Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4737/17.9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
REPRESENTAÇÃO EM JUÍZO DE SOCIEDADE ARGUIDA DECLARADA INSOLVENTE
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
Nº do Documento: RP202306074737/17.9AVR.P1
Data do Acordão: 06/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERCALAR (INTERPOSTO PELO ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA DA SOCIEDADE ARGUIDA) E AO RECURSO DA SENTENÇA (INTERPOSTO PELA ARGUIDA)
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – No caso vertente, em coerência com o regime jurídico a cada momento vigente, a sociedade arguida declarada insolvente foi validamente representada em juízo pelo administrador da insolvência, não dependendo tal representação do consentimento deste.
II - No caso vertente, à data do cumprimento da notificação a que alude o artigo 105.º, n.º 4, al. b), do Regime Geral das Infrações Tributárias., atendendo ao disposto nos artigos 146.º, n.º 2, e 160.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais e no artigo 82.º, n.º 1, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, tal notificação teria de ser realizada na pessoa da arguida a título pessoal e enquanto legal representante da sociedade arguida declarada insolvente; tal notificação não tinha, por isso, de ser realizada na pessoa do administrador da insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4737/17.7T9AVR.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 2



Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 4737/17.7T9AVR, a correr termos no Juízo Local Criminal de Aveiro, Juiz 2, por despacho de 15-06-2022 foi decidido:
«Face ao disposto no artigo 57.º, n.º 9 do CPP, na redacção Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro nomeia-se para representar a sociedade em Juízo o Sr. Administrador da Insolvência Sr. Dr. AA.
Dá-se sem efeito a 1.ª data designada, mantendo-se a 2.ª data já designada.
Notifique pela via mais expedita, incluindo o Sr. Administrador, da data designada.
DN.»

Por requerimento entrado em juízo em 20-06-2022, veio o indicado AA, Administrador de Insolvência da Massa Insolvente de A..., Unipessoal Lda., NIPC ..., nomeado no Processo de Insolvência de Pessoa Colectiva (Apresentação) n.º 666/14.4T2AVR, do Juízo de Comércio de Aveiro – Juiz 3 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por sentença proferida em 03-04-2014, opor-se à nomeação determinada por despacho de 15-06-2022, invocando que o Administrador Judicial apenas tem poderes para representar a Massa Insolvente para efeitos de carácter patrimonial e não para efeitos de carácter criminal.

Em resposta a este requerimento foi proferido, em 23-06-2022, o seguinte despacho:
«Requerimento de 20.6.2022 (572 e ss.): O Sr. Administrador da Insolvência da MASSA INSOLVENTE DE A..., UNIPESSOAL LDA., Dr. AA, após ter sido nomeado, por este Tribunal, para representar a sociedade em Juízo, por força do artigo 57.º, n.º 9 do CPP, veio invocar diversa jurisprudência no sentido declinar a possibilidade de representar a sociedade em Juízo.
Todavia, e pese embora tal jurisprudência, à qual, aliás, adiríamos, o certo é que em face da introdução do actual artigo 57.º, n.º 9 do CPP, na redacção Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, entendemos que essa jurisprudência deixou de ter aplicação.
Com efeito, nos termos do artigo 57.º, n.º 9 do CPP, em caso algum a pessoa colectiva ou entidade equiparada arguida pode ser representada pela pessoa singular que também tenha a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objecto do processo.
Ora, sendo a sociedade arguida uma sociedade unipessoal, que tem como única sócia e gerente a aqui arguida BB, parece-nos não poder deixar de considerar que não tem aplicação a jurisprudência acabada de citar, que é expressamente afastada por força do actual 57.º, n.º 9 do CPP; por outro lado, afigura-se-nos que a razão que esteve na base do n.º 9 do artigo 57.º do CPP é o eventual conflito de interesses entre a sociedade arguida e os seus legais representantes quando estes também assumam essa qualidade pelos mesmos factos, pelo que também não nos parece que deva a arguida BB ser notificada para vir indicar pessoa que legalmente represente a sociedade em Juízo, para efeitos do artigo 57.º, n.º 9 do CPP, sob pena de se frustrar o objectivo do legislador ao estabelecer tal proibição.
Por outro lado, não tendo a sociedade outro gerente ou sócio, não se vislumbra quem possa indicar pessoa idónea para o efeito (face ao acabo de expor). Como tal, a única situação que nos parece viável e justa é a nomeação do Sr. Administrador nos termos já indicados.
Finalmente, é irrelevante que o Sr. Administrador tenha sido indicado como testemunha, pois, a qualidade de representante da sociedade arguida terá que se sobrepor para este efeito.
Face ao exposto, mantém-se o já decidido.»

