Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
686/19.2T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALBERTO TAVEIRA
Descritores: MEIOS DE PROVA
PRAZO DE CADUCIDADE
DENÚNCIA DOS DEFEITOS
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP20230613686/19.2T8STS.P1
Data do Acordão: 06/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDENTE; DECISÃO CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os diversos meios de prova não têm hierarquia. Cada um vale por si e não se excluem, estando sujeitos à livre apreciação do julgador.
II – Os prazos de caducidade justificam-se em nome da rápida definição da situação jurídica. Estamos perante um ónus imposto ao consumidor – de denúncia dos defeitos. A denúncia é, assim, uma condição, da qual depende o conhecimento do exercício dos direitos do consumidor.
III – O abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido. Mas, esse excesso há-de ser claro e manifesto, clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. N.º[1] 686/19.2T8STS.P1
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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de Santo Tirso - Juiz 2

RELAÇÃO N.º 44
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio Oliveira

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
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I - RELATÓRIO.
AS PARTES
A.: AA e mulher
BB
R.: A..., S.A.,
B..., S.A.
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Os [2] Autores AA e mulher BB, (…), intentaram a vertente acção de processo comum contra A..., S.A., (…), B..., S.A., (…), peticionando a condenação das Rés a:
A) Substituírem a viatura de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.., por outra de igual marca e modelo;
B) Pagarem a cada um dos Autores a quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) a título de dano não patrimonial.

