Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1027/13.8TYVNG-K.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR JUDICIAL
REMUNERAÇÃO VARIÁVEL
Nº do Documento: RP202304181027/13.8TYVNG-K.P1
Data do Acordão: 04/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO PARCIALMENTE PROCEDENTE; DECISÃO ALTERADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I. Só após completada a liquidação da massa insolvente ficará disponível e adquirida a matéria necessária para decidir sobre a remuneração variável do administrador da insolvência (nº 4 do art. 23º do EAJ) – a fixação de tal parte da remuneração antes de terminada a liquidação no processo de insolvência constitui indevida e injustificada antecipação de conhecimento.
II. Diversamente, aquando dos rateios parciais impõe-se o cálculo da majoração da remuneração variável, pois que nele se utilizam elementos factuais então disponíveis (cálculo da majoração da remuneração variável do administrador da insolvência nos rateios parciais que emerge cristalino do significado precípuo da parte final do nº 7 do art. 23º do EAJ).
III. Em processo de insolvência em que haja lugar à liquidação da massa insolvente, o valor da majoração da remuneração variável do administrador resulta da aplicação do factor previsto na lei (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas da aplicação directa do factor de 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 1027/13.8TYVNG-K.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Rui Moreira
João Diogo Rodrigues
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
RELATÓRIO

Apelante: AA (administrador da insolvência).
Juízo de comércio de Vila Nova de Gaia (lugar de provimento de Juiz 3) - T. J. da Comarca do Porto.
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Nos autos de insolvência de A..., SA (decretada após recusada a homologação do plano especial de revitalização que requereu), apesentou em 14/07/2022 o Sr. Administrador da Insolvência mapa de rateio parcial (art. 178º do CIRE), nele consignando:
- que das receitas brutas de 625.782,42€ reservou 20% para o pagamento das despesas da massa,
- ter sido já efectuado um primeiro rateio parcial para pagamento aos trabalhadores no montante de 248.270,43€, sendo de 251.992,31€ o montante do presente rateio parcial,
- que nos termos do nº 7 do art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial, tem a receber, a título de majoração da remuneração variável, o montante de 25.023,14€ (5% do valor rateado, incluindo o 1º rateio parcial), acrescido de IVA à taxa de 23%, a ser pago previamente ao pagamento do presente rateio.
O Ministério Público apresentou-se a reclamar da proposta de rateio (identificando o processo a que dirigia o articulado por número diverso do que corresponde ao do presente processo) argumentando e requerendo:
Foi calculado o resultado da liquidação da massa insolvente em € 40.746,30.
Face ao disposto no nº 6 do art.º 23º do EAJ, entendo que o resultado da liquidação é de € 39.266,30 (apuro da massa deduzido do montante do pagamento das dívidas da massa com exceção da remuneração.
Assim a remuneração variável a que se refere o nº 4 da norma acima citada é de € 2.414,87 (€ 39.266,30x5%x23%).
Já quanto ao valor a considerar para majoração, nos termos do nº 7 da citada norma legal, há que atender ao “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.
Os créditos reclamados e admitidos são no valor de € 3.820.687,70, pelo que o grau de satisfação é de 13,09% (€ 500.262,74 x 100 : € 3.820.687,70).
Assim, o valor a considerar para efeitos de majoração da remuneração variável é de € 65.484,39 (€ 500.262,74 x 13,09%), sendo o valor da remuneração variável majorada de € 3.274,22, acrescida de IVA à taxa de 23%, ou seja, € 753,07, o que totaliza € 4.027,29.
Pelo exposto, o valor a ratear é de 251.992,31 - € 4.027,29, ou seja, de € 247.965,02.
Pelo exposto, p. se digne admitir a presente reclamação, e considerar que o valor da remuneração variável majorada referente às quantias do 1º e 2º rateio parciais é de € 4.027,29, remanescendo para 2º rateio pelos credores a quantia de € 247.965,02.
Pronunciou-se o Sr. Administrador, alegando a existência de erro do Ministério Público na referência à remuneração prevista no nº 4 do art. 23º do EAJ, já que ainda não foram apresentadas contas, não podendo ser calculado o resultado da liquidação, que todavia será superior a 40.746,30€, defendendo ainda o valor por sai calculado para majoração da remuneração, nos termos do nº 7 do art. 23º do EAJ e assim, que deve ser mantido o valor ‘da majoração da remuneração variável no montante de €25.023,14 (5% do valor rateado, incluindo o 1º rateio parcial) acrescido de IVA à taxa de 23%, a ser pago previamente ao pagamento deste rateio’.
Cumprido o contraditório, foi proferida decisão com o seguinte teor:
(…)
Relativamente ao pendente assunto centrado na proposta de rateio elaborada pelo Exmo Administrador da Insolvência e depois de crítica digressão sobre tal segmento da causa (e sempre com o maior respeito por divergente óptica), sou a considerar que face aos elementos dos autos o resultado da liquidação da massa insolvente se cifra em € 40.746,30.
No que entendo ser o respeito do estatuído no nº 6 do art.º 23º do EAJ, sou a sufragar segundo o qual que o resultado final da liquidação ascende a € 39.266,30 (o apuro da massa deduzido do montante do pagamento das dívidas da massa com exceção da remuneração.
Destarte - e havendo por bom o entendimento propugnado pela M.Ilustre Magistrada do M.P., o qual ,”data venia” ,aqui trago à colação - a remuneração variável a que se refere o nº 4 da norma em crise se situa no valor de € 2.414,87 (€ 39.266,30x5%x23%).
No que, por seu turno, tange ao “quantum” a considerar para majoração, nos termos do nº 7 da citada norma legal, será de levar em cogitação o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, sendo certo que no caso “sub judice” os créditos reclamados e admitidos ascendem a € 3.820.687,70, daí derivando que o grau de satisfação ascende a 13,09% (€ 500.262,74 x 100 : € 3.820.687,70).
