de cláusula penal, indemnização que se fixa em quantia correspondente a 45 % (quarenta e cinco por cento) do valor dos alugueres vincendos até ao termo do contrato de aluguer operacional de veículo sem condutor.
Para que se possa concluir pela nulidade da cláusula que se acaba de reproduzir, necessário se torna uma comparação entre o valor que resulta da aplicação da cláusula e o dano que se pretende ressarcir, no caso, se bem o analisamos, os lucros cessantes derivados da cessação prematura do contrato[4].
O montante que resulta da aplicação da cláusula penal cuja validade se discute é de € 12.106,43, sendo os lucros cessantes da locadora no montante de € 26.896,51 ([€ 700,43 x 32 meses = € 22.413,76] x 20% de IVA =€ 4.482,75; € 4.482,75 + € 22.413,76 = € 26.896,51).
O valor da cláusula penal cuja nulidade é suscitada pelos recorrentes é inferior a metade do dano sofrido pela locadora com a cessação do contrato, pelo que não se nos afigura que exista a desproporcionalidade invocada pelos recorrentes.
Por outro lado, não resulta da factualidade provada, nem isso foi oportunamente alegado, quais as vantagens que a locadora pode ainda obter com a restituição antecipada do veículo, seja o seu valor de venda, seja mediante a celebração de um novo contrato de locação, razão pela qual não existe base factual que permita minorar ou compensar os lucros cessantes da locadora e assim relevar uma eventual desproporcionalidade da aludida cláusula penal e muito menos resulta da factualidade provada, nem isso foi tão-pouco oportunamente alegado, que a recorrida não sofra com a cessação antecipada quaisquer danos.
O valor do veículo que os recorrentes indicam nas suas alegações não foi alegado nos articulados e por isso não está provado, não passando por isso de uma mera especulação dos recorrentes.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado pelos recorrentes para abonar a sua posição respeita a uma cláusula penal com um alcance muitíssimo mais gravoso para o locatário do que a cláusula objecto deste autos e, desde logo, porque se cumula com uma caução de valor igual a 15% do total das rendas e corresponde a 50 % das rendas vincendas, razão pela qual, quando se haja cumprido mais de oitenta e cinco por cento da duração total do contrato, a indemnização a suportar pelo locatário excederia o valor total que a locadora poderia receber se o contrato fosse cumprido[5], situação que com a cláusula objecto destes autos nunca se verifica.
A terminar, refira-se que este Tribunal da Relação, em acórdão de 08 de Julho de 2004, proferido no processo nº 0451945[6], já se pronunciou pela validade de cláusula penal de valor correspondente a cinquenta por cento das rendas vincendas no momento da resolução contratual, em contrato de aluguer de longa duração, tendo também o Tribunal da Relação de Lisboa, em contrato similar, no acórdão proferido a 26 de Junho de 2008, no processo nº 3513/2008-6, considerado válida a cláusula penal correspondente a trinta por cento das rendas vincendas no momento da resolução contratual[7].
Assim, por tudo quanto precede, conclui-se pela improcedência desta questão suscitada pelos recorrentes.
4.2 Do exercício abusivo do direito de resolução por parte da recorrida
Os recorrentes suscitam o exercício abusivo do direito de resolução por parte da recorrida, fundando-se, para tanto, nos seguintes tópicos argumentativos:
- o contrato foi resolvido dias depois de terem sido pagas três rendas no valor de € 920,32, cada uma, o que sucedeu após interpelação para pagamento, sob pena de resolução do contrato, tendo a recorrente confiado que com o pagamento dessas rendas o contrato se mantinha, confiança que foi frustrada porquanto dez dias depois a recorrida resolveu o contrato;
- a locadora resolveu o contrato, depois de receber três rendas que estavam em atraso e sem interpelar novamente a locatária, o que constitui uma resolução ilegítima, à luz do artigo 334º do Código Civil.
Cumpre apreciar e decidir.
A suscitação da figura do abuso do direito pelos recorrentes constitui claramente uma questão nova, já que o tribunal a quo nunca foi confrontado com a mesma. Porém, trata-se de questão de conhecimento oficioso[8], razão pela qual a sua novidade não constitui óbice ao seu conhecimento em via de recurso, ainda que só nesta sede seja suscitada pela primeira vez.