Alegam, sumariamente, que:
(i) Em 26/04/2017, o Autor comprou à Ré A..., S.A. o veículo automóvel, em estado novo, de marca Renault ..., pelo preço de 28.000,00€;
(ii) Sucede que decorridos poucos dias, após a entrega do veículo, ainda no mês de abril de 2017 o veículo demonstrou problemas que obrigaram os Autores a acionarem a garantia para reparação do veículo, o que se repetiu nos meses seguintes, subsistindo problemas, nomeadamente, com o ar condicionado, os pneus, a suspensão, que não foram reparados pela Ré.
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As Rés A..., LDA e B..., S.A., deduziram contestação, impugnando o invocado pelos Autores com referência aos defeitos do veículo e aos danos invocados pelos mesmos e arguindo a exceção de caducidade.
Concluiu, propugnando a improcedência da ação.
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Proferiu-se despacho saneador, bem como o despacho que identificou o objeto do litígio e os enunciou os temas da prova.
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DA/O DESPACHO/DECISÃO RECORRIDO
Após audiência de discussão e julgamento, foi proferida SENTENÇA julgando parcialmente procedente a demanda, nos seguintes termos:
Pelo supra exposto, julga-se a ação parcialmente procedente e, consequentemente, decide-se:
A) Condenar a Ré A..., S.A. a substituir o veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. adquirido pelo Autor AA por outro de igual marca e modelo;
B) Condenar a Ré A..., S.A. a pagar ao Autor AA a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), acrescida de juros de mora computados desde a citação à taxa legal consignada para as obrigações civis;
C) Absolver as Rés A..., S.A. e B..., S.A. do demais peticionado; (…)“.
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DAS ALEGAÇÕES
A 1.ª R., A..., S.A., vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser proferido Acórdão que absolva a Recorrente A... ou, se assim não se entender, condene a Recorrente A... e a B..., de forma solidária, a entregar aos Recorridos, um veículo em substituição do seu, da mesma marca, modelo e do mesmo ano, ou seja, de 2017, assim se fazendo a esperada JUSTIÇA! “.
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A ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
1. A A..., S.A. interpõe recurso da sentença proferida pelo M.mo Juiz a quo, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
A) Condenar a Ré A..., S.A. a substituir o veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.., adquirido pelo Autor AA, por outro de igual marca e modelo;
B) Condenar a Ré A..., S.A. a pagar ao Autor AA a quantia de 500,00€ (quinhentos euros), acrescida de juros de mora computados desde a citação à taxa legal consignada para as obrigações civis;
C) Absolver as Rés A..., S.A. e B..., S.A. do demais peticionado;
2. A Recorrente não se conforma com a sentença proferida porquanto entende que a prova produzida determinava decisão diferente quanto a alguns pontos da factualidade e, aplicando o direito aos factos provados (mesmo mantendo a decisão de facto da sentença), impunha-se uma decisão distinta.
3. No que respeita ao tema de prova 1 – “Das anomalias que surgiram no identificado veículo”, resultou provado o seguinte facto (ponto 25. Dos Factos Provados da sentença): “O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia do equipamento de ar condicionado, designadamente, o mesmo não atinge as temperaturas selecionadas, o que ocorre em consequência de problemas relacionados com a unidade de controle eletrónico da climatização ou com o mau funcionamento da válvula inversora do fluxo do líquido do ar condicionado.”
4. A recorrente entende que, face ao teor dos três relatórios periciais conjugados com o depoimento da testemunha CC, o M.mo Juiz a quo deveria ter julgado este facto como não provado.
5. A testemunha CC é engenheiro mecânico e conselheiro técnico da B... e, ao contrário do afirmado na sentença, teve conhecimento direto da situação porquanto acompanhou o diagnóstico feito ao ar condicionado exatamente enquanto engenheiro mecânico e conselheiro da B..., a pedido da A....
6. A testemunha explicou a sua opinião técnica sobre o funcionamento do ar condicionado do veículo dos Autores, concluindo pela inexistência de qualquer anomalia do sistema – assim revelando – para além do mais – conhecimento direto sobre a situação.
7. Veja-se o depoimento da testemunha Eng CC, gravação desde 11:01:04 até 11:08:22, de 17-11-2021.
8. A explicação dada pela testemunha é coincidente com a que foi explanada no relatório pericial de 31-05-2021, de forma unânime, pelos senhores peritos dos Autores, das Rés e do Tribunal (segunda perícia), no sentido de que não existe qualquer anomalia no funcionamento do sistema de ar condicionado.
9. Neste relatório pericial é explicado, de forma clara e precisa, a forma como os senhores peritos efetuaram o teste ao sistema de ar condicionado e justificaram as temperaturas obtidas, concluindo, de forma fundamentada, pelo bom funcionamento o sistema de ar condicionado – ao contrário do que acontece no primeiro e terceiro relatório pericial.
10. Face ao exposto, confrontando o teor dos relatórios periciais e o depoimento da testemunha CC, deveria o M.mo Juiz a quo ter julgado não provado o Facto constante do item 25 dos Factos Provados.
11. Na sentença resultou provado que (ponto 28 dos Factos Provados): O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta ruídos de ranger nas áreas da suspensão em consequência de elementos de fixação móveis deteriorados ou anomalias nos vedantes dos amortecedores do mesmo., concluindo o M.mo Juiz a quo que este facto constitui uma desconformidade para efeitos do disposto no artigo 2º e seguintes do Decreto lei 67/2003.
12. Entende a recorrente que estes ruídos não devem ser considerados desconformidades, por um lado, porque os ruídos na suspensão aparecem apenas em circunstâncias especiais designadamente se baloiçar intencionalmente o veículo (aparecem de forma esporádica), em piso irregular ou a transpor lombas. Ou seja, em condução dita normal não existem quaisquer ruídos. – conforme se explica no terceiro relatório pericial, realizado em 17-03-2022, página 25.
13. Por outro lado, segundo se refere no mesmo relatório pericial, os ruídos descritos existem porque os casquilhos, borrachas e/ou vedantes estão deteriorados, concluindo-se assim que, tratando-se de peças de desgaste, a sua substituição resolve o problema do ruído.
14. Como tal, os ruídos na suspensão, mencionados no item 28 dos Factos Provados, pela sua natureza, não podem ser considerados um defeito do veículo, tal como decorre do disposto no n.º 2 do artigo 3º do Decreto Lei 67/2003.
15. Resultou comprovada nos autos – pontos 26, 27 e 28 dos Factos Provados da sentença - a existência de desconformidades no sistema de travão de imobilização, nos pneus da frente, que apresentam sinais de desgaste excessivo no interior e na suspensão, que apresenta ruídos.
16. Quanto a essas desconformidades, a Recorrente invocou a exceção de caducidade prevista no artigo 5º-A nº 2 do Decreto Lei 67/2003 por falta de denúncia dos mesmos, pelos Autores, à A....
17. O M.mº Juiz a quo na sentença decidiu que “(…) foram tempestivamente denunciadas às Rés nos termos elencados em 4) a 24), certificando-se, igualmente, o exercício do direito de ação no prazo de dois anos contemplado no art.º 5.º-A/3, do D.L. n.º 67/2003, pelo que naufraga a exceção de caducidade alegada.”, decisão esta com a qual a Recorrente discorda.
18. Decorre – de forma inequívoca - dos itens 4) a 24) dos Factos Provados que a última denúncia apresentada pelos Recorridos à Recorrente A... foi por email de 07/03/2018, e que, após essa data, à Recorrente A... não foi efetuada outra qualquer denúncia.
19. Resultou ainda provado que as denúncias seguintes, referentes às desconformidades constantes dos itens 26, 27 e 28 dos Factos Provados, foram efetuadas pelos Autores, a partir de julho de 2018, à Ré B... e à C... – concessionária da B... - que não é parte nesta ação, não tendo a Recorrente tido conhecimento sequer das mesmas – ou, pelo menos, não foi tal alegado e comprovado nos autos. – Tudo conforme resulta do teor dos itens 16 a 21 dos Factos Provados.
20. Ao contrário do decidido na sentença recorrida, a carta de 12/11/2018, remetida pela advogada dos Recorridos à Recorrente A..., não consubstancia uma denúncia porquanto na carta apenas se elencam, de forma sumária, as desconformidades do veículo, sem que as denuncie de forma inequívoca, precisa e circunstanciada (artigo 224º n.º 1 do código civil).
21. De todo o exposto, conclui-se que as desconformidades referenciadas nos itens 26, 27 e 28 dos Factos Provados, designadamente quanto ao sistema de travão de imobilização, sinais de desgaste excessivo do interior dos pneumáticos da frente e ruídos de ranger nas áreas da suspensão, não foram denunciados à Recorrente A..., pelo que o direito de ação relativamente aos mesmos caducou pelo decurso do prazo de dois meses (artigo 5º A n.º 2 do DL 67/2003).
22. Ao decidir pela improcedência da exceção de caducidade invocada pela Recorrente, o M.mo Juiz a quo, além de errada apreciação da prova com errada decisão quanto à matéria de facto, violou o disposto no artigo 224º n.º 1 do código civil e artigo 5º A n.º 2 do DL 67/2003 de 8 de abril.
23. A recorrente entende que face à factualidade provada, o M.mo Juiz a quo deveria ter absolvido a Ré A... porquanto o pedido de substituição do veículo constitui abuso de direito pelas razões seguintes:
24. Conforme decorre da matéria de facto dada como provada – itens 7 a 15 dos Factos Provados da sentença - de abril de 2017 a julho de 2018, os Recorridos denunciaram à Recorrente A... a existência de anomalias designadamente “ruído em piso irregular”, “roncar quando larga pedal da embraiagem”, “ruído no puxador da porta frente esq. (interior)”, “ruído no puxador porta frente direito (interior)”, “fuga de óleo no motor”, “não estar em normal funcionamento o ar condicionado e o esguicho do lado do condutor” e “desgaste anormal na parte lateral dos pneus da frente” e solicitaram à A... a sua reparação.
25. Na sequência, a Recorrente A... efetuou a reparação de todas as referidas desconformidades, ao abrigo da garantia, sem qualquer encargo para os Recorridos, tendo, em todos os casos, cedido aos Recorridos um veículo de substituição, durante o período de reparação.
26. Com exceção relativa ao ar condicionado, os Recorridos não voltaram a denunciar qualquer desconformidade à Recorrente A..., ou seja, não denunciaram à A... as desconformidades referenciadas nos itens 26, 27 e 28 dos Factos Provados, designadamente quanto ao sistema de travão de imobilização, sinais de desgaste excessivo do interior dos pneumáticos da frente e ruídos de ranger nas áreas da suspensão.
27. Do que decorre que, o direito de ação relativamente aos mesmos caducou pelo decurso do prazo de dois meses (artigo 5º A n.º 2 do DL 67/2003) e consequentemente as referidas desconformidades não podem ser consideradas para efeitos de aferição do direito dos Recorridos exigiram à Recorrente A... a substituição do veículo, nos termos do artigo 4º n.s 1 e 5 do Decreto Lei 67/2003.
28. O direito concedido ao consumidor de peticionar a substituição do bem depende da existência de desconformidades que tornem inexigível a manutenção do contrato de compra e venda, atenta a natureza do vício e de acordo com ditames de boa-fé e depende de previamente não ter este escolhido o direito à reparação, extinguindo-se assim o seu direito.
29. Tendo os Recorridos escolhido o direito à reparação do veículo automóvel, e tendo esses vícios – apenas com exceção do ar condicionado – sido efetivamente reparados pela Recorrente A..., não gozam os Autores do direito a invocar tais defeitos como fundamento para exigir à A... a substituição do automóvel.
30. O que significa que apenas o defeito do ar condicionado pode ser considerado para esse efeito – se não se alterar a decisão de facto quanto ao mesmo.
31. Ora, atendendo a que os Autores, apesar desse vício, continuaram a circular no veículo diariamente durante quase 6 anos - conforme resulta provado no item 5 dos Factos Provados e resulta evidente da circunstância de o veículo ter registado 49.554 Km no seu odómetro, na data da realização da primeira perícia, em 28 de julho de 2020, e ter 75.548 Km na data da realização da terceira perícia, em 17 de março de 2022 -, sem desconsiderar ainda que nos períodos de reparação utilizaram um veículo de substituição concedido pela Recorrente, e ainda que não resultou provado que o problema do ar condicionado não seja reparável, o direito à substituição do veículo constitui um verdadeiro abuso de direito.
32. Neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-09-2019, proferido no processo 2627/12.9T2SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2015, proferido no processo 1174/12.3TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
33. Pelo exposto, entende a Recorrente que deve improceder o pedido dos Autores de substituição do seu veículo por outro de igual marca e modelo, por consubstanciar, no caso concreto, abuso de direito.
34. Se assim não se entender, sempre terá de se alterar a parte decisória da sentença, acrescentando-se na condenação da Recorrente que o veículo a entregar aos Recorridos em substituição do seu há-de ser um veículo do mesmo ano, ou seja, de 2017, atendendo a que a substituição de um veículo de 2017, que continuou a ser utilizado diariamente pelos Autores, desde 2017 a 2023, ou seja, durante cinco anos e 9 meses, por outro, da mesma marca e modelo, novo, é indubitavelmente contrário aos ditames da boa fé. (Vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05- 05-2015, proferido no processo 1725/12, disponível em wwww.dgsi.pt)
35. A recorrente entende que o M.mo Juiz a quo decidiu erradamente quando absolveu a Ré B... ante o crivo da proporcionalidade consignado no art.º 6.º/1, do D.L. 67/2003 porquanto inexistem factos que sustentem esta decisão.
36. Conforme resulta da matéria de facto comprovada, as reparações efectuadas no veículo pela Recorrente A... foram feitas ao abrigo da garantia, sem qualquer encargo para os Autores, tendo os custos sido autorizados e suportados pela B....
37. Relativamente ao ar condicionado, também a B... entendeu inexistir qualquer anomalia, razão pela qual a A... não procedeu a qualquer intervenção ao abrigo da garantia, sendo que, se a B... tivesse autorizado ou instruído a A... a efetuar uma intervenção no ar condicionado, a A... tê-lo-ía feito.
38. As restantes anomalias foram denunciadas à B... e não à A..., não tendo a B... dado quaisquer instruções à A... para proceder à sua reparação ou sequer comunicou à A... as respetivas denúncias do cliente.
39. Neste contexto, perante esta factualidade, é incompreensível e inaceitável que, perante a conclusão da existência de defeitos do veículo, a A... seja condenada a substituir o veículo e a B... seja absolvida com fundamento na desproporcionalidade.
40. A ser condenada a A..., deve a B... ser condenada solidariamente sob pena de violar o disposto no artigo 6º n.º 1 do Decreto Lei 67/2003 de 8 de abril. “, realçado nosso.
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Os AA. apresentaram contra-alegações, tendo pugnado pela improcedência da apelação, com os fundamentos constantes das suas alegações.
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A 2.ª R., B... S.A., vem apresentar contra-alegações, tendo pugnado pela improcedência da apelação, com os fundamentos constantes das suas alegações.
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II - FUNDAMENTAÇÃO.
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, as questões a decidir, são as seguintes:
A) Impugnação da resposta à matéria de facto dos pontos 25 e 28 dos factos provados, pugnando por os mesmos serem dados como não provados.
B) Da caducidade do artigo 5.º-A, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003, por falta de denúncia.
C) A procedência da presenta demanda, com a obrigação de substituição da viatura, constituiu abuso de direito.
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OS FACTOS
A sentença ora em crise deu como provada e não provada a seguinte factualidade.
A) Factos provados
Com relevância para a apreciação do mérito da causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos:
1. Em 26/04/2017, a Ré A..., S.A. declarou vender ao Autor AA, que declarou comprar, o veículo automóvel, em estado novo, de marca Renault ..., pelo preço de 28.000,00€ (vinte e oito mil euros).
2. A Ré A..., S.A. tem por objeto a compra, venda, aluguer, reparação de automóveis, nomeadamente é concessionário da B..., bem como ao comércio de peças e acessórios de automóveis.
3. O veículo descrito em 1) foi declarado comprado pela Ré A..., S.A. à Ré B..., S.A., fabricante do mesmo e que o declarou vender à Ré A....
4. Em consequência do mencionado em 3), o sobredito veículo foi entregue pela Ré A..., S.A. ao Autor AA no dia 26/04/2017, nas instalações da antedita Ré sitas na Avenida ..., ..., Vila Nova de Famalicão.
5. Foi atribuída ao antedito veículo a matrícula ..-SV-.., sendo que a aquisição do mesmo foi registada na Conservatória do Registo Automóvel em nome do Autor AA.
6. Após o indicado em 4), os Autores AA e mulher BB utilizaram o veículo referenciado em 1) diariamente, designadamente, nas deslocações para o trabalho.
7. Em maio de 2017, a Autora entregou o predito veículo nas instalações da Ré A... sitas na Avenida ..., ..., Vila Nova de Famalicão, declarando aos funcionários da mesma a existência “ruído em piso irregular” e solicitando a respetiva reparação, sendo que a Ré cedeu à Autora um veículo de substituição.
8. Em consequência do referido em 7), a os funcionários da Ré A... efetuaram um ajuste e lubrificação dos travões da frente.
9. Em novembro de 2017, a Autora entregou o predito veículo nas instalações da Ré A... sitas na Avenida ..., ..., Vila Nova de Famalicão, enunciando declarando aos funcionários da mesma a existência “roncar quando larga pedal da embraiagem”, “ruído no puxador da porta frente esq. (interior)”, “ruído no puxador porta frente direito (interior)”, “fuga de óleo no motor” e solicitando a respectiva reparação, sendo que a Ré cedeu à Autora um veículo de substituição.
10. Em consequência do referido em 9), a os funcionários da Ré A... efetuaram:
a) substituição do volante do motor e embraiagem;
b) substituição dos puxadores das portas;
c) substituição vedante do óleo do motor.
11. Nas primeiras duas semanas de janeiro de 2018, a Autora entregou o predito veículo nas instalações da Ré A... sitas na Avenida ..., ..., Vila Nova de Famalicão, declarando aos funcionários da mesma a existência “não estar em normal funcionamento o ar condicionado e o esguicho do lado do condutor” e solicitando a respetiva reparação, sendo que a Ré cedeu à Autora um veículo de substituição.
12. Na sequência do mencionado em 11), após o levantamento pela Autora do predito veículo nas instalações da Ré A..., em 29/01/2018, a Autora remeteu um email para o gestor de serviços da antedita Ré, DD, consignando, designadamente, que “(…) mesmo após uma ida à vossa oficina a minha viatura continua com o Ac a não funcionar (…)”.
13. Em 07/03/2018, a Autora remeteu um email para o gestor de serviços da antedita Ré, DD, consignando, designadamente, que “(…) informem quando pretendem solucionar o problema do Ac do meu carro (…)”.
14. Entre os meses de março e julho de 2018, a Autora entregou o predito veículo nas instalações da Ré A... sitas na Avenida ..., ..., Vila Nova de Famalicão, declarando aos funcionários da mesma a existência “desgaste anormal na parte lateral dos pneus da frente” e solicitando a respectiva substituição, sendo que a Ré cedeu à Autora um veículo de substituição.
15. No circunstancialismo enunciado em 14), os funcionários da Ré A... procederam à substituição dos anteditos pneus.
16. Em 04/07/2018, a Autora remeteu um email para a Ré B..., consignando, designadamente, que “(…) No seguimento do contacto telefónico venho por este meio enviar fotos dos pneus do meu carro (…) Agradeço ainda que analisem e informe como devo proceder relativamente à questão do ar condicionado do meu carro (…)”.
17. Em 04/07/2018, o consultor da Ré B..., EE, remeteu u email para a Autora, enunciando, nomeadamente, que “Para ser ressarcida terá de se deslocar ao nosso concessionário A..., S.A. (…)”
18. Em 06/09/2018, a Autora remeteu um email para a Ré B..., consignando, designadamente, que “(…) Desta vez informo que a viatura está novamente a fazer barulhos que me parecem ser novamente da embraiagem (…) Aproveito ainda para informar uma vez mais que a questão do Ac continua por resolver”.
19. Em 11/09/2018, o consultor da Ré B..., EE, remeteu um email para a Autora, enunciando, nomeadamente, que “Para ser ressarcida terá de se deslocar ao nosso concessionário A..., S.A. (…)”
20. Na sequência do descrito em 16) a 19), em 02/10/2018, a Autora entregou o predito veículo nas instalações da C... sitas em Guimarães, concessionária da B..., para ser analisada por equipas técnicas da mesma, sendo que a C... cedeu à Autora um veículo de substituição.
21. O sobredito veículo permaneceu nas instalações da C... sitas em Guimarães até ao final de dezembro de 2018.
22. Em 12/11/2018, a advogada do Autor remeteu uma missiva com registo postal para as instalações da Ré A... sitas na Avenida ..., ..., Vila Nova de Famalicão, consignando, designadamente, que:
“Como é do v. conhecimento e conforme fatura por V.Exas. emitida, FT VN.../183, o m. constituinte referenciado adquiriu uma viatura de marca Renault ..., em estado novo, pelo preço de 28.000,00€.
Porém, como é igualmente do v. conhecimento, a referida viatura desde a sua entrega em 26 de abril de 2017 apresenta diversos problemas que obrigaram a diversas denúncias de anomalias e consequentes reparações, como se passa a enumerar:
- Calços dos travões em abril de 2017
- Embraiagem/volante do Motor em setembro de 2017
- Esguichos do para-brisas em setembro de 2017
- Embraiagem/volante do motor em novembro de 2017
- Fechos das portas em novembro de 2017
- Ventoinha do Motor em novembro de 2017
- Esguichos do para-brisas em novembro de 2017
- Ar condicionado em dezembro de 2017
- Ar condicionado em janeiro de 2018
- Esguichos do para brisas em janeiro de 2018
- Ar condicionado em março de 2018
- Pneus dianteiros com desgaste acentuado em março de 2018
- Suspensão em setembro de 2018
- Ar condicionado em setembro de 2018
Apesar de sempre se disponibilizarem a resolver os problemas, corrigindo, substituindo peças, etc, uma das anomalias mentem-se por solucionar, a do ar condicionado (…)
Por tal serve a presente carta para notificar V. Exas. que o meu constituinte vem exercer o direito de substituição do veículo que adquiriu a V. Exas. (…)”
23. Em 28/11/2018, a advogada do Autor remeteu uma missiva com registo postal para a instalações da Ré B... sitas em ..., Edifício ..., Porto ..., consignando, designadamente, que:
“Como é do v. conhecimento e conforme fatura por V.Exas. emitida, FT VN.../183, o m. constituinte referenciado adquiriu uma viatura de marca Renault ..., em estado novo, pelo preço de 28.000,00€.
Porém, como é igualmente do v. conhecimento, a referida viatura desde a sua entrega em 26 de abril de 2017 apresenta diversos problemas que obrigaram a diversas denúncias de anomalias e consequentes reparações, como se passa a enumerar:
- Calços dos travões em abril de 2017
- Embraiagem/volante do Motor em setembro de 2017
- Esguichos do para-brisas em setembro de 2017
- Embraiagem/volante do motor em novembro de 2017
- Fechos das portas em novembro de 2017
- Ventoinha do Motor em novembro de 2017
- Esguichos do para-brisas em novembro de 2017
- Ar condicionado em dezembro de 2017
- Ar condicionado em janeiro de 2018
- Esguichos do para brisas em janeiro de 2018
- Ar condicionado em março de 2018
- Pneus dianteiros com desgaste acentuado em março de 2018
- Suspensão em setembro de 2018
- Ar condicionado em setembro de 2018
Apesar de sempre se disponibilizarem a resolver os problemas, corrigindo, substituindo peças, etc, uma das anomalias mentem-se por solucionar, a do ar condicionado (…)
Por tal serve a presente carta para notificar V. Exas. que o meu constituinte vem exercer o direito de substituição do veículo que adquiriu a V. Exas. (…)”
24. Em 12/02/2019, a Autora remeteu um email para a Ré B..., consignando, designadamente, que “(…) Já por 3 vezes que ao parar o meu carro me dá um erro de “Mandar verificar Travão Imobilização””, “verificar arranque em subida” (…) aproveito para reforçar que o problema da suspensão do carro está a agravar-se e o Ac continua a não funcionar corretamente (…).
25. O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia do equipamento de ar condicionado, designadamente, o mesmo não atinge as temperaturas selecionadas, o que ocorre em consequência de problemas relacionados com a unidade de controle eletrónico da climatização ou com o mau funcionamento da válvula inversora do fluxo do líquido do ar condicionado.
26. O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia no sistema de travão de imobilização, o que se verifica em consequência de erro no sensor de posicionamento, anomalia no mecanismo de operação do travão de imobilização ou erro de comunicação entre os sensores e o mecanismo de operação do travão.
27. O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta sinais de desgaste excessivo do interior dos pneumáticos da frente em consequência de não se afigurarem bem afinados no que se refere à convergência/divergência.
28. O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta ruídos de ranger nas áreas da suspensão em consequência de elementos de fixação móveis deteriorados ou anomalias nos vedantes dos amortecedores do mesmo.
29. Em consequência do enunciado em 7) a 28), os Autores sentem-se angustiados.
30. Os Autores AA e BB são casados entre si.
*
B) Factos não provados
Inexistem com relevância para a discussão da causa.“, realçado nosso.
**
*
DE DIREITO.
A)
Impugnação da resposta à matéria de facto dos pontos 25 e 28 dos factos provados, pugnando por os mesmos serem dados como não provados.
Pugna a recorrente, R, A..., por serem dados como não provados os seguintes factos que foram dados como provados:
25. O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia do equipamento de ar condicionado, designadamente, o mesmo não atinge as temperaturas selecionadas, o que ocorre em consequência de problemas relacionados com a unidade de controle eletrónico da climatização ou com o mau funcionamento da válvula inversora do fluxo do líquido do ar condicionado.
28. O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta ruídos de ranger nas áreas da suspensão em consequência de elementos de fixação móveis deteriorados ou anomalias nos vedantes dos amortecedores do mesmo.“.