Aqui chegados, acho por bem salientar que o valor a considerar (ao que colho da economia do pleito) para efeitos de majoração da remuneração variável é de € 65.484,39 (€ 500.262,74 x 13,09%), sendo o valor da remuneração variável majorada de € 3.274,22, acrescida de IVA à taxa de 23%, ou seja, € 753,07, o que totaliza € 4.027,29, daí brotando que o valor a ratear se cifra em 251.992,31 - € 4.027,29, ou seja, de € 247.965,02.
Destarte – e como silogístico corolário das esgrimidas razões de facto e de direito - a remuneração variável majorada referente às quantias do 1º e 2º rateio parciais é de € 4.027,29, remanescendo para 2º rateio pelos credores a quantia de € 247.965,02, julgando nesta decisória conformidade, ”uno acto” indeferindo tudo o que veio requerido depondo em divergente sentido.
Apela o Sr. Administrador da Insolvência, quer por entender ‘ter ocorrido erro de interpretação dos elementos constantes dos autos e excesso de pronúncia e consequentemente, nulidade da decisão’ no segmento em que fixou a remuneração variável, quer sustentando que ocorre error in judicando na parte concernente à fixação da ‘majoração da remuneração variável referente às quantias do 1º e 2º rateios parciais’, indeferindo a fixação do valor a esse título por si calculado e pretendido, terminando as suas alegações formulando as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho com a Referência 440020161 que apreciou e considerou que a remuneração variável a que se reporta o nº 4 do art. 23º do EAJ (Estatuto do Administrador Judicial - Lei nº 22/2013 de 26 de Fevereiro, na redacção que lhe foi dada pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro) se situa em € 2.414,87; e que fixando a majoração da remuneração variável a pagar ao ora recorrente, administrador judicial nomeado nestes autos de insolvência, em € 4.027,29 ( IVA incluído), referente às quantias do 1º e 2º rateios parciais - remanescendo para 2º rateio pelos credores a quantia de € 247.965,02 – indeferiu a pretensão do recorrente em ver-lhe fixada a majoração da remuneração variável no valor por si requerido de € 30.766,21( IVA incluído).
B. São duas razões de discordância:
- A Impugnação da decisão contida no Douto Despacho em crise que considerou que face aos elementos dos autos: i) - “o resultado da liquidação da massa insolvente se cifra em € 40.746,30”; ii) - “que o resultado final da liquidação ascende a € 39.266,30” e, iii) – “que a remuneração variável a que se refere o nº 4 do art. 23º do EAJ se situa no valor de € 2.414,87” - por ter ocorrido erro de interpretação dos elementos constantes dos autos e excesso de pronúncia e consequentemente, NULIDADE DO DESPACHO – cfr. art. 608º e art. 615º nº 1, al. d) do CPC.
- A impugnação da decisão contida no mesmo Despacho que, enfermando dos mesmos erro de interpretação dos elementos constantes dos autos, fixou a majoração da remuneração variável referente às quantias do 1º e 2º rateios parciais em € 4.027,29, indeferindo a fixação do valor requerido pelo Recorrente de € 30.766,21, IVA incluído – por ter ocorrido erro de cálculo por errada interpretação e aplicação do disposto no art. 23º do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ – Lei 22/2013 de 26 de Janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro).
C. No dia 14.07.2022, o ora recorrente deu entrada nos autos principais de insolvência de requerimento apresentando um segundo mapa de rateio parcial, peticionando que lhe fosse fixada a quantia de € 25.023,14 acrescida de IVA à taxa de 23%, a titulo de majoração da remuneração variável, e relativamente aos 1º e 2º rateios parciais.
D. Para o efeito, o recorrente considerou uma receita bruta de € 625.578,42 e uma previsão de despesas no valor de € 125.115,68 (20% da receita bruta).
E. Para efeito da majoração da remuneração variável – nº 7 do art. 23º do EAJ - o recorrente considerou:
- Valor do 1º Rateio € 248.270,43
- Valor do 2º Rateio € 251.992,31
________________________________
Total rateado € 500.262,74
5%
Rv – majorado € 25.013,14
IVA 23% € 5.753,02
________________________________
Total € 30.766,21
F. Os cálculos apresentados destinam-se, apenas, ao apuramento da majoração da remuneração variável, nos termos do disposto no nº 7 do art. 23º do EAJ.
G. O que foi submetido à apreciação e decisão do tribunal recorrido, foi a validação do valor apurado pelo recorrente a título de majoração da remuneração variável.
H. O tribunal recorrido, no despacho agora em crise, enveredou pela apreciação de factos que não lhe foram submetidos para apreciação e decisão.
I. Em primeiro lugar, o tribunal recorrido fez o apuramento do resultado da liquidação da massa insolvente, não lhe cabendo fazê-lo, por não estar finda a liquidação.
J. Em segundo lugar, o tribunal recorrido considerou que o resultado da liquidação da massa insolvente se cifra em € 40.746,30, o que está errado!
K. Finalmente, o Meritíssimo Juiz a quo sufragou que o resultado final da liquidação ascende a € 39.266,30 (ver parágrafo 4º do douto despacho).
L. Enfermando dos referidos erros/vícios, o Douto Despacho em crise considerou que a remuneração variável a que se refere o nº 4 da norma em crise se situa no valor de € 2.414,87 (€ 39.266,30 x 5% x 23%).”
M. O Tribunal recorrido fez o que não lhe foi pedido: quantificou o valor da retribuição variável!
N. O tribunal recorrido ao tomar conhecimento dos factos referidos em I., J., K. e L. - conheceu e tomou posição sobre factos que não foram alegados nem requeridos pelo recorrente, para além de ter feito uma errada interpretação dos elementos constantes dos autos;
O. Não cabendo ao tribunal recorrido deles conhecer - considerando a fase processual em que os autos se encontram - nem tais factos são de conhecimento oficioso pelo tribunal – cfr. art. 608º do CPC.
P. Ao conhecer e apreciar tais factos - o julgador foi além do conhecimento que lhe foi pedido pelo recorrente - não podendo o julgador considerar causa de pedir que não tenha sido invocada.
