Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
44/14.5TACPV.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: IMÓVEL
PERDA A FAVOR DO ESTADO
REGISTO PREDIAL
REGISTO DEFINITIVO
EFEITOS
Nº do Documento: RP2023011844/14.5TACPV.P1
Data do Acordão: 01/18/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DA CONDENADA.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I – O registo da propriedade de um imóvel não constitui um modo de aquisição da propriedade destinando-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, e o registo definitivo constitui apenas presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define.
II – Desta forma, o registo que se limitou a tornar pública a aquisição anterior do imóvel por parte do Estado em nada interferiu com os interesses da arguida que ficou exatamente na situação em que se encontrava, ou seja, sem a propriedade do imóvel decorrente da decisão, transitada em julgado, em que foi decretada a perda do imóvel em causa a favor do Estado.
III – Ora, uma vez que o modo de aquisição da propriedade foi a decisão judicial e consolidou-se com o trânsito em julgado desta, o registo da aquisição não lhe retirou ou diminuiu qualquer direito, pois que não foi assim afetada pela decisão que determinou o registo, a qual, por esse motivo, não carecia de lhe ter sido notificada.
IV – Quando ocorre a perda em espécie, esta é efetivada de imediato, com o trânsito em julgado da decisão, pelo que a transferência de propriedade ocorre de imediato, sem que se mostre necessária a prática de qualquer outro ato por parte do Estado, o que significa que a segurança e estabilidade jurídica não está em causa, nem é colocada em crise pelo decorrer do tempo, pois que a situação é estável e certa.
V – Mas se a perda em espécie é substituída pelo pagamento do valor correspondente desse mesmo bem, ao Estado passa a assistir apenas o direito a efetivar tal pagamento, pois este não ocorre automaticamente, com a mera prolação da decisão, e, como tal, impende sobre ele o dever de diligenciar pela satisfação desse direito, tendo todo o sentido estabelecer um prazo máximo para esse efeito, o que se justifica em nome da segurança e certeza que devem prevalecer na ordem jurídica, sob pena da situação permanecer indefinida durante longo período de tempo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo Comum Singular nº 44/14.5TACPV.P1
Comarca de Aveiro
Juízo de Competência Genérica de Castelo de Paiva



Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório
1.1 Decisão recorrida
Por despacho de 9 de maio de 2022, foi indeferida a pretensão da condenada AA que pretendia que se declarasse a existência de nulidade insanável, em virtude de não ter sido notificada do despacho que determinou o registo do imóvel declarado perdido a favor do Estado, na sentença proferida, nem da promoção do Ministério Público a tal propósito, e bem assim que se declarasse prescrita a perda de vantagens relativa a essa mesma fração, com a consequente anulação da ap.nº ... da perda a favor do Estado, de dia 8 de março de 2022, e que consta do respetivo registo predial.

1.2 Recurso
Inconformada com tal decisão, a condenada interpôs recurso formulando, em síntese, as seguintes conclusões:
- Quer a promoção, quer o despacho que determinou o registo do imóvel declarado perdido a favor do Estado deveriam ter sido, sob cominação de nulidade, notificados à arguida/condenada, atento o disposto no art. 61º, nº1, al. b), do Cód. Proc. Penal. A falta de tal notificação violou o direito ao contraditório expressamente previsto no art. 32º, nºs 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa.
- À data de efetivação do registo da perda do imóvel a favor do Estado já tinham decorrido mais de quatro anos sobre o trânsito da decisão que a decretou, razão pela qual o direito se mostrava prescrito atento o disposto no art. 112º A, do Cód. Penal, o qual é de aplicação a todas as formas de perdas de vantagens previstas no art. 111º, do mesmo diploma – sendo o entendimento contrário inconstitucional por violador do princípio da proporcionalidade previsto no art. 18º, da Constituição da República Portuguesa.
Termina pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que declare a nulidade decorrente da falta de notificação da arguida e bem assim a prescrição da declaração de perda do bem em causa a favor do Estado.
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência. Tal posição foi mantida no parecer emitido neste Tribunal da Relação.
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2. Questões a decidir no recurso
As questões a apreciar e a decidir no presente recurso são as seguintes:
- a falta de notificação à recorrente do despacho que determinou o registo do imóvel perdido a favor do Estado gera a nulidade do ato e constitui violação constitucional do direito ao contraditório?
- a prescrição prevista no art. 112º A, do Cód. Penal é também aplicável à perda em espécie, sob pena de violação constitucional do princípio da proporcionalidade?
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3. Fundamentação
O despacho recorrido tem, no que ora nos interessa, o seguinte teor:
“Requerimento de 05-05-2022:
Vem a condenada AA requerer que se declare “a existência da nulidade insanável supra descrita” e “prescrita a perda de vantagens relativa à fração a que a arguida foi condenada e, consequentemente, se anule a ap. n.º ... da perda a favor do Estado, de dia 08 de março de 2022 que consta no registo predial da referida fracção”.
