Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
16835/18.5T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
TAXA DE ÁLCOOL NO SANGUE
CAUSALIDADE ADEQUADA
Nº do Documento: RP2021092016835/18.5T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Presunções - também designadas de provas por inferência, por indução ou conjeturais - são, desde logo, as presunções judiciais, conhecidas também como presunções naturais, de facto, simples ou de experiência, e surgem no art. 349.º CC como sendo a ilação retirada a partir de um meio de prova que o representa ou indicia: atendendo ao elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui a base da presunção e o facto presumido este é dado como assente quando o primeiro é provado.
II - Estando demonstrada a existência de uma taxa de álcool superior à legalmente permitida (facto-base) e sabendo-se que essa quantidade de álcool influencia as capacidades de reação (máxima da experiência), não existindo qualquer outra razão justificativa da manobra que levou ao acidente (como ser o acidente imputável a um terceiro ou ao próprio lesado ou existir outra justificação razoável para a adoção da manobra), é legítimo dar-se como provado que este se deveu à influência daquela.
III - Na formulação originária da causalidade adequada, o facto só não constitui uma causa do dano se for de todo em todo indiferente à produção daquele, verificando-se o resultado pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais.
IV - Estando o condutor afectado com uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l, este facto (TAS) só não constitui causa do acidente se for de todo em todo indiferente à produção daquele, verificando-se o resultado pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais.
V - Conduzindo o sinistrado com uma TAS de 1,79 g/l (taxa que não é apenas superior ao limite mínimo legal, mas sim constitutiva de crime), para excluir a obrigação de indemnizar, basta à Ré seguradora alegar esse facto e a cláusula excludente da cobertura, cabendo aos interessados na indemnização, em face das evidências, alegar e demonstrar que o resultado sinistro e a morte do segurado ocorreram pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais, sendo a TAS criminosa meramente acidental.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 16835/18.5T8PRT.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AUTORES: B…, viúva, por si e na qualidade de representante dos filhos menores, C… e D…, residentes no …, lote ., …, ….
RÉ: E…, SA., com sede na Avenida …, n.º …, 2.º, …, Porto.

Por via da presente ação declarativa, pretendem os AA. obter a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de € 123.000,00, com juros legais moratórios, desde 13.12.2017, alegando para tanto quatro contratos de seguro de vida, tendo por pessoa seguro o falecido marido e pai dos AA., contratos esses que a Ré não cumpriu, recusando-se a entregar aos AA. os capitais seguros. Mais alegam que nunca a Ré explicou à pessoa segura que, no caso de pluralidade de seguros, a cobertura por morte estava limitada ao máximo de € 60.000,00, nem explicou ao tomador de seguro ou à pessoa segura as exclusões contratuais.

Contestando, a Ré admitiu ter celebrado quatro contratos de seguro com uma empresa, tendo por segurado o falecido marido e pai dos AA, e por beneficiários estes últimos, contratos que cobriam, entre o mais, o risco morte e despesas de funeral.
O referido segurado faleceu em consequência de despiste de veículo por si conduzido, quando o fazia com uma TAS de 1, 79 g/l, sendo que nos termos das Condições Gerais dos contratos de seguro, estão excluídas da garantia as situações que resultem de crimes cometidos, designadamente, pela pessoa segura (art. 6.º, n.º 1 b) e as situações decorrentes de afecções originadas em consequência de alcoolismo (art. 6.º, n.º 1 f).
Além disso, dos quatro contratos, apenas o que corresponde à apólice ../……, com capital para morte de € 35.000,00, poderia ser acionado, uma vez que o sinistrado faleceu em consequência do sinistro, sem doença ou internamento.
Alega, ainda, que, a serem considerados acionados os vários contratos, existe um limite de € 60.000,00, para a morte, e € 3.000,00, para as despesas de funeral, uma vez que nas condições particulares, em caso de pluralidade de seguros, se limita a garantia àqueles capitais máximos.