Q. Nos termos do disposto no nº 1, al. d) do art. 615º do C.P.C. é nula a sentença quando o Juiz aprecie ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, tendo ocorrido excesso de julgado e, consequentemente, a nulidade do despacho recorrido.
R. Nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
S. As regras relativas ao montante da remuneração do administrador da insolvência e à forma do seu cálculo, constam do Estatuto do Administrador Judicial, aprovado pela Lei nº 22/2013 de 26 de Fevereiro, mais precisamente do seu art. 23º, o qual foi alterado pela Lei nº 9/2022 de 11 de Janeiro e que entrou em vigor no dia 11 de Abril de 2022.
T. No caso concreto está em causa a fixação do montante da majoração da remuneração variável do administrador da insolvência, nomeado em processo de insolvência, em que ainda está a decorrer a liquidação do activo.
U. Entendeu o Douto tribunal recorrido que a majoração da remuneração variável devida ao recorrente, referente às quantias do 1º e 2º rateio parciais, é de € 4.027,29.
V. O cálculo feito pelo tribunal recorrido, conducente àquele valor, não respeita o disposto no nº 7 do art. 23º do EAJ, ancorando-se o cálculo apresentado numa incorrecta interpretação e aplicação daquela norma legal.
W. Entende o recorrente que a majoração da remuneração variável - a calcular nos termos do disposto no nº 7 do art. 23º do EAJ - corresponde a 5 / prct. do montante dos créditos satisfeitos, ou seja, à quantia de € 25.023,14 (5 /prct. de € 500.462,74) acrescida de IVA no valor de € 5.755,32, o que perfaz a quantia global de € 30.778,46, e foi esta a quantia que o recorrente submeteu à apreciação e validação do tribunal recorrido.
Y. Para determinar a majoração prevista no nº 7 do art. 23º do EAJ considerou o tribunal recorrido que, “no que tange ao “quantum” a considerar para majoração, será de levar em cogitação o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, sendo certo que no caso “subjudice” os créditos reclamados e admitidos ascendem a € 3.820.687,70, daí derivando que o grau de satisfação ascende a 13,09% (€ 500.262,74 x 100 : € 3.820.687,70).”
Z. O tribunal recorrido entendeu que o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, ascenderia a 13,78% (500.262,74 : 3.629.174,95 x 100) e que o valor da majoração com IVA incluído seria de € 4.239,58.
AA. Nada na lei suporta o entendimento defendido – no despacho de que se recorre – de que há que apurar a percentagem de créditos satisfeitos e aplicar a esta os 5 / prct. previstos na norma.
BB. De acordo com o Tribunal recorrido o grau de satisfação corresponde à percentagem dos créditos que só será possível satisfazer por confronto com o valor dos créditos totais reclamados e admitidos multiplicada tal percentagem pelo valor distribuído pelos credores e, a esse resultado, aplica-se 5 / prct.
CC. Tal interpretação não é compatível nem com o elemento literal nem com o elemento teleológico da lei.
DD. A interpretação que é feita ao nº 7 do art. 23º do EAJ pelo tribunal recorrido impede, para além do mais, a realização dos rateios parciais, obrigatórios nos termos do art. 178º do CIRE.
EE. A Lei n.º 22/2013 de 26 de Fevereiro, que estabeleceu o Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) revogando a Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, alterada pela Lei n.º 34/2009, de 14 de Julho e pelo Decreto-Lei n.º 282/2007, de 7 de Agosto (que tinha estabelecido o inicial EAJ), postulava no seu art. 23º, e no que ao presente recurso importa, que:
“1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, de acordo com o montante estabelecido em portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia.
2 - O administrador judicial provisório ou o administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado nas tabelas constantes da portaria referida no número anterior.
3 - Para efeito do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização ou em processo de insolvência que envolva a apresentação de um plano de recuperação que venha a ser aprovado, considera -se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano, conforme tabela específica constante da portaria referida no n.º 1.
4 - Para efeitos do n.º 2, considera -se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
5 - O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1.
(…) “
FF. A portaria acima referida nunca foi publicada, tendo-se mantido em uso a portaria 51/2009 de 20 de Janeiro, que continha 2 anexos: - o anexo I que continha a tabela de cálculo da remuneração variável prevista no nº 2; - e o anexo II que continha a tabela da majoração prevista no nº 5.
GG. A Lei n.º 9/2022 de 11 de Janeiro, que entrou em vigor em 11 de Abril, veio alterar a redacção do art. 23º do EAJ e estabeleceu a fórmula de cálculo da remuneração prevista no nº 3 do art. 23º, na sua redacção anterior.
HH. A redacção agora dada ao art. 23º pela Lei 9/2022, fixa a remuneração do AJ do modo seguinte:
“1 - O administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou em processo especial para acordo de pagamento ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, sendo o valor da remuneração fixa de 2000 (euros)

4 - Os administradores judiciais referidos no n.º 1 auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente, cujo valor é calculado nos termos seguintes:
a) 10 /prct. da situação líquida, calculada 30 dias após a homologação do plano de recuperação do devedor, nos termos do n.º 5;
b) 5 / prct. do resultado da liquidação da massa insolvente, nos termos do n.º 6.
5 - Para os efeitos do disposto no número anterior, em processo especial de revitalização, em processo especial para acordo de pagamento ou em processo de insolvência em que seja aprovado um plano de recuperação, considera-se resultado da recuperação o valor determinado com base no montante dos créditos a satisfazer aos credores integrados no plano.
6 - Para efeitos do n.º 4, considera -se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.
7 - O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 / prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.
…”
II. A remuneração variável, em resultado da liquidação da massa insolvente, tem duas componentes: - 5 / prct. (al. b) do nº 4 do art. 23º) calculada a partir duma primeira receita líquida da massa; - e a majoração (nº 7 do art. 23º), de 5 / prct. da receita líquida da massa deduzida da remuneração variável, ou seja, 5/prct. do valor a satisfazer aos credores.