No entanto, da circunstância da questão ora suscitada pelos recorrentes ser de conhecimento oficioso, não se extrai forçosamente que os autos contenham ou devam conter a factualidade necessária ao seu conhecimento, porquanto, no que respeita a construção do objecto do litígio, a sua sorte está, no essencial, dependente da observância oportuna do ónus de alegação factual; dito de outro modo, a circunstância de uma questão ser de conhecimento oficioso, não significa que sejam de averiguação oficiosa os factos integradores dessa questão.
Ora, lendo e relendo a factualidade provada, verifica-se que da mesma não consta a matéria em que os recorrentes pretendem fundar a confiança que pretendem ter sido violada pelo alegado inopinado exercício do direito de resolução contratual por banda da recorrida. Trata-se de matéria de facto que não foi alegada nos articulados, não obstante se tratar de matéria essencial ao eventual preenchimento da figura do abuso do direito a que os recorrentes agora se arrimam e, por isso, não estavam sequer reunidas as condições legais para que fosse submetida à prova.
Por outro lado, quando os recorrentes referem que a resolução contratual foi ilegítima, porque abusiva à luz do artigo 334º do Código Civil, em virtude da recorrida ter omitido nova interpelação dos recorrentes após o recebimento de três rendas, afigura-se-nos que suscitam uma questão nova, mas de conhecimento não oficioso, não obstante a invocação do instituto do abuso do direito.
De facto, para existir abuso do direito, tem que existir um direito, ou uma faculdade abusivamente exercidas, não se preenchendo a figura nos casos em que inexiste o direito ou a faculdade jurídica em causa.
Ora, se as coisas efectivamente se passaram como alegam os recorrentes, à luz do nº 3, da cláusula 21ª do contrato, estando em causa um incumprimento temporário, o direito de resolução só nasceria após a efectivação de uma interpelação admonitória e o subsequente decurso do prazo de oito dias. Neste quadro, a serem verdadeiras as alegações factuais ora produzidas pelos recorrentes, a recorrida não tinha o direito de resolver o contrato, o que, como é bom de ver, obsta liminarmente a que se possa verificar um qualquer abuso do direito. Contudo, esta questão não foi suscitada perante o tribunal a quo e, pelo contrário, como bem se destaca na decisão recorrida, os recorrentes não questionaram nos seus articulados a validade e eficácia do direito de resolução, pelo que não podem ora questionar o nascimento do direito potestativo de resolução contratual, em via de recurso, por se tratar de questão nova que não é de conhecimento oficioso.
Vejamos agora se resulta da factualidade provada, a prática pela recorrida de um abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium, que se tem entendido depender para ser aplicado da criação de uma situação geradora de confiança na contraparte, da ocorrência de um investimento irreversível de confiança por esta e, finalmente, da boa fé da contraparte que confiou[9].
A matéria de facto provada e não impugnada pelos recorrentes não dá conta do alegado pagamento de três rendas imediatamente antes do exercício do direito de resolução pela recorrida, nem muito menos que nessa conjuntura os recorrentes tenham firmado a convicção de que o contrato não iria ser resolvido. Refira-se que nem se vê que uma tal convicção se pudesse coadunar com as exigências da boa fé contratual quando o exercício do direito de resolução se fundará num incumprimento posterior ao alegado pagamento das três rendas.
Ao invés, os recorrentes é que podem estar incursos em exercício abusivo do direito ao recurso, ao invocarem a inexistência do direito de resolução por parte da recorrida, por ter directamente resolvido o contrato, sem efectuar previamente uma interpelação admonitória, quando aceitaram ao menos parte dos efeitos dessa declaração de resolução, procedendo à entrega do veículo locado. Porventura pretendem os recorrentes, seriamente, a “ressurreição” do vínculo contratual, volvidos mais de seis anos sobre a data em que entregaram o veículo objecto da locação?
Pelo exposto, é notório que não estão reunidos os pressupostos fácticos necessários para que o abuso do direito invocado pelos recorrentes possa vingar, improcedendo também esta questão.
