Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
682/13.3TTOAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO NUNES
Descritores: RETRIBUIÇÃO
ABUSO DE DIREITO
JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO PELO TRABALHADOR
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20150629682/13.3TTOAZ.P1
Data do Acordão: 06/29/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - A diminuição da retribuição apenas é possível nas específicas situações previstas no Código do Trabalho ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho.
II - Da circunstância de a um trabalhador, chefe de departamento, ao longo de três anos lhe ter sido paga retribuição inferior à devida e de o mesmo não ter reclamado de tal situação não se pode concluir pela aceitação da retribuição que lhe foi paga, pois esta situação envolveria uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, que só podia ser reduzida nas circunstâncias referidas em i).
III - Por isso, não age com abuso do direito o trabalhador que, decorridos esses três anos e na sequência da resolução do contrato de trabalho com outro fundamento, vem pedir o pagamento das diferenças entre a retribuição que lhe foi paga e a devida.
IV - Mostra-se ajustada a fixação de uma indemnização de 25 dias de retribuição base e diuturnidades, por cada ano de antiguidade ou fracção, a um trabalhador, chefe de departamento, que resolveu o contrato de trabalho com justa causa, e em que, de relevante, apenas se apura que ocorreu falta de pagamento da retribuição mensal de € 1.545,00 durante três meses seguidos, sendo que tinha de antiguidade cerca de 11 anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 682/13.3TTOAZ.P1
Secção Social do Tribunal da Relação do Porto
Relator: João Nunes; Adjuntos: (1) Des. António José Ramos, (2) Des. Eduardo Petersen Silva.

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório
B… (NIF ………, residente na Rua …, Lote .., …, ….-… …) intentou, no extinto Tribunal do Trabalho de Oliveira de Azeméis, a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra C…, Lda. (NIPC ………, com sede na Rua …, …, ….-… Águeda), pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 31.947,80 [sendo € 5.220,00 de diferenças salariais em falta, € 4.635,00 referente às retribuições de Agosto, Setembro e Outubro de 2013, € 257,50 referente à retribuição de Novembro de 2013 (até à resolução do contrato), € 1.136,67 de subsídio de férias em falta relativo às férias vencidas em Janeiro de 2013, € 3.840,44 de proporcionais de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal em relação ao trabalho prestado em 2013, € 378,19 de subsídio de Agosto de 2013 a 05 de Novembro do mesmo ano e € 16.480,00 de indemnização por resolução com justa causa do contrato de trabalho], acrescida de juros de mora desde a citação até integral pagamento, e ainda o montante das retribuições vencidas e vincendas desde Novembro de 2013 até ao trânsito em julgado da decisão.
Alegou para o efeito, muito em síntese, que foi admitido ao serviço de D…, S.A., em Outubro de 2002, mediante uma retribuição mensal de € 1.545,00, que em 30 de Dezembro de 2010 a Ré adquiriu o estabelecimento comercial daquela, assumindo todos os direitos e obrigações decorrentes dos contratos de trabalho existentes, designadamente do Autor, tendo a partir de tal data passado a trabalhar para a Ré, e que por carta datada de 05 de Novembro de 2013, que a Ré recebeu no dia seguinte, comunicou-lhe a resolução do contrato “por falta de pagamento pontual de retribuições e demais quantias que lhe eram devidas”.
Peticionou, por isso, o pagamento de indemnização por resolução do contrato de trabalho, assim como o pagamento por parte da Ré de diversos créditos salariais que sustentou serem-lhe devidos.

Designada a audiência de partes, à mesma não compareceu o legal representante da Ré.
Foi então esta notificada para, querendo, contestar a acção, o que veio a fazer, sustentando, muito em resumo, que o Autor auferia a retribuição mensal de € 1.400,00 – e não de € 1.545,00 –, que na carta em que comunicou a resolução do contrato o Autor apenas invocou o não pagamento das retribuições referentes a Agosto, Setembro e Outubro de 2013.
Aceitando o não pagamento das retribuições referentes a tal período e ainda de 05 dias de Novembro de 2013, a Ré defendeu, contudo, que o Autor agiu com abuso do direito ao vir agora alegar e peticionar a retribuição mensal de € 1.545,00 quando durante cerca de três anos recebeu a retribuição de € 1.400,00 sem nunca ter interpelado a ré para o pagamento da diferença retributiva.
Acrescentou que não pagou pontualmente a retribuição ao Autor por falta de recursos financeiros e por viver uma situação de ruptura financeira, e que o Autor não tem direito às peticionadas retribuições após a resolução do contrato.
Concluiu pela procedência parcial da acção.

Procedeu-se à elaboração de despacho saneador stricto sensu, e foi dispensada a fixação das questões da prova.

Os autos prosseguiram os seus termos, tendo-se procedido à audiência de julgamento, e em 12 de Maio de 2014 foi proferida sentença (na qual se respondeu à matéria de facto e se motivou a mesma), sendo a parte decisória do seguinte teor:
«Nestes termos, decide-se julgar parcialmente procedente a presente acção e, consequentemente, condena-se a R. “C…, Ldª.” a pagar ao A.:
i) a quantia de 4.635,00€ (quatro mil seiscentos e trinta e cinco euros), decorrente do pagamento do salário dos meses de agosto a Novembro de 2013.
ii) a quantia de 257,50€ (duzentos e cinquenta e sete euros e cinquenta cinco dias de laboração no mês de Novembro de 2013.
iii) a quantia de 1.136,67€ (mil cento e trinta e seis euros e sessenta e sete cêntimos),relativamente ao subsídio de férias reportadas às vencidas em 1 de Janeiro de 2013.
iv) a quantia de 1.799,30€ (mil setecentos e noventa e nove euros e trinta cêntimos), a título dos proporcionais dos subsídios de férias e de Natal.
v) A quantia de 378,18€ (trezentos e setenta e oito euros e dezoito cêntimos), a título de subsídio de alimentação.
vi) A quantia de 4.785,00€ (quatro mil setecentos e oitenta e cinco euros) a título de diferença salarial entre Janeiro de 2011 a Juho de 2013 e os correspondentes subsídios de férias e de Natal.
vii) A quantia de 14.162,50€ (catorze mil cento e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos) a título de indemnização decorrente da resolução do contrato por justa causa.
viii) Tudo acrescido de juros de mora, nos termos do art.º 559.º do código Civil, à taxa legal, computados desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Absolvo a R. do demais peticionado.
Dos autos não se constata a decorrência de litigância de má fé.».

