Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
843/17.6T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: NOVAÇÃO
DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
DAÇÃO EM PAGAMENTO
Nº do Documento: RP20190218843/17.6T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 02/18/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 690-A, FLS 89-102)
Área Temática: .
Sumário: I - A novação constitui uma modalidade de extinção das obrigações, tem, porém, como particularidade o facto da extinção da obrigação contratual decorrer da constituição de uma nova obrigação que vem ocupar o lugar da primeira (cfr. artigo 857.º do CCivil).
II - Por sua vez, na dação em cumprimento não há a constituição de qualquer vínculo com efeito liberatório, mas apenas a extinção da obrigação através de uma prestação diferente daquela que era inicialmente devida, mediante acordo das partes, que tem de ser contemporâneo do cumprimento.
III - Já na dação em função do pagamento (datio pro solvendo), o credor também aceita uma prestação diversa da devida, mas a extinção desta última só ocorre se, quando e na medida em que aquele vir satisfeito o seu crédito.
IV - Se as partes acordaram em determinada fase negocial que a obrigação primitiva se extinguiria mediante a celebração futura de uma dação em pagamento de um imóvel e, se depois tal negócio se não chega a concretiza por razões várias, pode haver lugar a outras consequências, designadamente no plano da responsabilidade contratual, verificados que estejam os respectivos pressupostos, mas nunca esse acordo implica, só por si, a extinção do primitivo direito de crédito e das garantias que lhe estavam associadas. Causa extintiva será o contrato definitivo em que se assumam semelhantes obrigações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 843/17.6T8OVR-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo de Execução de Ovar
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
A sociedade “B...”, pessoa colectiva n.º ........., com sede na Rua ..., n.º .../..., em Lisboa–entretanto substituída pela sociedade “C..., S.A.”, pessoa colectiva n.º ........., com sede no Edifício ..., n.º ., ..., Paço de Arcos–intentou, no Juízo de Execução de Ovar, execução na forma ordinária, do processo comum para pagamento de quantia certa, fundada na livrança subscrita pela sociedade “D..., Lda.”, pessoa colectiva n.º ........., e com sede na Rua ..., n.º .. – 1.º Esq., em Ovar, e avalizada por E..., com o NIF ........., residente na ..., n.º .. – 1.º Esq., em Ovar, por F..., com o NIF ........., e por G..., com o NIF ........., residentes na mesma morada.
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Em 06/06/2017, vieram os executados “D..., Lda.”, E..., F... e G... deduzir embargos à execução, alegando, em síntese:
- Não contestam o valor em dívida;
- Reconhecem as dificuldades financeiras da sociedade subscritora em cumprir o contrato de apoio à construção;
- No entanto, foi formalizada a dação em pagamento, mediante a entrega do imóvel dado em garantia, nos termos do documento n.º 1 junto com a petição de embargos, e, com a aceitação pela embargada daquela proposta, a sociedade subscritora deixou de estar vinculada ao pagamento das suas responsabilidades junto do credor, ficando apenas com a obrigação de terminar as obras e obter a licença de utilização;
- Os documentos foram obtidos em Julho de 2015, tendo este facto sido comunicado à embargada, a quem posteriormente foi enviada a licença;
- Depois disso, o B... não marcou a escritura de dação, tendo, ao invés, exigido uma nova proposta de dação em pagamento, na qual exigia a entrega de um montante adicional de cerca de € 27.000,00;
- Só que já existia novação da obrigação. Estando as obrigações garantidas extintas, por novação, a dívida exequenda é inexigível.
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O Banco exequente deduziu contestação, respondendo à excepção invocada pelos embargantes, e, no mais, impugnou os fundamentos dos embargos nos termos por aqueles alegados.
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Realizada a audiência prévia, procedeu-se à identificação do objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Foram admitidas as provas indicadas pelas partes.
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Teve lugar a audiência final que decorreu com observância do legal formalismo.
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Na primeira sessão de julgamento foi aditado o tema da prova sob a alínea u); e durante a segunda sessão foi aditado o tema da prova sob a alínea v).
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A final foi proferida decisão que julgou improcedentes os embargos do Executado e, em consequência, determinou o prosseguimento da execução para pagamento da quantia liquidada no requerimento executivo.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os embargantes interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
2. A expressão “desde que fossem cumpridas as condições impostas pela embargada” introduzida pela na al. h) dos Factos Provados, para além de não ter sido alegado pela Embargada, não tem o mínimo de assento nos elementos de prova produzidos no processo, pelo que deve ser retirada da alínea tal expressão.
3. O que consta da carta de fls. 15 junta como documento nº 1 com a petição da Oposição por Embargos na qual a Embargada declara aceitação do acordo proposto pela Embargante, eram as condições em que se cumpria o acordo celebrado,…
4. … e não condições de cuja verificação dependia o início de produção dos efeitos do acordo.
5. Para além da falta absoluta de fundamentação, o que consta das alíneas k) e u) dos factos provados não tem o mínimo de sustentação nos factos provados, devendo por isso ser revogada a decisão nesta parte.