Sustenta que a demonstração de que tal realidade factual não deve ser dada como provada dado o teor dos relatórios periciais, em especial do segundo relatório pericial, e bem como do depoimento da testemunha CC.
Vejamos.
Dispõe o artigo 640.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, com a epígrafe, “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. (…)“.

A Doutrina tem vindo a expor, de modo repetido e claro, quais os requisitos que o recurso de apelação, na sua vertente de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, terá de preencher para que possa ocorrer uma nova decisão de matéria de facto.

Ponderando e apreciando a instância de recurso quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, a recorrente, R. A..., preenche claramente os apontados requisitos, pelo que se impõe o seu conhecimento.

Em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, a Relação tem, efectivamente, poderes de reapreciação da matéria de facto, procedendo a julgamento sobre a factualidade, assim garantindo um verdadeiro duplo grau de jurisdição.
Quanto ao âmbito da intervenção deste Tribunal, tal matéria encontra-se regulada no artigo 662.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “modificabilidade da decisão de facto”, que preceitua no seu n.º 1 que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC, em ordem a verificar a ocorrência do invocado erro de julgamento.
Não se ignora o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e que essa imediação está mais presente no tribunal da 1.ª instância. Todavia, ainda assim, o resultado dessa imediação deve ser objetivado em argumento probatório, suscetível de discussão racional, além do mais, para evitar os riscos da arbitrariedade.“, in Ac. Supremo Tribunal de Justiça, 62/09.5TBLGS.E1.S1, de 02.11.2017, relatado pelo Cons. TOMÉ GOMES, in dgsi.pt.
Por isso, passa-se a reapreciar a matéria de facto impugnada.