Inconformada com o assim decidido, a Ré interpôs recurso para este tribunal, tendo apresentado alegações, que concluiu nos seguintes termos:
«1. A recorrente impugna a factualidade dada como provada nos Factos assentes/provados da sentença recorrida, nomeadamente, o ponto 12, ao não dar como provada a existência do documento e o seu teor, que foi junto aos autos pelo A., Lista de trabalhadores ao serviço do Estabelecimento, anexo à referida Escritura Pública realizada em 30 de Dezembro de 2010, onde consta o nome do A. e o salário mensal de €1.400,00, acrescido de €6,41 de subsídio de alimentação, que passava a auferir ao serviço da Ré, havendo erro de julgamento sobre a matéria de facto, tanto mais que a Ré havia articulado esse facto em 8º da Contestação.
2. A Ré impugna ainda a factualidade dada como não provada na sentença, nomeadamente, o constante de i) e ii) dos Factos não provados.
Não basta como fundamentação as frases: “Por falta de prova o Tribunal não formou uma convicção positiva sobre a matéria dada como não provada”, ou “Nenhuma prova foi produzida que convencesse o Tribunal no que concerne aos factos i) a iv)
3. O A. na p.i. nunca afirmou que contestou o montante de €1.400,00 que lhe foi pago pela Ré e igualmente na petição inicial o A. nunca afirmou que interpelou a R. para lhe pagar as diferenças de vencimento, devendo aplicar-se o princípio do dispositivo.
4. Na carta que o A. enviou à Ré em 5 de Novembro de 2013, rescindindo com justa causa o contrato de trabalho não fundamentava a rescisão com base na diferença do salário que lhe era pago pela Ré, no montante de €1.400,00 e o que reivindicou na p.i. no valor de €1.545,00.
5. A Ré recorrente censura a parte da sentença, quando decidiu, injustamente, que a Ré deve ser condenada na diferença salarial entre os montantes relativamente à retribuição, férias, subsídio de férias e subsídio de natal vencidos entre 1 de Janeiro de 2011 a 31 de Julho de 2013, bem como as retribuições correspondentes aos meses de Agosto a Outubro de 2013 e 5 dias de trabalho prestado em Novembro de 2013 e os proporcionais de férias, subsídio de férias e de Natal.
6. Para fundamentar esta decisão, o Tribunal invoca o princípio da irredutibilidade da remuneração, o art. 285º a 287ºdo Código do Trabalho, vária jurisprudência e sobretudo a Escritura Pública da “Alienação de Estabelecimento Industrial em Liquidação da Massa Insolvente” junto aos autos.
7. A R. pugna, salvo melhor entendimento, que não deve manter-se a decisão recorrida nesta questão das diferenças salariais, devendo a Ré ser absolvida do pagamento das diferenças salariais nos montantes indicados na sentença dos anos de 2011, 2012 e 2013.
8. O princípio da irredutibilidade da remuneração não é absoluto na nossa actual legislação nem, infelizmente, no dia a dia de milhares e milhares de trabalhadores que viram os seus salários reduzidos, incluindo os dos magistrados judiciais.
9. A Lei do Contrato de Trabalho (LCT), aprovada pelo Decreto-Lei nº. 49408, de 24 de Novembro de 1969, no art. 21º, nº 1, al. c), vedava à entidade patronal diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos na lei, nas portarias de regulamentação colectiva ou quando, precedendo autorização do Ministério para a Qualificação e Emprego, haja acordo do trabalhador (art. 21.º, n.º 1, al. c), da LCT).
10. Por sua vez, dispunha o art. 122.º, al. d), do Código do Trabalho de 2003 que é proibido ao empregador "diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste código e nos instrumentos de regulamentação colectiva".
11. O actual Código do Trabalho dispõe no art. 129º, al. d) que é proibido ao empregador “diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho”.
12. As citadas disposições legais consagram o princípio da irredutibilidade da retribuição, ou seja, a proibição do empregador diminuir, unilateralmente, o seu montante.
13. Mas o legislador não proíbe diminuir a retribuição quando haja acordo do trabalhador.
14. A Ré não tem que suportar o montante de 1.545,00€, quando outorgou uma Escritura Pública com um documento anexo, assinado por todos os outorgantes e onde constava que o A. passaria a auferir a retribuição salarial mensal de 1.400,00€, acrescida do subsídio de refeição de 6,31€.
15. O art.236º do CC, dispõe que: “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratório normal, colocado na posição do real declaratório, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ela.”
16. Da referida Lista, constava que os novos salários dos trabalhadores ali indicados tinham o acordo dos trabalhadores, entre os quais estava mencionado o A. com o salário de 1.400,00€, da seguinte forma – “Nota: A- Valor acordado entre a sociedade adquirente e o trabalhador”.
17. Nos termos ao art. 236º do CC, o representante legal da Ré entendeu que aquele documento junto com a Escritura só podia ter o sentido de que aqueles trabalhadores, após a admissão ao serviço da Ré, iriam auferir as remunerações que constavam no documento que rubricou juntamente com os outros outorgantes da Escritura.
18. Caso o representante legal da Ré fosse devidamente esclarecido no sentido de que era obrigado a pagar ao A. o salário mensal de €1.545,00 nunca outorgaria a referida escritura.
19. A irredutibilidade da retribuição não pode, sob pena de criar situações absurdas, e de injustificada disparidade retributiva entre trabalhadores que desempenham funções semelhantes, ser entendida de modo formalista e desatendendo à substância das situações,
20. Nomeadamente a que consta da realização da Escritura Pública, junta aos autos pelo A., que é contraditória e incoerente no seu conteúdo quando comparada com o documento anexo que dela faz parte integrante.
21. Colocados perante a questão de saber se face ao princípio da irredutibilidade da retribuição, o salário anterior do A. deverá ser mantido, mesmo quando o A. durante três anos não reivindicou a diferença e, como está provado (ponto 2 dos factos assentes) que desempenhava funções de “chefia”, a resposta tem que ser negativa.
22. O A. tinha todas as condições internas e externas para processar o seu salário, conforme julgasse que era legal e devido, pois, repete-se, chefiava o departamento financeiro da empresa.
23. Foi da exclusiva vontade do A. processar o seu salário no montante de €1.400,00 mensais durante quase 3 anos.
24. A decisão constante da sentença conduz a um tão patente absurdo que é forçoso admitir, neste caso concreto, um desvio ao mencionado princípio da irredutibilidade da remuneração.
25. Analisada a decisão recorrida, constata-se que na questão primordial que se colocava nas diferenças salariais, em face da matéria de facto considerada por assente, não foi dada resposta de forma acertada e categórica nesta decisão, ao concluir-se que o A. tinha direito a receber as diferenças salariais entre €1.400,00 e €1.545,00.
26. Salvo o devido respeito, a decisão recorrida não está correctamente estruturada e devidamente fundamentada, devendo este Venerando Tribunal considerar a fundamentação deduzida neste articulado, pois, há necessidade de explanar outros raciocínios e atender ao argumento muito convincente de que o A., com uma posição hierárquica elevada de gestor financeiro da Ré, nunca reivindicou o salário diferente do que lhe foi pago durante cerca de 3 anos.
27. Entende a RECORRENTE, salvo melhor opinião, que a sentença recorrida não decidiu o mérito da referida questão da forma juridicamente devida violando, respectivamente, artigos 102º e 126º do Código do Trabalho e artigos 227º, 236º, 334º e 762º, nº 2 do Código Civil.
28. Concluindo, não deve ter-se como violadora do princípio da irredutibilidade retributiva que se extrai da proibição consagrada na al. d), do n.º 1, do art. 129.º do CT de 2009, o não pagamento ao A. do valor correspondente a €1.545,00 de salário mensal, acrescido de subsídio de alimentação, que auferia na sociedade “D…, S.A”, uma vez que a redução dessa retribuição para €1.400,00 de salário mensal, acrescido do subsídio de alimentação, não foi unilateralmente decidida pela Ré, tendo durante 3 anos a plena concordância do A., que chefiava o sector financeiro da empresa Ré e processava os salários.
29. Tal redução retributiva constava expressamente do documento anexo à Escritura Pública realizada em 30 de Dezembro de 2010, denominado “Lista de trabalhadores ao serviço do estabelecimento”, com a Nota: “Valor acordado entre a sociedade adquirente e o trabalhador”.
30. Deve ser entendida como violadora do dever de agir de boa fé e com lealdade (art.227º, nº. 1, 239º do CC, 126º e 128º, nº. 1, al. f) do CT), no exercício do direito da relação obrigacional laboral, a pretensão do trabalhador/Autor que desfrutava de uma posição hierárquica na empresa, quando, passados, três anos, ao cessar o contrato de trabalho por sua iniciativa, só nesta altura, vem reivindicar as diferenças salariais em montantes que atingem milhares de euros.
31. Da matéria de facto dada por assente e dos documentos juntos aos autos, resulta claramente que o Tribunal recorrido jamais poderia ter considerado que a Ré reduziu ilícita e unilateralmente a retribuição do A.