6. Da realidade de facto vertida nas alíneas e), f) g) e h) decorre que por consequência do acordo celebrado a Embargante deixou de estar vinculada ao pagamento da quantia pecuniária titulada pela livrança (obrigação primitiva), para ficar obrigada a concluir a construção de uma moradia, proceder à sua legalização e transmitir o direito de propriedade sobre a mesma para a Embargada;
7. Enquadrando juridicamente esta realidade de facto descrita como novação, ela constitui um facto extintivo da obrigação exequenda.
8. Mesmo enquadrando juridicamente a mesma realidade como acordo no sentido do cumprimento de obrigação mediante prestação diversa da prestação pecuniária que era devida, (datio pro solutum), não tendo sido declarada a resolução do mesmo acordo, ele configura-se como facto impeditivo da exigência da obrigação exequenda.
9. Condição suspensiva, nos termos do disposto no artº 270.º do C.Civil consiste na subordinação do início da produção dos efeitos de um negócio jurídico a um acontecimento futuro e incerto e futuro.
10. Para além de fazer errada interpretação do disposto no artº 270.º do C.Civil, a sentença recorrida não concretiza qual o facto integrador da invocada condição suspensiva.
11. A fixação de um prazo para cumprimento de uma obrigação contratual, não é um acontecimento futuro e incerto no sentido que a citada norma legal encerra do que depende o início da produção dos efeitos do contrato, mas um elemento temporal para aferir do cumprimento ou incumprimento contratual.
12. Perante a não realização da escritura de dação em pagamento no prazo de 2 meses convencionado, Embargada não resolveu o acordo celebrado, bem pelo contrário, solicitou ao representante legal da Embargante a licença de utilização da moradia, documento necessário para instruir a escritura pública.
13. Manifestando a Embargante a sua vontade para outorgar a escritura e deixando em aberto a possibilidade de discussão sobre o pagamento de um valor pecuniário para além da entrega da moradia, constitui manifesto abuso da Embargada preencher a livrança em branco e dá-la à execução.
14. Foi violado o disposto nos artºs 5.º e 607.º, nº 4 do C.P. Civil e o disposto nos artºs 857.º, 837.º e 270.º do C.Civil.
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Devidamente notificado contra-alegou a exequente concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual e, mesmo não se alterando esta, se a subsunção jurídica se encontra correctamente feita.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
Factos provados
a) O credor originário (B...) disponibilizou à embargante “D..., Lda.”, por conta da celebração, no dia 22/05/2013, do contrato n.º .............-., na modalidade de abertura de crédito (conforme instrumento de contrato junto a fls. 8 a 15 e 18 a 20 todas dos autos principais), os seguintes montantes:
- € 15.000,00 disponibilizados no dia 29/05/2013;
- € 10.000,00 disponibilizados no dia 31/07/2013, no seguimento da convenção adicional elaborada no dia 22/07/2013.
b) No ato da celebração do contrato de financiamento nº .............-., a embargante “D..., Lda.”, na qualidade de subscritora, e os restantes executados, na qualidade de avalistas, subscreveram a livrança dada à execução;
c) A livrança foi assinada pelos executados em branco, designadamente, quanto ao local e data de emissão, valor e data de vencimento;
d) Destinava-se a mesma livrança a servir de título executivo no caso de incumprimento das obrigações emergentes do mencionado contrato;
e) No ano de 2014, atravessando graves dificuldades económicas para regularização de todas as responsabilidades emergentes dos contratos de financiamento nºs .............-., ..............-., .............-. e .............-., a embargante “D..., Lda.” propôs entregar à embargada a parcela de terreno destinada a construção, designada por lote 25, sita na freguesia e concelho de Ovar, inscrito na matriz predial sob o artigo 11100 e descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº 5666 da freguesia de Ovar;
f) No mencionado lote 25 estava em construção uma casa de habitação;
g) Por carta de 3 de Junho de 2014, o embargado formalizou por escrito a sua aceitação, na qual foi estabelecido que a referida dação regularizava o contrato objecto do requerimento executivo, entre outros, no montante global de € 220.625,28;
h) A partir desse momento, a embargante “D..., Lda.” deixou de estar vinculada, desde que fossem cumpridas as condições impostas pela embargada, ao pagamento das quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, ficando apenas com a obrigação de concluir a construção e obter a licença de utilização com vista à realização da escritura pública de dação em pagamento da moradia para o embargado, livre de quaisquer ónus ou encargos;
i) A embargada aceitou a proposta na condição de a embargante “D..., Lda.” concluir a construção da casa de habitação e obter a licença de utilização;
j) Aquando da aceitação, em 3 de Junho de 2014, a embargada referiu o seguinte:
- “as escrituras referentes às dações, deverão ser realizadas num prazo máximo de 2 meses, nas seguintes condições:
-As chaves do imóvel devem ser entregues até à realização da escritura de dação em pagamento;
- O imóvel deve apresentar-se livre de ónus ou encargos e de pessoas e bens”;
k) A embargada apenas aceitou a dação nas condições mencionadas na alínea anterior, sendo estas consideradas condições sem as quais a dação não se realizaria;
