Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
9868/13.0TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
CONTRATO PROMESSA
ALEGAÇÃO IMPLÍCITA
Nº do Documento: RP201502059868/13.0TBVNG.P1
Data do Acordão: 02/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se nas conclusões das alegações o recorrente se limita a reproduzir factos, uns julgados provados e outros não provados, tem de se entender que se a sua intenção era impugnar a decisão da matéria de facto o recurso deve ser rejeitado nessa parte por incumprimento absoluto dos requisitos da impugnação dessa decisão.
II - Em princípio, nos casos em que o contrato-promessa é acompanhado da traditio da coisa para o promitente-adquirente, os poderes de facto que este passa a exercer sobre a coisa têm a natureza de simples detenção e não de verdadeira posse.
III - Nessa situação, o promitente-adquirente apenas pode adquirir a propriedade da coisa por usucapião se inverter o título da posse, tornando-se verdadeiro possuidor da coisa.
IV - Esse promitente-adquirente pode, excepcionalmente, ter a posse da coisa se as circunstâncias do caso revelarem que os promitentes quiseram concretizar de imediato o efeito real do contrato prometido e transferir definitivamente o direito, constituindo indicio dessa vontade o pagamento integral ou quase integral do preço.
V - Se um determinado facto foi expressamente julgado não provado, não é possível deduzir de outro facto provado a realidade que estava contida no facto julgado não provado.
VI - Os articulados de uma acção carecem de ser interpretados, podendo o tribunal atender a factos integrantes da causa de pedir que estejam apenas implicitamente alegados desde que se possa concluir que a parte contrária se apercebeu ou podia aperceber-se dessa alegação implícita.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recursos de Apelação
Processo n.º 9868/13.0TBVNG.P1 [Comarca do Porto /Instância Central de Gaia /Cível]

Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I.
B…, C…, ambos residentes em … e D…, residente em …, todos na Suíça, na qualidade de herdeiros na herança aberta por óbito de E…, instauraram acção judicial contra F…, G…, ambos residentes em …, Vila Nova de Gaia, e H…, residente em …, na Suíça, na qualidade de herdeiros habilitados na herança aberta por óbito de I…, pedindo:
o seu reconhecimento “como proprietários do rés-do-chão e do quintal…, ou, em alternativa, comproprietários da totalidade do prédio identificado no artigo 1º” da petição inicial.
Para o efeito, alegaram que em 9 de Agosto de 1982, o réu F… e mulher prometeram vender aos pais dos autores, pelo preço de 2.000.000$00, o rés-do-chão do prédio sito na Rua …, n.º …, …, incluindo o respectivo quintal, que se encontra registado na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia e aí inscrito a favor dos promitentes vendedores, tendo recebido no acto a totalidade do preço. Nessa data os promitentes-vendedores entregaram aos promitentes compradores o referido rés-do-chão e quintal, com a intenção de transferir o direito de propriedade a título definitivo, e desde essa data os aqui autores, por si e por seus pais praticaram, em seu nome, todos os actos de conservação, manutenção e administração ordinária e extraordinária do rés-do-chão e quintal do prédio, nele realizando benfeitorias e habitando, usando e fruindo como verdadeiros proprietários, à vista de todos e sem oposição de ninguém, sendo reconhecidos publicamente e comportando-se como verdadeiros proprietários, pelo que adquiriram o direito de propriedade por usucapião.
Os réus contestaram e deduziram reconvenção, formulando o pedido de condenação dos autores a entregar aos réus o rés-do-chão e a parte do quintal objecto do contrato promessa livres e desocupados de pessoas e coisas.
Alegaram para o efeito que o contrato-promessa tinha por objecto não todo mas apenas parte do quintal e que na sequência da sua celebração os falecidos pais dos autores, e não estes, habitaram, usaram e fruíram de facto o rés-do-chão e essa parte do quintal, não por se acharem proprietários dos mesmo ou serem reconhecidos como tal, mas em virtude da traditio do bem objecto da promessa, sendo por isso meros detentores do bem que sabiam pertencer aos réus. Sucede que o contrato promessa foi celebrado há mais de 30 anos e por isso os direitos que para os autores pudessem resultar do mesmo encontram-se prescritos nos termos do art. 309º do Código Civil, pelo que os autores devem entregar o rés-do-chão e a parte do quintal em causa.
Os autores responderam à reconvenção afirmando apenas que “mantém na íntegra tudo o alegado na petição inicial”.
A acção prosseguiu até julgamento, findo o qual foi proferida sentença a julgar “a acção integralmente improcedente por não provada, absolvendo os réus dos pedidos contra si deduzidos”, declarar “prescritos os direitos emergentes do contrato”, e absolvendo “os reconvindos do demais peticionado pelos reconvintes”.

Do assim decidido, os autores interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. O Réu F… prometeu vender o Rés-do-chão do prédio melhor identificado na Petição Inicial.