32. Da matéria de facto dada por assente resulta, sem margem para dúvidas, que o Tribunal recorrido errou quando não considerou como provado que juntamente com a Escritura Pública da alienação do estabelecimento foi elaborada uma Lista com o nome do A. e o salário de €1.400,00 que passaria a auferir ao serviço da Ré.
33. Viola o princípio geral de direito civil que impõe que as partes procurem o balanço ou equilíbrio contratual e, nomeadamente, que as partes procedam de boa fé no cumprimento da obrigação e no exercício do respectivo direito (artº 762º nº 2 do C. Civil), principio também consagrado nos arts. 126, nº1 e 128º, nº.1, al. f) do Código do Trabalho.
34. O A. não pode passar 3 anos a violar as leis da Segurança Social e da Fazenda Nacional, não descontando os valores da TSU e não retendo na fonte o IRS correspondente ao valor do salário que agora reivindica, tanto mais que era o chefe do sector financeiro.
35. Considerando o teor da Lista anexa à Escritura Pública resulta, sem margem para dúvidas, que o Tribunal errou quando considerou que a RECORRENTE estava obrigada a pagar ao RECORRIDO as diferenças salariais em razão da diminuição da retribuição, pois, esta diminuição é lícita, tendo a concordância do A.
36. O RECORRIDO conhecia a Escritura Pública realizada em 30 de Dezembro de 2010, conhecia a Lista anexa e sabia que o montante da sua remuneração era a que constava da tal Lista, e sabia-o porque é isso que resulta do conhecimento que ele tinha do documento e que ele próprio juntou com a P.I.
37. A diminuição do salário do A. e de outros trabalhadores, constituiu elemento essencial para a vinculação contratual da Ré, ao adquirir o estabelecimento da “D…, S.A.”
38. Assim, a diminuição da retribuição do A. é legítima porque resulta do estipulado no documento complementar do contrato a que a Ré e a Exma. Administradora da Massa Insolvente se vincularam de mútuo acordo, não havendo qualquer violação ao princípio da irredutibilidade da remuneração.
39. A irredutibilidade da retribuição não é impeditiva da supressão de atribuições patrimoniais, assim como não obsta a que, perante a redução da actividade da empresa no início da sua actividade, haja uma inerente diminuição salarial.
40. Veja-se o caso de milhares de Professores deste país, que todos os anos têm cortes no seu salário, conforme o tempo lectivo que lhes é atribuído.
41. Não houve violação da garantia da irredutibilidade da retribuição, pois, a diminuição da remuneração do RECORRIDO decorre da sua concordância.
42. A RECORRENTE jamais violou as legítimas expectativas do RECORRIDO, pois este, sempre soube que a sua retribuição teve um corte, em função do que constava da Lista de trabalhadores que não foram para o desemprego, mas continuariam ao serviço da Ré.
43. Na nossa modesta opinião, o juiz do direito do trabalho deve ter presente o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida económica que sirva as pessoas e a sociedade, uma vez que o actual Estado Português na U.E. é um Estado social, como resulta da nossa C.R.P.
44. A recorrente está naturalmente preocupada com a aceitabilidade racional da decisão pelos outros trabalhadores da Ré, que ganham ordenados muito menores, tendo presente o direito como uma ordem fundada na axiologia, na dignidade do ser humano e das pessoas inseridas em certa comunidade nacional e também local.
45. A resolução do caso dos autos implica «entender a lei melhor do que aqueles que participaram na sua feitura» (G. RADBRUCH, Apêndice I, in Filosofia do Direito, trad., 6ª ed., 1979, p. 396)
46. A sentença recorrida, na prática, condena uma PME à insolvência pelas dificuldades financeiras em pagar tão elevado montante.
SEM PRESCINDIR
47. A Ré alegou na Contestação que o A. ao peticionar a diferença remuneratória, depois de durante 3 anos receber o salário mensal de 1.400,00€, estava a agir com abuso de direito.
48. Considera a Ré que o A. tinha conhecimento que o seu salário era de 1.400,00€ pelo que a R. confiou que, três anos depois, aquele nunca viria a peticionar um salário diferente.
49. É inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo A., na exacta medida em que trai a lealdade (art.126º, nº1 e 128º, nº.1 al. f) do C T ) e a confiança gerada junto da R., atento o seu comportamento durante 3 anos.
50. Deve proceder a excepção do abuso de direito, pois, a conduta do A. excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, conforme alegado nos nº 18 a 28 da Contestação.
51. Analisando o caso do Ac. do STJ, de 13 de Dezembro de 2012, citado na sentença, vemos que ele é completamente diferente do caso dos autos.
52. No caso dos autos, o A. era um trabalhador com funções de chefia, tinha perfeito conhecimento dos seus direitos, não receava perder o emprego, pois, não tinha substituto e não tinha que ter quaisquer expectativas de reparação do alegado incumprimento por parte da Ré.
53. Salvo melhor opinião, a conduta do A. demonstrada na factualidade provada excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico do direito, que se arroga.
54. O A. teve oportunidade de cessar o seu contrato de trabalho por sua iniciativa, pois, antes da insolvência de “D…, S.A.” tinha vários meses de salários em atraso.
55. Passaria a receber o subsídio de desemprego com base no salário mensal de €1.545,00, podendo exigir a indemnização decorrente da cessação do contrato, nos termos do art. 396º do CT, reportada àquele salário.
56. Foi por sua livre vontade que decidiu continuar ao serviço da Ré, bem sabendo que a sua retribuição seria no futuro de €1.400,00.
57. Durante os últimos 3 anos, exercendo funções de chefia na área financeira, a actuação do A. foi de tal modo desastrosa que a Ré, uma micro empresa familiar, já careceu de contrair empréstimos no valor de muitas centenas de milhares de euros, por falta de recursos financeiros para manter o funcionamento da sua actividade normal.
58. Numa retrospectiva dos acontecimentos passados, parece que o A. terá esperado uma altura de dificuldades financeiras da Ré para pagar pontualmente os salários, resolvendo tomar a iniciativa da cessação do seu contrato de trabalho, para peticionar, além dos créditos laborais, as diferenças salariais, tudo num montante de €31.947,80!
59. Deve ser considerada procedente a excepção de abuso de direito invocada pela Ré, pois a conduta do A. excede manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
60. O A., nos termos do art.º 396.º, peticionou uma indemnização, atenta a sua antiguidade, no montante de 16.480,00€.
61. A sentença recorrida, considerando o valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador, que atento os factos provados, conduzir-se-á ao não pagamento de 3 meses de retribuição, entendeu como adequado fixar os dias de retribuição base em 25 dias de retribuição base por cada ano completo de antiguidade (11 anos).
62. Segundo a sentença o A. tem direito a auferir (1545,00/30) x 25 x 11=14.162,50€ (catorze mil cento e sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos).
63. A R. defendeu na Contestação que a indemnização não deveria ser determinada em mais de 15 dias de retribuição base por cada ano completo de antiguidade do A
64. Considerando o valor da retribuição e o grau de ilicitude do comportamento da Ré, que atento os factos provados, conduzir-se-á ao não pagamento de 3 meses de retribuição, a Ré entende como adequado que o Tribunal devia justamente fixar os dias de retribuição base em 15 dias, por cada ano completo de antiguidade.
65. O A. como responsável pelo sector financeiro teve muita culpa e responsabilidade pela delapidação dos bens da Ré, uma PME com o capital social de €300.000,00, que se viu obrigada, para saldar os seus compromissos e garantir os postos de trabalho, a contrair empréstimos no valor de centenas de milhares de euros.
66. A indemnização fixada na sentença nos termos do art.º 396.º n.º1 do Código do Trabalho, no montante global de 14.162,50€ é desproporcionada e muito gravosa para o património da Ré.
67. Não pode esquecer-se que nas últimas alterações ao CT, introduzidas pela Lei nº. 69/2013 de 30 de Agosto, foi ajustado o valor da compensação devida pela cessação do contrato de trabalho.
68. E em algumas situações previstas no CT a compensação não vai além de 12 dias de retribuição por cada ano completo de antiguidade, existindo também casos em que o montante global da compensação não pode ser superior a certos valores (art. 5º., nº 6, da Lei nº. 69/2013, de 30 de Agosto).
69. Mostram-se violadas ou mal interpretadas e aplicadas as disposições legais constantes destas alegações e da sentença recorrida, devendo ser interpretadas e aplicadas com o sentido e alcance supra exposto.
Pelo exposto, sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., Deve ser concedido provimento ao presente recurso, considerando-se que se verifica por parte do A uma conduta configurando abuso do direito, e que a Ré apenas deve ser obrigada a pagar os créditos laborais nos precisos termos acima expostos, com o que se fará JUSTIÇA».