l) A embargante “D..., Lda.” deu início à execução das obras de construção;
m) Uma vez concluídas as obras de construção, aquela embargante requereu a emissão da licença de utilização e tratou da inscrição da casa de habitação já construída na matriz predial e no registo predial;
n) Em 16 de Julho de 2015, o representante legal da embargante “D..., Lda.” comunicou à exequente a aprovação da licença de construção, sendo o seu levantamento efectuado logo que fossem emitidas as guias para pagamento;
o) Em 2 de Setembro de 2015, por solicitação da embargada, a embargante “D..., Lda.” enviou-lhe a licença de utilização;
p) No início de 2016, o representante legal da embargante “D..., Lda.” foi contactada por um funcionário da exequente, comunicando-lhe que, para além da transmissão da propriedade do imóvel, teria de pagar uma determinada quantia em dinheiro;
q) A executada “D..., Lda.” não aceitou pagar qualquer quantia, e através de carta de 4 de Fevereiro de 2016, comunicou ao embargado que a controvérsia sobre o valor pretendido não impedia que fosse outorgada a escritura de dação em pagamento;
r) Em 8 de Fevereiro de 2016, a embargada enviou missiva à sociedade embargante a informar que efectivamente havia um acordo de dação entre ambas as partes, ressalvando que foi estabelecido um prazo de 2 meses para a outorga da escritura, o que não correu no tempo estipulado;
s) Em 10 de Março de 2016, a embargada reitera as condições em que aceita a regularização das responsabilidades vencidas nos contratos nºs .............-., .............-.. .............-. e .............-., desde que, para além da dação da casa de habitação, fosse paga mais a quantia de 27.000,00€, ressalvando que, caso os embargantes entendam que a mesma proposta não respeita os seus desejos, deverão proceder a uma regularização imediata das responsabilidades vencidas;
t) A sociedade embargante não aceitou, e, através das cartas datadas de 16 de Março de 2016 e 1 de Abril de 2016, reiterou a sua total disponibilidade para outorgar a escritura de dação em pagamento;
u) Da avaliação realizada em 10 de Setembro de 2015 resultava um valor inferior à realizada em 2014, considerando que o acesso ao terraço, inicialmente previsto na cobertura foi anulado/fechado e, consequentemente houve uma diminuição da área habitável;
v) Em consequência da avaliação feita em 10 de Setembro de 2015, foi proposto aos embargantes a entrega do imóvel acrescido da quantia de € 27.000,00, o que não foi aceite pelos mesmos;
w) O depósito prévio de tal quantia era condição essencial para a liquidação da responsabilidade dos embargantes;
x) Os embargantes tinham pleno conhecimento de tal condição, pois receberam a referida missiva;
y) Depois de ter sido emitida a licença de utilização e perante a recusa do B... em celebrar a escritura de dação em cumprimento, o embargante E..., na qualidade de gerente da sociedade “D..., Lda.”, declarou que poderia pensar numa contraproposta–que aceita que pudesse ser de 20 mil euros–e sempre de valor inferior à nova proposta do B..., desde que falasse primeiro com a sua família e com o advogado;
z) O capital relativo ao contrato n.º .............-. nunca foi pago nas datas das renovações;
aa) Em virtude da falta de cumprimento das obrigações emergentes do contrato identificado na alínea a) dos Factos Provados [n.º .............-.] e da falta de aceitação pelos embargantes das novas condições, a embargada, por cartas datadas de 23/02/2017 (cf. fls. 21 a 24 dos autos principais), comunicou à sociedade executada e aos demais executados que considerava resolvido aquele contrato, e para efectuarem até ao dia 27/03/2017 o pagamento da quantia em dívida à data de Fevereiro de 2017, advertindo-os de que caso permanecessem em incumprimento iria proceder ao preenchimento da livrança;
bb) A extinção das responsabilidades emergentes do contrato de financiamento nº .............-. estava dependente da celebração da escritura de dação em pagamento.
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Factos não provados
Não se provou que:
1- O documento de folhas 15 destes autos manifesta uma vontade expressa de a embargada aceitar, sem a verificação de qualquer condição, a substituição de obrigações–da obrigação pecuniária que para a sociedade embargante advinha do cumprimento do contrato com o nº ...-.........–. (conforme instrumento de contrato junto a fls. 8 a 15 e 18 a 20 todas dos autos principais) pela obrigação de concluir a construção da casa de habitação no lote 25, inscrito na matriz predial com o artigo 11100 e descrito na CRP de Ovar com o n.º 5666, da freguesia de Ovar, bem como a obrigação obter a licença de utilização e ainda a obrigação de realização da escritura pública de dação em pagamento, com a consequente transferência do direito de propriedade sobre aquele imóvel, já construído, para a embragada, livre de ónus e encargos–, pelo que os efeitos da novação deveriam operar com a recepção pelos embargantes, e nomeadamente pela sociedade embargante, do referido documento de folhas 15.
2- Em resultado da nova avaliação do imóvel construído foi atribuído o valor de € 210.000,00 a esse imóvel.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
Como resulta do corpo alegatório e das respectivas conclusões os embargantes recorrentes impugnaram a decisão da matéria de facto tendo dado cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º, nº 1 als. a), b) e c) do CPCivil.