2. O preço estipulado de 2000 contos, actualmente 9.075,96 Euros, foi efectivamente pago pelos Autores.
3. Desde a data de celebração do identificado contrato deu-se a entrega da coisa, a transição do imóvel e ali passaram a habitar os Autores.
4. Sem oposição dos Réus ou de terceiros.
5. E praticaram todos os actos de conservação e manutenção do respectivo quintal e nele praticado todos os actos de administração ordinária e extraordinária.
6. Desde Agosto de 1982 que os antecessores dos Autores e estes depois deles usaram e usufruíram da parte do prédio por si habitada como verdadeiros proprietários.
7. Sendo reconhecidos publicamente como proprietários nomeadamente pelos Réus.
8. No acto da outorga do referido contrato promessa houve intenção de transferir o direito de propriedade do Rés-do-chão e o quintal a título definitivo, conforme declaração expressa da testemunha J….
9. Desde essa data que os Autores e seus ante possuidores se comportam como verdadeiros proprietários do mesmo.
10. Estão assim verificados os elementos constitutivos do direito invocado, de usucapião, verificando-se assim a previsão dos artigos 1251°, 1258°, 1260°, 1261° e 1263° alín. b) do C. Civil.

Os réus responderam a estas alegações pugnando pela manutenção do julgado e aproveitaram para apresentar recurso subordinado de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Da prescrição reconhecida na douta sentença proferida não resulta (cf. art. 304º CC) a restituição por parte dos Réus do que quer que seja aos Autores, designadamente o preço pago, o que apenas aconteceria no caso de nulidade ou de resolução (arts. 289º, 433º e 434º CC).
2. Como tal, não poderia obstar à procedência do pedido reconvencional formulado a circunstância de os Réus não se proporem restituir aos Autores o preço pago.
3. A fls. 92 a 98 encontra-se certidão predial permanente referente ao prédio em apreço da qual consta que o mesmo se encontra registado a favor do Réu F… e da sua falecida mulher, I… (sendo que os Réus foram demandados na presente acção na qualidade de herdeiros desta, conforme correcção operada na audiência final).
4. Nos termos do art. 7º CRP, é de presumir que os mesmos são os donos do prédio em questão.
5. Atendendo a que os Autores não alegaram qualquer facto que abalasse tal presunção, daí resulta que se encontram reconhecidamente em juízo os donos do prédio em questão, os quais têm legitimidade para o reivindicar dos Autores.
6. Aliás, para o efeito bastaria o Réu F… (arts. 1404º e 1405º nº 2 CC).
7. Como os próprios Autores alegaram na petição inicial, os mesmos ocupavam o prédio em causa em virtude do contrato promessa em questão.
8. Tendo prescrito todo e qualquer direito emergente desse contrato promessa (como aliás, se reconheceu), daí resulta que os Autores deixaram de ter título que lhes permita semelhante ocupação.
9. O pedido de reconhecimento da propriedade do prédio em questão está implícito no pedido de restituição do mesmo (neste sentido, por todos, Pires de lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, anotação 2 ao art. 1311º).
10. Afigura-se que o pedido reconvencional formulado de condenar os Autores a entregar aos Réus o rés-do-chão e o quintal objecto desse contrato promessa, livres e desocupados de pessoas e coisas, deveria ter sido julgado procedente.
11. Entendendo diferentemente, a douta sentença recorrida violou o disposto nos arts. 304º, 289º, 433º, 434º, 1404º, 1405º nº 2 e 1311º CC e 7º CRP pelo que deve ser revogada.
Os autores não responderam ao recurso subordinado.

Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i)Se a decisão da matéria de facto foi validamente impugnada no recurso dos autores.
ii)Se os poderes de facto exercidos pelo promitente adquirente sobre a coisa prometida objecto de traditio constituem uma situação de mera detenção ou verdadeira posse susceptível de consentir a usucapião do direito.
iii)Se a causa de pedir da reconvenção é apenas a prescrição ou compreende, ainda que de forma implícita, a invocação do direito de propriedade.
iv)Se estão reunidas as condições para a procedência do pedido de entrega do imóvel aos réus.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
a) Por contrato celebrado em 9 de Agosto de 1982, o Réu F… e sua mulher, prometeram vender a E…, o rés-do-chão do prédio sito na Rua …, n.º …, da freguesia …, concelho de Vila Nova de Gaia, que confronta do nascente com K… e Outro, do poente com L…, bem como do norte e do sul com caminho, incluindo pelo menos parte do respectivo quintal, devidamente demarcado e que se encontra inscrito na 2ª Repartição de Finanças de Vila Nova de Gaia, sob o artigo U-2602 e registado na competente Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número 01958/110196, de …, aí registado a favor dos ali promitentes vendedores, pela inscrição G-1.
b) O preço estipulado foi de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos), actualmente € 9.975,96 (nove mil, novecentos e setenta e cinco euros e noventa e seis cêntimos).
c) O preço acordado foi recebido integralmente pelos promitentes vendedores no próprio dia da celebração do contrato, tendo os ali promitentes vendedores dado a respectiva quitação.
d) Desde a data de celebração do contrato, a ali identificada promitente compradora e seu marido passaram a habitar o rés-do-chão do imóvel, sem oposição dos réus ou de terceiros (parte do artigo 8º da petição inicial).