A primeira instância fundamentou a sua convicção do seguinte modo:
A formação da convicção do tribunal estribou-se na análise crítica e conjugada do depoimento da Autora BB e das declarações das testemunhas FF, GG, DD, CC e HH, em concatenação com valoração das faturas, da autorização de circulação, do DUA, dos emails, das missivas, da certidão permanente e dos relatórios periciais, sopesados à luz das regras probatórias legalmente tipificadas e do princípio da livre apreciação, em sede de um iter objectivamente cognoscitivo e dialecticamente valorativo.
*
No que se atem ao Autora BB efetivou um depoimento faticamente estribado, aflorando encadeadamente o contexto em que o marido comprou o veículo automóvel, em estado novo, de marca Renault ... e explicitando linearmente os circunstancialismos em que, sucessivamente, entre os meses de maio de 2017 e janeiro de 2018, surgiram anomalias relacionadas com o ar condicionado, os ruídos da suspensão, o desgaste dos pneus e o veículo foi entregue nas instalações da A..., em convergência substantiva com o descrito nos emails carreados para os autos, soçobrando contraprovas.
Enfatize-se que as preditas anomalias se antolham substantivamente certificadas pelos relatórios periciais elaborados pelo Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia, Mecânica e Engenharia Industrial, da Universidade do Porto, sendo que não foram produzidas contraprovas minimamente fundadas.
Ademais, a Autora abordou a angústia vivencial provocada pelas reiteradas desconformidades do veículo e a não resolução das mesmas, o que se antolhou linearmente plausível.
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No que se refere às testemunhas FF e GG, amigos dos Autores, emanaram explanações eivadas de razão de ciência com referência ao contexto vivencial dos mesmos, enunciando com naturalidade as frequentes queixas referentes ao ar condicionado, aos ruídos, e abordando a existência de várias reparações, matéria admitida matizadamente pela Ré A....
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Relativamente à testemunha DD, chefe da oficina da A... em Vila Nova de Famalicão, num primeiro plano de análise, reconhece que os Autores se queixaram reiteradamente de ruido nos travões, do ar condicionado e dos pneus, sendo que, numa segunda vertente de aferição, enxertou a tese proclamatória da inexistência de anomalias, limitando-se a aflorar um despiste do ar condicionado, afigurando-se incapaz de concretizar as ações de inspeção do veículo efetivados visando a determinação da existência ou não das desconformidades e da respetiva causa, atascando-se nu manto de insubsistência.
*
As testemunhas CC e HH, funcionários da B..., cingiram-se ao afloramento, respetivamente, de uma intervenção à distância no diagnóstico do ar condicionado do veículo, e das reclamações aduzidas pela Autora, não titulando conhecimento direto das reparações efetivadas pela A... e tampouco concretizando ações concretas de inspeção e verificação do veículo, enredando-se em enunciados vaporosos com referência às anomalias do mesmo.
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A fatura n.º ...83 deduzida pelos Autores atesta os termos do negócio de compra do veículo de marca Renault ... efetivado pelo Autor com a Ré A..., curando-se de matéria reconhecida pela mesma e pela B....
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O DUA certifica com força probatória plena o registo da aquisição do predito veículo em nome do Autor.
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Os emails e missivas aduzidos pelos Autores afiguram-se eivados dos requisitos de veridicidade formal, v.g., data, hora, identificação das partes, especificação do objeto, sustentando a cadeia de reclamações perpetradas pela Autora junto das Rés entre os meses de abril de 2017 e janeiro de 2019, inexistindo contraprovas.
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As faturas carreadas pela Ré A... sustentam os circunstancialismos em que, em maio de 2017, os funcionários da Ré A... efetuaram um ajuste e lubrificação dos travões da frente do predito veículo, em novembro de 2017, efetuaram substituição do volante do motor e embraiagem, substituição dos puxadores das portas e substituição vedante do óleo do motor e, entre os meses de março e julho de 2018, procederam à substituição dos anteditos pneus, matéria admitida pelos Autores.
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O relatório pericial correspondente à segunda perícia realizada nos autos (relatório datado de 31/05/2021) antolha-se marcadamente sumário em sede das verificações realizadas, utilizando meros calculadores de climatização e do sistema de travão do parque assistido (fls. 1), efetivando uma análise perfunctória dos pneus (fls. 2-4), manuseando prosaicos termómetros para a avaliação do ar condicionado (fls. 5-7), sendo manifestamente claudicante e elidido pelos juízos vertidos nos relatórios periciais elaborados pelo Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia, Mecânica e Engenharia Industrial, da Universidade do Porto.
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No que tange aos relatórios periciais elaborados pelo Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia, Mecânica e Engenharia Industrial, da Universidade do Porto, correspondente à primeira e terceira perícia (datados de 12/10/2020 e 06/05/2022), em matéria de juízos de facto, consagram uma posição cristalinamente sustentada em parâmetros claros, suficientemente fundamentados e congruentes com os itens técnicos aduzidos, configurando-se, assim, consistentes e subjetivamente fiáveis, designadamente, o relatório pericial de 06/05/2022 especifica detalhadamente a inspeção efetuada ao veículo de marca Renault ... (fls. 5-9), concretiza meticulosamente a verificação das anomalias no sistema de comunicação e no sistema de processamento, no ar condicionado, na suspensão e no travão de imobilização, com descrição das desconformidades detetadas e prováveis causas (fls. 10-25) e explana de forma clara e intrinsecamente as respetivas conclusões (fls. 26), atestando com lastro fundamentante que:
i) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia do equipamento de ar condicionado, designadamente, o mesmo não atinge as temperaturas selecionadas, o que ocorre em consequência de problemas relacionados com a unidade de controle eletrónico da climatização ou com o mau funcionamento da válvula inversora do fluxo do líquido do ar condicionado.
ii) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia no sistema de travão de imobilização, o que se verifica em consequência de erro no sensor de posicionamento, anomalia no mecanismo de operação do travão de imobilização ou erro de comunicação entre os sensores e o mecanismo de operação do travão.
iii) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta sinais de desgaste excessivo do interior dos pneumáticos da frente em consequência de não se afigurarem bem afinados no que se refere à convergência/divergência.
iv) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta ruídos de ranger nas áreas da suspensão em consequência de elementos de fixação móveis deteriorados ou anomalias nos vedantes dos amortecedores do mesmo.
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Em decorrência do supra acervo probatório, no que tange aos factos 1) a 4) e 30), foram reconhecidos/admitidos por acordo pelas Rés, sendo que se aferiu igualmente a fatura da aquisição do veículo automóvel.
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No que que se atem ao facto 5), o Tribunal estribou-se no DUA.
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No que concerne aos factos 6) e 29), sopesaram-se as declarações da Autora BB nos termos preditos, inexistindo contraprovas.
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No que se refere aos factos 7) a 24), aferiram-se as declarações da Autora BB, as missivas e os e-mails aduzidos com a petição inicial, em conjugação com as faturas carreadas pela Ré A..., sendo que não foram produzidas contraprovas.
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No que tange aos factos 25) a 28), valoraram-se relatórios periciais elaborados pelo Instituto de Ciência e Inovação em Engenharia, Mecânica e Engenharia Industrial, da Universidade do Porto, correspondente à primeira e terceira perícia (datados de 12/10/2020 e 06/05/2022), os quais, nos termos anteditos, sustentaram com consistência objetiva a índole das anomalias detetadas no veículo Renault e a causa provável das mesmas, sendo que não foram produzidas contraprovas minimamente fundadas.
*
Relativamente aos demais enunciados consubstanciados na petição inicial e na contestação, os mesmos prefiguraram-se como asserções genéricas, meros juízos de inferência ou apreciações jurídicas, ou factos instrumentais, inidóneos para integrarem a supra matéria fáctica.

Importa ter presente que a prova produzida deve ser conjugada, harmonizada e ponderada no seu conjunto enquanto base da convicção formulada pelo Tribunal, não sendo legítimo valorizar meios probatórios isolados em relação a outros, sopesando os critérios de valoração, numa perspectiva racional, de harmonia com as regras de normalidade e verosimilhança, mas sempre com referência às pessoas em concreto e à especificidade dos factos em apreciação.
Com vista a este Tribunal ficar habilitado a conhecer dos factos em discussão, e deste modo formar a sua convicção autónoma, própria e fundamentada, teve de analisar todos os meios de prova produzidos em 1.ª instância.
Deste modo, este Tribunal ponderou a prova documental junta aos autos e citada na sentença em crise e que aqui se dá por reproduzido.
Foi ponderada a prova pericial, na sua tríplice vertente.
De seguida, procedeu-se à audição integral e completa das gravações da sessão de audiência de julgamento, depoimentos de parte e das testemunhas.

Quanto à ponderação dos meios probatórios, produzidos em audiência final, mormente a prova por confissão ou a prova testemunhal, a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter, necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as partes ou as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente.
Isto é, a percepção dos depoimentos só é perfeitamente conseguida com a imediação das provas, sendo certo que, não raras vezes, o julgamento da matéria de facto não tem correspondência directa nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios, que tenham merecido a confiança do tribunal.

O princípio básico do nosso ordenamento jurídico é o da livre apreciação da prova – artigo 607.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.
Vigora, entre nós, um sistema hibrido ou misto. Consagra, com efeito, o citado preceito o princípio da «liberdade de julgamento» («o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção» acerca de cada facto»). Apenas com a exceção de a lei exigir para a existência ou prova do facto qualquer formalidade especial, a qual não poderá ser dispensada" (cfr. o art. 607, n° 5, 2º segmento).
Assiste, pois, ao julgador o poder de livremente decidir - depois de ponderada apreciação e avaliação - os diversos pontos da matéria de facto (reportados às questões constantes do elenco dos temas de prova) segundo a sua prudente e intima convicção. Convicção esta alicerçada em regras técnicas ou em máximas da experiência, bem como em conhecimentos pessoais de ordem lógico-dedutiva sobre as realidades da vida e da convivência social. Elementos esses conducentes à prova direta do facto controvertido ou à ilação (dedução lógica) da realidade ou verosimilhança desse facto, através da prova de um facto indiciário (instrumental), nesta segunda hipótese se fundando a prova numa presunção natural ou judicial (arts. 351º do CC e 607°, nº 4). Poder que se exerce, não apenas no que respeita à admissibilidade dos meios de prova propostos ou requeridos pelas partes, como também no que se refere à determinação do seu valor probatório. E tudo por reporte ao material probatório carreado pelas partes ou recolhido oficiosamente para o processo, quiçá mesmo face à conduta processual por elas concretamente adotada.”, in Direito Processual Civil, FRANCISCO MANUEL FERREIRA DE ALMEIDA, Vol I, 2ª ed, pág 109.
(…) o princípio da livre apreciação da prova significa que o julgador deve decidir sobre a matéria de facto da causa a sua íntima convicção, formada no confronto dos vários meios de prova. Compreende-se como este novo princípio se situa na linha lógica dos anteriores: é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção que através delas se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência que forem aplicáveis. (…)
Hoje, a liberdade de apreciação da prova pelo julgador constitui a regra, sendo excepção os casos em que a lei lhe impõe a conclusão a tirar de certo meio de prova. Mas as excepções são importantes.
Estão, de acordo com essa regra, sempre sujeitas à livre apreciação do julgador a prova testemunhal (art. 396 CC), a prova por inspecção (art. 391 CC) e a prova pericial (art. 389 CC). Têm, pelo contrário, valor probatório fixado na lei os documentos escritos, autênticos (art. 371-1 CC) ou particulares (art. 376-1 CC), e a confissão escrita, seja feita em juízo (art. 358-1 CC), seja feita em documento autêntico ou particular, mas neste caso só quando dirigida à parte contrária ou a quem a represente (art. 358-2 CC); mas quer o documento (art. 366 CC) quer a confissão (art. 361 CC) que não reúna os requisitos exigidos para ter força probatória legal fica sujeito à regra da livre apreciação. Valor probatório fixado por lei têm também as presunções legais stricto sensu (art. 350 CC) e a admissão (supra, 2, nota 34). (…)
No âmbito do principio da livre apreciação da prova, não é exigível que a convicção do julgador sobre a validade dos factos alegados pelas par- tes equivalha a uma absoluta certeza, raramente atingível pelo conhecimento humano. Basta-lhe assentar num juízo de suficiente probabilidade ou verosimilhança, que o necessário recurso às presunções judiciais (arts. 349 e 351 CC) por natureza implica, mas que não dispensa a máxima investigação para atingir, nesse juízo, o máximo de segurança. Quando no espírito do julgador, em vez da convicção, se forma a dúvida sobre a realidade dos factos a provar, nomeadamente como resultado do confronto entre a prova produzida pela parte onerada com o respectivo ónus e a contraprova oposta pela parte contrária (art. 346 CC), o facto não pode ser dado como provado, em prejuízo da parte onerada ou, na dúvida sobre a determinação desta, em prejuízo da parte quem o facto aproveitaria (art. 516). “, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, JOSÉ LEBREE DE FREITAS, 1996, pág 157 e seguintes.

Respigando a prova produzida em audiência de julgamento, importa considerar:
Declarações de parte, BB, relata a existência de problemas que foram reparados após reclamação, afirmando que os problemas eram solucionados. Mas as avarias sucediam-se, sendo que deixou de ter confiança na viatura e em qualquer reparação que ocorresse, pois os problemas continuavam a aparecer ou a reaparecer. Apresentou discurso coerente e calmo, bastante circunstanciado, não se afigurando que padeça de falta de veracidade. Tem a versão aqui trazida sustentação na prova documental.
FF, mecânico e colega de trabalho da A. BB. Quanto à factualidade em questão, a A. sempre lhe relatou os problemas que a viatura apresentou ao longo do tempo, designadamente, travões, ar condicionado, barulhos na suspensão/amortecedores, pneus.
GG, amigos dos AA., compadres. Reportou as várias queixas do veículo, ao longo do tempo.
DD, chefe de oficina na R. A.... Confirma que foram apresentadas várias queixas do veículo: de barulho nos travões, tendo sido feita a colocação de lubrificação para deixar de fazer barulho; do ar condicionado, tendo sido feito reparação de acordo com a marca, não tendo sido anotada qualquer anomalia, por mais do que uma vez; pneus. Sempre que a viatura ficou na oficina foi atribuído veículo de substituição.
CC, funcionário da R. B.... Engenheiro mecânico que trabalha para a R. B.... Quanto ao ar condicionado apresenta relato pelo qual se pode concluir por o mesmo não padecer de qualquer anomalia. Quanto a qualquer intervenção directa, pois não teve contacto directo com a viatura. A explicação apresentada pela testemunha coincide com o que vem explanado no segundo relatório pericial.
HH, nada de relevante veio trazer quanto à factualidade aqui em discussão.