Mais refere que ao representante da tomadora de seguro foi dado a conhecer a circunstância de todos os contratos se complementarem entre si, com coberturas diferentes e de que o mesmo facto não daria lugar às coberturas de todos os contratos, tendo todo o seu conteúdo sido devidamente explicado.

Os AA. exerceram contraditório.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 18.1.2021, a qual julgou a ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1. Entre a sociedade F…, Unipessoal, Ldª, como tomadora do seguro e a E…, S.A. foram celebrados quatro contratos de seguro na modalidade E…, Plano Proteção Acidente e Doença, titulados pelas apólices nºs ………., ………., ………., ………. (Docs. juntos a fls.46v a 69 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
2. Os capitais seguros pelas referidas apólices, para a cobertura de morte, eram de:
Apólice Capital Seguro
Apólice ………. € 35.000,00
Apólice ………. € 35.000,00
Apólice ………. € 35.000,00
Apólice ………. € 15.000,00;
3. Pelas referidas apólices a pessoa segura era G… e os beneficiários, em caso de morte, os herdeiros legais da pessoa segura;
4. Todas as apólices estavam em vigor à data do falecimento da pessoa segura;
5. A pessoa segura, G…, faleceu em 04 de Agosto de 2017, vítima de acidente de viação;
6. Os ora Autores são os únicos e universais herdeiros do falecido (Doc. junto a fls.17 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
7. Os Autores reclamaram da Ré o pagamento dos capitais seguros, enviando-lhe, através do mandatário constituído, todos os documentos pedidos pela mesma, em 13/12/2017, por carta registada;
8. Porém, em todas a apólices, a Ré veio a declinar o pagamento dos capitais estabelecidos contratualmente, invocando para o efeito o disposto no artº 6º, ponto nº 1 al. f) das condições gerais (Doc. nº 3, 4, 5 e 6);
9. A referida cláusula, estabelece o seguinte:
“Artº 6º EXCLUSÕES
1.Ficam sempre excluídas as situações que, direta ou indiretamente, resultem de:
f) situação originada por afeções originadas diretamente da consequência de alcoolismo (tanto em processos agudos como crónicos), de toxicomania ou de estupefacientes ou outras drogas não prescritas por médico.”;
10. A Ré também invocou na carta de 25.09.2017, o seguinte:
“Informamos ainda que, na sequência da conclusão da instrução do processo por morte do G… e caso assumamos a regularização do sinistro será considerado para o cálculo da indemnização a Pluralidade de Seguros, de acordo com o previsto no art. 23º das Condições Gerais que regem o produto Plano Proteção Acidente e Doença, que junto enviamos” (Doc. junto a fls.7 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
11. No relatório de autópsia efectuado a G… ficou a constar que o mesmo acusava a taxa positiva de 1,79 g/l sangue (Doc. junto a fls.75v a 77v cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
12. O contrato de seguro do Ramo Vida, na modalidade E1… Incapacidade por Acidente Prestige, titulado pela apólice nº ../……, foi celebrado com início em 03.10.2016, estando associadas as coberturas com os capitais abaixo discriminados, sem prejuízo das franquias contratuais previstas:
Incapacidade Temporária por Acidente Incapacidade Temporária Absoluta €750,00/mês
Incapacidade Temporária Parcial €375,00/mês
Morte ou Invalidez Permanente por Acidente €35.000,00