IV.
A] Recurso dos autores:
As conclusões das alegações de recurso dos autores suscitam algumas dúvidas sobre o verdadeiro objecto do recurso interposto.
O objecto do recurso de uma decisão é sempre a parte desfavorável ao recorrente já que só quem ficou vencido, e na medida em que o ficou, pode recorrer da decisão (artigo 631.º do novo Código de Processo Civil). Para além desse limite ao poder de cognição do tribunal de recurso, outros podem advir do modo como o recorrente entendeu delinear o seu recurso, uma vez que quando a parte dispositiva da sentença contiver decisões distintas o recorrente pode restringir o recurso a qualquer delas (artigo 635.º).
Com base nos artigos 608.º, nº 2, 609.º, n.º 1, 635.º, nº 4, e 639.º, do Código de Processo Civil constitui jurisprudência continuamente reafirmada que o thema decidendum do recurso é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, não sendo permitido ao tribunal ad quem conhecer de questões que extravasem as conclusões de recurso, excepto se as mesmas forem de conhecimento oficioso.
A delimitação do objecto do recurso pela formulação das conclusões das alegações conduz a que seja em função destas e não propriamente das alegações em sentido estrito, que se devam interpretar a balizar as questões que o tribunal de recurso pode e deve conhecer, as quais só podem exceder o mencionado nas referidas conclusões no caso de se tratar de questões de conhecimento oficioso e cujo conhecimento não esteja precludido ou prejudicado.
Nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil as alegações de recurso devem dividir-se em corpo das alegações, nas quais o recorrente deve expor todos os fundamentos ou argumentos através dos quais procura convencer o tribunal de recurso da sua razão, e conclusões das alegações, nas quais o recorrente deve sintetizar as concretas questões que pretende que o tribunal de recurso aprecie e decida.
As conclusões de recurso não servem pois para repetir os factos (necessariamente, os provados) que suportarão a decisão do tribunal de recurso, servem para sintetizar as questões que se pretende que o tribunal aprecie e o sentido com que as deverá decidir. Se uma dessas questões é a impugnação da decisão da matéria de facto, terão de fazer parte das conclusões itens especificando essa pretensão e cumprindo os requisitos de depende a validade da impugnação.
Ora nas conclusões de recurso os autores limitam-se a elencar factos, sendo que uma parte deles foram julgados provados (conclusões 1 a 4) e os restantes foram mesmo julgados não provados (conclusões 5 a 9), terminando os autores, na última conclusão (10), com a afirmação de que “estão assim verificados os elementos constitutivos do direito invocado de usucapião”.
Lendo o corpo das alegações de recurso percebe-se que os recorrentes pretenderiam impugnar a decisão da matéria de facto, tanto mais que certamente sabiam que a decisão do tribunal só pode ter por base factos provados. Todavia, como referido, nas conclusões das alegações de recurso os recorrentes não fazem qualquer referência a essa intenção. Mais que isso, os recorrentes não observam minimamente qualquer dos requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto.
Conforme prevê o artigo 640.º do novo Código de Processo Civil, querendo impugnar a decisão da matéria de facto o recorrente tem de especificar, obrigatoriamente e sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, os seguintes aspectos: os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que na óptica dos recorrentes impunham decisão diversa e o sentido da decisão que deve ser proferida, sendo que no tocante aos depoimentos gravados carece de indicar as passagens da gravação em que se funda o seu recurso.
A lei impõe assim ao recorrente que individualize os factos que estão mal julgados, que especifique os meios de prova concretos que impõem a modificação da decisão, que indique o sentido da decisão a proferir e, inclusivamente, tratando-se de depoimentos de testemunhas gravados, que precise as passagens do depoimento que tal hão-de permitir.
No preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15/02, que introduziu o artigo 690º-A do Código de Processo Civil, na versão anterior à do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, justificava-se essa solução da seguinte forma: “A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Não poderá, deste modo, em nenhuma circunstância, admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido. A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação”.
A violação deste ónus, preciso e rigoroso, conduz, nos termos expressos e, por conseguinte, intencionais da norma, à rejeição imediata do recurso na parte afectada, não havendo sequer lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento da falha – neste sentido cf. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 145 e seguintes – porquanto esse convite se encontra apenas consagrado no n.º 3 do artigo 639.º do Código de Processo Civil para as conclusões das alegações sobre matéria de direito.
Tem-se entendido, aliás, que o cumprimento deste ónus deve ser feito com rigor e a falha correspondente não deve ser vista com benevolência. É o entendimento de Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Novo Regime, pág. 147, onde este autor sustenta que “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor, próprio de um instrumento processual que visa pôr em causa o julgamento da matéria de facto efectuado por outro tribunal em circunstâncias que não podem ser inteiramente reproduzidas na 2ª instância. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”. No mesmo sentido, por exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.07.2012, no processo nº 781/09.6TMMGR.C1, in www.dgsi.pt.