Não consta dos autos que o Autor tenha apresentado contra-alegações.

Entretanto, o recurso foi admitido na 1.ª instância, como de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo.

Remetidos os autos a este tribunal e aqui recebidos em 15-01-2015, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto neles emitiu douto parecer, no sentido do não conhecimento da impugnação da matéria de facto – por não observância pela recorrente dos pressupostos para tal
impugnação –, e de improcedência do recurso.
Ao referido parecer respondeu a recorrente, a manifestar a sua discordância e, enfim, a reiterar o constante das alegações oportunamente apresentadas.

Conclusos os autos ao relator, com vista à fixação do valor da causa (que não constava dos autos) ordenou-se a baixa dos mesmos à 1.ª instância.

Cumprido o ordenado, tendo sido fixado à causa o valor de € 31.947,80, e aqui recebidos novamente os autos, em 11-06-2015, foi preparada a deliberação, com remessa do projecto de acórdão aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.

II. Objecto do recurso
Sabido como é que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 3 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho, aplicável ex vi do artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho), no caso colocam-se à apreciação deste tribunal as seguintes questões essenciais:
- saber se existe fundamento para alterar a matéria de facto, o que implica a apreciação prévia da sub-questão de saber se a impugnação efectuada pela recorrente obedece aos requisitos legais;
- saber se a retribuição mensal do autor/recorrido deve ser fixada em € 1.545,00, com as consequências daí decorrentes, maxime quanto ao pagamento de diferenças salariais, e, em caso afirmativo, se ocorre abuso do direito por parte daquele ao peticionar tal retribuição;
- do quantum da indemnização por resolução do contrato de trabalho.

III. Factos
A) A 1.ª instância deu como provada a seguinte factualidade:
1. O A. foi admitido ao serviço da sociedade “D…, S.A.”, NIPC ……… em Outubro de 2002.
2. Para desempenhar as funções de Chefe de Departamento.
3. No ano de 2010 o A. auferia da sociedade “D…, S.A.” o salário mensal no montante de € 1.545,00, acrescido de subsídio de alimentação.
4. Sujeito ao horário de trabalho, direcção e poder disciplinar da “D…, S.A.”.
5. Nas suas instalações, sitas em …, Rua …, …, ….-… Águeda.
6. A partir de 30 de Dezembro de 2010 o A. passou a laborar ao serviço e sob a direcção e poder disciplinar da R. C…, Ldª, nas suas instalações, sita em …, na …, …, ….-… Águeda.
7. Sujeito ao horário de trabalho de segunda a sexta-feira das 9:00 horas às 12:30 horas e das 14:00 horas às 18:30 horas.
8. O A. manteve-se ao trabalho da R. ininterruptamente até 5 de Novembro de 2013.
9. Em 5 de Novembro de 2013 o A. enviou à R. carta registada com aviso de recepção, mencionando nomeadamente,
“(…)
Com os meus cumprimentos, serve a presente para Rescindir, com justa causa, o contrato de trabalho que mantenho com V. Exªs.
A presente rescisão fundamenta-se, entre outras coisas, na falta do pagamento pontual das minhas remunerações – situação que se vem arrastando ao longo do tempo – sendo certo que na presente data se encontram em dívida as retribuições relativas ao trabalho prestado nos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2013.
Solicito a V.Exªs que procedam à imediata liquidação e pagamento de todos os créditos laborais em dívida, incluindo, para além dos supra referidos três meses, o trabalho prestado no mês de Novembro, os montantes relativos a férias e subsídio de férias vencidos em 1 de Janeiro de 2013, os proporcionais de férias e subsídio de férias relativos ao tempo de trabalho prestado em 2013, o montante ainda em dívida relativo ao subsídio de natal proporcional ao tempo e trabalho prestado em 2013 e a compensação por cessação do contrato de trabalho com justa causa, correspondente a 11 remunerações de base”.
(…)”.
10. Carta essa que foi recepcionada pela R. em 6 de Novembro de 2013.
11. A R., desde Janeiro de 2011, até Julho de 2013, liquidou o vencimento mensal no montante de 1.400,00€ acrescido de subsídio de alimentação no montante diário de € 6,41.
12. Em 30 de Dezembro de 2010, a R. adquiriu o estabelecimento comercial da “D…, S.A.”, assumindo os direitos e obrigações decorrentes dos contratos de trabalho dos trabalhadores existentes, mormente o do ora A.
13. A R. não pagou ao A. as retribuições correspondentes ao trabalho prestado nos meses de Agosto, Setembro e Outubro de 2013, bem como os dias pelo trabalho prestado em Novembro de 2013.

B) Na sentença recorrida foram dados como não provados os seguintes factos:
i) O A. nunca contestou o montante de 1.400,00€ que lhe foi pago pela R., nem interpelou a R. para lhe pagar as diferenças e vencimento.
ii) O A., a partir de 1 de Janeiro de 2011, aceitou o salário de 1.400,00€.
iii) Devido ao desemprego, à crise financeira que o país atravessa e à diminuição do poder de compra da população, o volume de vendas e a actividade prosseguida pela Ré sofreram acentuadas reduções, também devido à falta de procura dos seus produtos e ao atraso nos pagamentos por parte dos clientes, determinando uma falta de recursos financeiros por parte da R. que levou a que não fossem liquidadas pontualmente os salários do A.
iv) A gerência tinha manifestado a intenção de proceder a um eventual despedimento colectivo, por motivos de mercado, estruturais e tecnológico.

C) A 1.ª instância motivou a matéria de facto nos seguintes termos:
«Os factos 1., 2, 4, a 11 e 13 resultou da falta de impugnação – ficta confessio-
O ponto 3. resultou da análise da documentação de fls. 6, de fls. 6 verso a 10 verso (extracto de remunerações) e de fls. 10 – (recibo de vencimento de Dezembro de 2010 da D…, S.A.). No mesmo sentido foi o testemunho de E… (tendo exercido funções na sociedade D…, S.A.) e de F… (o qual exerceu as funções de Director Geral na referida sociedade).
A matéria vertida em 12. adveio do estudo da escritura pública de fls. 11 e ss. “Alienação de estabelecimento industrial em liquidação de massa insolvente” outorgada entre a legal representante (Administradora da Insolvência) da sociedade “D…, S.A., em liquidação” e a ora R., onde se constata que a R. aceitou a transmissão plena do aludido estabelecimento e dos bens imóveis, móveis, créditos, direitos e obrigações laborais (…)”.
Sendo realçado na escritura que “também como contrapartida da transmissão do estabelecimento industrial, a sociedade adquirente assume, de forma exclusiva, todos os direitos e obrigações decorrentes dos contratos de trabalho dos trabalhadores identificados no documento complementar anexo a esta escritura, contratos esses que, a partir da presente data passam a vigorar entre ela e os referidos, mantendo os trabalhadores a antiguidade, categorias profissionais e as retribuições que vêm auferindo na insolvente e que ali estão mencionadas, bem como assume, também de forma exclusiva e sem direito a imputar qualquer custo à transmitente, a obrigação de lhes pagar integralmente, no momento em que forem exigíveis, as retribuições vencidas a partir da presente data, as retribuições relativas às férias ainda não gozadas, respectivo subsídio, relativos ao trabalho prestado no ano em curso e a de lhes permitir a efectivação do direito às férias ainda não por ele gozadas.
Que ainda como contrapartida da transmissão do estabelecimento industrial, a sociedade adquirente assume também a obrigação de dar preferência, nas admissões de pessoal que vier a efectuar até trinta e um de Agosto de dois mil e onze, aos trabalhadores que se encontravam ao serviço da insolvente “D…, S.A.” em um de Janeiro de dois mil e dez e que entretanto cessaram os respectivos contratos de trabalho.
Aliás, foi mencionado pela prova testemunhal (E…) que o A. laborava no mesmo local, com a mesma categoria e com o mesmo horário de trabalho, tendo existido uma transmissão, além dos equipamentos, dos funcionários por parte da D…, S.A. para a ora R. Relativamente à factualidade dada como não provada não foi efectuada prova cabal da sua ocorrência.
Nenhuma prova foi produzida que convencesse o Tribunal no que concerne aos factos i) a iv).
Sobre o constante em iii) é certo que G… referiu que na R. existiam dificuldades económicas decorrente da falta de liquidez financeira, causando atrasos nos salários, tendo sido referido, porém, que o sócio gerente tem inserido quantias monetárias em termos financeiros junto da R.
Sendo certo que a testemunha salientou que em Outubro foi realizada a situação para com os funcionários da sociedade, mas desconhecendo a razão de tal não ter sucedido junto com o A.. Perante tal depoimento o Tribunal verificou que existem dificuldades de liquidez, fruto da crise que o sector a que a sociedade se dedica tem sentido.
Contudo, tal não lhe permite concluir que fosse por tal facto que a R. não conseguisse pagar os salários devidos ao A - sendo a remuneração a principal contrapartida decorrente de um contrato de trabalho. Do depoimento verificamos que outros funcionários foram liquidados e que o próprio sócio gerente introduziu quantias próprias.
Aliás, a testemunha questionada sobre a facturação da empresa não conseguir explicitar, salientando que não fecha as respectivas contas. Tendo apenas referido que “acha” que a sociedade deu prejuízo.
Sendo de realçar que a fls. 35 verso “demonstração de resultados da empresa”, o qual não se encontra subscrito, nem foi confirmado por qualquer outro meio de prova. Tendo sido impugnado pela parte contrária.
Acresce que a documentação junta pelo A. na audiência de julgamento de 19 de Março de 2014 – Prestação de contas individual” (ano 2012), aponta no sentido contrário ao constante em tal documento de ”demonstração de resultado”.
Por falta de prova o Tribunal não formou uma convicção positiva sobre a matéria dada como não provada.».