Fractura de ossos- Braço, Perna, Traumatismo Craniano €500,00
Despesas de Funeral €2.500,00;
13. O contrato de seguro do Ramo Vida, na modalidade E1… Hospitalização por Acidente Prestige, titulado pela apólice nº ../……, foi celebrado com início em 03.10.2016, estando associadas as coberturas com os capitais abaixo discriminados, sem prejuízo das franquias contratuais previstas:
Incapacidade Temporária Absoluta por Internamento Hospitalar €150,00/noite
Incapacidade Temporária Absoluta- Convalescença da Hospitalização €75,00/dia
Morte ou Invalidez Permanente por Acidente €35.000,00
Fractura de ossos- Braço, Perna, Traumatismo Craniano €500,00
Despesas de Funeral €2.500,00;
14. Foi indicada como pessoa segura dos aludidos contratos G…, com expressa exclusão das garantias do contrato dos “riscos resultantes da utilização e manuseamento de camiões ou máquinas de terraplanagem”;
15. O contrato de seguro do Ramo Vida, na modalidade E1… Incapacidade por Doença Prestige, titulado pela apólice nº ../……, foi celebrado com início em 03.10.2016, estando associadas as coberturas com os capitais abaixo discriminados, sem prejuízo das franquias contratuais previstas:
Incapacidade Temporária Absoluta €750,00/mês
Incapacidade Temporária Parcial €375,00/mês
Morte por Acidente €35.000,00
Despesas de Funeral €2.500,00;
16. O contrato de seguro do Ramo Vida, na modalidade E1… Hospitalização por Doença Prestige, titulado pela apólice nº ../……, foi celebrado com início em 21.11.2016, estando associadas as coberturas com os capitais abaixo discriminados, sem prejuízo das franquias contratuais previstas:
Incapacidade Temporária Absoluta por Internamento Hospitalar
€50,00/noite
Incapacidade Temporária Absoluta- Convalescença da Hospitalização
€25,00/dia
Morte por Acidente €15.000,00
Despesas de Funeral €1.500,00;
17. Foi indicada como pessoa segura dos aludidos contratos G…, sem prejuízo de “todas as exclusões referidas nas Condições Gerais e Condições Especiais Aplicáveis”;
18. As propostas de seguro juntas foram preenchidas junto do Mediador nº ….., H…, pelo falecido G… e de acordo com o solicitado e com as informações por ele prestadas;
19. O seu preenchimento foi efectuado após apresentação e explicação de cada um dos quatro produtos inseridos no Plano Protecção Acidente e Doença, que se complementam em termos de coberturas;
20. Na sequência do preenchimento e assinatura, tais propostas- incapacidade por acidente; Hospitalização por Acidente; Incapacidade por Doença; Hospitalização por Doença foram remetidas para os serviços técnicos da E… que procederam à criação em sistema dos contratos de seguro em causa, procedendo à emissão das respectivas condições particulares;
21. A E… procedeu ao envio para a tomadora do seguro, F…, Unipessoal, Lda, do original das Condições Particulares dos identificados contratos de seguro, onde se encontravam espelhadas as concretas condições de cada um dos mesmos, de acordo com a solicitação específica de cada uma das propostas que deu origem à sua emissão;
22. De igual forma, a Ré deu nota à tomadora do seguro que, para além das Condições Particulares de cada um dos contratos, aos mesmos eram aplicáveis “as Condições Gerais do produto conforme coberturas indicadas nas presentes Condições Particulares.