Como começámos por assinalar, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam as questões colocadas à apreciação do tribunal de recurso, pelo que é nelas que se devem mostrar cumpridos os requisitos da impugnação da decisão da matéria de facto, quando essa é, por vontade dos recorrentes, uma das questões suscitadas ao tribunal de recurso.
Sucede que nas conclusões, não se encontra em momento algum a enunciação dos concretos pontos da matéria de facto que os recorrentes consideram terem sido incorrectamente julgados, não consta a indicação do sentido da decisão que o recorrente defende que deve ser proferida pela Relação, não consta a indicação dos meios de prova que justificam a alteração da decisão e não consta a indicação das passagem da gravação desses meios de prova.
Da mesma forma que não se faz, com intenção do cumprimento desses requisitos, qualquer remissão para o corpo das alegações, o que permitiria, eventualmente, considerar que essa falha das conclusões era irrelevante e que, apesar da irregularidade, os requisitos estavam implícita e suficientemente cumpridos.
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, não resta outra solução que não seja a de rejeitar o recurso na parte em que o mesmo tem ou teria por objecto a impugnação da decisão da matéria de facto e a alteração dos factos sobre os quais pode recair a nossa decisão.

É um dado que não carece de qualquer justificação que de entre os factos que foram alegados em devido tempo ou que lhe é permitido conhecer, o tribunal apenas pode fazer a aplicação do direito aos factos que na sequência da produção dos meios de prova foram julgados provados. Os factos julgados não provados são, para efeitos da decisão, tratados como se não tivessem sido alegados sequer, ou seja, totalmente desconsiderados.
Pese embora os recorrentes sustentem o preenchimento dos pressupostos da aquisição do direito de propriedade ou compropriedade por usucapião com apoio em factos que foram julgados não provados e que assim permanecerão em definitivo, não podendo este tribunal ater-se a eles o que se deve perguntar é se os factos provados são suficientes para suportar essa conclusão jurídica.
Para justificar a aquisição do direito de propriedade os autores invocam o instituto da usucapião, que é uma das formas de aquisição originária do direito de propriedade que se dá, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, 2ª edição, pág. 64, “pela transformação em jurídica duma situação de facto, de uma mera aparência, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.”
Resulta do artigo 1287º do Código Civil que a aquisição do direito por usucapião depende de dois requisitos: a posse do direito e decurso de certo lapso de tempo. É ainda necessário para permitir a aquisição do direito que a posse seja pública e pacífica.
Na noção do artigo 1251º do Código Civil, a posse consiste no “poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. É maioritário o entendimento de que o Código Civil consagra a chamada concepção subjectiva da posse[1], segundo a qual a posse é constituída por dois elementos: o elemento objectivo ou “corpus” e o elemento subjectivo ou “animus” (art. 1251º e 1253º CC). Nessa concepção, tem posse quem exerce poderes de facto correspondentes ao exercício do direito, com a intenção de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa. Não basta, portanto, o simples poder de facto, é necessário que o detentor actue com a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela.
As formas de aquisição da posse encontram-se previstas no artigo 1263.º do Código Civil. Nos termos deste preceito, a posse pode ser adquirida de forma originária ou derivada. Adquire-se originariamente por apossamento ou inversão do título. Adquire-se derivadamente por tradição, sucessão ou constituto possessório.
O apossamento é a aquisição da posse por intermédio da prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito. A tradição é a transferência voluntária da posse entre vivos, em regra quando a transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre quando há entrega da coisa. A inversão do título da posse ocorre quando o detentor altera a sua relação com a coisa e se passa a comportar como verdadeiro titular do direito real, o que tem de se traduzir numa oposição, por actos positivos inequívocos, àquele em cujo nome a possuía, ou resultar de um acto de terceiro capaz de transferir a posse.
Nos termos do artigo 1290º do mesmo diploma, os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído. Essa faculdade é limitada aos verdadeiros possuidores. Ora, decorre do artigo 1253º que são havidos como detentores ou possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito, os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito, os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.
No caso em apreço, os autores alegam ter sido celebrado com os réus, em nome de quem o imóvel se encontra inscrito no registo predial, um contrato-promessa para a aquisição derivada do imóvel por compra e venda.
Ora do contrato-promessa nasce uma obrigação de prestação de facto positivo, consistente na emissão da declaração de vontade negocial correspondente a um outro negócio cuja futura realização pretendem assegurar, chamado negócio prometido ou negócio definitivo. Por outras palavras, no contrato-promessa de compra e venda, os promitentes obrigam-se apenas a emitirem posteriormente as declarações negociais de compra e de venda do bem mencionado no contrato-promessa. O efeito translativo da propriedade ocorre apenas no caso e no momento em que se efectivar o contrato prometido e não por mero efeito da promessa.