IV. Fundamentação
Delimitadas supra, sob o n.º II, as questões essenciais decidendas, é agora o momento de analisar, de per si, cada uma delas.

1. Da impugnação da matéria de facto
Sobre esta questão, sustenta a recorrente, em síntese (conclusões 1.ª e 2.ª):
- impugna a factualidade dada como provada, “nomeadamente” o n.º 12, ao não dar como provada a existência do documento e o seu teor, que foi junto aos autos pelo Autor, anexo à escritura pública realizada em 30-10-2010, onde consta a retribuição deste de € 1.400,00, acrescido de € 6,41 de subsídio de alimentação;
- impugna a factualidade dada como não provada na sentença, “nomeadamente” o constante de i) e ii) dos factos não provados, uma vez que o autor nunca contestou o montante de € 1.400,00 que lhe foi pago pela ré, nem nunca interpelou a ré para lhe pagar as diferenças na retribuição, para além de que não fundamentou a resolução do contrato no não pagamento da retribuição no montante de € 1.545,00.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no seu douto parecer pronuncia-se pelo não conhecimento da impugnação da matéria de facto, por a impugnação não cumprir (todos) os requisitos legais.

Cumpre decidir.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 640.º, do Código de Processo Civil, quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo ou gravação realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
E nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, quando os meios probatórios tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
Não basta, pois, que o recorrente se limite a fazer uma impugnação genérica: ele tem de concretizar, e individualizar, qual a matéria que considera incorrectamente julgada, seja matéria que foi dada como provada, seja matéria que foi dada como não provada.
Além disso, como resulta dos aludidos preceitos, o recorrente deve também indicar, em relação a cada um dos pontos/factos que considera incorrectamente julgados, quais os meios de prova que, em sua opinião, levariam a uma decisão diferente, e quando esses meios de prova tenham sido gravados o recorrente terá de indicar ainda quais os depoimentos em que fundamenta a sua impugnação, indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda.

No caso em apreço, a recorrente começa logo por afirmar que impugna os factos assentes, “nomeadamente, o ponto 12”, assim como a factualidade não provada, “nomeadamente, o constante de i) e ii) dos Factos não provados”.
Ora, como se disse, ao impugnar a matéria de facto a recorrente tem que indicar os concretos pontos que considera incorrectamente julgados.
No caso, de concreto apenas resulta a impugnação do n.º 12 dos factos provados e n.ºs i) e ii) dos factos não provados, sendo, por isso, de todo irrelevante a utilização do advérbio “nomeadamente”.
Conclui-se, pois, que apenas tais factos foram impugnados nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 640.º.
No seguimento do que se deixa afirmado, importa agora apurar se a recorrente cumpriu os restantes requisitos quanto à impugnação dos factos em causa, ou seja, os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa e a decisão que deve ser proferida sobre os factos impugnados [alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 640.º].
Quanto ao facto n.º 12, a recorrente não concretiza em que termos o mesmo deve ser dado como provado: o que se retira da sua alegação é que o tribunal não deu como provado a existência do documento anexo à escritura e o seu teor.
Ora, a existência de um determinado documento e o que dele consta mais não é do que um meio de prova de um facto.
Daí que, em rigor, não se possa considerar que a recorrente tenha indicado a decisão que deve ser proferida sobre o facto em causa, o que constitui fundamento para o não conhecimento da impugnação nessa parte.
Porém, ainda que assim se não entenda, e que se admita que com a referida alegação a recorrente pretende que seja dado como provado que o recorrido auferia a retribuição de € 1.400,00, acrescido de € 6,41 de subsídio de alimentação, com fundamento no documento anexo à escritura de “Alienação de Estabelecimento Industrial em liquidação de massa insolvente”, não se descortina fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto.
É certo que no “Documento complementar elaborado nos termos do número 2 do artigo 64º do Código do Notariado” se menciona a lista dos trabalhadores ao serviço do estabelecimento, onde se inclui o nome do autor, com um “salário” de € 1.400,00 e um subsídio de alimentação de € 6,41.
Porém, atente-se, os documentos autênticos apenas fazem prova dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora (n.º 2 do artigo 363.º e n.º 1 do artigo 371.º, ambos do Código do Civil).
Como ensina Manuel de Andrade (Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 227), «[o]s actos e declarações que o funcionário atesta como praticados, emitidas ou prestadas perante ele terão o valor jurídico que lhes competir, podendo ser impugnados pelos interessados, nos termos gerais de direito (erro na declaração ou erro-vício, coacção, simulação, etc.) não importando isso arguição de falsidade [].
O documento faz assim prova plena quanto à materialidade (prática, efectivação) de tais actos e declarações; mas não quanto à sua sinceridade, à sua veracidade [] ou à falta de qualquer outro vício ou anomalia».
Tal significa, revertendo ao caso em apreço, que na escritura os outorgantes fizeram as declarações em causa, designadamente quanto à retribuição do Autor, mas já não que o declarado corresponda à realidade.
Ora, o trabalhador não interveio nessa escritura, pelo que a materialidade do declarado e eventual não veracidade do mesmo só pode ser imputado a um ou ambos os outorgantes dessa escritura.
Daí que, apenas com base nesta, não possa ser dado como provado que o autor auferia a retribuição mensal de € 1.400,00 acrescida de € 6,41 de subsídio de alimentação por cada dia de trabalho.
Note-se que, como resulta da acta da audiência e da motivação da matéria de facto da 1.ª instância, foi produzida prova testemunhal sobre a transmissão do estabelecimento para a aqui ré e direito e obrigações daí decorrentes.
Por isso se conclui, quanto ao facto n.º 12, que o mesmo não foi impugnado nos termos previstos na lei e, ainda que assim se não entendesse, que não existe fundamento para a sua alteração.

Em relação aos factos não provados sob i) e ii) na sentença recorrida, se bem se interpreta a alegação da recorrente, maxime na conclusão 3., os factos deviam ser dados como provados com base no acordo das partes, uma vez que o autor nunca afirmou que contestou a retribuição de € 1.400,00 que lhe foi paga, assim como não alegou que interpelou a empregadora para proceder ao pagamento das diferenças retributivas (cfr. artigos 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Cabe, desde logo, assinalar que a matéria em causa se afigura irrelevante para decisão, tendo em conta, como melhor se analisará infra, a indisponibilidade de direitos por banda do trabalhador na vigência da relação laboral da causa.
Seja como for, não pode afirmar-se a existência de acordo, na medida em que na petição inicial o autor apresentou uma versão contrária à defendida pela ré na contestação, e àquele estava vedado responder à contestação (cfr. artigo 60.º do Código de Processo do Trabalho).
De resto, não se vislumbra como pode, por exemplo, concluir-se que a partir de 1 de Janeiro de 2011 o autor aceitou o salário de € 1.400,00, se a posição por ele assumida na petição inicial aponta em sentido contrário (de outro modo nem sequer peticionaria diferenças salariais).
Tudo para concluir que não é possível dar como provados os factos em causa com base no acordo das partes.