Apreciemos, então, a justeza da decisão da matéria de facto.
Se da prova testemunhal e declarações de parte não podemos retirar uma certeza probatória, suficiente e necessária para que a factualidade seja declarada como provada, pois que de tais meios de prova não é feito um juízo ou uma valoração circunstanciada quanto aos pontos de factos 25 e 28. Assim, tal como o fez o M.mo Juiz, e bem, teremos que nos socorrer da prova pericial.
Sabemos que a prova pericial, nestes autos, foi determinante para a decisão dos factos em discussão. Mais sabemos, que o primeiro e terceiro relatório pericial apontam no sentido que foi acolhido pelo Tribunal a quo. Já a recorrente ampara-se no segundo relatório pericial para sustentar a alteração dos factos 25. e 28.
Efectivamente, no caso dos autos e face à factualidade em discussão, apenas este meio de prova (pericial) é bastante para alicerçar uma qualquer fundamentação da decisão da matéria de facto. Na realidade, em nenhuma parte da prova testemunhal, pode este Tribunal, e assim, também, o Tribunal de primeira instância, escorar a decisão da matéria de facto dos pontos 25 e 28. Com efeito, a testemunha CC não teve qualquer contacto directo com a viatura, tendo-se limitado a confirmar que foram feitos testes ao ar condicionado da viatura. Não foi a testemunha que os fez, nem neles teve qualquer intervenção directa. Deste modo, não se pode proferir decisão da matéria de facto quanto aos pontos em discussão quando a testemunha não apresenta um relato pelo qual se possa afirmar que fez esta ou aquela verificação e apreciação das causas e eventual reparação. Para tanto, basta a audição do seu depoimento ou mesmo a transcrição do mesmo que a recorrente faz no seu requerimento de recurso.

Como decorre da lei substantiva, os diversos meios de prova não têm hierarquia. Cada um vale por si e não se excluem, estando sujeitos à livre apreciação do julgador.
A avaliação dos peritos é, naturalmente, determinante para a fixação da indemnização pelo tribunal, pelos conhecimentos técnicos que nela são expressos por pessoas habilitadas, constituindo uma verdadeira prova pericial, sendo aliás obrigatória, por imposição legal. Contudo, importa não esquecer que o seu resultado está sujeito à livre apreciação do tribunal, tal como a força probatória do depoimento das testemunhas, de acordo com o disposto nos artigos 389º e 396º do Código Civil”, Ac Tribunal da Relação de Lisboa, 1381/05.5TBALQ.L1-8, de 10.10.2013, relatado pelo Des ILÍDIO SACARRÃO MARTINS, in dgsi.pt.
O traço definidor da prova pericial é, de facto, o de se chamar ao processo alguém que tem conhecimentos especializados em determinados aspetos de uma ciência ou arte para auxiliar o julgador, facultando-lhe informação sobre máximas de experiência técnica que o julgador não possui e que são relevantes para a perceção e apreciação dos factos controvertidos. Em regra, além de facultar ao julgador o conhecimento dessas máximas de experiência técnica, o perito veicula a ilação concreta que se justifica no processo, construída a partir de tais máximas de experiência. (…)
Quando incide sobre factos, a prova pericial pode visar a afirmação de um juízo de certeza sobre os mesmos ou a valoração de factos ou circunstancias. Como exemplos da primeira situação, temos uma perícia para determinar a área de um terreno ou a perícia sobre o ADN de alguém. Exemplos da segunda situação, serão uma perícia para determinar as causas dos defeitos de um edifício (facto passado) ou os efeitos de lesões corporais (facto futuro) (…)
Podemos distinguir entre uma perícia cientificamente objetiva e uma pericia de opinião. A primeira ocorre quando o objeto da mesma é apenas verificar a exatidão de algum enunciado fáctico feito pela parte, operando por uma metodologia que só pode dar um resultado, v.g, medir a área de um terreno ou um exame DNA. Na perícia de opinião a regra é a da admissibilidade de resultados contraditórios que terá de ser objeto de adequada valoração. (…), In Prova Testemunhal, 2016, LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, pág. 175 e seguintes.

Tendo presente os acima referidos ensinamentos e considerandos, a apreciação da factualidade em causa, terá necessária e obrigatoriamente que ter o seu suporte exclusivamente na prova pericial.
Tudo sopesado, a factualidade dos pontos 25 e 28 dos factos provados, como ficou afirmado, diz respeito ao apuramento de factos (verificação do estado da viatura e a sua causa).
A apreciação de tal facto está sujeita a uma avaliação cientifica, razão pela qual foi ordenada a realização da prova pericial.
Tal operação exige especiais conhecimentos científicos, devendo a mesma obedecer a parâmetros e padrões que a ciência exige e impõe.
Como atrás se deixou afirmado, a prova pericial está ela sujeita à livre apreciação do julgador e por tal razão a audição e análise dos depoimentos de todas as testemunhas, designadamente a indicada pela recorrente, foi devidamente conjugada com a prova documental junta aos autos, de modo a que este Tribunal não diverge da decisão da primeira instância. Feita esta análise e ponderação, fazendo um juízo de probabilidade sustentada no meio de prova pericial não haverá que alterar a resposta à matéria de facto.
Aqui acompanhamos o decido pelo M.mo Juiz, quando afirma que o segundo relatório pericial apresenta uma fundamentação “sumária” quanto à verificações que do mesmo resultam, “utilizando meros calculadores de climatização e do sistema de travão do parque assistido (fls. 1), efetivando uma análise perfunctória dos pneus (fls. 2-4), manuseando prosaicos termómetros para a avaliação do ar condicionado (fls. 5-7) “.
Tudo isto em contraste com o constante no primeiro e terceiro relatório pericial, “em matéria de juízos de facto, consagram uma posição cristalinamente sustentada em parâmetros claros, suficientemente fundamentados e congruentes com os itens técnicos aduzidos, configurando-se, assim, consistentes e subjetivamente fiáveis, designadamente, o relatório pericial de 06/05/2022 especifica detalhadamente a inspeção efetuada ao veículo de marca Renault ... (fls. 5-9), concretiza meticulosamente a verificação das anomalias no sistema de comunicação e no sistema de processamento, no ar condicionado, na suspensão e no travão de imobilização, com descrição das desconformidades detetadas e prováveis causas (fls. 10-25) e explana de forma clara e intrinsecamente as respetivas conclusões (fls. 26) “.
Deste modo, deverá prevalecer o juízo pericial constante no primeiro e terceiro relatório pericial, nos precisos termos em que foi dada como provada a factualidade dos pontos 25 e 28.
Pelo exposto, improcede a pretensão recursiva da recorrente, conclusões 4 a 15, mantendo-se a decisão da matéria de facto tal qual o decidiu a primeira instância.
*
B)
Da caducidade do artigo 5.º-A, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003, por falta de denúncia.

Como intróito, importa fixar quadro legal, para decidir a questão suscitada.
No caso dos autos estamos perante uma compra e venda de consumo, por força do artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 24/96: “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
São objecto do denominado direito de consumo apenas os contratos de consumo celebrados entre profissionais e consumidores.
Deste modo, tal como a lei comercial regula os actos de comércio (art. 1º do Código Comercial), assim também o denominado direito do consumo, de que a Lei nº24/96 faz parte como Lei-quadro, regulará os actos de consumo, relações jurídicas existentes entre um consumidor e um profissional (produtor, fabricante, empresa de publicidade, instituição de crédito, etc.).
Nesta acepção, o direito de consumo e a Lei n°24/96 respeitam a uma categoria particular de actos – os actos de consumo que ligam um consumidor final e um profissional que actua no quadro da sua actividade ou profissão –, não a uma classe particular de pessoas.”, Compra e venda de coisas defeituosas, 5ª ed., JOÃO CALVÃO DA SILVA, pág 123.

Nos termos do artigo 4.º da citada Lei, o consumidor tem direito à qualidade dos bens e serviços: “Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor.

Nos termos do artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 67/2003 são direitos do consumidor:
Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato”.

Estamos perante uma responsabilidade do vendedor, que por contraponto às regras gerais, é objectiva.

Dispõe o artigo 5.º-A, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003, o seguinte, que tem como epígrafe, Prazo para exercício de direitos:
1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.“.

Corresponde isto a dizer que a falta de cumprimento do ónus de denúncia tempestiva, a provar pelo vendedor réu na acção nos termos dos nºs 2 dos arts.342° e 343°, acarreta a caducidade dos direitos de reparação ou substituição da coisa e dos direitos de redução do preço ou de resolução do contrato direitos conferidos ao consumidor nos termos do nº1 do art. 4º do Decreto-Lei n° 67/2003, ex nº1 do art. 12° em apreço, a menos que ocorra causa impeditiva da caducidade, nomeadamente o reconhecimento do direito do consumidor por parte do alienante (art.331°, n°2) em termos que o torne certo. Igualmente, a caducidade dos mesmos direitos verifica-se decorridos seis meses sobre a data da denúncia tempestiva - logo, feita (emitida) a denúncia do vício ou falta de conformidade nos prazos previstos, ainda que no último dia, a acção destinada a exercer ou fazer valer qualquer dos referidos direi- tos deve ser intentada dentro de seis meses após a denúncia, sob pena de caducidade da acção.
Seguiu-se, pois, na relação de consumo também a regra da caducidade – "quando por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição" (art.298°, n°2) –, a dever ser invocada, judicial ou extrajudicialmente, por aquele a quem aproveita, o vendedor (art.303°, ex vi do n°2 do art.333°).”, JOÃO CALVÃO DA SILVA, ob cit., pág 135.

À luz do actual C.C., a caducidade tem sido perspectivada como uma das causas de extinção das obrigações, assinalando-se, por isso, o efeito extintivo do decurso do tempo.
ALMEIDA COSTA define caducidade como a "forma extintiva dos contratos que não envolve qualquer manifestação de vontade tendente à produção desse resultado ou seja, verifica-se «ope legis» -e sem carácter retroactivo" (Direito das Obrigações, cit., nota 2, p. 318).
Para CARVALHO FERNANDES, "[a] caducidade, também dita preclusão, é o instituto pelo qual os direitos, que, por força da lei ou de convenção, se devem exercer dentro de certo prazo, se extinguem pelo seu não exercício durante esse prazo" (Teoria Geral do Direito Civil, cit., Vol. II, p. 699).
MENEZES CORDEIRO defende que a caducidade surge associada a situações jurídicas duradouras (Da caducidade no Direito português, cit, p. 9, e Tratado de Direito Civil, cit., p. 208). Para o A., a generalidade dos casos de caducidade surge em matéria de direitos potestativos (Tratado de Direito Civil, cit., I, T. IV, p. 210).
Para PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, a caducidade "aplica-se a direitos que, por lei ou por estipulação, sejam temporários" (Teoria Geral do Direito Civil, cit., p. 379).
Para o A., a pedra de toque da determinação do âmbito de aplicação da caducidade reside na natureza temporária ou não dos direitos, não havendo que distinguir entre direitos subjectivos e potestativos. V., também, ob. cit., pp. 391-392. (…)
A caducidade justifica-se, primordialmente, por razões de certeza dos direitos. O instituto fundamenta-se em razões objectivas de segurança jurídica, bem como na necessidade de definição, dentro de um prazo razoável, das situações jurídicas, evitando-se uma tendencial "vinculação perpétua" por parte do devedor que, caso contrário, poderia ser, todo o tempo, interpelado pelo credor para a efectivação do seu direito.” Prescrição e Caducidade, 2008, ANA FILIPA MORAIS ANTUNES, pág 26 e 27.