Acresce que o contrato-promessa é, em princípio, um contrato de eficácia obrigacional, só produzindo efeitos entre as partes e seus herdeiros. Quando o contra-promessa tenha por objecto a transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis ou móveis sujeitos a registo, as partes podem atribuir-lhe eficácia real (erga omnes) desde que o declarem expressamente, façam constar a atribuição de escritura pública e inscrevam no registo os direitos emergentes da promessa (artigo 413.º do Código Civil). No caso nada disso se verificou pelo que é inequívoco que o contrato tem efeitos puramente obrigacionais. Dado que o contrato-promessa não tem, portanto, efeito translativo do direito real, nem, por si mesmo, da posse do imóvel, por princípio o promitente-comprador é um possuidor em nome alheio ou um mero detentor em nome de outrem.
Por vezes, concomitantemente com a celebração do contrato-promessa, os promitentes acordam a entrega antecipada ao promitente-comprador da coisa prometida vender. Essa traditio surge assim não como efeito central ou próprio da promessa, mas de um contrato atípico ou inominado, autónomo em relação ao contrato-promessa e gerador de um direito pessoal de gozo do promitente-adquirente, em função do qual este pode usar a coisa até à celebração do contrato prometido ou até à resolução do contrato por parte do promitente-vendedor. Essa faculdade de uso da coisa obedece às condições do acordo estabelecido e, portanto, consoante esse acordo, pode compreender maior ou menor amplitude de poderes, designadamente os poderes correspondentes a um verdadeiro direito de uso, a um aproveitamento de todas as utilidades que o bem pode proporcionar, similares aos poderes do verdadeiro proprietário.
No entanto, mesmo nessas condições o promitente que em antecipação dos efeitos do contrato prometido que se tem em vista celebrar, obteve a traditio da coisa não assume como efeito automático da traditio o estatuto de possuidor. Mesmo nessa situação ele sabe que a coisa pertence ao promitente-vendedor e que só se tornará sua propriedade se e quando o negócio prometido for celebrado, pelo que carecerá, em regra, do “animus” necessário para converter o seu “corpus” sobre o bem em situação de verdadeira posse e não de mera detenção.
Se o promitente-comprador é um mero detentor da coisa e o mero detentor não pode adquirir para si por usucapião, resulta que para que essa aquisição seja possível o promitente-comprador tem de inverter o seu título de posse e passar a ter verdadeira posse da coisa (artigo 1290.º).
No entanto, para haver inversão do título de posse não basta que o detentor se tenha passado a considerar, em nome próprio, titular do direito correspondente à actuação exercida sobre a coisa. É necessário que essa relação subjectiva com a coisa se tenha traduzido numa actuação concreta, reveladora da alteração de posição, e que essa actuação tenha sido direccionada contra a pessoa em nome de quem detinha, através de actos públicos dele conhecidos ou cognoscíveis.
Como refere Durval Ferreira, in Posse e Usucapião, pág. 188 e segs., a oposição do detentor contra aquele em cujo nome possuía implica a necessidade de o detentor tornar directamente conhecida daquele, quer judicial, quer extrajudicialmente, a sua intenção de actuar, no plano dos factos e empiricamente, como sendo titular do direito, razão pela qual não bastam, pois, meras palavras; é preciso que o inversor passe das palavras aos actos e que os actos sejam uma oposição directa e como sendo dono, ao possuidor.
Por conseguinte, para a pessoa que tem o uso da coisa na qualidade de detentor inverter o título da posse e passar a ser verdadeiro possuidor não basta que tenha havido da sua parte a intenção de o inverter, é necessário que a sua oposição se concretize em actos materiais ou jurídicos inequivocamente reveladores de que o opositor quer actuar, a partir da oposição, como titular do direito sobre a coisa e que essa actuação se dirija contra a pessoa em nome de quem detinha e dela se torne conhecida. O que significa que nunca se poderá extrair a conclusão de que houve inversão do título da posse se apenas estiver demonstrado o facto de que a pessoa que tinha o uso da coisa “actuava na convicção de ser titular de um verdadeiro direito”.
Pode, no entanto, acontecer que o promitente-adquirente que recebe a traditio da coisa objecto da promessa e passa a exercer sobre a mesma poderes de facto seja não um detentor precário mas um verdadeiro possuidor. Em boa verdade, como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.9.2008, in www.dgsi.pt, “a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente de uma apreciação casuística dos termos e do conteúdo do respectivo negócio”. Não se pode excluir, com efeito, que as circunstâncias do caso concreto revelem que as partes quiseram com a tradição da coisa antecipar os efeitos do contrato definitivo, colocando de imediato o promitente-comprador a actuar como se fosse o proprietário da coisa e com a convicção de já o ser (neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.04.2011 e de 12.07.2011 in www.dgsi.pt).