Mas se, porventura, a recorrente impugna os factos tendo em conta o disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, o que se constata é que não se mostram preenchidos os pressupostos aí previstos, maxime quanto aos concretos meios probatórios que impõem decisão diversa (cfr. n.º 1, alínea b) do referido artigo).
Com efeito, relacionado com a referida alteração da matéria de facto, a recorrente limita-se a alegar que na petição inicial o autor não contestou a retribuição de € 1.400,00 e que nunca a interpelou para o pagamento das diferenças salariais.
Por isso se disse, e se reafirma, que a pretendida alteração parece assentar no acordo das partes, que, como também se afirmou, não se tem por verificado: mas se a alteração tem por base a prova produzida, o certo é que nas conclusões a recorrente não invoca qualquer prova que imponha decisão diversa, maxime quanto à aceitação pelo recorrido da retribuição paga, pelo que não se mostram verificados os pressupostos para que se conheça de tal impugnação.
Deste modo, e em síntese, por um lado, não podem os factos ser dados como provados com base em acordo das partes e, por outro, a recorrente não cumpriu o ónus que a lei lhe impõe quanto à impugnação dos mesmos, maxime quanto aos meios de prova que impõem decisão diversa.
Improcedem, por consequência, nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.

2. Da retribuição mensal do autor/recorrido
2.1 É pacífico que por força da escritura pública de “Alienação de estabelecimento industrial em liquidação de massa insolvente”, realizada em 30-12-2010 e outorgada entre o administrador da insolvência de “D…, S.A. – Em Liquidação” e a aqui recorrente/ré, transmitiu-se o estabelecimento comercial daquela para esta e que como contrapartida da transmissão a sociedade adquirente assumiu todos os direitos e obrigações decorrentes dos contratos de trabalho que existiam com aquela, designadamente do autor/recorrido.
Ou seja, por força da transmissão operada a ré/recorrente assumiu os direitos e deveres de empregadora do autor/recorrido que se encontravam na transmitente.
Ora, no ano de 2010, ao serviço da transmitente o autor auferia a retribuição mensal de € 1.545,00, acrescido de subsídio de alimentação (n.º 3 dos factos provados).
Porém, a partir de Janeiro de 2011, com a transmissão, a ré apenas lhe pagou a retribuição mensal de € 1.400,00, acrescida de € 6,41 de subsídio de alimentação (n.º 11 dos factos provados).
A sentença recorrida concluiu que face ao princípio da irredutibilidade da retribuição a empregadora/recorrente se encontrava obrigada a pagar aquela retribuição mensal de € 1.545,00.
Esta discorda de tal conclusão, argumentando que o princípio da irredutibilidade da retribuição «(…) não é absoluto na nossa actual legislação nem, infelizmente, no dia a dia de milhares de trabalhadores que viram os seus salários reduzidos, incluindo os dos magistrados judiciais».
Cumpre decidir.

Importa, antes de mais, ter presente o que dispõe o artigo 129.º, n.º 1, alínea d), do Código do Trabalho:
«1- É proibido ao empregador:
(…)
d) Diminuir a retribuição, salvo nos casos previstos neste Código ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho».
Extrai-se da letra deste preceito que a redução da retribuição apenas pode ocorrer nos casos previstos no Código [como ocorre, por exemplo, em situações de mobilidade funcional do trabalhador – artigo 120.º –, de redução do tempo de trabalho ou da suspensão do contrato de trabalho em situação de crise da empresa – artigo 305.º, n.º 1, alínea a) –, ou nas situações em que cessa a comissão de serviço e o trabalhador se mantém na empresa, a exercer a actividade que exercia antes da referida comissão de serviço – artigo 164.º, n.º 1, alínea a)] e nos instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho.
Por isso, como adverte Pedro Romano Martinez (et alii, Código do Trabalho anotado, 2013 – 9.ª Edição, Almedina, pág. 344), “(…) deixou de ser lícita a diminuição da retribuição, que não resulte de modificações contratuais, por mero acordo das partes”.
No caso em apreciação, tem-se por incontroverso que a letra da lei [a referida alínea d), do n.º 1, do artigo 129.º) aponta no sentido que caso não se verifique modificação no contrato de trabalho não é permitida a redução da retribuição, ainda que houvesse acordo das partes, que não existe.

A recorrente argumenta que caso tivesse sido devidamente esclarecida, no sentido de que era obrigada a pagar ao Autor a retribuição mensal de € 1.545,00, nunca outorgaria a escritura pública.
Trata-se de uma questão que se insere nos vícios da vontade, com eventual repercussão no negócio celebrado entre as partes e titulado por escritura pública, mas a que o Autor é alheio, pelo que não pode por eles (vícios) ser afectado, em termos de ver diminuída a retribuição.

Argumenta também a recorrente que o recorrido tinha todas as condições para “processar o seu salário, conforme julgasse que era legal e devido, pois, repete-se, chefiava o departamento financeiro da empresa” e que conhecia a escritura pública realizada em 30-12-2010, onde no documento anexo constava a sua retribuição de € 1.400,00.
A referida alegação não tem suporte na matéria de facto provada.
Com efeito, do facto – provado – de o autor desempenhar as funções de chefe de departamento, não é legítimo concluir que conhecia a escritura pública, designadamente quanto ao documento anexo onde constava que o montante da sua retribuição era de € 1.400,00, assim como que estava na sua inteira disponibilidade processar o salário que a si mesmo entendesse por devido: por um lado, porque nem sequer se mostram provadas as concretas funções que competiam ao trabalhador; por outro, existindo entre as partes um contrato de trabalho, era dever do trabalhador cumprir as ordens que lhe eram dadas, o que significa que não podia por sua livre iniciativa processar a si mesmo a retribuição que entendesse ser devida (cfr. artigo 128.º, n.º 1, alínea e), do Código do Trabalho).

2.2 De acordo com a recorrente, o comportamento do trabalhador, ao vir peticionar a retribuição de € 1.545,00, configura abuso de direito, na medida em que (i) foi da sua exclusiva vontade processar a retribuição de € 1.400,00, (ii) a redução da retribuição constava expressamente do documento anexo à escritura pública outorgada em 30-12-2010, onde se afirmava que a retribuição do trabalhador era de € 1.400,00, tendo tal valor sido “acordado entre a sociedade adquirente e o trabalhador, (iii) durante cerca de três anos recebeu a retribuição de € 1.400,00 e apenas após a cessação do contrato por sua iniciativa vem reivindicar as diferenças salariais.

Decorre do artigo 334.º do Código Civil que o abuso do direito consiste no exercício ilegítimo de um determinado direito, traduzindo-se a ilegitimidade em actuação, por parte do respectivo titular, que manifestamente exceda os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito.
Para que o exercício do direito seja considerado abusivo, não basta, pois, que cause prejuízos a outrem; é necessário que o titular exceda, visível, manifesta e clamorosamente, os limites que lhe cumpre observar, impostos quer pelo princípio da tutela da confiança (boa fé), quer pelos padrões morais de convivência social comummente aceites (bons costumes), quer, ainda, pelo fim económico ou social que justifica a existência desse direito, de tal modo que o excesso, à luz do sentimento jurídico socialmente dominante, conduz a uma situação de flagrante injustiça.
Dito ainda de outro modo: para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade; quando esses limites decorrem do fim económico e social do direito impõe-se apelar para os juízos de valor positivo consagrados na própria lei (Antunes Varela, das Obrigações em Geral, 10.ª edição, pág. 544 e segts.).
Pessoa Jorge (Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, 1968, nota 166) sublinha que a orientação que fundamenta o abuso do direito não assenta na preocupação de evitar que uma lei, justa em abstracto, se torne iníqua no caso concreto, já que a relevância do abuso do direito não afecta o princípio da aplicabilidade da lei a todos os casos nela previstos, mesmo que, num ou noutro, tal aplicação se revele injusta: a reprovação do abuso do direito procura, sim, que não se desvirtue o verdadeiro sentido da norma abstracta.
A manifestação mais evidente do abuso do direito é a chamada conduta contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio da tutela da confiança (exercício dum direito em contradição com uma conduta anterior em que a outra parte tenha confiado, vindo esta com base na confiança gerada, e de boa fé, a programar a sua vida e a tomar decisões). Como figuras próximas, encontra-se a renúncia (acto de disposição jurídico-negocial que pressupõe a vontade de abdicar do direito, de o extinguir) e a neutralização do direito.
Segundo Baptista Machado (Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 118, pág. 228), esta última figura é considerada, em geral, como uma modalidade especial da proibição do venire contra factum proprium e ocorre quando se verificam cumulativamente as seguintes circunstâncias: (i) o titular dum direito deixa passar longo tempo sem o exercer; (ii) com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido; (iii) movida por esta confiança, essa contraparte orienta em conformidade a sua vida, tomando medidas ou adoptando programas na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito lhe acarretará uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.