Com efeito se é verdade que na grande maioria dos casos a impugnação da matéria de facto se funda, essencialmente, na existência de provas que conduzem a um resultado probatório diferente daquele que foi acolhido na decisão sob censura, estes casos não esgotam o universo das situações passíveis de motivar inconformismo contra a decisão de facto, situação que ocorre no caso em apreço.
Cumpridos aqueles ónus e, portanto, nada obstando ao conhecimento do objecto de recurso nesse segmento, os embargantes não concordam com a decisão sobre a fundamentação factual relativa às alíneas h), k) e u) do elenco dos factos provados.
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A al. h) da fundamentação factual tem a seguinte redacção:
A partir desse momento, a embargante “D..., Lda.” deixou de estar vinculada, desde que fossem cumpridas as condições impostas pela embargada, ao pagamento das quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, ficando apenas com a obrigação de concluir a construção e obter a licença de utilização com vista à realização da escritura pública de dação em pagamento da moradia para o embargado, livre de quaisquer ónus ou encargos”.
Propugnam os recorrentes que desse facto deve ser expurgada a expressão “desde que fossem cumpridas as condições impostas pela embargada” por se tratar de expressão não alegada pelas partes.
Analisando.
A al. h) da fundamentação factual tem correspondência com o artigo 8º da petição de embargos o qual está desprovido da referida expressão.
Ora, no artigo 3º da contestação, sem qualquer reserva, a embargada declarou que aceitava como verdadeiros os factos constantes dos artigos 1º a 5º, 7º, 8º e 12º dos Embargos de Executado, confissão que se aceitava para não mais ser retirada nos termos dos artigos 46º, 465º nº 2 e 574º do C.P.Civil. (sic)
Evidentemente que nos termos do artigo 5.º, nº 2 do CPCivil, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
Resulta desta norma que o tribunal deve considerar na sentença factos não alegados pelas partes. Não se trata, contudo, de uma possibilidade sem limitações.
Desde logo, não cabe ao juiz supor ou conceber factos que poderão ter relevo, é necessário que estejamos perante factos que resultem da instrução da causa, isto é, factos que tenham aflorado no processo através dos meios de prova produzidos e, portanto, possuam já alguma consistência prática, não sejam meras conjecturas ou possibilidades abstractas.
Por outro lado, o juiz só pode considerar factos instrumentais e, quanto aos factos essenciais, aqueles que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado, já que o objecto do processo continua a ser delimitado pela causa de pedir eleita pela parte [artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alínea d), 581.º e 615.º, n.º 1, alínea d), segunda parte] e subsistem ainda as limitações à alteração dessa causa de pedir (artigos 260.º, 264.º, 265.º).
Ora, mesmo considerando que tal expressão factual constitui complemento ou concretização do citado facto e resultante da instrução da causa (torna-se evidente não se tratar de facto instrumental) a sua consideração oficiosa, não pode ser feita sem que as partes se pronunciem sobre ela, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração tal facto, tinha que ter alertado as partes sobre essa sua intenção operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de arrolar novos meios de prova sobre ele.
Acontece que dos autos não resulta que tenha sido adoptado tal ritualismo processual e, como tal, não podia o senhor juiz do processo introduzir no citado ponto factual, à revelia desse procedimento adjectivo, a aludida expressão factual.
Como assim, a al. h) do elenco dos factos provados passa a ter a seguinte redacção:
A partir desse momento, a embargante “D..., Lda.” deixou de estar vinculada, ao pagamento das quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, ficando apenas com a obrigação de concluir a construção e obter a licença de utilização com vista à realização da escritura pública de dação em pagamento da moradia para o embargado, livre de quaisquer ónus ou encargos”.
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Alegam depois os recorrentes que existe falta de fundamentação da decisão quanto ao facto constante da al. k), além de tal facto estar em contradição com o que consta da al. o) do elenco dos factos provados.
No que tange à falta de fundamentação não cremos, salvo o devido respeito, que ela ocorra.
Efectivamente, basta ler o seguinte trecho da motivação da decisão da matéria para constar que assim não é:
Pelo contrário, há que entender que foi eliminada a incerteza sobre os factos controvertidos relativos à versão da embargada–a saber, a partir daquele momento, a embargante “D..., Lda.” deixava de estar vinculada ao pagamento das quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, mas desde que fossem cumpridas as condições por si impostas, e que constam do mesmo documento (junto a fls. 15 destes autos), como seja a conclusão da construção e a obtenção da licença de utilização com vista à realização da escritura pública de dação em pagamento, sendo que estas condições eram válidas apenas por um período de 2 meses, findo o qual caducariam; por modo que a extinção das responsabilidades da sociedade embargante emergentes do contrato de financiamento nº .............-. estava dependente da celebração da escritura de dação em pagamento (cf. alíneas h), i), k) e bb) dos factos provados).
Nesse sentido apontam igualmente os depoimentos prestados pelas testemunhas H... e I.... A primeira esteve, por mais do que uma vez, reunida com o embargante E... ainda antes da elaboração do documento junto a fls. 15 destes autos. Nessas reuniões discutiu-se a capacidade financeira da sociedade “D..., Lda.” para terminar a construção da moradia. A segunda participou em, pelo menos, uma reunião com o embargante E..., na qual se discutiu a necessidade de renegociar as condições exigidas pelo credor originário para a celebração da escritura de dação em pagamento, dado que as condições em que a licença de utilização foi emitida pela Câmara Municipal ... implicaram a diminuição da área útil do imóvel.