Menezes Cordeiro, in A Posse – Perspectivas Dogmáticas Actuais, 3ª ed., pág. 77, sustenta para efeitos de determinação da natureza dos poderes de facto do promitente adquirente sobre a coisa prometida que “ tudo depende da vontade das partes: haverá, pois, que interpretar o acordo relativo à traditio usando, para isso e se necessário, todos os demais elementos coadjuvantes”. Este autor acrescenta que estaremos perante uma situação de verdadeira posse susceptível de permitir a aquisição do direito por usucapião quando “a traditio visou antecipar o cumprimento do próprio contrato definitivo; trata-se duma hipótese frequente nos casos em que o preço esteja todo ou quase todo pago”.
Na mesma linha Calvão da Silva, in Sinal e Contrato Promessa, 12ª edição, pág. 237, nota 55, defende que “em todos os casos de tradição da coisa operada pelo promitente – vendedor, a ocupação, uso e fruição da coisa pelo promitente-comprador é lícita e legítima, na falta de termo especial, até à resolução do contrato-promessa ou celebração do contrato definitivo (…) constituindo-se também neste aspecto uma relação jurídica obrigacional que confere ao promitente comprador o direito (relativo) de ocupar, usar e fruir a coisa até a uma daquelas duas situações referidas”. Todavia, segundo este autor, não é “possível a priori qualificar de posse ou de mera detenção o poder de facto exercido pelo promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido entregue antecipadamente. Tudo dependerá do animus que acompanhe esse corpus”.
Também Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 2ª edição, vol. III, pág. 6 e seguintes entendem que “o contrato-promessa não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente-comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não adquire o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário”. Todavia, assinalam que podem existir situações excepcionais em que a posição jurídica do promitente-comprador corresponde à de verdadeiro possuidor e dão como exemplo as situações “em que foi paga a totalidade do preço ou que, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (evitar o pagamento da sisa ou precludir o exercício de um direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente comprador como se sua fosse já e que, neste estado de espírito, ele pratica sobre ela diversos actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade. Tais actos não são realizados em nome do promitente-vendedor, mas sim em nome próprio, com a intenção de exercer sobre a coisa um verdadeiro direito real.”
Deve no entanto, acentuar-se, que a qualificação da natureza dos poderes de facto do beneficiário da tradição da coisa objecto do contrato promessa de compra e venda, em função da ponderação casuística dos termos do negócio e das circunstâncias que o rodearam ou se seguiram à sua celebração, depende em última linha da possibilidade de se concluir que não obstante o contrato-promessa os intervenientes quiseram de facto considerar o contrato como definitivo, ou seja, como produtor de imediato e em definitivo dos efeitos translativos próprios do contrato prometido, seja porque para os próprios isso assim era desejado e foi posto em prática, seja porque anteviam a impossibilidade de celebrar o negócio prometido mas desejaram ainda assim, apesar da eventual invalidade do negócio, produzir entre eles os efeitos jurídicos do negócio prometido.
Vale isso por dizer que as circunstâncias a atender não valem de per se, ou seja, não existe um elenco de circunstâncias relativas ao contrato e à negociação que funcionem como uma espécie de pressuposto da posse que acresça aos pressupostos do artigo 1251.º do Código Civil e em função da cuja presença devemos concluir sem mais que estamos perante uma situação de posse juridicamente relevante. Essas circunstâncias funcionam como índices da presença do animus conatural à verdadeira posse, ou seja, como factos que permitem presumir que no caso concreto os poderes de facto do promitente adquirente andam acompanhados da verdadeira convicção de que já é realmente titular do direito e, como tal, a situação é de verdadeira posse.
Feito este breve enquadramento teórico dos dados legais a cuja aplicação o caso apela, estamos em condições de centrar a atenção na matéria de facto para retirar as necessárias ilações jurídicas.
Convém no entanto deixar claro que a matéria de facto é muito reduzida e que resultou não provada matéria que seria muito importante para a avaliação a fazer, circunstância que dificulta sobremaneira a tarefa do tribunal e a procura da justiça do caso concreto que é o objectivo primeiro de qualquer decisão jurisdicional.
A primeira conclusão que se retira da matéria de facto provada é que não existe qualquer facto que possa preencher a figura da inversão do título da posse. Quando muito pode colocar-se a hipótese do apossamento. Por conseguinte, ou consideramos que os factos provados traduzem ab initio uma situação de verdadeira posse ou teremos de excluir qualquer possibilidade de o direito ter sido adquirido por usucapião uma vez que sem inversão de título da posse a mera detenção nunca possibilitaria a aquisição do direito por essa via.
A matéria de facto revela-nos que em 1982, entre a antecessora dos autores e os réus, foi celebrado um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel descrito no registo predial e aí inscrito a favor dos réus. Revela ainda que o preço pelo qual foi acertada a compra e venda prometida foi integralmente pago no próprio dia da celebração do contrato. E, finalmente, que desde a data de celebração do contrato, a promitente compradora e seu marido passaram a habitar o imóvel prometido, sem oposição dos réus ou de terceiros.
Não resulta expressamente da matéria de facto em virtude de que acordo passou a promitente-compradora a habitar o imóvel. Com efeito, no texto do contrato-promessa que está junto a folhas 13 e 14 dos autos e é dado como reproduzido na matéria de facto, não se encontra qualquer menção à entrega do imóvel à promitente-compradora ou a uma eventual autorização para que esta passasse de imediato a habitar no mesmo.