As Condições Gerais do presente contrato, encontram-se disponíveis em www.E....pt
Podem ainda ser enviadas por correio, mediante solicitação pelo telefone ………”;
23. O falecido G… foi interveniente num acidente de viação, no dia 4 de Agosto de 2017, cerca das 19:15h, em …, …, quando tripulava o motociclo de marca Suzuki, com a matrícula ..-BQ-..;
24. Tal acidente consistiu no despiste do aludido motociclo e consequente queda do condutor;
25. Tal despiste e queda não teve a intervenção de qualquer outra pessoa ou veículo automóvel/motociclo;
26. A gravidade e extensão das lesões sofridas determinaram o falecimento do referido G…;
27. O teor de álcool no sangue que o G… acusou momentos após a ocorrência do acidente provoca, por regra, um estado de diminuição da atenção, concentração e reflexos necessários à condução automóvel, tendo-o feito perder o controlo do veículo que conduzia e a noção da velocidade e das distâncias;
28. Nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 6º (Exclusões) das Condições Gerais aplicáveis “ficam sempre excluídas as situações que, direta ou indiretamente, resultem de crimes e actos ou omissões dolosos do tomador do seguro, beneficiário ou pessoa segura (incluindo o suicídio);
29. G… faleceu na sequência de acidente, sem que tivesse estado internado;
30. Nas condições particulares dos contratos de seguro identificados, mais concretamente em sede de “Pluralidade de Seguros- Plano Protecção Acidente e Doença” ficou expressamente previsto que “em caso de sinistro verificado no âmbito da pluralidade de contratos, serão garantidos os capitais máximos para as seguintes coberturas:
Morte por Acidente/Morte ou Invalidez Permanente por Acidente 60.000 € e Despesas de Funeral 3.000€”;
31. O legal representante da tomadora do seguro teve acesso a toda a informação relacionada com os produtos subscritos, designadamente sobre o Plano Protecção Acidente e Doença;
32. E optou pela celebração dos quatro contratos de seguro, que lhe permitiriam cobrir os riscos aí definidos;
33. Tais contratos complementavam-se uns aos outros em termos de coberturas, mas, o mesmo facto não poderia dar lugar ao acionamento das coberturas de todos os contratos de seguro;
34. A tomadora do seguro apôs uma cruz na resposta “sim” à pergunta “subscreveu ou está a subscrever outro(s) produto(S) do Plano Protecção Acidente e Doença”;
35. De igual forma, teve conhecimento do capital associado às coberturas contratadas, franquias aplicáveis, comparticipações e, bem assim, das exclusões previstas nas Condições particulares de cada um dos contratos, e nas Condições Gerais aplicáveis;
36. Não tendo a tomadora do seguro solicitado a celebração dos contratos noutros moldes;
37. A tomadora do seguro, na sequência do recebimento dos aludidos documentos, não apresentou qualquer reclamação ou objecção quanto aos termos dos contratos de seguro, designadamente no que diz respeito às garantias contratadas.

Foram dados como não provados os seguintes factos:
1. As condições particulares dos contratos de seguro referente à “Pluralidade de Seguros- Plano Protecção Acidente e Doença”, na qual ficou expressamente previsto que “em caso de sinistro verificado no âmbito da pluralidade de contratos, serão garantidos os capitais máximos para as seguintes coberturas: Morte por Acidente/Morte ou Invalidez Permanente por Acidente 60.000 € e Despesas de Funeral 3.000€”, foram explicadas à tomadora do seguro e elucidadas no momento do preenchimento e assinatura das propostas.

Desta sentença recorrem os AA., visando a sua revogação e que ordene a baixa dos autos para apreciação da questão relativa à nulidade da cláusula referente à limitação do capital em caso de pluralidade de seguros.
Para tanto, culminou as alegações de recurso com as seguintes conclusões:
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Opõem-se a Ré à procedência do recurso, produzindo as respetivas contra-alegações.

Os autos correram vistos.
Questões a decidir, tendo em conta as conclusões recursivas que são as que balizam o objeto do recurso (arts. 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
- Da alteração da redação do ponto 27.º dos factos provados;
- Da exclusão da responsabilidade da Ré: a taxa de alcoolémia, a embriaguez e a prática de crime.

FUNDAMENTAÇÃO
De facto
Deverá extrair-se do ponto 27.º da matéria dada como provada a referência “tendo-o feito perder o controlo do veículo que conduzia”, como pretendido pelos recorrentes?
Como veremos adiante, aquando da decisão sobre a matéria de direito, a inclusão na matéria de facto do segmento que os AA. dela pretendem ver excluído é absolutamente irrelevante para a decisão final.
Em todo o caso, vejamos se aquela menção deveria caber na redação do ponto 27.º dos factos provados.
Referem os recorrentes não existir qualquer “rasto ou suspeição que permita concluir que o condutor tivesse perdido o efetivo domínio e controlo sobre a direção do veículo (…) por se encontrar alcoolizado”.