4.3 Da litigância de má fé da recorrida ao preencher a livrança exequenda incluindo nela, indevidamente, valores a título de outros débitos em atraso e de recondicionamento
Os recorrentes suscitam nas conclusões de recurso a litigância de má fé da recorrida ao ter inserido na livrança valores indevidos, devendo por isso ser sancionada em multa e indemnização.
Cumpre apreciar e decidir.
“Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão” (artigo 542º, nº 2, do Código de Processo Civil).
O instituto da litigância de má fé visa que a conduta dos litigantes se afira por padrões de probidade, verdade, cooperação e lealdade.
A concretização das situações de litigância de má fé exige alguma flexibilidade por parte do intérprete, o qual deverá estar atento a que está em causa o exercício do direito fundamental de acesso ao direito (artigo 20º da Constituição da República Portuguesa), não podendo aquele instituto traduzir-se numa restrição injustificada e desproporcionada daquele direito fundamental.
Importa não olvidar a natureza polémica e argumentativa do direito, o carácter aberto, incompleto e autopoiético do sistema jurídico, a omnipresente ambiguidade dos textos legais e contratuais e as contingências probatórias quer na vertente da sua produção, quer na vertente da valoração da prova produzida.
Na verdade, com o passar dos tempos, tem-se verificado, com alguma frequência, que teses jurídicas inicialmente peregrinas vieram a tornar-se teses dominantes.
Assim, um pouco à semelhança da liberdade de expressão numa sociedade democrática, o direito fundamental de acesso ao direito só deve ser penalizado no seu exercício quando de forma segura se puder concluir que o seu exercício é desconforme com a sua teleologia subjacente, traduzindo-se na violação dos deveres de probidade, verdade e cooperação e numa utilização meramente chicaneira dos meios processuais, com o objectivo de entorpecer a realização da justiça.
Por isso, o tipo subjectivo da litigância de má fé apenas se preenche em caso de dolo ou culpa grave.
Uma vez mais, os recorrentes vêm suscitar no recurso uma questão que não colocaram ao tribunal a quo, pelo que de novo invocam uma questão nova.
Porém, novamente, trata-se de uma questão de conhecimento oficioso[9], ao menos na vertente sancionatória, que não na indemnizatória, que se configura como a dedução de um pedido novo e que, por isso, cremos seguir as regras gerais, não podendo ser apreciada ex novo em via de recurso, sem que oportunamente tenha sido deduzido o pertinente pedido[11].
Mesmo para quem entende, como sustenta a Sra. Professora Paula Costa e Silva[12], que não sendo conhecida a litigância de má fé perante o tribunal a quo e não sendo suscitada a omissão de pronúncia por parte desse tribunal, ocorre preclusão do conhecimento dessa questão pelo tribunal ad quem, afigura-se-nos que no caso dos autos estão reunidas as condições legais para o conhecimento pretendido pelos recorrentes.
Na verdade, não obstante os recorrentes não invoquem expressamente a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, tal como a questão vem por eles colocada (recorde-se o conteúdo da décima primeira conclusão) e tendo em conta a liberdade de qualificação jurídica de que goza o tribunal (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil), deve entender-se que foi suscitada a nulidade da decisão recorrida por omissão de conhecimento da matéria do abuso do direito.
Apreciemos então se os autos nos facultam elementos fácticos que permitam qualificar a lide da recorrida como de má fé.
Dúvidas não subsistem que a recorrida incluiu na livrança exequenda valores que não provou ter direito a exigir dos recorrentes[13]. Porém, uma coisa é a não demonstração de um direito que se afirma em juízo e outra bem diferente é a dedução infundada de uma pretensão, quer porque se sabe que não se tem esse direito, quer porque não se pode ignorar essa falta de fundamento.
A improcedência de uma certa pretensão não significa que o autor da mesma esteja irremediavelmente sujeito à condenação por litigância de má fé.
Ora, no caso dos autos, apenas sucedeu que a recorrida não logrou demonstrar que os recorrentes estavam obrigados ao pagamento das importâncias que lhes foram imputadas a título de outros débitos em atraso e de recondicionamento e nada mais do que isso. Aliás, refira-se que da análise da prova documental junta aos autos, resulta que as despesas de recondicionamento que a recorrida atribuiu ao custo com a emissão de novos documentos, em virtude dos recorrentes não os terem entregues quando procederam à entrega do veículo, tinham como verdadeira justificação o custo da substituição de dois pneus que estariam danificados quando ocorreu a restituição do bem locado (veja-se a prova documental junta a folhas 116 e 117).