Apesar disso, atendendo à simultaneidade entre a celebração do contrato-promessa e o início dessa ocupação e à circunstância de terem sido os próprios autores a alegar a celebração do contrato-promessa como estando na origem da ocupação do imóvel – o que não necessitavam de fazer para se prevalecerem do instituto da usucapião -, cremos dever interpretar a matéria de facto como traduzindo uma situação de exercício de poderes de facto sobre o imóvel tendo como origem ou causa a posição de promitente-comprador do imóvel. Tal afasta a possibilidade de sustentar que a posse teve início por apossamento.
A ser assim, como propendemos a considerar, resta verificar se existem elementos que nos permitam concluir que excepcionalmente estamos perante uma situação de verdadeira posse. Como referimos, um dos indícios dessa natureza dos poderes de facto exercidos é o pagamento da totalidade do preço aquando da celebração do contrato-promessa.
Existe, todavia, no contrato um dado que se não afasta o valor indiciário daquele, pelo menos coloca-o fortemente em crise. Referimo-nos à previsão constante do contrato de que na “hipótese da respectiva escritura não se poder levar a efeito e, portanto, este negócio deixar de se concretizar, a importância entregue como preço ajustado, será devolvida sem direito a qualquer indemnização, seja ela a que título for”.
Parece, pois, que as partes, anteviram a possibilidade de o negócio prometido não vir a ser celebrado e, para essa hipótese, pactuaram a resolução do contrato, com devolução do preço pago, e sem direito a qualquer outra indemnização, situação que não parece compatível com a formação de vontades no sentido de tornar o negócio prometido definitivo e concretizar de imediato e de forma irrevogável os seus efeitos, designadamente no tocante à relação com a coisa.
Refira-se, aliás, que tendo sido expressamente alegado que a promitente-compradora se comportava “como verdadeira proprietária” na sequência da “intenção de transferir o direito de propriedade a título definitivo” e tendo essa matéria sido julgada não provada, deve considerar-se afastada a possibilidade de interpretar a matéria de facto provada como representando algo que foi inquirido directamente e não se provou. Por outras palavras, o indício representado pelo pagamento integral do preço podia e devia ter influenciado o julgamento destes factos e se em resultado desse julgamento os factos foram julgados não provados, não deve ser possível extrair dos demais factos provados a conclusão do contrário.
Acresce, aspecto que nos parece bem mais relevante, que os poderes de facto que se provou que vêm sendo exercidos pela promitente-compradora são particularmente escassos e, sobretudo, insuficientes para permitirem concluir que a sua actuação corresponde à actuação própria de um proprietário.
Na verdade apenas se provou que ela passou a habitar com o marido no imóvel. Ora a habitação no imóvel é um aproveitamento que não é específico da actuação como proprietário, melhor dizendo, bastante para caracterizar a actuação deste. Não só a actuação do proprietário é bem mais vasta do que a simples ocupação da coisa para habitação, pressupondo ainda actos de conservação, manutenção e pagamento de impostos, como a habitação pode advir de vários outros títulos que não resultem da qualidade de proprietário e possuam natureza puramente obrigacional (comodato, arrendamento, acto de mera tolerância, etc). O que significa que não é só o animus que está por demonstrar, verdadeiramente está ainda por provar um “corpus” correspondente ao direito que se pretende adquirir.
Nessas circunstâncias, entendemos não ter elementos que permitam concluir que a antecessora dos autores estivesse verdadeiramente na posse do imóvel e sem isso não é possível concluir que a mesma adquiriu o imóvel por usucapião. Improcede assim o recurso dos autores.

B]Recurso dos réus:
O pedido reconvencional formulado pelos réus é (apenas) o pedido de condenação dos autores a entregar aos réus o rés-do-chão e a parte do quintal objecto do contrato-promessa livres e desocupados de pessoas e coisas.
Este pedido foi julgado improcedente basicamente por se ter entendido que nos termos do artigo 304.º do Código Civil a prescrição dos direitos emergentes do contrato-promessa tem o efeito de dar ao beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor ao exercício do direito prescrito e não a obrigação de restituição da coisa, sendo que para esta pretensão proceder era necessário que os réus tivessem invocado o direito de propriedade sobre a coisa e que a ocupação dos autores carece de título.
Com todo o devido respeito, afigura-se-nos que esta leitura da posição das partes na acção é algo redutora e não interpreta na plenitude os articulados apresentados, os quais, enquanto declarações de vontade tendentes ao exercício de posição jurídicas carecem de interpretação, como qualquer declaração negocial.
Os autores instauraram a acção alegando que entre a sua antecessora e o réu e sua falecida mulher foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, na sequência do qual passaram a ter a posse do bem prometido vender por estes, pretendendo que face ao tempo decorrido adquiriram a propriedade do imóvel por usucapião. Para os autores, portanto, o imóvel pertencia aos réus que o prometeram vender.