JJ. A interpretação plasmada no despacho recorrido não tem nenhuma aderência à normal legal, actualmente, em vigor já que esta é clara: - diz que a remuneração é majorada em 5 / prct. do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, sendo o grau de satisfação, o montante dos créditos satisfeitos.
KK. A redação anterior do nº 5 do art. 23º do EAJ mandava calcular a majoração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1, ao passo que a nova redacção manda aplicar 5 / prct. ao montante dos créditos satisfeitos.
LL. Aliás, no nº 11 do art. 23º do EAJ, agora em análise, o legislador ao fixar a remuneração nas situações em que o AI cesse funções, antes do encerramento do processo, refere que esta remuneração é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data, e não em função do grau de satisfação.
MM. Dificilmente se entenderia que, na mesma norma jurídica, o legislador para se referir à mesma operação de cálculo, usasse duas expressões tão distintas: - a segunda com um sentido matemático, preciso (e é de uma operação matemática que se trata em ambos os casos); - e a primeira (que excluindo o uso em escalas ou geometria), tem um sentido genérico, vago e subjetivo.
NN. Note-se que, quando na anterior redação é explicitado o modo de cálculo da majoração - no anexo II à portaria 51/2005 – o que ali se refere é a percentagem dos créditos admitidos que foi satisfeita. OO. Sempre que o legislador quer falar dum rácio fala em proporção ou percentagem, que têm exatamente o mesmo significado numa operação matemática e é nesse domínio que nos encontramos.
PP. Daqui se podendo concluir que o legislador usa o vocábulo “grau” para dar ênfase à importância da satisfação dos credores, explicitando logo de seguida a operação matemática a realizar.
QQ. O espírito que terá presidido ao legislador ao dar a nova redacção ao art. 23º do EAJ, foi no sentido que o A.I. não só recebesse um incentivo adicional pelo montante dos créditos satisfeitos, como também que o recebesse, ainda, imediatamente antes dos próprios credores.
RR. E este comando normativo, este recebimento prioritário, apenas se aplica à majoração e não à remuneração variável.
SS. Para além do mais, o art. 178º do CIRE estabelece a obrigatoriedade de rateios parciais, verificados determinados pressupostos.
TT. Para que a majoração possa ser paga antes do pagamento aos credores, nos rateios parciais, é preciso determinar o valor da majoração, procedendo-se ao seu cálculo.
UU. Para que tal seja possível, o legislador autonomizou a majoração da remuneração variável, dizendo simplesmente, que é 5 / prct dos créditos satisfeitos.
VV. Outra interpretação, que fizesse equivaler a expressão “grau” de satisfação dos créditos reclamados e admitidos” ao “rácio entre os créditos reclamados e admitidos e o montante dos créditos satisfeitos” impediria o cumprimento daquela disposição, tornando-a letra morta, pois aquele rácio só com o rateio final pode ser calculado,
WW. Só após ser encerrada a liquidação, pagas as dívidas da massa, prestadas contas, calculadas as custas e apurada a remuneração variável, se conhece o valor a satisfazer aos credores.
XX. Ao ser inferior ao montante dos créditos reclamados e reconhecidos, o montante dos créditos satisfeitos já contém, em si, um “grau” de satisfação implícito.
YY. A decisão de que agora se recorre viola o disposto no art. 23º do EAJ (Lei 22/2013 de 26 de Janeiro, na redação que lhe foi dada pela Lei 9/2022 de 11 de Janeiro), o art. 178º do CIRE, o art. 608º e art. 615º, nº 1, al. d), ambos do CPC, violando desta forma, o principio da legalidade, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que, deferindo ao requerido, fixe o valor da majoração da remuneração variável devida ao recorrente em € 25.023,14 (5 / prct. do valor dos 1º e 2º rateios parciais) acrescido de IVA à taxa de 23%, a ser pago previamente ao pagamento deste 2º rateio, tudo em conformidade com o disposto no art. 23º do EAJ.
Respondeu o Ministério Público manifestando concordância com a invocada nulidade da decisão apelada, argumentando que a reclamação deduzida ao rateio apresentado em Julho de 2022 apenas sucedeu por ‘eventual inserção errada de número de processo’, o que constitui erro/lapso manifesto, como resulta evidente da incongruência dos valores ponderados (valores mencionados nos rateios parciais e valores constantes da reclamação apresentada, em nada coincidentes), sendo certo que o cálculo da remuneração variável, antes da remessa do processo à conta, é também prematuro, tendo a questão sido erradamente antecipada.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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Da delimitação do objecto do recurso
Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida (que constitui o ponto de partida do recurso) e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, todos do CPC), as questões suscitadas reconduzem-se a apreciar:
- a nulidade da decisão apelada e a prematuridade da apreciação e fixação do valor da remuneração variável do administrador da insolvência,
- a desconformidade da decisão apelada ao critério legalmente estabelecido para cálculo da majoração da remuneração variável do administrador da insolvência.
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FUNDAMENTAÇÃO
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Fundamentação de facto
A matéria de facto a considerar é a que resulta exposta no relatório precedente.
Fundamentação de direito
A. A fixação do valor da remuneração variável – a nulidade e a prematuridade da decisão.
Apresentado pelo Sr. Administrador da Insolvência rateio parcial (o segundo), nos termos do art. 178º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas[1]), referindo ter direito a receber, a título de majoração da remuneração variável, nos termos do nº 7 do art. 23º do EAJ (aprovado pela Lei nº 22/2013, de 26/02, com as alterações introduzidas pela Lei 17/2007, de 16/05, DL 52/2019, de 17/04, Lei 79/2021, de 24/11 e Lei 9/2022, de 11/01), o valor de 25.023,14€, acrescido de IVA à taxa de 23%, o Exmo. Juiz, secundando promoção do Ministério Público a esse propósito, debruçou-se (também) sobre a remuneração variável a atribuir ao Sr. Administrador da Insolvência, a fixar nos termos do nº 4º do art. 23º do EAJ e que, juntamente com a parte fixa (estabelecida no nº 1 do preceito) e a par da majoração prevista no nº 7 do preceito, compõe a remuneração do Administrador da Insolvência – a remuneração a que tem direito pelo exercício das suas funções, como estabelecido no art. 60º, nº 1 do CIRE.