Veja-se que o ponto 27.º inicia a sua redação por uma observação de caráter genérico, decorrente da constatação empírica e científica de situações similares. Diz-se ali que o teor de TAS revelado, por regra, provoca um estado de diminuição de atenção, concentração e reflexos necessários à condução automóvel, para se acrescentar, depois, que essa TAS fez ao condutor “perder o controlo do veículo que conduzia e a noção da velocidade e das distâncias”.
Aqui chegados, duas questões se colocam:
O tribunal a quo dispunha de provas acerca do que afirma, nomeadamente quanto ao efeito da TAS sobre o exercício da condução do sinistrado?
O que assim se escreveu constitui, tão-só, uma asserção conclusiva e, por isso, não deveria configurar matéria de facto?
As duas interrogações acabam, na verdade, por se entrelaçarem.
Saber se alguém perdeu o domínio do veículo por si conduzido e, sem a intervenção de terceiro, se despista (pontos de facto 24 e 25), o que ficou a dever-se ao facto de conduzir sobre a influência do álcool, constitui matéria de facto.
Ora, cumpre, desde logo, verificar que a sentença, neste tocante, se ancorou em prova direta (relatório da autópsia) e indireta (depoimento da testemunha I… quanto às circunstâncias em que o acidente terá ocorrido, ao despiste e à invasão da faixa de rodagem contrária; depoimento de J…, médico que aludiu à relação entre o sinistro e a TAS), tendo-se acrescentado aí ser de presumir, de acordo com as regras de experiência da vida que um despiste de um motociclo, conduzido por um condutor com uma taxa de álcool de 1,79 g/l, sem ser demonstrada qualquer outra causa para o mesmo, terá origem nesse estado de alcoolémia.
Em Direito Civil, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
É isso que lapidarmente consta do art. 341.º CC, normativo onde se acolheu a noção de prova como meio, isto é, como integrando os elementos concretos apresentados com vista à demonstração da realidade dos factos[1].
As presunções surgem elencadas entre os meios de prova.
Presunções - também designadas de provas por inferência, por indução ou conjecturais - são, desde logo, as presunções judiciais, conhecidas também como presunções naturais, de facto, simples ou de experiência[2], e surgem no art. 349.º CC como sendo a ilação retirada a partir de um meio de prova que o representa ou indicia: atendendo ao elevado grau de probabilidade ou verosimilhança da ligação concreta entre o facto que constitui a base da presunção e o facto presumido este é dado como assente quando o primeiro é provado[3].
É por isso que o art. 607.º, n.º 4 CPC estabelece que o raciocínio subjacente às ilações, no caso das presunções judiciais, assenta em regras da experiência, as quais podem ser definidas como “juízos de normalidade que descrevem o que geralmente acontece no mundo real”, extraindo-se da observação da realidade, sempre com base na experiência[4].
De uma forma genérica podemos definir as máximas da experiência como regras gerais de caráter científico válidas universalmente (como as regras da matemática, da estatística, da física, por exemplo) ou regras que seguem um princípio da normalidade, ou seja, nestas últimas encontramos factos que normalmente surgem ligados entre si por uma relação de causa-efeito, observável e conhecida da generalidade das pessoas.
A esta luz, a prova por presunção não recebe unanimidade quanto à classificação. Alguns consideram-nas um meio de prova[5], outros, um mero raciocínio [6], existindo ainda quem se situe numa posição intermédia[7].
O facto conhecido dado como provado pode consistir num só facto (presunção monobásica) ou em vários (presunção polibásica)[8].
Na situação que nos ocupa, os factos conhecidos são o despiste de um veículo, com invasão de faixa contrária, sem intervenção de terceiro e uma TAS de 1,79 g/l que afetava o respetivo condutor.
Sendo por demais conhecidos os efeitos que o álcool produz sobre a concentração e a atenção – máxima de experiência técnica -, será ilegítimo presumir que o despiste em apreço ocorreu por força da embriaguez?
A resposta é negativa.