A factualidade provada não permite concluir que a recorrente alterou dolosamente ou com negligência grave os factos no que respeita os invocados débitos em atraso e os custos de recondicionamento, apenas não os tendo logrado provar, razão pela qual não estão reunidas as condições legais para que a sua conduta possa ser qualificada como de litigância de má fé.
Pelo exposto, improcede totalmente o recurso de apelação interposto por B…, Lda. e C…, devendo ser confirmada a decisão recorrida proferida a 15 de Outubro de 2014.
As custas do recurso são da responsabilidade dos recorrentes, porquanto decaíram integralmente nas suas pretensões recursórias (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto por B…, Lda., e C… e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida a 15 de Outubro de 2014.
Custas a cargo dos recorrentes, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso.
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O presente acórdão compõe-se de quinze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 04 de Maio de 2015
Carlos Gil
Carlos Querido
Soares de Oliveira
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[1] Segue-se, em parte, o relatório da decisão recorrida.
[2] Não é objecto de controvérsia entre as partes a qualificação jurídica do contrato, mas face aos dados fácticos disponíveis tratar-se-á de um “renting” ou aluguer operacional (sobre esta figura veja-se Contratos Comerciais, Almedina 2012, M. Januário da Costa Gomes, página 366).
[3] Em rigor, em termos fácticos, deveria dizer-se que a exequente é portadora de um escrito onde figura a palavra “livrança”. No entanto, porque não é controvertida entre as partes a natureza jurídica do título exequendo, admite-se a afirmação directa dessa natureza jurídica.
[4] A fazer fé no texto do contrato junto aos autos, não foi convencionada entre as partes a vinculação de uma ou de ambas as partes à transmissão da titularidade jurídica do bem locado, o que certamente se reflectirá no valor da renda ajustada.
[5] Trata-se do acórdão de 20 de Janeiro de 2010, proferido no processo nº 3062/05.0TMSNT.L1.S1, acessível na base de dados da DGSI.
[6] Publicado também na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXIX, tomo III/2004, páginas 204 a 207.
[7] Os dois acórdãos citados estão acessíveis na base de dados da DGSI. A Relação do Porto, em acórdão proferido a 08 de Maio de 2012, no processo nº 1236/10.1YYPRT-A.P1, sem se debruçar expressamente sobre a problemática da validade da cláusula penal indemnizatória similar à que é objecto deste autos, mas no montante de 50 % das rendas vincendas, num contrato de natureza idêntica ao dos autos, em caso de cessação do contrato por incumprimento do locatáorio, implicitamente considerou válida essa cláusula. A Relação de Lisboa, em acórdão de 03 de Maio de 2012, proferido no processo nº 80/10.0YXLSB.L1-1, acessível no site da DGSI chega ao ponto de considerar válida a cláusula penal que em caso de resolução por incumprimento do locatário obriga este ao pagamento de todos os alugueres até ao fim do contrato.
[8] Sobre esta questão, pacífica, por todos, veja-se Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora 2014, página786, anotação VI.
[9] Para um desenvolvimento destes pressupostos veja-se, por todos, Tutela da Confiança e “Venire Contra Factum Proprium”, João Baptista Machado in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Iuridica 1991, páginas 415 a 419.
[10] Sobre esta questão veja-se, A Litigância de Má fé, Coimbra Editora 2008, Paula Costa e Silva, páginas 361 a 363.
[11] Veja-se a obra citada na nota que antecede, páginas 363 e 364. Além disso, o nº 1, do artigo 542º, do Código de Processo Civil, é inequívoco em fazer depender a atribuição de indemnização por litigância de má fé da dedução do pertinente pedido.
[12] Veja-se a obra que temos vindo a citar, páginas 607 a 612.
[13] Nesta fase processual e tendo em conta os problemas suscitados a este tribunal, não há que suscitar a questão do ónus da prova no caso de documentos assinados em branco (artigo 378º do Código Civil).