Não se nos afigura que tal decisão se mostre inquinada (viciada) por qualquer violação do princípio do dispositivo, na vertente relativa à conformação objectiva da instância[2] (seja por condenação ultra petitutum ou por apreciação de questão que lhe não cumprisse apreciar – ao juiz cabe apreciar e decidir, no âmbito do processo da insolvência, da remuneração do administrador, como decorre dos art. 178º, nº 3 e 182º, nº 4 do CIRE), como defende o apelante (corroborado pelo Ministério Público), antes consubstanciando, verdadeiramente, uma indevida e injustificada antecipação do conhecimento de mérito (a propósito de parte da remuneração devida ao Sr. Administrador – a remuneração variável, a que alude o nº 4 do art. 23º do EAJ, calculada por referência ao resultado da liquidação da massa insolvente), pois para tal apreciação e conhecimento não está disponível nem adquirida a matéria de facto necessária.
Efectivamente, só após completada a liquidação da massa ficará disponível e adquirida a matéria necessária (a inscrever no rateio final - art. 182º do CIRE) para decidir sobre a remuneração variável do Sr. Administrador[3], impondo-se assim revogar o despacho, no segmento em questão (fixação da remuneração variável) – ponderou-se no segmento da decisão censurada um resultado da liquidação da massa insolvente que não pode ser considerado, pois que tal resultado da liquidação ainda não foi definitivamente apurado, o que significa dever anular-se a decisão à luz do art. 662º, nº 2, c) do CPC (anulação que pode/deve ser oficiosamente decretada), pois que a matéria de facto necessária será ainda adquirida pela normal tramitação da causa (com a liquidação da massa).
Impõe-se, pois, anular o despacho, na parte em que fixou a remuneração variável (art. 23º, nº 4, b) do EAJ) do Sr. Administrador da Insolvência e determinar que, prosseguindo os autos os seus normais termos, apurado o resultado final da liquidação, se proceda à fixação da remuneração variável – anulação que se não estende ao segmento que decidiu da majoração da remuneração variável, pois esta pode ser calculada sempre que haja lugar a rateio parcial: ao contrário da remuneração variável, cujos elementos de facto só ficam disponíveis depois de finalizada a liquidação da massa insolvente, o cálculo da majoração utiliza elementos factuais disponíveis no momento em que os rateios parciais são apresentados (sendo certo que tal cálculo da majoração nos rateios parciais emerge cristalino do significado precípuo da parte final do nº 7 do art. 23º do EAJ).
B. A majoração da remuneração variável do Sr. Administrador da Insolvência.
A apelação constitui, neste segmento, mais uma objectivação do debate que vem ocorrendo na jurisprudência a propósito do critério legal para apuramento da majoração da remuneração variável, prevista no nº 7 do art. 23º do EAJ (redacção introduzida pela Lei 9/2022, de 11/01), no âmbito do processo de insolvência, ocorrendo liquidação.
Debate entre duas posições:
- a orientação (defendida pela apelante) que entende que tal majoração, rompendo com a forma de cálculo prevista na legislação pregressa, corresponde a 5% do montante disponível para satisfação dos créditos[4]; defende-se que para a majoração da remuneração variável, em caso de liquidação, a lei pretende a aplicação do factor de 5% sobre o valor pronto para distribuição, ‘«limpo», totalmente líquido, que seria destinado ao pagamento dos créditos, mas que vai ser retirado desse destino para majorar a remuneração do AI, quase como se este fosse um credor’[5]. De acordo com este entendimento ‘a nova fórmula de cálculo da remuneração variável em caso de liquidação, e ao contrário do que a letra do nº 7 parece sugerir, implica a total irrelevância que o grau (ou percentagem) de satisfação dos credores assume agora, face ao universo da totalidade dos créditos’[6],
- a posição (seguida na decisão apelada) que sustenta que o valor de tal majoração deve ser encontrado mediante a aplicação do elemento de cálculo legalmente previsto (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas por aplicação directa desses 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos[7].
A remuneração do administrador da insolvência nomeado por iniciativa do juiz (como é o caso dos autos) obedece a um regime misto, constituído por uma parte fixa (art. 23º, nº 1 do EAJ) e uma parte variável, calculada em função do resultado da recuperação do devedor ou da liquidação da massa insolvente (art. 23º, nº 4, 5, 6, e 7 do EAJ), permitindo a parte fixa maior certeza e ‘constituindo a parte variável como que uma motivação para o exercício da actividade.’[8]
Remuneração variável que pode ser majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (nº 7 do art. 23º do EAJ).
De fácil apreensão e compreensão ‘a intenção que domina esta majoração da remuneração do administrador’: trata-se ‘de estimular a sua diligência no sentido de obter para os bens da massa insolvente o valor mais alto possível.’[9]
Tal propósito presidiu ao estabelecimento (criação) de tal incremento (majoração) à remuneração variável – o Estatuto do Administrador da Insolvência aprovado pela Lei 32/2004, de 22/07, previa que a remuneração variável do administrador de insolvência nomeado pelo juiz, apurada em função do resultado da liquidação da massa insolvente, fosse majorada em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (art. 20º, nº 4 do EAI), tendo o regime (misto) então adoptado sido justificado na exposição de motivos ‘da proposta de Lei que deu origem à Lei n.º 32/2004 [Proposta de lei n.º 112/IX/2] nos seguintes termos: «No que respeita à remuneração, estabeleceu-se um regime misto constituído por uma parte fixa e outra variável. Assim, a par de um montante fixo suportado pela massa insolvente, cria-se um sistema de prémios cujo montante varia em função da efectiva satisfação dos créditos. Este sistema garante, quer uma maior certeza no que respeita ao montante da remuneração, em virtude da existência de critérios objectivos, quer um incentivo que premeia o bom exercício da actividade»’.[10] [11]
Propósito comum (idêntico) aos diplomas que, desde 2004 e até à entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11/01, regulavam a matéria da remuneração do administrador da insolvência/administrador judicial (o EAI, aprovado pela Lei 32/2004 e o EAJ, aprovado pela Lei 22/2013, com as sucessivas alterações).