Trata-se, no fundo, de apurar um facto interno: a reação do condutor face ao excesso de álcool (com uma taxa quase quatro vezes superior ao limite mínimo legal), sendo que, como vimos, é este o campo por excelência de intervenção das presunções judiciais.
Saber se foi a TAS que determinou o despiste é um problema de nexo de causalidade.
Ora, estando demonstrada a existência de uma taxa de álcool superior à legalmente permitida (facto-base) e sabendo-se que essa quantidade de álcool influencia as capacidades de reação (máxima da experiência), não existindo qualquer outra razão justificativa da manobra que levou ao acidente (como ser o acidente imputável a um terceiro ou ao próprio lesado ou existir outra justificação razoável para a adoção da manobra como é aventado no recurso), é legítimo dar-se como provado que este se deveu à influência daquela[9].
Desta feita, afirmar-se que a TAS com que seguia o condutor foi determinante do sinistro não é uma conclusão desagarrada da factualidade e, atendendo à dinâmica do evento e à ausência de qualquer indício quanto a outras causas ou concausas, é um facto legítimo, decorrente de presunção judicial, admissível como raciocínio ou meio de prova válido.
Assim sendo, é de manter a integralidade do ponto 27 dos factos provados.

De Direito
A sentença recorrida excluiu a responsabilidade da seguradora com base na existência de duas condições gerais, vertidas na cláusula 6.ª, n.º1, que considera exceptuadas situações que, direta ou indiretamente, resultem:
- de crimes ou omissões dolosos do tomador, do beneficiário ou da pessoa segura (designadamente o suicídio) – al. b);
- de situação originada por afeções que sejam consequência do alcoolismo (processos agudos ou crónicos) – al. f).
Trata-se, como se sabe, de seguros de acidentes pessoais, cobrindo o risco de lesão corporal, invalidez ou morte.
É, por isso, matéria disciplinada no Título III do DL 72/08, de 16.4 (arts. 175.º a 217.º), relativo ao seguro de pessoas (na dicotomia seguro de danos/seguro de pessoas).
O âmbito da cobertura prevista nos contratos de seguro resulta, essencialmente, por um lado, da enunciação dos riscos cobertos pelo contrato e, por outro lado, daqueles que não se encontram cobertos, por referência a cláusulas de exclusão. Estas cláusulas podem adquirir diversas modalidades dentro do próprio contrato de seguro, desde exclusões absolutas, correspondendo a riscos definitivamente excluídos da cobertura, até exclusões relativas que correspondem a riscos que poderão ou não ser incluídos na cobertura, designadamente, através da inclusão da cobertura de condições especiais.
O facto de se tratar de contrato de seguro facultativo ou obrigatório em nada altera estas considerações.
Na situação dos autos, a Ré invoca as duas exclusões que começamos por enunciar.
Na primeira delas, exclui-se da cobertura a situação que decorra, direta ou indiretamente, da prática de crime ou de outro ato doloso, nomeadamente da pessoa segura, incluindo-se aí o suicídio.
A primeira observação a efetuar respeita ao chamado nexo de causalidade adequada entre a TAS e o sinistro.
Sendo a condução sob influência do álcool um crime a se, a exclusão contratual não exige a causalidade direta entre uma e outra, aludindo a causalidade indireta (decorra, direta ou indiretamente).
Não se trata aqui de impor à seguradora a demonstração de que, em concreto, o sinistro se deu diretamente por força da TAS, mas sim que este, pelo menos indiretamente, sobreveio àquela.
Afirmar que um evento é causa indireta do outro não corresponde, por isso, a uma causa direta, sendo suficiente a causa indireta.
A causa indireta é relevante para a imputação objetiva do resultado à ação do agente, sempre que esta apenas tenha tido lugar face à existência da conduta prévia daquele e por motivo desta, isto é, não surgindo como uma causa acidental.
Subsiste o nexo de causalidade quando o sinistro decorre de uma ação - despiste – que foi, ela própria, favorecida por outra (embriaguez).