Estes dois depoimentos foram prestados de forma coerente, não apresentando discrepâncias entre si–com excepção da referência ao prazo geral de validade das propostas que impliquem a entrega de imóveis; a primeira referiu 60 dias e a segunda 90 dias–e também se harmonizam com o teor dos documentos juntos a fls. 17 e 19 a 25 destes autos.
Acresce que estas testemunhas contextualizaram as afirmações que fizeram nos seus depoimentos e mencionaram circunstâncias fácticas em relação às quais não foram directamente questionadas. Por isso, considero os seus depoimentos credíveis.
Cumpre, então, concluir que a circunstância fáctica de terminar as obras e de obter a licença de utilização do imóvel não é uma nova obrigação contratual, assumida pela sociedade embargante na sequência do envio do documento de fls. 15 destes autos, mas antes uma condição (suspensiva) para a embargada aceitar a dação em pagamento, e, por essa via, aceitar a desvinculação daquela sociedade. Quer dizer: a desvinculação da sociedade embargante apenas operaria com a celebração da escritura de dação em pagamento, o que pressupunha que as condições impostas pela embargada estivessem verificadas”.
Pode-se não concordar com tal fundamentação, não se pode é asseverar que ela não existe.
Da mesma forma que não se divisa a propalada contradição entre este facto e o que consta da al. o), pois que um não excludente do outro.
A obtenção da licença de utilização era uma da condições para a embargada aceitar a proposta em causa [cfr. al. i) da fundamentação factual que não foi objecto de impugnação], razão pela qual aquela solicitou o seu envio.
Mas que relação existe entre a al. j) e k) da fundamentação factual com al. o) da mesma fundamentação para se falar em contradição?
É que, uma coisa são as condições em que a proposta em causa foi aceite e outra coisa é o desenvolvimento e cumprimento do programa negocial estabelecido em relação à mesma.
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Alegam as embargantes por último e neste segmento recursivo que o que consta da al. u) dos Factos Assentes para além de conclusivo carece de qualquer fundamentação.
A referida alínea tem a seguinte redacção:
Da avaliação realizada em 10 de Setembro de 2015 resultava um valor inferior à realizada em 2014, considerando que o acesso ao terraço, inicialmente previsto na cobertura foi anulado/fechado e, consequentemente houve uma diminuição da área habitável”.
Quanto à falta de fundamentação, podendo, contudo, com ela não se concordar, não se verifica tendo em conta o seguinte excerto da motivação da decisão da matéria de facto:
Para a factualidade vertida na alínea u) dos factos provados, o Tribunal teve em conta as declarações de parte prestadas pelo embargante E..., que disse “o terraço está lá; não houve alteração de estética; para agilizar o processo na Câmara Municipal ..., e com conhecimento do Sr. H..., procedeu-se a uma alteração do acesso ao terraço”. E mais disse que, depois de emitida a licença, voltou à fase inicial. Desta passagem das declarações de parte, é possível concluir que, para efeitos de legalização da obra, tiveram que realizar-se alterações ao projecto de arquitectura da habitação.
Esta circunstância é corroborada pelo depoimento da testemunha J..., autor do projecto de arquitectura.
Note-se que no relatório da perícia de avaliação da mesma moradia que foi determinada no âmbito dos autos de execução n.º 557/17.7T8OVR (a correr termos neste mesmo Juízo), em que as partes são as mesmas, a sr.ª perita descreve a composição do prédio como tendo um terraço na cobertura (cf. certidão junta a fls. 68 e ss. destes autos).
Como esta perita se deslocou ao local para uma visita técnica, é possível concluir que existe, de novo, acesso ao terraço, tal como como referiu o embargante E... nas declarações de parte que prestou no início do julgamento.
Em outros termos: a emissão da licença de utilização implicou a desconsideração do terraço, o que esteve na origem da diminuição da área útil da habitação. Esta inferência fáctica é corroborada pelo documento junto a fls. 33 v’ a 37 destes autos, cuja falsidade e inexactidão da reprodução mecânica não foram arguidas pelos embargantes. Trata-se de uma ficha técnica da habitação elaborada com base na emissão da licença de utilização, o que pressupõe que seja datada de um período posterior a 24/07/2015”.
Todavia quanto à sua conclusividade cremos, salvo o devido respeito, que ela, efectivamente, se verifica.
Com efeito, a diminuição do valor do imóvel era conclusão a extrair da comparação entre as duas avaliações, ou seja o valor de cada uma das avaliações é que consubstanciavam os factos a partir do qual era possível extrair a referida conclusão.
O artigo 607.º, nº 4 do CPCivil dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 CPCivil, previa, ainda, que têm-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes.
Esta norma não transitou para o actual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”.[1]
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do colectivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito”.[2]
Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.
Disto isto, torna-se evidente que alínea u) dos factos provados encerra uma conclusão e não um facto, razão pela qual deve ser eliminada.