O único título legítimo invocado pelos autores para a detenção do imóvel, nessa altura pertencente aos réus, era a traditio da coisa prometida, ou seja, o acordo inerente ao contrato-promessa em virtude do qual os proprietários promitentes-vendedores autorizaram a promitente-compradora a usar e fruir da coisa prometida.
Acresce que foram os próprios autores a alegar que o imóvel se encontra inscrito no registo predial a favor dos réus, ou seja, a invocar nos articulados a presunção decorrente do registo predial a favor dos titulares inscritos, pretendendo no entanto que essa presunção cede perante a aquisição originária do direito por usucapião.
Os réus, por sua vez, contestaram alegando que o prédio lhes pertence, que os autores apenas são detentores precários do imóvel em virtude do contrato-promessa celebrado e que o direito emergente do contrato-promessa prescreveu, pelo que lhes assiste o direito de recuperar o imóvel em poder dos autores. O pedido reconvencional surge como consequência desse estado de coisas.
Parece assim claro que a alegação da titularidade do direito de propriedade sobre o imóvel está implícita na versão de qualquer das partes e subjaz à pretensão de qualquer delas. Autores e réus combatem para saber se os autores adquiriram o direito de propriedade do imóvel por usucapião, caso em que os réus terão perdido a titularidade desse direito, ou não, caso em que os réus mantêm a titularidade do direito de propriedade.
Por isso, a reconvenção dos réus deve ser interpretada não como estando baseada exclusivamente no instituto da prescrição e nos respectivos efeitos jurídicos, mas como sendo baseada no direito de propriedade do imóvel, servindo a invocação da prescrição dos direitos emergentes do contrato-promessa apenas para afastar o único título legítimo de detenção invocado pelos autores.
Por força do princípio nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, a obtenção do reconhecimento da titularidade do direito de propriedade pressupõe, em princípio, a alegação de uma forma de aquisição originária do direito. Não é assim, contudo, quando o autor tiver a seu favor uma presunção da titularidade exclusiva do direito, designadamente a que deriva do registo predial. Como já referido, foram os próprios autores a alegar a existência desse registo a favor dos réus e a juntar o documento comprovativo, alegando, portanto, nos autos o facto necessário e suficiente para dar aos réus o benefício da presunção da titularidade do direito.
É certo que a posse também atribui ao possuidor a presunção da titularidade do direito (artigo 1268.º, n.º 1, do Código Civil) e que essa presunção apenas cede perante presunção fundada em registo anterior ao início da posse, sendo que no caso o início da posse teria ocorrido em 1982 e, segundo o respectivo documento, o registo predial é apenas de 1996. Todavia, como vimos, os autores não lograram demonstrar que andam na posse da coisa, caso em que a presunção decorrente do registo cederia perante a presunção decorrente da posse, pelo que permanece incólume a presunção decorrente da inscrição do imóvel a favor dos réus.
Temos, portanto, alegado e demonstrado nos autos um facto gerador da presunção de titularidade da propriedade do imóvel a favor dos réus, alegado e demonstrado que o único título que os autores invocam para continuarem na detenção do imóvel era a traditio operada na sequência do contrato-promessa, alegado e demonstrado que por força da prescrição dos direitos emergentes do contrato-promessa os autores não podem mais exigir dos réus o cumprimento dessas obrigações e naturalmente das obrigações acessórias a esse contrato como a que permitiu a traditio da coisa prometida.
Acresce que os autores não lograram demonstrar ter verdadeira posse do imóvel, sendo certo, no entanto, que ainda que o demonstrassem, ou essa posse teria já conduzido à aquisição do direito por usucapião ou então, excluídos os direitos obrigacionais emergentes do contrato-promessa, a posse não se sobreporia à tutela do direito real (artigo 1278.º do Código Civil).
Cabia aos autores demonstrar a existência de um título válido que lhes permitisse continuar na detenção do imóvel. Não o tendo feito, subsiste a eficácia e a amplitude do direito de propriedade (artigo 1311.º do Código Civil). Dessa forma, consideramos que apesar da extrema simplicidade dos articulados foram efectivamente alegados e estão demonstrados os requisitos necessários para julgar procedente o pedido reconvencional. Procede assim o recurso subordinado dos réus.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação o seguinte:
a) julgam a apelação dos autores improcedente e confirmam a decisão recorrida no que concerne ao julgamento do pedido dos autores.
b) Julgam a apelação subordinada dos réus procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida no tocante ao pedido reconvencional, o qual julgam procedente, condenando os autores a entregar aos réus o rés-do-chão e parte do quintal que ocupam, livres de pessoas e bens.
Custas da acção e do recurso pelos autores (tabela I-B).
*
Porto, 5 de Fevereiro de 2015.
Aristides Rodrigues de Almeida (Relator; Rto182)
José Amaral
Teles de Menezes
___________
[1] Nesse sentido cf. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 5, Mota Pinto, in Direitos Reais, pág. 189, e Orlando de Carvalho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 122, pág. 65 e segs.