Desde o Estatuto do Administrador da Insolvência (Lei 32/2004) até à entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11/01, quer o montante da remuneração fixa, quer os factores necessários para determinação do valor da remuneração variável e da majoração desta eram estabelecidos através de portaria (portaria conjunta dos ministros das finanças e da Justiça no âmbito do EAI - art. 20º, nº 1, 2 e 4 da Lei 32/2004, de 22/07 -, portaria conjunta dos ministros das finanças, da justiça e da economia no âmbito do EAJ – art. 23º, nº 1, 2 e 5 da Lei 22/2013, de 26/02, solução que se manteve com as alterações introduzidas pela Lei 17/2017, de 16/05 e DL 52/2019, de 17/04) – podia na vigência de tais diplomas afirmar-se, com inteira propriedade, que a remuneração do administrador da insolvência era calculada de acordo com ‘dois critérios cumulativos’: um primeiro critério fixo de acordo com o montante estabelecido na portaria; e um segundo, com carácter variável, pois dependente do resultado da liquidação da massa insolvente (ou da recuperação do devedor), com majoração em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos[12] (art. 20º, nº 2 a 4 do EAI e art. 23º, nºs 2 a 5 do do EAJ e o art. 2 da Portaria 51/2005, de 20/01).
A solução de remeter para outra fonte de direito (outro diploma) o estabelecimento do valor da remuneração fixa e dos factores necessários ao cálculo da retribuição variável (e sua majoração) não era isenta de crítica – a doutrina identificava o risco inerente a tal solução, qual seja o de ‘as fontes para as quais se remete não serem, afinal, criadas ou, mesmo que o sejam, ficarem rapidamente desactualizadas’, risco que se concretizou no caso, pois não foi adoptada/revista qualquer portaria depois do Estatuto do Administrador Judicial, valendo ainda (no âmbito daqueles referidos diplomas anteriores à entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11/01) a Portaria 51/2005, de 20/01, publicada no quadro do Estatuto do Administrador da Insolvência, sendo patentes várias deficiências ou lacunas (falta de previsão da remuneração do administrador judicial nos regimes que lhe sobrevieram, nomeadamente a falta de previsão para a remuneração do administrador no âmbito do PER, não restando outra solução que não a de tentar aplicar a portaria em vigor, procedendo às adaptações e actualizações necessárias ou convenientes, sempre com sérios riscos para a uniformidade do critério)[13].
No que especificamente concerne à majoração da remuneração variável, a solução normativa (o regime legal) impunha se valorizasse o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (o nº 4 do art. 20º do EAI e o nº 5 do art. 23º do EAJ) – e assim que, em articulação com o anexo II da portaria, era necessário encontrar a percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos (numa escala crescente de 5 a mais de 70) para lhe aplicar o factor de majoração (de 1 a 1,6), concluindo-se que a um maior grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos (correspondendo-lhe maior percentagem) correspondia um mais elevado factor de majoração (e logo mais elevada remuneração variável, satisfazendo o propósito da visado com o estabelecimento da majoração – a um maior grau de satisfação dos credores correspondia uma mais elevada remuneração).
Interessa relevar, no que à economia da questão em apreciação importa, que o regime legal (composto pelas duas fontes de direito – a lei, EAI e EAJ, e a portaria) não dispensava, antes assentava, em vista da majoração da remuneração variável do administrador, na valorização e ponderação do que designava como ‘grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos’ – a remuneração variável a atribuir ao administrador judicial era majorada ‘em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos’.
Precisando: o regime legal fazia assentar, decisivamente, o critério da majoração no grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos e, por isso, também os créditos reclamados e admitidos que não obtinham satisfação eram considerados (e com directa e decisiva influência) para a determinação da majoração. O regime normativo impunha fosse atendido o grau de satisfação de todos os credores admitidos ao concurso (não só os que viam os seus créditos satisfeitos, ainda que parcialmente, mas também aqueles que não obtinham, ainda que parcialmente, qualquer pagamento para satisfação de créditos reclamados e admitidos ao concurso), e assim que também a insatisfação daqueles créditos reclamados e admitidos se repercutia directamente no valor da remuneração a auferir pelo administrador (no valor da majoração da remuneração variável).
Com a alteração introduzida pela Lei 9/2022, de 11/01, o Estatuto do Administrador Judicial passou a ser auto-suficiente[14] quanto à matéria da regulamentação da remuneração do administrador – deixou de remeter-se a fixação do valor fixo e a concretização dos factores para a determinação da remuneração variável e sua majoração para outra fonte de direito (para diploma regulamentar – portaria), passando a regulamentação da matéria a ser feita, exclusivamente, no estatuto (arredando-se, assim, os riscos associados à remessa para outras fontes de direito).
Mantendo o regime misto da remuneração (remuneração fixa e remuneração variável, bem assim a previsão de majoração desta), a Lei 9/2022, de 11/01, determina que o valor da remuneração variável (este encontrado por referência ao resultado da liquidação da massa insolvente) é majorado ‘em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles.’
Na interpretação do preceito (buscando o seu sentido, o seu alcance enquanto critério da decisão) em vista de reconstituir o pensamento legislativo, devem recusar-se soluções literais, amarradas a uma pura exegese do texto – o elemento gramatical constitui ponto de partida e simultâneo limite da interpretação, impondo-se, porém, ao intérprete partir da proposição e buscar o sentido decisivo da norma, agregando nessa tarefa os demais (além do gramatical) elementos interpretativos (elemento racional ou teleológico, elemento sistemático e elemento histórico)[15].