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Procedem, assim, em parte, as conclusões 1ª a 5ª formuladas pelos embargantes recorrentes.
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A segunda questão colocada no recurso prende-se com:
b)- saber se a subsunção jurídica dos factos que resultaram provados se encontra, ou não, correctamente feita, levando em linha de conta a alteração do quadro factual nos termos supra decididos.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se entendeu que a carta junta a fls. 15 do autos representava um acordo preliminar abrangendo as condições impostas pela embargada (credor originário) para a celebração da escritura de dação em pagamento, sem a verificação das quais esta escritura não seria outorgada, ou seja, aceitou a embargada a dação em pagamento na condição (suspensiva) de se verificarem as condições por si exigidas no documento de fls. 15 destes autos, dado que só naquele contexto aceitava a desvinculação da sociedade embargante.
Desse entendimento dissentem as recorrentes alegando ter ocorrido a novação da obrigação ou, quando muito, um acordo de cumprimento das obrigações decorrentes dos contratos de financiamento mediante prestação de coisa diversa da que for devida, situação enquadrável no artigo 837.º do C.Civil: dação em cumprimento (datio pro solutum).
Qui iuris?
Conforme decorre do artigo 523.º do Código Civil, a satisfação do credor, por novação, produz a extinção, relativamente a ele, das obrigações de todos os devedores.
A novação constitui, assim, uma modalidade de extinção das obrigações. Tem, porém como particularidade o facto da extinção da obrigação contratual decorrer da constituição de uma nova obrigação que vem ocupar o lugar da primeira.
São, então, requisitos da novação: (i) a intenção de novar, expressamente declarada; (ii) que a obrigação primitiva seja válida e não se encontre extinta ao tempo em que a segunda foi contraída, e (iii) que a nova obrigação se constitua validamente.[3]
Em termos de ónus probatórios, sendo a novação um facto extintivo da obrigação accionada, a intenção de novar e a expressa manifestação dessa intenção, têm que ser provadas por quem a invoca, tal como resulta do n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil.
Nos termos da lei, a novação reveste duas modalidades: a novação objectiva e a novação subjectiva.
A primeira dá-se quando o devedor contrai perante o credor uma nova obrigação em substituição da antiga (artigo 857.º do Código Civil). Essa substituição tanto pode ocorrer por haver substituição do objecto da obrigação, como pela mudança da causa da mesma prestação.
A segunda, a novação por substituição do credor ou do devedor, relevando no caso a novação por substituição do devedor, ocorre quando um novo devedor, contraindo nova obrigação é substituído ao antigo, que é exonerado pelo credor (artigo 858.º Código Civil).
Extinta a antiga obrigação por novação, ficam igualmente extintas, na falta de reserva expressa, as garantias que asseguravam o seu cumprimento, mesmo as resultantes da lei, e dizendo a garantia respeito a terceiro, é necessária também a reserva expressa deste (artigo 861.º do Código Civil).
A novação envolve, assim, um contrato a um tempo constitutivo e extintivo de obrigações, na primeira vertente relativamente à obrigação nova e, na segunda, quanto à obrigação originária.
No que concerne à vontade de novar, a mesma tem de ser (bilateral) e expressamente manifestada, não se bastando com uma manifestação apenas tácita.
É expressa a declaração negocial feita por meio de palavras, escrito ou outro meio directo de manifestação da vontade (artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil).
Releva, assim, na interpretação negocial a intenção das partes o chamado animus novandi, elemento essencial à novação, decorrendo da sua ausência que a primitiva obrigação não se extingue.
Essa vontade expressamente manifestada é, em rigor, aquela que é traduzida de modo expresso (como se disse, por palavras, escrito, ou qualquer meio directo de manifestação de vontade), o que leva a excluir, desde logo, as declarações tácitas (aquelas que são deduzidas de factos que, com toda a probabilidade as revelam–cfr. artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil).[4]
Postos estes breves considerandos e respigando a matéria factual que nos autos se mostra assente não cremos, respeitando-se entendimento diverso, que no caso tenha ocorrido a novação da obrigação.
Analisando.
Sob este conspecto está provado nos autos o seguinte quadro factual:
“- No ano de 2014, atravessando graves dificuldades económicas para regularização de todas as responsabilidades emergentes dos contratos de financiamento nºs .............-., ..............-., .............-. e .............-., a embargante “D..., Lda.” propôs entregar à embargada a parcela de terreno destinada a construção, designada por lote 25, sita na freguesia e concelho de Ovar, inscrito na matriz predial sob o artigo 11100 e descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº 5666 da freguesia de Ovar;
- No mencionado lote 25 estava em construção uma casa de habitação;
- Por carta de 3 de Junho de 2014, o embargado formalizou por escrito a sua aceitação, na qual foi estabelecido que a referida dação regularizava o contrato objecto do requerimento executivo, entre outros, no montante global de € 220.625,28;
- A partir desse momento, a embargante “D..., Lda.” deixou de estar vinculada, ao pagamento das quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, ficando apenas com a obrigação de concluir a construção e obter a licença de utilização com vista à realização da escritura pública de dação em pagamento da moradia para o embargado, livre de quaisquer ónus ou encargos;[5]
- A embargada aceitou a proposta na condição de a embargante “D..., Lda.” concluir a construção da casa de habitação e obter a licença de utilização;
- Aquando da aceitação, em 3 de Junho de 2014, a embargada referiu o seguinte:
- “as escrituras referentes às dações, deverão ser realizadas num prazo máximo de 2 meses, nas seguintes condições:
- As chaves do imóvel devem ser entregues até à realização da escritura de dação em pagamento;
- O imóvel deve apresentar-se livre de ónus ou encargos e de pessoas e bens”;
- A embargada apenas aceitou a dação nas condições mencionadas na alínea anterior, sendo estas consideradas condições sem as quais a dação não se realizaria” [cfr. als. e) a k) da fundamentação factual].