Para tanto alega que: não foi notificada de qualquer despacho que determinasse o registo do imóvel declarado perdido a favor do Estado na sentença proferida, nem sobre a promoção do Ministério Público a esse respeito, o que “origina grave vicio processual que aqui se arguí”; que o Ministério Público, ultrapassando as suas atribuições legais, registou a sentença proferida após 4 anos desde o seu trânsito em julgado, violando “a separação dos poderes, praticando assim a nulidade insanável da alínea e) do artigo 119º do CP, manifestação ordinária dos artigos 32º n.º 5 e artigo 2º da CRP"; que, apesar de o art. 112.º-A, do Código Penal apenas se referir ao prazo de prescrição da perda de vantagens em espécie que é substituída pelo pagamento do respectivo valor ao Estado, “a ratio e fundamento da perda de vantagens em espécie é exatamente igual” e, por isso, o mesmo também se aplica “às demais formas de perda de vantagens estabelecidas nos termos do artigo 111º do CP".
Dispensa-se o contraditório do Ministério Público por desnecessário.
Decidindo.
Por sentença proferida nos presentes autos e transitada em julgado em 09-01-2018, foi decidido, entre o mais, o seguinte:
“f) Nos termos do art. 111.°, n.º 2, do Código Penal, declaro perdidas a favor do Estado: (…)
(vi) A fracção autónoma "C" do prédio urbano destinado a habitação em regime de propriedade horizontal, sito na praça ..., freguesia ... (atualmente, União de Freguesias ... e ...), concelho ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Castelo de Paiva, sob a ficha n.° .../... (…)».
Em 02-03-2022 veio o Ministério Público promover o registo de tal imóvel a favor do Estado, o que foi deferido por despacho de 03-03-2022 (e concretizado conforme ofício de 26-04-2022).
Portanto, tendo sido o tribunal a ordenar o registo, inexiste qualquer violação de “separação dos poderes” pelo Ministério Público e, por conseguinte, a assacada “nulidade insanável da alínea e) do artigo 119º do CP, manifestação ordinária dos artigos 32º n.º 5 e artigo 2º da CRP".
Por outro lado, a condenada não foi notificada da promoção ou do despacho supra referidos porque não o tinha de o ser.
A transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel para o Estado dá-se (deu-se) por mero efeito da declaração da perda do mesmo (à semelhança do que ocorre com os contratos – art. 408.º, n.º 1, do Código Civil), rectius, com o trânsito em julgado da respectiva decisão.
O registo predial, como é por demais consabido, não tem função constitutiva de direitos, mas sim natureza meramente declarativa. Por isso, registar ou não o bem que foi declarado perdido a favor do Estado é coisa sobre a qual a condenada não tem que se pronunciar, apenas a esse mesmo Estado competindo decidir se o quer ou não fazer (através do Ministério Público, do Tribunal ou do GAB). Nem sequer tal registo tinha de ser efectuado através deste processo.
Finalmente, quanto à invocada prescrição, também argumentação da condenada não procede.
E não procede pela mesma razão que acabámos de referir e que repetimos: a transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel para o Estado deu-se por mero efeito do trânsito em julgado da decisão que decretou a sua perda, sendo o registo meramente declarativo.
Por esta singela razão é evidente que não pode ter ocorrido qualquer prescrição, isto é, não pode haver prescrição de uma perda já efectivada, tal como não pode, por exemplo, prescrever uma pena já cumprida!
E o art. 112.º-A, n.º 1, do Código Penal apenas prevê a prescrição do direito do Estado ao pagamento do valor da perda, em substituição da perda em espécie, por isso mesmo: porque neste caso a efectivação desse direito está dependente do pagamento voluntário ou coercivo pelo condenado de um valor, o qual terá de ser feito durante certo prazo, sob pena de eternização daquele direito do Estado.
Diferentemente, na perda em espécie o direito de propriedade do Estado sobre o bem em causa é adquirido de imediato com o trânsito da respectiva decisão, pelo que a mesma nunca pode prescrever.
Por todo o exposto, indefere-se in totum o requerido.
Notifique.”
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3.2 – Falta de notificação à recorrente do despacho que determinou o registo do imóvel perdido a favor do Estado
O art. 32º, nº1, da Constituição da República Portuguesa estabelece que o processo penal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. E, de acordo com o nº5, do mesmo preceito, “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”. Por outro lado, o art. 61º, nº1, al. b), do Cód. Proc. Penal estipula que o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete.
No caso concreto, e como se viu, a arguida/condenada não foi notificada do despacho que determinou o registo do imóvel perdido a favor do Estado. Trata-se aqui de uma decisão que pessoalmente a afete?
Entende-se que não.