Recorde-se que na formulação originária da causalidade adequada, a formulação negativa de Enneccerus-Lehmann, o facto só não constitui uma causa do dano se for de todo em todo indiferente à produção daquele, verificando-se o resultado pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais.
Ora, em abstrato, uma TAS superior a 0,5g/l é causa adequada de sinistro automóvel.
Essa sinistralidade decorrente da embriaguez torna-se um facto evidente quando a TAS e superior a 1,2 g/l, tanto que a lei criminaliza a atuação de quem assim conduza.
Deste modo, com uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l, este facto só não constitui uma causa do acidente se for de todo em todo indiferente à produção daquele, verificando-se o resultado pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais.
Quer isto dizer que, conduzindo o sinistrado com uma TAS de 1,79 g/l (taxa que não é apenas superior ao limite mínimo legal, mas sim constitutiva de crime), bastaria à Ré alegar esse facto e a cláusula excludente da cobertura, para não assistir aos beneficiários direito a receber a indemnização pretendida.
Não se coloca aqui, mais uma vez, como se pretende em recurso, a questão da prova pela Ré do nexo de causalidade. Esse nexo está provado e ficou explícito em sede de fundamentação de facto.
Caberia aos AA., isso sim, em face das evidências, alegar e demonstrar que o resultado sinistro e a morte do segurado ocorreram pela intervenção de circunstâncias anómalas ou excecionais, sendo a TAS criminosa meramente acidental, o que não sucedeu.
A solução desta al. b), parte inicial (crimes e outros atos dolosos do segurado contra si próprio), é, aliás, consentânea com a previsão da parte final, excluindo o suicídio como fonte de indemnização.
Razões de política social explicam que as legislações europeias mais recentes imponham a cobertura do suicídio da pessoa segura decorrido certo tempo a contar da celebração do contrato.
Particularmente no que respeita aos seguros de vida realizados no âmbito de contratos de empréstimo para compra de habitação, é socialmente inadmissível que tendo-se um dos cônjuges suicidado nada mais possa restar ao sobrevivo do que vender o imóvel.
Assim, em França (artigo L. 132-7 do Código dos Seguros, na redacção dada pela lei n.° 2001-1135, de 3 de Dezembro), a cobertura do suicídio é imposta decorrido um ano após a conclusão do contrato, ficando a seguradora proibida de assumir o risco antes. Nos seguros de vida organizados por estabelecimentos de crédito, é sempre assegurada a protecção do cônjuge sobrevivo. E, na Alemanha, a cobertura é imposta decorridos três anos sobre a conclusão do contrato, mas o prazo pode ser aumentado em casos individualizados (§161 da lei sobre o contrato de seguro).
Alheio a estas exigências sociais, o nosso legislador limitou-se a estabelecer a exclusão da cobertura, em caso de suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato, salvo cláusula em contrário (artigo 191.°, n.°1).
A seguradora é, pois, livre de excluir a cobertura nos outros casos.
E, a exclusão da indemnização por danos ocorridos aquando da condução com TAS geradora de crime de perigo comum é, a todos os títulos, semelhante à exclusão da morte decorrente de suicídio e segue a noção de risco conatural à natureza do contrato de seguro o que justifica que, à partida, os atos dolosos do segurado integrem o que Engrácia Antunes apelida de delimitação secundária ou pela negativa do contrato de seguro[10].
A interpretação da cláusula excludenda efetuada em primeira instância respeitou, assim, as regras dos arts. 236.º CC e 10.º da LCCG, não se tratando aqui de caso de dúvida que imponha interpretação favorável ao contraente mais vulnerável.
Diferente é a cláusula da al. f) – o alcoolismo mencionado em alguns arestos referidos pelos recorrentes.
Nesse caso, a fim de se excluir a obrigação contratual de indemnizar, será mister que a seguradora prove que a morte resulta de afeção originada diretamente ou consequência do alcoolismo.
Alcoolismo não pode deixar aqui de ser entendida como doença - e não situação ocasional ou pontual de condução em estado de embriaguez - capaz de gerar uma afecção da saúde de que resulte a morte.