Ora, desta factualidade não resulta que a relação negocial resultante dos contratos de financiamento celebrados entres as partes se tenha extinguido dando lugar a uma nova relação negocial, aliás, nem nesse quadro factual existe qualquer declaração expressa da vontade de novar.
É que, importa enfatizá-lo, para que haja novação, objectiva ou subjectiva, é necessário que uma obrigação nova venha substituir a antiga, e só é nova a obrigação quando haja uma alteração substancial nos seus elementos constitutivos. Não basta, por isso, que se altere, por exemplo, a data do cumprimento, se aumente ou reduza a taxa de juro, se majore ou reduza o preço, ou se dê por finda uma garantia, etc. É preciso que seja outra a obrigação e não seja apenas modificada ou alterada a obrigação existente.
O que estaria, no caso concreto, seria uma possível futura dação em cumprimento.
Na verdade o acordo estabelecido entre as partes no sentido de que não tendo a Embargante dinheiro para proceder ao pagamento das obrigações pecuniárias que para si decorriam dos contratos de financiamentos contraídos com a Embargada, daria em pagamento uma moradia uinifamiliar em fase final de construção num lote de terreno, traduzia a existência de uma futura dação em cumprimento, cuja previsão legal tem assento no artigo 837.º do CCivil.
Trata-se duma causa extintiva das obrigações, consistindo na realização de uma prestação diferente da que é devida, visando extinguir imediatamente a obrigação ou parte dela.
Tal causa extintiva tem pois por características fundamentais o facto de pressupor um acordo entre os contraentes no sentido de alterarem o meio de cumprimento da obrigação (aqui liquidação das prestações relativas aos contratos de financiamento seria efectuado mediante a entrega da referida parcela e construção nele existente) e de tal meio de cumprimento implicar a imediata satisfação do direito de crédito do credor e, consequentemente, levar à sua extinção e exoneração do devedor.
Por sua vez, na dação em cumprimento não há a constituição de qualquer vínculo com efeito liberatório, mas apenas a extinção da obrigação através de uma prestação diferente daquela que era inicialmente devida, mediante acordo das partes, que tem de ser contemporâneo do cumprimento, ou seja, este não pode ser deferido em relação àquele. Se o for, já não estamos perante a mesma figura jurídica, posto que, na dação em pagamento, “não se chega a criar uma nova obrigação; extingue-se a existente mediante a entrega de uma outra prestação.
Distinta, mas ao mesmo tempo conceptualmente próxima das duas figuras que acabamos de abordar, é a dação em função do pagamento (datio pro solvendo).
Nesta expressa por seu turno a lei, por um lado, que se o devedor efectuar uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu direito de crédito, este só se extingue quando for satisfeito e na medida respectiva (artigo 840.º, nº. 1, do Código Civil).
E, por outro, que se a dação tiver por objecto a cessão de um crédito ou a assunção de uma dívida, presume-se feita nos termos do número anterior (artigo 840.º, nº. 2, do Código Civil).
Caracteriza-se, pois, essencialmente, a dação pro solvendo pela circunstância de, na intenção das partes, não pretenderem a imediata extinção da obrigação, antes configurando que ela subsista até à extinção do direito do credor por virtude da sua satisfação.
A diferença essencial entre a dação em cumprimento e a dação em função do cumprimento consubstancia-se essencialmente na circunstância de nesta última, o devedor pretender facilitar ao credor a realização do seu direito de crédito, realizando uma prestação diversa da devida, tendente a esse fim, e, na primeira, o devedor pretender extinguir imediatamente a sua obrigação por via de prestação diversa da devida.
Isto dito e regressando ao caso em apreço, torna-se evidente que entre as partes, Embargante e Embargada, não ocorreu quer na altura da troca de correspondência quer posteriormente, a celebração de qualquer dação em cumprimento, ou seja, não houve uma efectiva datio in solutum.
Nem, aliás, podia ser de outra forma, já que a aquisição do imóvel por banda da Embargada, que a Embargante lhe propôs, só podia ser realizada através da forma legalmente estipulada (artigo 875.º, do Código Civil), ou seja, razões de ordem formal impediam que a aquisição do referido imóvel se concretizasse apenas pela troca de correspondência em análise entre as partes.