Os antecedentes históricos, que se deixaram referidos, apresentam-se como elemento de fulcral importância na interpretação do actual preceito. A ‘história evolutiva do instituto, da figura ou do regime jurídico em causa’ é bastas vezes (como cremos acontecer no caso) elemento crucial na interpretação da lei: ‘as mais das vezes a norma é produto de uma evolução histórica de certo regime jurídico, pelo que o conhecimento dessa evolução é susceptível de lançar luz sobre o sentido da norma, pois nos faz compreender o que pretendeu o legislador com a fórmula ou com a alteração legislativa introduzida.’[16]
Na reconstituição do pensamento legislativo que presidiu à elaboração do nº 7 do art. 23º do EAJ tem de ponderar-se ter sido mantida, no que concerne à majoração da remuneração variável, a proposição ou fórmula que o regime pregresso vinha utilizando desde os primórdios da instituição do regime misto da remuneração do administrador da insolvência, com recurso aos dois critérios cumulativos (parte fixa, parte variável e majoração desta), por isso desde o EAI, instituído pela Lei 32/2004, de 22/07.
Tal fórmula (majoração ‘em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos’) fazia assentar a majoração no grau de satisfação de todos os credores, incluindo aqueles que não obtinham a satisfação dos respectivos créditos (também reclamados e admitidos) – a majoração era calculada também em atenção à insatisfação de créditos reclamados e admitidos (ou seja, a majoração aferida tanto em função do sucesso quanto do insucesso na satisfação dos créditos reclamados e admitidos a obter pagamento pela massa insolvente).
Ideia nuclear de fazer depender o valor da majoração da remuneração variável do administrador dessa dicotomia (dum lado, os créditos reclamados e admitidos não satisfeitos – representando a medida ou grau de insucesso da actividade do administrador – e, do outro, os créditos satisfeitos – representando a medida ou grau de sucesso de tal actividade) que era traduzida normativamente na fórmula ou proposição que a Lei 9/2022, de 11/01 manteve – a remuneração variável é majorada em ‘função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos’.
A carga histórica contida em tal fórmula ou proposição, qual informação genética, consubstanciada na ideia de ponderar, em vista do cálculo da majoração da remuneração variável, também a insatisfação de créditos reclamados e admitidos (ou seja, a ideia de que a majoração é aferida tanto em função do sucesso quanto do insucesso na satisfação dos créditos reclamados e admitidos a obter pagamento pela massa insolvente), leva-nos a recusar atribuir-lhe (a tal proposição contida no nº 7 do actual art. 23º do EAJ) um simples e neutro papel (até de supérflua ou excrescente redundância) proclamatório de um critério concretizado e densificado, exclusivamente, na proposição (frase) seguinte: no fundo, de simples enunciado teórico do critério que a parte seguinte do preceito densificaria[17]. Atribuir-lhe um tal significado representaria excluir sentido e ideia essencial que a mesma comporta desde a instituição do regime misto da remuneração do administrador da insolvência – trata-se de proposição que tem indelevelmente associada a ideia de fazer assentar o cálculo do valor da majoração da remuneração variável tanto em função do sucesso quanto do insucesso na satisfação dos créditos reclamados e admitidos a obter pagamento pela massa insolvente; proposição que tem ínsita a ideia de medida e proporção traçada entre os valores de todos os créditos reclamados e admitidos e o valor dos créditos satisfeitos.
A alteração introduzida pela Lei 9/2022 circunscreve-se ao segmento final do actual nº 7 do art. 23º do EAJ (por referência ao nº 5 do art. 23º do EAJ, na redacção da Lei 22/2013) – ‘onde antes se dizia, “pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1” diz-se agora “em 5% do montante dos créditos satisfeitos”’ –, podendo afirmar-se que o seu significado (sentido da alteração) é apenas o seguinte: ‘na versão actual, em vez de se aplicarem os factores referidos na Portaria (Anexo II), aplica-se a taxa de 5%. E, assim, qualquer que seja o grau de satisfação dos créditos aplica-se sempre a mesma taxa (5%).’[18]
Conclui-se, pois, que se mantém, qual eixo central do critério para a majoração da remuneração variável , o grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos – que este grau ou medida de satisfação dos créditos reclamados e admitidos se mantém ‘como um dos factores determinantes da majoração da remuneração variável’[19] ou, doutro modo, que a redacção do nº 7 do actual art. 23º do EAJ não foi determinada por qualquer intenção do legislador alhear a majoração da remuneração variável do administrador do grau de sucesso da satisfação dos créditos reclamados e admitidos[20].
Interpretação que nos leva a concluir que o valor da majoração resulta da aplicação do factor previsto na lei (5%) à percentagem dos créditos reclamados e admitidos que foi satisfeita e não apenas da aplicação directa do factor de 5% sobre o montante dos créditos satisfeitos – critério seguido na decisão apelada (que observou as operações aritméticas pelo mesmo implicadas).
Sustenta o apelante que o valor dos créditos reclamados e admitidos ponderado na decisão apelada não se mostra correcto, por desconforme à lista apresentada no apenso da reclamação em 20/06/2014.
Não lhe assiste razão, porém – como se constata da sentença proferida em 10/12/2014 no apenso da reclamação de créditos, transitada em julgado, foi homologada a lista definitiva dos credores reconhecidos constante a fls. 2 desses autos, aí constando como montante de créditos reclamados e reconhecidos o valor global de 3.820.687,70€, que corresponde ao valor atendido na decisão apelada.
Ponderando que foram reclamados e admitidos créditos no montante global de 3.820.687,70€ (como resulta do apenso da reclamação), o grau de satisfação, atendendo ao valor obtido para rateio parcial (500.262,74€ - valor correspondente aos dois rateios), corresponde a 13,09%, donde resulta o valor de majoração de 3.274,22€ (500.262,74€ x 0,1309 = 65.484,39€ x 0,05 = 3.274,22€), a acrescer de IVA (23%), o que significa o valor global de 4.027,29€ (como considerado na decisão apelada) a título de majoração da remuneração variável concernente aos dois já rateios efectuados.