Assim, os prazos de caducidade justificam-se em nome da rápida definição da situação jurídica.
Estamos perante um ónus imposto ao consumidor – de denúncia dos defeitos. A denúncia é, assim, uma condição, da qual depende o conhecimento do exercício dos direitos do consumidor.

Sustenta a R. A... que as anomalias mencionadas em 25 – ar condicionado[3] –, 26 – sistema de travão –, 27 – desgaste dos pneus – e 28 – ruídos na suspensão – que tais desconformidades não foram denunciadas em devido tempo.
Que a última denúncia, por parte dos AA., ocorreu a 07.03.2018.
Posteriormente a tal denúncia os AA. não efectuaram mais qualquer contacto com a R. A....
As posteriores reclamações/denúncias foram feitas à R. B... e à C... (concessionária da B...), e portanto a R. A... é alheia a tal.
Mais, alega que as desconformidades dos pontos 26, 27 e 28 a partir de Julho de 2018 foram denunciadas somente à B... e à concessionária C....
Não tendo os AA. dirigido tais denuncias à R. A..., nos termos do artigo 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, não podem os AA, fazer valer-se das denuncias feitas a terceiras pessoas, distintas da R. A....
Por fim, sustenta que a missiva mencionada no ponto 22 dos factos provados, não pode valer como denúncia, pois não se trata de defeitos que foram “denunciados de forma inequívoca, precisa e circunstanciada, não sendo necessário a indicação da causa dos mesmos”. Que da dita missiva resulta apenas que os AA. relatam que das anomalias que se mantém é a relativa ao ar condicionado. Conclui a recorrente que quanto às anomalias dos pontos 26 – sistema de travão –, 27 – desgaste dos pneus – e 28 – ruídos na suspensão –, não foram denunciadas em devido tempo, pelo que conclui pela ocorrência da caducidade – dois meses mencionados no artigo 5.º-a, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 67/2003.
*
A factualidade a ter em consideração é a seguinte (apenas se menciona a factualidade no relacionamento entre AA. e R. A...):
1. Os AA. adquiriram a viatura à R. em 26 de Abril de 2017 – ponto 1.
2. Em Maio de 2017 os AA. apresentaram reclamação à R. A... quanto “mesma a existência “ruído em piso irregular” e solicitando a respetiva reparação, sendo que a Ré cedeu à Autora um veículo de substituição “ – ponto 7.
A R. procedeu a reparação, “um ajuste e lubrificação dos travões da frente” – ponto 8.
3. Em Novembro de 2017 os RR. apresentaram reclamação à R. A... “mesma a existência “roncar quando larga pedal da embraiagem”, “ruído no puxador da porta frente esq. (interior)”, “ruído no puxador porta frente direito (interior)”, “fuga de óleo no motor” e solicitando a respectiva reparação “ – ponto 9.
A R. procedeu a reparação – ponto 10.
4. Nas primeiras semanas de Janeiro de 2018 os AA. apresentaram reclamação à R. A... “não estar em normal funcionamento o ar condicionado e o esguicho do lado do condutor” e solicitando a respetiva reparação “ – ponto 11.
5. Em 29.01.2018 os AA. reclamaram à R. A... por correio electrónico “(…) mesmo após uma ida à vossa oficina a minha viatura continua com o Ac a não funcionar (…) “- ponto 12.
6. Em 07.03.2018 os AA. reclamaram à R. A... por correio electrónico “(…) informem quando pretendem solucionar o problema do Ac do meu carro (…)“ – ponto 13.
6. Nos meses de Março e Julho de 2018 os AA. reclamaram à R, A... “declarando aos funcionários da mesma a existência “desgaste anormal na parte lateral dos pneus da frente” “ – ponto 14.
7. Em 12.11.2018 os AA. enviam à R. A... uma carta registada em que é mencionada uma série de “anomalias”, onde consta o seguinte: “como é igualmente do v. conhecimento, a referida viatura desde a sua entrega em 26 de abril de 2017 apresenta diversos problemas que obrigaram a diversas denúncias de anomalias e consequentes reparações (…); Apesar de sempre se disponibilizarem a resolver os problemas, corrigindo, substituindo peças, etc, uma das anomalias mentem-se por solucionar, a do ar condicionado (…) Por tal serve a presente carta para notificar V. Exas. que o meu constituinte vem exercer o direito de substituição do veículo que adquiriu a V. Exas. “ – ponto 22.
8. A presente demanda deu entrada em juízo a 21.02.2019.
*
São estes os factos que importa ponderar para decidir a excepção da caducidade arguida pela R. A....
O tribunal a quo decidiu a questão do seguinte modo:
In casu, equacionando-se a matéria fáctica provada, atesta-se que:
i) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia do equipamento de ar condicionado, designadamente, o mesmo não atinge as temperaturas selecionadas, o que ocorre em consequência de problemas relacionados com a unidade de controle eletrónico da climatização ou com o mau funcionamento da válvula inversora do fluxo do líquido do ar condicionado.
ii) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta anomalia no sistema de travão de imobilização, o que se verifica em consequência de erro no sensor de posicionamento, anomalia no mecanismo de operação do travão de imobilização ou erro de comunicação entre os sensores e o mecanismo de operação do travão.
iii) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta sinais de desgaste excessivo do interior dos pneumáticos da frente em consequência de não se afigurarem bem afinados no que se refere à convergência/divergência.
iv) O veículo automóvel de marca Renault ..., com a matrícula ..-SV-.. apresenta ruídos de ranger nas áreas da suspensão em consequência de elementos de fixação móveis deteriorados ou anomalias nos vedantes dos amortecedores do mesmo.
Aquilatando-se a predita factualidade, curam-se de lineares desconformidades que viciam o valor e aptidão do veículo automóvel, sendo que foram tempestivamente denunciadas às Rés nos termos elencados em 4) a 24), certificando-se, igualmente, o exercício do direito de ação no prazo de dois anos contemplado no art.º 5.º-A/3, do D.L. n.º 67/2003, pelo que naufraga a exceção de caducidade alegada.
Concomitantemente, certifica-se que, entre maio de 2017 e janeiro de 2019, os Autores reportaram sucessivamente as preditas anomalias, as quais não foram sanadas nem nas instalações da Ré A..., nem durante os cerca de três meses (outubro a dezembro de 2018) em que o veículo esteve nas instalações da C... em Guimarães.“.

A questão tem a resposta, na interpretação a dar à missiva mencionada no ponto 7 das considerações atrás feitas, a que corresponde o ponto 22 dos factos provados.
Sustenta a R. A..., ora recorrente, que a missiva aludida no ponto 22 dos factos provados não pode ser tida como uma verdadeira e eficaz denúncia de anomalias ou defeitos pois que do seu texto apenas se pode retirar um elencar de anomalias, que foram verificadas pelos AA., reparadas e que a “única que se mantém é a anomalia do ar condicionado”.
Por sua vez, a sentença em crise aponta em sentido contrário, como decorre do atrás transcrito.

A interpretação das declarações negociais rege-se pelas disposições dos artigos 236.º a 238.º do Código Civil, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário.
Sobre o “sentido normal da declaração”, dispõe o artigo 236.º do Código Civil:
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça na vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.

1. O CC estabelece regras para a interpretação dos negócios jurídicos, numa atitude semelhante à adotada a propósito da lei. As regras gerais da gramática, da linguística e da lógica não são consideradas suficientes para realizar esta tarefa, tendo a doutrina jurídica elaborado uma teoria da interpretação para os negócios jurídicos. No quadro dessa teoria, formaram-se duas correntes doutrinárias, a subjetivista e a objetivista: segundo a doutrina subjetivista, a interpretação deverá reconstituir a vontade real do declarante, procurando encontrar aquilo que ele quis quando formou e exteriorizou a sua vontade; para a doutrina objetivista, a interpretação terá por finalidade determinar o sentido objetivo da declaração.
As posições extremas de uma e outra corrente estão hoje abandonadas, sendo dominantes as posições ecléticas.
2. Este ecletismo está presente no texto do artigo 236.º. O ponto de partida é objetivista e está consagrado no n.º 1: a declaração vale com um sentido que lhe possa ser atribuído por um declaratário, não com o sentido que lhe tenha sido atribuído pelo declarante. Mas este declaratário não é o declaratário real, é um declaratário normal, um cidadão honesto e diligente, colocado na posição do declaratário real, nas circunstâncias do declaratário real. Contudo, é o comportamento do declarante que deverá ser tido em conta pelo intérprete, e o sentido a deduzir pelo intérprete terá de ser imputável ao declarante: no dizer da lei, a declaração não pode ter um sentido com que o declarante não podia razoavelmente contar. Com este texto, o legislador pretendeu receber a teoria da impressão do destinatário.
3. Mas este pendor objetivista cede quando o declaratário conhece a vontade real do declarante. Nesses casos, por força do n.° 2, o sentido da declaração corresponde à vontade real do declarante, ainda que fosse diferente o sentido objetivo que o declaratário normal do n.º 1 lhe atribuísse.”, Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, MANUEL PITA, pág. 323.