Eventualmente a missiva de 3 de Junho de 2014 podia consubstanciar uma promessa unilateral de dação em cumprimento, ou seja, um acordo (um pactum de in solutum dando) através do qual se permitia à Embargante libertar-se da sua obrigação mediante a prestação de coisa diversa da devida.[6]
Mas ainda que assim fosse, se como vimos quer a quer dação em cumprimento quer a dação em função do cumprimento têm em comum o facto de terem por objecto uma prestação diferente da que é devida, sendo a finalidade última e prática, ainda que nem sempre a imediata extinção da obrigação originária por causa diversa do seu cumprimento, não é esse fenómeno que se observa no contrato promessa.
Neste tipo de convénios, a sua obrigação característica, como decorre do disposto no artigo 410.º, n.º1, do Código Civil, é a de contratar; ou seja, “uma obrigação de prestação de facto, que tem de particular consistir na emissão de uma declaração negocial”.[7]
Assim, ainda que alguém aceite que, futuramente, o devedor dê em pagamento uma prestação diversa da que aí foi acordada, para se libertar desta, ou mesmo faculte ao credor uma prestação diferente da devida, para que o credor obtenha mais facilmente, pela realização do valor dela, a satisfação do seu crédito, nunca esse compromisso é, só por si, causa extintiva deste crédito.
Causa extintiva será o contrato definitivo em que se assumam semelhantes obrigações.
Cremos, porém, que a Sociedade Embargante e a Embargada se limitaram, nesta fase negocial, a decidir, por consenso, que a dívida daquela, decorrente dos contratos de financiamento para com Embargada, seria extinta por dação em pagamento do citado imóvel pertencente àquela.
Daí que se conclua que entre as referidas partes não foi celebrado nenhuma dação em pagamento, apenas concordaram em vir a celebrar tal contrato no futuro.
Daqui decorre que a Sociedade embargante apenas e só com a realização da mencionada escritura pública de dação em cumprimento ficava desvinculada de qualquer obrigação perante a Embargada.
Efectivamente, só coma celebração de tal escritura se extinguiria a obrigação primitiva e as garantias que a envolviam.
E contra isso não se argumente com o facto de estar assente nos autos que a partir da missiva de 3 de Junho a Embargante “D..., Lda.” deixava de estar vinculada, ao pagamento das quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, ficando apenas com a obrigação de concluir a construção e obter a licença de utilização com vista à realização da escritura pública de dação em pagamento da moradia para o embargado, livre de quaisquer ónus ou encargos [cfr. al. h) da fundamentação factual].
Efectivamente, essa desvinculação é inócua para efeitos de extinção da obrigação primitiva por via da referida dação em pagamento.
A Embargada apenas aceitou que a partir do referido momento a Sociedade Embargante deixasse de pagar as quantias pecuniárias para a liquidação dos valores financiados, tendo em vista a futura celebração do contrato de dação em pagamento.
Ora, se a concretização do referido negócio (dação em cumprimento) não chegou a ocorrer pelas razões que constam do elenco dos factos provados, pode haver lugar a outras consequências, designadamente no plano da responsabilidade contratual, verificados que estejam os respectivos pressupostos, mas nunca o acordo em análise implica, só por si, a extinção do direito de crédito reclamado pela Embargada na execução de que estes embargos são apensos e, por lógica implicância, das garantias que lhe estavam associadas.
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Diante do exposto tendo a livrança dada à execução, sido subscrita e avalizada pelos Embargantes para garantia do pagamento das obrigações pecuniárias emergentes dos citados contratos de financiamento, o valor nela aposto é devido, por tal obrigação não se encontrar extinta.
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Improcedem, desta forma as conclusões 6ª a 14ª formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelas apelantes (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 18 de Fevereiro de 2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui Pinto Código de Processo Civil-Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pag. 606.
[2] Antunes Varela, J.M.Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Actualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 648.
[3] Cfr. Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, Almedina, 7.ª ed., p. 997-998 e Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, II, Coimbra Editora, 3.ª ed., p. 193 e seguintes e Fernando Cunha e Sá in “Modos de Extinção das Obrigações, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor I. Galvão Teles, Vol. I, 231.
[4] Sendo de salientar que a indagação da vontade das partes passará sempre pela interpretação e integração da vontade negocial.
Conforme se refere num aresto do STJ de 09/03/2004 in www.dgsi.pt, a intenção de novar, expressamente manifestada, pressupõe uma “declaração compreensível na óptica de um declaratário normal, colocado na posição do declaratário real.”
Na verdade, toda a declaração, tanto a declaração expressa, como a declaração tácita, é passível de interpretação.
Como escreve Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica”, Vol. II, Coimbra Editora, 1987, p. 133-134 “A declaração expressa não é incompatível com a necessidade de interpretação. Como aliás sucede também com todo o texto legal, requer sempre qualquer actividade interpretativa; o que pode é ser esta uma tarefa de elementar simplicidade, em vez de exigir um laborioso esforço mental (…).
[5] Este facto contém já nova redacção resultante da decisão da impugnação da matéria de facto.
[6] Cfr. Ana Prata, in O Contrato-Promessa e o Seu Regime Civil, 1995, pág. 332 e segs..
[7] Cfr. Inocêncio Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7ª Edição/Reimpressão, Wolters Kluwer e Coimbra Editora, pág. 102.