Quanto a nós, não é essa a situação dos autos, pelo que a exclusão por esta alínea não se verifica.
Em todo o caso, dado o funcionamento da primeira das mencionadas razões de exceção, a solução final do pleito é a achada em primeira instância.

Dispositivo
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Ds

Porto, 20.9.2021
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões
_____________
[1] Prova pode ter-se, ainda, atividade, enquanto ato das partes tendente a convencer o julgador da realidade dos factos; ou como resultado, como criação no espírito do julgador da convicção da respetiva ocorrência – Rita Lynce de Faria, anotação ao art. 341.º Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica, p. 810 e Código Civil Comentado I Parte Geral, 2020, Coord. Menezes Cordeiro, p. 983 e 984.
[2] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 215.
[3] Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Vol. I, Coord. Ana Pratas, 2.ª Ed., p. 468. Veja.se, ainda, António Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil – Vol. II, 3.ª Edição, Almedina, 2000, p. 234: “Conquanto nem sempre resulte explícita a sua intervenção na formação da convicção, as presunções judiciais constituem um mecanismo necessário para levar o Tribunal a afirmar a verificação de certo facto controvertido, suprindo as lacunas de conhecimento ou de informação que não possam ser preenchidas por outros meios de prova, ou servindo ainda para valorar os meios de prova produzidos”.
[4] Cláudia Trindade, A Prova de estados subjetivos no processo civil: presunções judiciais e regras da experiencia, 2016, p. 249.
[5] A. Varela e Pires de Lima, anotação do art. 349.º Código Civil Anotado.
[6] Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Ed., Coimbra Editora, 2013, p. 223.
[7] Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2.ª Ed., p. 160.
[8] Cfr. SOUSA, LUÍS FILIPE PIRES DE, op. cit., p. 31.
[9] Vide Ac. do S.T.J. de 24-06-2004, Proc. n.º 03B3811: “III - A taxa de álcool no sangue de 3,09 gr/l - elevada ao sêxtuplo do limite legal vigente de 0,5 gr/l - de que o condutor do veículo sinistrado era portador no momento do acidente, à luz de regras da experiência e técnico-científicas segundo as quais uma tal extraordinária concentração de álcool no sangue importa necessariamente acentuada quebra da capacidade para a condução, permite à Relação induzir, como puros factos despidos de coloração jurídica, que o condutor se encontrava em estado de profunda embriaguez, determinando uma agravação dos riscos de acidente, e que a eclosão deste se devera à acção do álcool; IV - No tocante, porém, a este aspecto da causalidade, a presunção, como operação de factos sobre factos, concerne unicamente à causalidade naturalística da condução concretamente desenvolvida com alto grau de alcoolemia e embriaguez na produção do acidente e da morte, ou seja, como conditio (necessária, no caso concreto) de efectivação destes resultados, posto que a questão de saber se a embriaguez do condutor foi do mesmo passo causa adequada dos aludidos eventos situa-se já no plano jurídico da causalidade e não pode ser resolvida pela via de presunção judicial; V - Contudo, na acepção mais criteriosa da causalidade adequada, a denominada «formulação negativa», o facto que actuou como condição do dano só deixa de ser considerado causa adequada deste se, dada a sua natureza geral, for de todo indiferente para a sua verificação, tendo-o causado só por virtude de circunstâncias excepcionais, extraordinárias ou anómalas que intervieram no caso concreto; VI - Não sendo este, todavia, o caso, pode a Relação, julgando de direito em face da presunção extraída quanto à causalidade naturalística, concluir inclusivamente que a profunda embriaguez do condutor foi causa adequada do despiste e colisão com uma árvore do automóvel por ele tripulado que o vitimou mortalmente”.
[10] O contrato de seguro na LCS de 2008, p. 840 a 843, disponível em https://portal.oa.pt/upl/%7Be96274ba-f961-4442-a4e4-46fb5338440e%7D.pdf