A interpretação dos negócios jurídicos e sobretudo das declarações negociais que os enformam, rege-se pelas disposições dos arts.236 a 238 do C.C.
A regra contida no nº 1, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é a seguinte: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2) ( cf. PIRES DE LIMA-ANTUNES VARELA, C.C. Anotado, Vol 1º, 3ª ed., pág.222 ).
Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante ( cf., por ex., Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 14/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.46, de 22/1/97, C.J. ano V, tomo I, pág.258 ).
Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, como “ a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos “, ( cf. MANUEL DE ANDRADE, Teoria Geral, vol.II, 1992, pág. 313; CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito, vol.II, pág.344 ).
Refira-se que o próprio comportamento posterior ao negócio constitui também um importante elemento interpretativo que deverá tomar-se em conta ( cf. RUI DE ALARCÃO, BMJ 84, pág.334 ).
Interpretar uma declaração negocial é actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer. E, como se viu, esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante
Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto (art.238 do C.C.).
Optou-se por uma orientação objectiva porque se pretende apurar qual o sentido a atribuir à declaração considerada relevante para o direito, em face dos termos que a constituem.
A determinação da vontade real das partes nas declarações negociais constitui matéria de facto. Mas não sendo possível determinar qual foi essa vontade, impõe-se fixar o sentido juridicamente decisivo dessas declarações, reconduzindo-se a questão de direito, por contender com as regras legais que definem o critério hermenêutico.
A aplicação do art.237 do C.C. confina-se, como, desde logo, resulta da sua epígrafe, aos casos duvidosos. A sua doutrina não prevalece contra as regras do artigo 236, aplicando-se apenas se estas não puderem definir o sentido da declaração, ou seja, “vale para os casos em que a declaração, consultados todos os elementos utilizáveis para a sua interpretação de harmonia com o critério fixado no artigo anterior, comporta ainda dois ou mais sentidos, baseados em razões de igual força” (cf., P.LIMA/A.VARELA, loc.cit., pág.224 ).”, Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, 2545/04, de 18-01-2005, relatado pelo Des. JORGE ARCANJO, in dgsi.pt.
É, igualmente, de atender o que vem exposto no Ac. do Tribunal da Relação do Porto, 0734834, de 22-11-2007, relatado pelo Des. PINTO DE ALMEIDA, in www.dgsi.pt.
Deve, pois, ter-se em consideração o disposto nos arts. 236º e 238º.
Consagra-se na primeira disposição, como afirma P. Mota Pinto [4], a doutrina da impressão do destinatário: em homenagem aos interesses do declaratário (protecção da confiança) e do comércio jurídico e partindo da ideia, manifestamente razoável, de imposição ao declarante de um ónus de clareza na manifestação do seu pensamento, concede-se primazia ao ponto de vista do declaratário, a partir do qual a declaração deve ser focada.
A lei não se basta, contudo, com o sentido compreendido realmente pelo declaratário (entendimento subjectivo deste), concedendo primazia àquele que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário depreenderia (sentido objectivo para o declaratário). Há que imaginar uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas figurando-se na posição do real declaratário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este concretamente conheceu e o modo como declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.
Por outro lado, a restrição imposta no art. 238º que se traduz numa maior relevância da letra do negócio, não significa, como refere E. Santos Junior [5], que o intérprete se deva quedar, nestes negócios, por uma mera interpretação literal.
Essa restrição significa, isso sim, que a letra do negócio – o texto do documento – surge como um limite à validade do sentido com que o negócio deva valer, apurado esse sentido nos termos das regras gerais de interpretação.
De entre os principais meios ou elementos de interpretação, deve referir-se, como ponto de partida, a letra do negócio, não devendo, contudo, o intérprete quedar-se pelo sentido dos termos ou cláusulas isoladamente apreciadas, mas atender ao conjunto ou totalidade da declaração, numa interpretação complexiva das cláusulas negociais[6].
Deve ponderar-se também a finalidade prática do negócio, o comportamento das partes, na fase pré-negocial (negociações preliminares) e pós-negocial (execução do próprio contrato), podendo revelar utilidade também as precedentes relações negociais entre as partes.

Os Professores PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA, in “Código Civil Anotado”, vol. I, pág. 223, em nota ao artigo 236.º do Código Civil, ensinam:
A regra estabelecida no nº l, para o problema básico da interpretação das declarações de vontade, é esta: o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Exceptuam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (nº 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (nº 2). (...)
O objectivo da solução aceite na lei é o de proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir.
Consagra-se assim uma doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é, no entanto, temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista. (...)
A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
O declaratário normal deve ser uma pessoa com “Razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo”- PAULO MOTA PINTO, in “Declaração Tácita”, 1995, 208.

Tendo presente os considerandos doutrinais e jurisprudenciais, não há dúvidas que a missiva datada de 12.11.2018, corresponde a uma efectiva e concreta declaração dos AA. no sentido de reclamar e reivindicar perante a R. A..., configurando uma exposição de uma série de “problemas” e assinala que um deles, ar condicionado, ainda está por reparar.
Tanto mais, que a missiva acaba por informar a R. A... de que os AA. irão exercer o direito à substituição da viatura e já não pedido de reparação.
Por fim, tal como resulta da factualidade dada como provada, sempre foi comportamento da R. A... perante qualquer reclamação ou reivindicação, proceder à reparação. De notar que tal comportamento se manteve desde a aquisição, Maio de 2017 até pelo menos Julho de 2018. Nunca a R. A... alegou a caducidade do direito dos RR. à reparação dos problemas a si reportados.
Deste modo e concluindo, bem andou o Tribunal a quo em julgar não verificada a arguida caducidade.

Mais é de afirmar, que recai sobre o vendedor, neste caso, a R. A..., o ónus de alegação e prova de que a reclamação dos problemas da viatura ocorreu dois meses após o conhecimento do facto pelos AA..
A este propósito citamos decisão deste Tribunal da Relação do Porto, 271/20.6T8MLD.P1, de 24-01-2022, relatado pela Des EUGÉNIA CUNHA, dgsi.pt, “Apresentando o bem vendido defeito, a sua denúncia ao vendedor impõe-se, com o objetivo de o informar de que a coisa tem um vício ou falta de qualidade.
“O ónus da denúncia dos defeitos ao vendedor de coisa defeituosa resulta de um dever de colaboração entre os contratantes, posto que as condições em que se fazem muitas vendas tornam por vezes impossível ao vendedor estar a par da desconformidade” e “A contagem do prazo para a denúncia apenas se inicia com a tomada de conhecimento suficiente da desconformidade (ou vício), não relevando a mera possibilidade de conhecimento ou o desconhecimento da extensão integral do defeito quando este revista uma natureza eminentemente técnica”[26].
A denúncia, não sujeita a forma especial, podendo ser feita oralmente ao vendedor, tem de fazer referência ao vício ou falta de qualidade invocada pelo comprador. E o vício ou falta de qualidade que se manifeste depois de uma denúncia de outro vício ou falta de qualidade não se encontra abrangido por ela, devendo o comprador voltar a contactar o vendedor, denunciando o novo vício ou a nova falta de qualidade[27].
Na ausência de denúncia, os direitos do comprador caducam.
Relativamente a móveis, quanto à venda de consumo, a lei estabelece dois prazos de caducidade:
i) o de denúncia dos defeitos, de dois meses, a contar da data em que os tenha detetado;
ii) o para o exercício de direitos, de dois anos, a contar da atempada denúncia dos defeitos (v. art.º 5º-A, n.º 2 e 3, do específico regime introduzido pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21 de Maio).
Sendo dois os prazos de caducidade, duas podem ser as exceções perentórias deduzidas pelo vendedor, àqueles atinentes, a ele cabendo o ónus da prova dos concretos factos invocados como causa extintiva do direito do Autor (art. 342º, nº2, do Código Civil).
A contagem do prazo para a denúncia apenas se inicia com a efetiva e suficiente tomada de conhecimento do vício ou desconformidade (v. nº2, do art.º 5º-A, do específico regime introduzido pelo Decreto-Lei 67/2003 de 8 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei nº 84/2008 de 21 de Maio), não relevando, para efeito de início de contagem, a estarem em causa questões de natureza eminentemente técnica, a mera possibilidade de defeito.

Face a todo o exposto, improcede a arguida excepção de caducidade – conclusões 16 a 22.
*
C)
A procedência da presenta demanda, com a obrigação de substituição da viatura, constituiu abuso de direito.

Sustenta a recorrente que quanto ao pedido de substituição da viatura deveria ter sido absolvida face à factualidade dada como provada, por tal constituir abuso de direito.
Que o tipo de problemas que os AA, reclamaram, sistema de travagem, desgaste dos pneus da frente, barulhos/ruídos, fuga de óleo no motor, foram todos reparados pela R. A.... Com excepção do problema do ar condicionado, os AA. não mais reclamaram quaisquer problemas com a viatura.
Que os AA. optaram por exercer do direito à reparação quanto os problemas citados com excepção do ar condicionado, não podem agora vir invocar o seu direito à substituição com fundamento em tais problemas.
Por fim, sustenta que a condenação na substituição da viatura é desproporcionada.
Haverá comportamento por parte dos AA. que se possa concluir por estar em abuso de direito – tal como vem alegado pela R. A....
Vejamos.
O abuso de direito tem lugar quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito – artigo 334.º do Código Civil.
O abuso de direito, pressupondo a existência de um direito subjectivo, existe quando o seu titular exorbita dos fins próprios desse direito ou do contexto em que é exercido. Mas, esse excesso há-de ser claro e manifesto, clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, no dizer de Vaz Serra, sem se exigir todavia a consciência de se estarem a exceder os limites do direito, dado ter sido adoptada pelo Código Civil uma concepção objectivista do abuso de direito. O abuso de direito existe quando o direito é exercido fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e com o fim de causar dano a outrem [É este o ensinamento que se colhe, entre outros dos Acs. S.T.J., de 98/11/12 e 00/05/10, in B.M.J., 497º-343 e C.J., VI-3º, 110 (S.T.J.)].
A teoria do abuso de direito, na formulação adoptada pela nossa lei, apresenta-se como um verdadeiro limite intrínseco do exercício dos direitos subjectivos ou, nas palavras de MANUEL ANDRADE [in R.L.J., Ano 87º, pág. 307], serve como válvula de segurança para os casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação das normas legais obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.
É que todas as relações jurídicas entre as pessoas implicam um princípio de confiança e de auto-vinculação, criando expectativas futuras. E é precisamente esta confiança vinculativa que proíbe que alguém exerça o seu direito em manifesta oposição a uma tomada de posição anterior em que a outra parte acreditou e aceitou. Mas esta situação de confiança tem de radicar num comportamento que de facto possa ser entendido como uma tomada de posição vinculante em relação a uma dada situação futura [cfr. BAPTISTA MACHADO, in R.L.J., Ano 117º, pág. 321 e segs].
Como é referido no citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 16-12-2010 (ALVES VELHO), “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito.
Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem» (COUTINHO DE ABREU, “Do Abuso de Direito”, pp. 43), então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido. (…)
Importa, pois, determinar se os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes saem ofendidos, designadamente de forma clamorosa, face às concepções ético-jurídicas dominantes, pois que é no âmbito da conduta tida por contrária à boa fé que há-de emergir o “venire”.
A boa fé, como princípio normativo de actuação – que é o conceito em que aqui releva (art. 762º-2 CCiv.) -, encerra o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, tudo em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativa da outra parte.””.