A irrenunciabilidade dos créditos salariais por banda do trabalhador radica desde logo na natureza da relação juslaboral: trata-se de uma relação marcada pela subordinação jurídica e económica do trabalhador ao empregador, o que coloca aquele numa posição mais débil perante este, e nessa medida pode afectar o exercício dos direitos por parte do trabalhador na pendência da relação de trabalho, maxime ao aceitar uma redução da retribuição, ou ao não reclamar dessa redução.
Daí que a jurisprudência venha entendendo, ao que se conhece de modo uniforme, que na vigência da relação de trabalho se mantém a indisponibilidade dos direitos de natureza pecuniária emergentes do contrato de trabalho a fim de obstar a que o estado de subordinação jurídica e económica do trabalhador relativamente ao empregador possa afectar o exercício desses direitos pelo trabalhador; mas aquela indisponibilidade deixa de vigorar após a cessação do contrato de trabalho, pois cessando igualmente aquele estado de subordinação não há qualquer impedimento legal a que o trabalhador disponha livremente do seu direito às retribuições [vide, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18-06-2003 (Recurso n.º 836/03), de 03-03-2005 (Recurso n.º 3154/04) e de 31-10-2007, todos da 4.ª Secção e disponíveis em www.dgsi.pt].
Mas a irrenunciabilidade de créditos salariais radica também na natureza alimentar destes, visando-se com aquela a protecção do trabalhar e da sua família e, por essa via, a própria harmonia, bem estar social e realização integral dos mesmos.
Ora, recebendo o trabalhador, por virtude do contrato de trabalho, uma determinada retribuição mensal – que se destina, essencialmente, a satisfazer as suas necessidades alimentares, lato sensu, sendo, por isso, com essa retribuição que ele organiza e gere o seu orçamento familiar –, a sua diminuição não poderá deixar de ser susceptível de afectar o seu orçamento familiar e, bem assim, o próprio bem estar social.
Daí que se justifique que, exceptuando nos casos previstos no Código ou em instrumento de regulamentação colectiva (e aqui não pode deixar de ponderar-se que tratando-se de uma negociação colectiva poderá cada um dos intervenientes abdicar de alguns direitos/vantagens, em contrapartida de outros que ganha), o empregador não possa diminuir a retribuição do trabalhador.

Aqui chegados, e revertendo ao caso que nos ocupa, pergunta-se: o comportamento do autor excedeu os limites impostos pela boa fé no cumprimento do contrato e no exercício do direito às diferenças salariais?
Entendemos que não.
Desde logo, e ao contrário do alegado pela recorrente, como já se deixou analisado, não estava na disponibilidade do recorrido processar a retribuição que entendia ser-lhe devida.
Além disso, também não resulta da factualidade provada que houvesse qualquer acordo entre a recorrente e o recorrido, aquando da transmissão do estabelecimento (30-12-2010) ou posteriormente, no sentido de este aceitar a diminuição da retribuição.
Resta o argumento do não exercício do direito por parte do recorrido desde final de Janeiro de 2011 (primeiro mês em que terá recebido a retribuição no valor de € 1.400,00) até à data em que comunicou a resolução do contrato (05 de Novembro de 2013).
Quanto a este argumento, tem, antes de mais, que se admitir que pode o recorrido apenas ter tomado consciência dos seus direitos (às diferenças salariais) por alturas ou aquando da resolução do contrato.
Além disso, e sobretudo, como já se deixou afirmado, na vigência da relação do trabalho o trabalhador mantém-se na dependência do empregador, pelo que se compreende que nesse período ele não reclame créditos que entende assistirem-lhe e que a lei lhe conceda a faculdade de reclamar os mesmos durante o ano seguinte ao termo do contrato (n.º 1 do artigo 337.º do Código do Trabalho).
Como se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2011 (Proc. n.º 2/08.9TTLMG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), numa situação com paralelismo com a presente, «[o] facto de o trabalhador vir a exigir do empregador prestações salariais que há longos anos lhe eram devidas, prestações que na altura podia ter exigido, mas que não exigiu, qualquer que tenha sido o motivo — imperfeito conhecimento dos seus direitos, receio de perda do emprego, expectativa de reparação do incumprimento do empregador, etc. — não integra, por princípio, uma actuação com abuso do direito, mas antes um exercício incensurável do mesmo direito.
É que a não reclamação na altura própria de direitos que assistam ao trabalhador não comporta o significado, atenta a natureza e posição das partes no contrato, que o mesmo deles tivesse pretendido abdicar, tanto mais tratando-se de direitos indisponíveis, para mais tarde assumir uma conduta antagónica e surpreender o empregador com um pedido inesperado.
A relação laboral está concebida na lei em termos de ambas as partes poderem reclamar uma da outra créditos que lhes assistam, quer durante a vigência do contrato quer durante o ano seguinte ao seu termo, enquanto tais créditos se não mostrem prescritos. E, assim sendo, cada uma delas, tem de estar consciente e prevenida para a eventualidade de uma petição reclamadora de direitos, tanto mais nas situações em que não possam ignorar a falta de cumprimento da sua parte, por longínqua que ela já se mostre.
E no caso dos autos nem releva que fosse o trabalhador, ora Recorrido, a processar os seus próprios vencimentos, pois que é suposto que o fazia nos termos determinados pela entidade empregadora e não por alvitre próprio.».
Assim, no caso, pode-se até admitir que o trabalhador só tomou consciência do seu direito às diferenças salariais aquando da resolução do contrato.
Contudo, ainda que assim não seja, da falta de reclamação contra o pagamento de uma retribuição inferior à devida não se pode concluir pela aceitação por parte do trabalhador do salário que lhe foi sendo pago, pois esta situação envolveria uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, que só podia ser reduzida nas circunstâncias supra analisadas e descritas, que, no caso, não se verificavam.
Nesta sequência, somos a concluir que o pedido de pagamento das diferenças salariais referentes a cerca de três anos anteriores à resolução do contrato, formulado aquando desta, não configura abuso do direito.
E assim sendo, são devidas as diferenças salariais constantes da decisão recorrida, contra as quais a recorrente se rebelou com os fundamentos já analisados.
Improcedem, por isso, também nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.

3. Do quantum da indemnização por resolução do contrato de trabalho
Sobre esta matéria, escreveu-se na sentença recorrida:
«(…) considerando o valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador, que atento os factos provados, conduzir-se-á ao não pagamento de 3 meses de retribuição entendemos como adequado fixar os dias de retribuição base em 25 dias».
A recorrente discorda de tal decisão, considerando o valor da indemnização excessivo.
Ancora-se, para tanto e em síntese, na seguinte argumentação (cfr. conclusões n.ºs 65 a 68):
i) o recorrido, como responsável financeiro, teve muita culpa e responsabilidade pela “delapidação” dos bens da recorrente, que se viu obrigada, para saldar os seus compromissos e garantir os postos de trabalho, a contrair empréstimos no valor de centenas de milhares de euros;
ii) nas alterações ao Código do Trabalho operadas pela Lei n.º 69/2013, de 30 de Agosto, existem situações em que a compensação não vai além de 12 dias de retribuição por cada ano completo de antiguidade, existindo até casos em que o montante global da compensação não pode ser superior a certos valores.