Com efeito a decisão que afetou a arguida foi aquela em que foi decretada a perda do imóvel em causa a favor do Estado. Tal decisão transitou em julgado em janeiro de 2018. O modo de aquisição da propriedade foi, no caso, a decisão judicial e consolidou-se com o trânsito em julgado desta (art. 1316º, do Cód. Civil). Nas palavras de João Conde Correia “o confisco implica a perda da propriedade da coisa para o visado (…) e a sua transmissão para o Estado. No momento em que transita em julgado a decisão que o declarar, a coisa transfere-se, com eficácia real, para a esfera patrimonial do Estado, aí permanecendo definitivamente (…)” - (Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, INCM - Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Procuradoria-Geral da República, 2012, pag. 80).
O registo da propriedade do imóvel não constitui um modo de aquisição da propriedade destinando-se “essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário” – art.1º, do Cód. Reg. Predial. E, o registo definitivo, tal como resulta do art. 7º, do mesmo diploma constitui apenas presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito nos precisos termos em que o registo o define.
Desta forma, o registo, que se limitou a tornar pública a aquisição anterior do imóvel, por parte do Estado, em nada interferiu com os interesses da arguida que ficou exatamente na situação em que se encontrava, ou seja sem a propriedade do imóvel o que já acontecia desde 2018. O registo da aquisição não lhe retirou ou diminuiu qualquer direito. Não foi assim afetada pela decisão que determinou o registo a qual, por esse motivo, não carecia de lhe ter sido notificada.
Não se verifica desta forma qualquer violação de direito processual ou constitucional da arguida.
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3.3 – Âmbito de aplicação da prescrição prevista no art. 112º A, do Cód. Penal
Invoca a recorrente que à data da efetivação do registo da perda do imóvel a favor do Estado já tinham decorrido mais de quatro anos sobre o trânsito da decisão que a decretou, razão pela qual o direito se mostrava prescrito atento o disposto no art. 112ºA.
Vejamos.
Dispõe este último preceito:
“1- Quando, ao abrigo do nº3, do art. 109º, do nº4 do art. 110º ou do nº3 do artigo 111º, ou ainda de legislação especial, for determinada a substituição da perda em espécie pelo pagamento ao Estado do correspondente valor, aplicam-se os prazos de prescrição previstos para a pena ou para a medida de segurança concretamente aplicada.”
Ora, do teor literal do artigo em causa resulta manifesto que não assiste razão à recorrente quando afirma que o mesmo é de aplicação a todas as formas de perdas de vantagens. Com efeito, a redação é clara ao referir-se apenas às situações em que ocorre a substituição da perda em espécie pelo pagamento do valor correspondente. Se se quisesse referir a todas as situações de perda – independentemente do modo – não referiria apenas a mencionada situação nem sequer remeteria para os números dos artigos 109º, 110º e 111º que expressamente as identificam. Bastaria referir os prazos de prescrição relativamente a toda e qualquer perda.
O que a lei quis dizer é, neste caso, exatamente aquilo que disse. E tal tem todo o sentido.
Na verdade, quando ocorre, como no caso, a perda em espécie, esta é efetivada de imediato, com o trânsito em julgado da decisão e nos moldes supra expostos. A transferência de propriedade ocorre de imediato, sem que se mostre necessária a prática de qualquer outro ato por parte do Estado. A segurança e estabilidade jurídica não está em causa nem é colocada em crise pelo decorrer do tempo. A situação é estável e certa.
Por outro lado, se a perda em espécie é substituída pelo pagamento do valor correspondente desse mesmo bem, ao Estado passa a assistir apenas o direito a efetivar tal pagamento pois este não ocorre automaticamente, com a mera prolação da decisão. E, como tal, impende sobre ele o dever de diligenciar pela satisfação desse direito, tendo todo o sentido estabelecer um prazo máximo para esse efeito – o que se justifica em nome da segurança e certeza que devem prevalecer na ordem jurídica – sob pena da situação permanecer indefinida durante longo período de tempo.
No caso, como se viu, não existe qualquer indefinição nem qualquer direito a efetivar. Tal já ocorreu.
E, não se vislumbra que o entendimento aqui expresso consubstancie a violação de qualquer princípio constitucional, designadamente do da proporcionalidade. O tratamento diferenciado de situações distintas é a resposta adequada de qualquer sistema judicial, bem como as garantias de defesa e segurança concedidas deverão ser as adequadas e necessárias a cada situação. E é o que ocorre neste caso.
A decisão recorrida mostra-se conforme a lei e não merece qualquer tipo de censura.
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4 - DECISÃO
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente fixando-se a taxa de justiça em 3 UC (arts. 513º, nº1, do Cód. Proc. Penal e art.8º, nº9, do Reg. Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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Porto, 18 de janeiro de 2023
Carla Oliveira
Paula Pires
José Piedade