2. Uma primeira prevenção: para que estejamos perante abuso de direito, ponto é que o agente tenha algum direito; se se tratar de uma conduta a que não subjaz qualquer direito, ela poderá ser ilícita, mas não abusiva no exercício de um direito.
Por outro lado, o preceito não se aplica apenas a direitos subjetivos proprio sunsu: nele se incluem posições jurídicas ativas, como faculdades, poderes, liberdades (incluindo a liberdade contratual consagrada no art. 405.º). (…)
4. Dos limites ao exercício de um direito subjetivo destaca-se, em primeiro (e importante) lugar, a boa fé, cláusula geral que o CC refere com alguma frequência e que, se, nos primeiros tempos após a entrada em vigor do diploma, foi pouco utilizada (quando não praticamente ignorada pela jurisprudência), é hoje objeto de estudos doutrinários e não raro invocada pelos tribunais.
A paradoxal aparente descrença do legislador nesta noção - ou a convicção, como era frequente ao tempo, de que abuso do direito apenas tinha oportunidade de invocação a propósito da propriedade - levou a que, no n.º 2 do art. 762.º, se repita que o exercício do direito de crédito deve conformar-se com a boa fé.
5. Os bons costumes constituem a segunda limitação ao exercício de um direito: estamos perante uma cláusula geral de direito privado que remete para princípios morais sociais (que não, longe disso, necessariamente sexuais, religiosos ou ético-individuais) que devem regular o comportamento das pessoas honestas em todos os seus aspetos, incluindo, mas não restringindo, os económicos.
6. Outra importante limitação ao exercício de um direito subjetivo é o fim social ou económico do direito. E fácil compreender que assim seja: se o direito objetivo (hoc sensu) é sinteticamente um poder jurídico para realizar um interesse, está-se fora do domínio de permissão jurídica sempre que o interesse tutelado pelo direito não é aquele que é prosseguido pelo seu titular. Não significa isto necessariamente que cada direito tenha uma só finalidade, escopo ou razão de ser, mas que a permissão jurídicas tem objetivos que, defraudados, não se contêm nela. A violação desse fim, como qualquer outra situação de abuso, resulta em regra dos efeitos do exercício e não dele próprio em abstrato. Pode-se, naturalmente, formular esta ideia dizendo que a norma jurídica que confere o direito leva, na sua interpretação, ao recorte de poder (ou liberdade) que atribui ao respetivo titular.”, in Código Civil Anotado, 2ª ed., Coord. ANA PRATA, anotação ao artigo 334.º, pág. 441, 442.

Ora, da factualidade dada como provada, mormente, os factos atinentes à conduta da A., revelada pela sucessão temporal dos vários contactos havidos com o R., diversos funcionários, não revela qualquer comportamento antijurídico ou antiético que possa configurar, nos termos da Lei supracitada, um exercício abusivo do direito de exercer este direito.
O exercício do direito à substituição da viatura não comporta no caso uma desproporcionalidade. Não se nos afigura que ocorra um desequilíbrio ou desproporção intolerável do exercício do direito dos AA. e a substituição da viatura.
A este propósito trazemos à colação o decido no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, 283/2002.P2.S1, de 24.02.2015, relatado pelo Cons MÁRIO MENDES, dgsi.pt, “Estatui o artigo 334° do C. Civil, que «é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito», excesso que no caso concreto pode ser consequente a uma manifesta desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem; na sua variante de exercício em desequilíbrio - desproporção grave entre o exercício do titular exercente e o sacrifício por ele imposto a outrem. (cf. ROA, 65.º, Setembro 2005, 361, Prof. Menezes Cordeiro e Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 1997, CJ/ S.T.J – 1997, 1, 121) e de 28/10/2008[7] e 11.1.2011 – relator Conselheiro Sebastião Póvoas) - o abuso de direito resultará da prática de uma acção que pelas circunstâncias que as rodeia ultrapasse os limites razoáveis do exercício de uma direito, provocando danos a um terceiro - apresenta-se, desta forma, como um resultado do princípio da proporcionalidade co-natural à própria ideia de justiça, intuída como proporção ou justa medida.
Antes de justificarmos o porquê desta nossa posição discordante importa salientar que o abuso de direito consequente a uma manifesta desproporção no exercício se liga e encontra fundamento no princípio da proporcionalidade (ou da proibição do excesso).
Enquanto instrumento mediador de ponderação e mediação a proibição de excesso (ou principio da proporcionalidade) cumpre uma função especifica na operação de optimização das possibilidades jurídicas e fácticas, devendo merecer observância nas decisões judiciais pautadas por uma aplicação da lei que pondere elementos como os relativos à necessidade e à adequação, subjacentes ou inerentes à própria proporcionalidade – v. Vitalino Canas – “A proibição do excesso como instrumento mediador de ponderação e optimização”, Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, 2012, Volume III.
A hipótese de desproporção de exercício que aqui se coloca reveste a forma de desequilíbrio grave entre o beneficio que da procedência da acção poderá advir para o titular exercente e o correspondente sacrifício que é imposto a outrem pelo exercício de tal direito, surgindo assim como possibilidade legalmente prevista de correcção de soluções que, ainda que legalmente suportadas, se apresentariam em concreto contrárias ao normal sentimento de justiça. Através ou por recurso ao principio da proporcionalidade o juiz verificará se a aplicação dos instrumentos legais ao caso concreto se detém dentro limites necessários e adequados de actuação – através da proporcionalidade verifica se os meios são necessários, adequados e proporcionais aos fins já escolhidos Como se refere no acórdão deste STJ, de 26/10/99 (Conselheiro Pinto Monteiro) mecanismo de abuso de direito não contém uma limitação do acesso ao direito, antes procura dar ao juiz um instrumento que, ao serviço da justiça do caso concreto, procure evitar a desigualdade de tratamento que os conceitos indeterminados adoptados pela nossa lei civil tantas vezes permitem.
Porque assim é, deve o julgador, mesmo a título oficioso, conhecer de um eventual abuso de direito consequente a um exercício em desequilíbrio de forma a salvaguardar o elemento de jus eticidade[8] que deve estar sempre subjacente ao correcto exercício do um direito subjectivo (no caso o direito de preferência).

Relativamente a este argumento da proporcionalidade ou equilíbrio no exercício do direito, alegando a R. A... na “diminuta gravidade e à possibilidade de reparação sem inconveniente para os autores[4]” dos problemas reclamados pelos AA..
Dos factos provados não se pode concluir pela diminuta gravidade dos problemas suscitados e reclamados pelos AA., pois que os mesmos foram sucessivamente reclamados e levaram a qua a R. A... os tivesse aceite e procedido à sua reparação, diga-se, durante um largo período de tempo. Face às sucessivas reclamações, reparações e o reaparecer de problemas, não se pode afirmar ou concluir por estarmos perante uma diminuta gravidade dos problemas suscitados e reclamados. Mais se diga que face à factualidade dada como provada, os AA. que compraram uma viatura nova e desde a compra em Abril de 2017 e o envio da carta de Novembro de 2019, por diversas ocasiões ficaram privados da mesma, de modo a que a R. procedesse à sua reparação.
O que é certo que a viatura ainda apresenta problemas que foram reclamados à R. A..., do ar condicionado, que não foram reparados. Atente-se no número de vezes que a viatura recolheu à oficina da R. A.... De igual modo, releva a circunstância da viatura ter ido a terceiras entidades sem que a reparação dos problemas tenha ocorrido.
O que é certo que é que a viatura não apresenta as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que os AA. podiam razoavelmente esperar. Portanto, a única via para “compensar” os AA. pela falta de qualidades é a substituição. É suposto que ao comprar uma viatura nova não apresente este tipo de problemas, desde o início e durante este período de tempo. Têm assim os AA. direito a verem satisfeita a sua pretensão de substituição da viatura por si adquirida, por outra de igual marca e modelo, ie, substituição da viatura igual –com iguais características daquela adquirida em estado de novo.
O artigo 4.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 67/2003, 08.04, estipula que em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato. E o seu nº 5 prescreve que o consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.
Deste modo, de acordo com este preceito legal, a escolha do meio legal para ser usado pelo consumidor em caso de desconformidade do objecto com o contrato, deixou de estar hierarquizado como resultava da Diretiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio e que o Decreto-Lei n.º 67/03 transpôs para o nosso direito interno.
Igualmente no que respeita à defesa do consumidor em caso de compra e venda, importa atender à Directiva 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio de 1999, relativa a certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas.
Do art. 3º da Directiva resulta que o comprador pode exigir a reparação do defeito ou a substituição da coisa assim como a redução do preço e a rescisão (resolução) do contrato de compra e venda. A reparação do defeito e a substituição da coisa não são exigíveis no caso de tais prestações serem impossíveis ou desproporcionadas. A responsabilidade do vendedor é objectiva, como se retira do contexto da exigência de conformidade; havendo desconformidade há responsabilidade do vendedor, que só é afastada nos casos previstos neste preceito.“, Direito das Obrigações (parte especial), Contratos, PEDRO ROMANO MARTINEZ, 2ª ED., pág 149.
Por fim quanto à eventual hierarquia dos direitos do consumidor
Se bem que o nº2 do art.3º da Directiva inculque uma alternativa de direitos, à escolha do consumidor, os números seguintes do mesmo preceito mostram ser ténue e muito relativo esse concurso electivo, dados os requisitos objectivos a que subordina o seu exercício.
Assim, e à cabeça, salta à vista a seguinte hierarquia: primus, reparação ou substituição do bem; secundus, redução do preço ou resolução do contrato.
É o que resulta da conjugação do nº3-"Em primeiro lugar, o consumidor pode exigir do vendedor a reparação ou a substituição do bem, em qualquer dos casos sem encargos, a menos que isso seja impossível ou desproporcionado" com o nº5: "O consumidor pode exigir uma redução adequada do preço, ou a resolução do contrato:
- se o consumidor não tiver direito a reparação nem a substituição, ou
-se o vendedor não tiver encontrado uma solução num prazo razoável, ou
- se o vendedor não tiver encontrado uma solução sem grave inconveniente para o consumidor".
A regra e proeminência da parelha "reparação/substituição" sobre o par "redução/resolução" surge confirmada no considerando n°10: "em caso de não conformidade do bem com o contrato, os consumidores devem ter o direito de obter que os bens sejam tornados conformes com ele sem encargos, podendo escolher entre a reparação ou a substituição, ou, se isso não for possível, a redução do preço ou a resolução do contrato".
Quer dizer: o consumidor tem o poder-dever de seguir primeiramente e preferencialmente a via da reparação ou substituição da coisa sempre que possível e proporcionada, em nome da conservação do negócio jurídico, tão importante numa economia de contratação em cadeia, e só subsidiariamente o caminho da redução do preço ou resolução do contrato.”, JOÃO CALVÃO DA SILVA, ob cit.,págs 166 e seguintes

Em sustentação da posição decidida neste autos, Ac do Supremo Tribunal de Justiça 2927/18.4T8VCT.G1.S1, de 14.10.2021, relatado pelo Cons ABRANTES GERALDES, Ac do Supremo Tribunal de Justiça 07A4160, de 13.12.2007, relatado pelo Cons FONSECA RAMOS, Ac Tribunal da Relação de Lisboa 6365/20.0T8LSB.L1-7, de 21.12.2012, relatado pela Des ISABEL SALGADO, Ac Tribunal da Relação de Guimarães 2927/18.4T8VCT.G1, DE 15.05.2021, relatado pela Des MARIA CRISTINA CERDEIRA.
Carece, pois, por este fundamento a pretensão da R. A....
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III DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pela R. A... (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).
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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.
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Porto, 13 de Junho de 2023
Alberto Taveira
Maria da Luz Seabra
Artur Dionísio Oliveira
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.
[2] Seguimos de perto o relatório elaborado pelo Exmo. Senhor Juiz.
[3] Este defeito terá que se entender também sob a alçada da arguição da excepção da caducidade, por força do decaimento do recurso quanto à matéria de facto.
[4] Artigo 23 da sua contestação.