Na análise da questão, cabe previamente deixar assinalado – o que, de resto, já resulta do exposto supra, aquando da delimitação do objecto do recurso, efectuado sob II – que a recorrente não questiona a existência de justa causa de resolução do contrato, pelo que tal matéria se mostra transitada em julgado (cfr. artigos 635.º, n.ºs 2 e 4 e 628.º, ambos do Código de Processo Civil): o que ela questiona é o montante da indemnização (número de dias por cada ano de antiguidade) fixado na sentença recorrida.
Avancemos então.
De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 396.º do Código do Trabalho, em caso de resolução do contrato com fundamento em justa causa, por comportamento culposo do empregador, o trabalhador tem direito a indemnização, a determinar entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo de antiguidade, «(…) atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador, não podendo ser inferior a três meses de retribuição base e diuturnidades».
No caso de fracção de ano de antiguidade, o valor da indemnização é calculado proporcionalmente (n.º 2 do artigo).
O valor da indemnização pode ser superior ao que resultaria do critério referido sempre que o trabalhador sofra danos patrimoniais e não patrimoniais de montante mais elevado (n.º 3 do mesmo artigo).
O critério geral da indemnização em caso de resolução com justa causa do contrato pelo trabalhador parte, pois, da fixação de uma retribuição entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano de antiguidade ou fracção, atendendo-se na determinação concreta daquela ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude do comportamento do empregador.
Trata-se de um critério em tudo semelhante ao previsto para as situações de despedimento ilícito e em que a pedido do trabalhador é fixada indemnização em substituição da reintegração (cfr. artigo 391.º).
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado [por todos, vejam-se os acórdãos de 06-02-2008 (Recurso n.º 2621/07) e de 26-03-2008 (Recurso n.º 50/07), disponíveis em www.dgsi.pt] que nesta última situação, a indemnização, para além de um cariz reparador ou ressarcitório, associado à ideia geral de obtenção pelo trabalhador de uma compensação pela perda do emprego, que o acautele e prepare para o relançamento futuro da sua actividade profissional, assume uma natureza sancionatória ou “penalizadora” da actuação ilícita do empregador; o juízo de graduação da indemnização de antiguidade há-de ser global, ponderando em concreto os critérios referidos na lei e considerando, essencialmente, o grau de ilicitude do despedimento, particularmente influenciada pelo nível de censurabilidade da actuação do empregador, na preparação, motivação ou formalização da decisão de despedimento.
A fixação de uma indemnização de antiguidade próxima do limite máximo previsto deve ficar reservada para situações de grosseira violação/omissão procedimental e, bem assim, para aquelas em que a sanção deva considerar-se ostensivamente violadora de princípios fundamentais e estruturantes, maxime, o da igualdade [cfr. neste sentido os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27-05-2010 (Recurso n.º 467/06.3TTCBR.C1.S1) e de 16-12-2010 (Recurso n.º 314/08.1TTVFX.L1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt] ou, noutra perspectiva, no entendimento do mesmo tribunal, na fixação do valor referência da indemnização de antiguidade relevam, por um lado, o valor da retribuição e, por outro lado, o grau de ilicitude: quanto menor for a retribuição, mais elevada deve ser a indemnização; e mais elevada deve ser indemnização quanto maior for a ilicitude (acórdão de 24-02-2011, Recurso n.º 2867/04.4TTLSB.S1, também disponível em www.dgsi.pt).
Isto é, e em suma: na aplicação do quantum indemnizatório aos casos de despedimento ilícito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem partido do entendimento que só se justifica uma indemnização próximo dos limite máximo de 45 dias nas situações de ostensiva violação dos direitos do trabalhador, o que significa que quanto maior for a ilicitude maior deve ser a indemnização, assim como quanto mais baixa for a retribuição mais elevada deve ser a indemnização,
Também neste mesmo sentido parece pronunciar-se a doutrina.
Assim, Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 13.ª Edição, Almedina, págs. 570-571) “admite” que «(…) a lei pretenda sugerir tanto maior aproximação do limite superior quanto mais baixo for o salário, visando garantir um valor absoluto compensador. Relativamente ao grau de ilicitude, o art. 439.º/1 referencia o art. 429.º, onde, na verdade, se encontram listadas, mas não hierarquizadas nem graduadas, as causas de ilicitude do despedimento. Pode supor-se – numa perspectiva inteiramente apriorística – que deva considerar-se “mais baixo” o grau de ilicitude do despedimento com vício processual do que o de despedimento por motivos políticos, e que seja razoável colocar em posição intermédia a improcedência de motivos ou a inexistência de justa causa».
Bernardo Lobo Xavier assinala a este propósito (Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pág. 807) que, «[p]ara além do grau de ilicitude – o que parece adequado -, a referência à retribuição como graduando o cálculo da indemnização é equívoca, pois pode funcionar para beneficiar ou não o despedido. É de pensar que os tribunais tenderão a aumentar o número de dias como factor de cálculo quando a retribuição for baixa e a reduzir esse número quando a retribuição for alta. A verdade é que o que pareceria interessar seria a compensação do dano da perda do emprego e esse tem de ser avaliado de acordo com os factores de empregabilidade e, porventura, aceitando outros factores relevantes, como por exemplo a proximidade da reforma».

Regressando ao caso que nos ocupa, e tendo em conta os critérios de fixação da indemnização referidos, consta-se que:
i) o trabalhador auferia uma retribuição mensal de € 1.545,00, valor superior à média, e tinha de antiguidade cerca de 11 anos;
ii) o fundamento da resolução – ilicitude da empregadora – assentou no não pagamento da retribuição corresponde a três meses.
Embora a recorrente alegue que o recorrido teve “muita culpa” na situação económico-financeira em que ela se encontra, o certo é que tal alegação não tem arrimo na factualidade provada, pelo que não se poderá atender a tal alegação.
Também irreleva a circunstância de actualmente a lei e para outras situações prever um valor inferior de indemnização: o tribunal na decisão a proferir não poderá deixar de se balizar pelo critério fixado na lei aplicável ao caso (o referido no artigo 396.º), devendo também atender às decisões proferidas em situações análogas, com vista à obtenção de uma interpretação e aplicação uniformes do direito (cfr. n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil).
Assim, considerando que o trabalhador auferia retribuição superior à média e que face às retribuições em falta a ilicitude da empregadora não é elevada, entende-se que se justifica uma indemnização que se situe em nível inferior à média prevista na lei (30 dias).
O tribunal a quo fixou a mesma em 25 dias, valor que, atendendo ao que se deixou referido, não vemos fundamento para dele divergir.
Improcedem, por consequência, também nesta parte, as conclusões das alegações de recurso.

Vencida no recurso, a recorrente suportará o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º, do Código de Processo Civil).

V. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto por C…, Lda., e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 29 de Junho de 2015
João Nunes
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
____________
Sumário elaborado pelo relator (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
i) a diminuição da retribuição apenas é possível nas específicas situações previstas no Código do Trabalho ou em instrumento de regulamentação colectiva de trabalho;
ii) da circunstância de a um trabalhador, chefe de departamento, ao longo de três anos lhe ter sido paga retribuição inferior à devida e de o mesmo não ter reclamado de tal situação não se pode concluir pela aceitação da retribuição que lhe foi paga, pois esta situação envolveria uma violação do princípio da irredutibilidade da retribuição, que só podia ser reduzida nas circunstâncias referidas em i);
iii) por isso, não age com abuso do direito o trabalhador que, decorridos esses três anos e na sequência da resolução do contrato de trabalho com outro fundamento, vem pedir o pagamento das diferenças entre a retribuição que lhe foi paga e a devida;
iv) mostra-se ajustada a fixação de uma indemnização de 25 dias de retribuição base e diuturnidades, por cada ano de antiguidade ou fracção, a um trabalhador, chefe de departamento, que resolveu o contrato de trabalho com justa causa, e em que, de relevante, apenas se apura que ocorreu falta de pagamento da retribuição mensal de € 1.545,00 durante três meses seguidos, sendo que tinha de antiguidade cerca de 11 anos.

João Nunes