Improcede, pois, neste segmento, a apelação.
C. Síntese conclusiva.
Do exposto resulta a procedência parcial da apelação (anulação do segmento da decisão que fixou remuneração variável - art. 23º, nº 4, b) do EAJ - ao Sr. Administrador da Insolvência e confirmação da decisão na parte em que fixou o valor da majoração da retribuição variável), podendo sintetizar-se a argumentação decisória (nº 7 do art. 663º do CPC) nas seguintes proposições:
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DECISÃO
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
- anular a decisão na parte em que fixou a remuneração variável (art. 23º, nº 4, b) do EAJ) do Sr. Administrador da Insolvência e determinar que, prosseguindo os autos seus normais termos, apurado o resultado final da liquidação, se proceda à fixação da remuneração variável,
- confirmar o despacho apelado no segmento em que fixou o valor da majoração variável concernente aos dois já rateios efectuados.
Paga pelo apelante a taxa de justiça devida pela interposição recurso, não são devidas custas (encargos e custas de parte) – o recurso não gerou despesas e as custas de parte não são devidas por não terem sido apresentadas contra-alegações.
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Porto, 18/04/2023
João Ramos Lopes
Rui Moreira
João Diogo Rodrigues

(por opção do signatário, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
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[1] Aprovado pelo DL 53/2004, de 18/03, e doravante designado por CIRE. Será citado por referência à versão consolidada de acordo com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei nº 200/2004, de 18/08, nº 76-A/2006, de 29/03, nº 282/2007, de 7/08, nº 116/2008, de 4/07, nº 185/2009, de 12/08, pelas Leis nº 16/2012, de 20/04 e nº 66-B/2012, de 31/12, pelos Decreto-Lei nº 26/2015, de 6/02, nº 79/2017, de 30/06 (com a rectificação nº 21/2107, de 25/08), pelas Leis nº 114/2017, de 29/12 e nº 8/2018, de 2/03, pelo Decreto-Lei nº 84/2019, de 28/06, pelas Leis nº 99-A/2021, de 31/12 e nº 9/2022, de 11/01 e, ainda, pelo Decreto-Lei nº 57/2022, de 25/08.
[2] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 737.
[3] A remuneração variável será calculada apenas no final do processo (isto é, depois do encerramento da liquidação) – Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, 2019, p. 82 (em nota, citando Fátima Reis Silva, Processo de Insolvência: os Órgãos da Insolvência e o Plano de Insolvência, in Revista do CEJ, 2º semestre 2010, nº 14).
[4] Assim decidindo, v. g., os acórdãos da Relação de Lisboa 20/12/2022 (Fátima Reis Silva) e da Relação do Porto de 10/01/2023 (Alexandra Pelayo), ambos no sítio www.dgsi.pt. e ainda o acórdão da Relação do Porto de 7/02/2003, no processo nº 965/15.8T8AMT-E.P1 (Dionísio Oliveira), não publicado (a esta data).
[5] Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo, in ‘A Remuneração do Administrador Judicial e a sua Apreciação Jurisdicional depois de Abril de 2022 - Uma Primeira Apreciação às Alterações Introduzidas no CIRE e no EAJ pela Lei nº 9/2022, de 11-1’, p. 32 (acedido on-line em Março de 2023 no sítio da Associação Portuguesa dos Administradores Judiciais).
[6] Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo, A Remuneração do Administrador Judicial (…), p. 33.
[7] Assim os acórdãos da Relação de Coimbra de 28/09/2022 (Maria Catarina Gonçalves), de 11/10/2022 (Arlindo Oliveira) e de 25/10/2022 (Emídio Santos), da Relação de Évora de 29/09/2022 (Tomé de Carvalho), da Relação de Lisboa de 20/12/2022 (Manuela Espadaneira Lopes) e de 24/01/2023 (Manuela Espadaneira Lopes) e da Relação do Porto de 11/10/2022 (João Diogo Rodrigues) e de 24/01/2023 (Rodrigues Pires, subscrito como adjunto pelo relator do presente), todos no sítio www.dgsi.pt. Além destes, referência ainda para os acórdãos desta Relação do Porto, não publicados (a esta data) de 10/01/2023 (processo nº 367/18.4 T8VNG.P1, Ana Lucinda Cabral) e de 14/03/2023 (processo nº 15/18.2T8STS-K.P1, Márcia Portela, subscrito como adjunto pelo relator do presente).
[8] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pp. 85/86.
[9] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 2015, p. 349 (itálico no original).
[10] Cfr. o citado acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2022 (Emídio Santos).
[11] A doutrina também então assinalava que a majoração era justificada com o propósito de estimular a diligência do administrador da insolvência ‘no sentido de obter para os bens da massa insolvente o valor mais alto possível’ - Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Reimpressão, 2009, p. 276.
[12] Maria do Rosário Epifânio, Manual (…), pp. 81/82.
[13] Catarina Serra, Lições (…), p. 86.
[14] Citado acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2022 (Emídio Santos).
[15] Tatiana Guerra de Almeida, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora (coordenação de Luís Carvalho Fernandes e José Brandão Proença), p. 48.
[16] João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 19ª reimpressão, p. 184.
[17] No acórdão da Relação do Porto de 7/02/2003, no processo nº 965/15.8T8AMT-E.P1 (Dionísio Oliveira), sustenta-se: ‘a expressão “em 5% do montante dos créditos satisfeitos” contida no actual artigo 23.º, n.º 7, do EAJ, serve para concretizar o conceito de majoração “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, não traduzindo estas duas expressões critérios distintos, cumuláveis ou complementares.’
[18] Citado acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2022 (Emídio Santos).
[19] Citado acórdão da Relação de Coimbra de 25/10/2022 (Emídio Santos).
[20] Cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 20/12/2022 (Manuela Espadaneira Lopes).