Por requerimento data de 24-06-2022, veio o referido Administrador de Insolvência reafirmar que, apesar do douto despacho, não aceita nem pode aceitar a representação da sociedade arguida pelas razões já expostas, porque tal obrigação não resulta nem da lei nem da jurisprudência nem da doutrina, e na prática não se vislumbram razões para que se imponha a quem quer que seja a representação de uma sociedade, nos termos do actual artigo 57.º, n.º 9, do CPPenal, entendendo que tal representação carece do necessário consentimento ou aceitação do representante indicado.
E por despacho proferido também a 24-06-2022 foi decidido que:
«O Sr. Administrador da Insolvência, nomeado para representar a sociedade arguida em Juízo neste processo crime nos termos do artigo 57.º, n.º 9 do CPP, já era a pessoa que representa para efeitos do pedido cível, tendo inclusivamente feito juntar aos autos procuração a favor de mandatário e apresentado contestação em representação daquela (cfr. fls. 505 dos autos).
Todas as questões suscitadas pelo Sr. Administrador da Insolvência já foram apreciadas no despacho antecedente.
Assim, condena-se o requerente nas custas do incidente, fixando-se em 1 UC – artigo 7.º, n.º 4 e 8 do RCPprocessuais.»
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Inconformado, veio o referido Administrador de Insolvência da Massa Insolvente de A..., Unipessoal Lda., AA, interpor recurso do despacho de 15-06-2022, confirmado por despachos de 23-06-2022 e 24-06-2022, solicitando a revogação dos identificados despachos, a declaração de nulidade de todos os actos praticados após a mencionada nomeação, nos termos dos arts. 119.º, al. c) e 112.º, n.º 1, ambos do CPPenal, e a revogação do despacho que imputa ao recorrente as custas do incidente suscitado.
Apresenta em apoio da sua pretensão as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«I. Vem o presente recurso legitimado da decisão que determinou a nomeação do recorrente - Administrador da Insolvência - para representar em juízo a sociedade arguida (despacho datado de 15/06/2022 sob referência 122304507, confirmado subsequentemente pelos despachos datados de 23/06/2022 e 24/06/2022, respectivamente sob referência 122434314 e 122479195);
II. Até à alteração operada pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, e no que ao âmago do presente recurso diz respeito, verificava-se uma unanimidade no meio jurisprudencial em torno de dois aspectos:
- O administrador da insolvência não tem poderes para representar a sociedade insolvente em processo criminal, podendo representá-la apenas em matérias de carácter patrimonial, nos termos restritivos do artigo 81.º, n.º 4 do CIRE;
- A representação da sociedade insolvente em processo criminal incumbe aos respectivos representantes legais
Cfr. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa (30/06/2011- proc. 178/10.5IDLSB-A.LI; 13/09/2011-proc.142/10.4IDSTB-A.L1-5; 13/07/2017-proc.2808/16.6T8BRR.L2-2; 13-09-2011-Proc. n.º 142/10.4IDSTB-A.L1-5; 13-07-2017-Proc. n.º 2808/16.6T8BRR.L2 - 2; 12/10/2011; 13/02/2020); Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto (26/01/2011-proc.559/07.1TALSD.P1; 26-01-2011-Proc. n.º559/07.1TALSD.P1; 22-06-2011-Proc. n.º 17716/09.9TDPRT.P1; 04-06-2014-Proc. n.º 16285/09.4IDPRT.P2; 26-10-2017); Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra (28-09-2011-Proc. n.º 123/09.0IDSTR.C1; 25-06-2014-Proc. n.º 2140/06.3TAAVR-A.CI; 24-05-2017-Proc. n.º 108/15.8PCLRA.C1; 14/10/2015); Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães (09-09-2013-Proc. n.º 131/08.9TAFLG-A.G1); Acórdão do Tribunal da Relação de Évora (15-10-2013-Proc. n.º 33/10.9IDEVR.E1);
III. Andou mal o tribunal a quo quando, referindo-se à jurisprudência citada pelo ora recorrente, determinou que “não tem aplicação a jurisprudência acabada de citar, que é expressamente afastada por força do actual 57.º, n.º 9 do CPP”;
IV. Isto porque o artigo 57.º, n.º 9 vem infirmar apenas o segundo dos aspectos supra elencados (e só quando se verifiquem os pressupostos da norma), subsistindo inalterada a validade do primeiro;
V. Daquele preceito resulta apenas que o representante legal da sociedade arguida que seja, enquanto pessoa singular, co- arguido, deixou de poder representá-la no processo crime; já não resulta, por outro lado, que o administrador da insolvência passou a ter poderes de representação da sociedade insolvente também no âmbito criminal;
VI. Parece manifesto que o artigo 57.º, n.º 9 CPPenal em nada contende com o regime consagrado no artigo 81.º, n.º 4 do CIRE, que circunscreve os poderes de representação do administrador da insolvência às matérias de carácter patrimonial;
VII. Com efeito, se fosse de admitir um alargamento das competências do administrador da insolvência, concedendo que, pelo menos em certos casos, este representasse a sociedade insolvente também no âmbito criminal, o legislador tê-lo-ia previsto expressamente, alterando o artigo 81.º, n.º 4 do CIRE ou consagrando expressamente excepções a essa norma; não o faria, por vias travessas, através de uma norma com redacção semelhante à do artigo 57.º, n.º 9 do CPPenal; tanto mais que deve presumir-se que o legislador se soube expressar correctamente – cfr. art.º 9.º n.º 3 do CCivil – e que não estamos perante qualquer lacuna ou erro na expressão do legislador;
VIII. Em face do exposto, em sentido divergente do douto tribunal a quo, a jurisprudência citada pelo recorrente continua a merecer aplicação no que respeita ao entendimento consensual de que o administrador da insolvência não tem poderes para representar a sociedade insolvente em processo criminal, podendo representá-la apenas em matérias de carácter patrimonial, nos termos do artigo 81 n.º 4 do CIRE;
IX. A representação da sociedade arguida em juízo por quem não tenha poderes para o efeito - como é o caso do recorrente - consubstancia a nulidade prevista no artigo 119º, al. c) do CPPenal.
X. No mais, a constituição de representante para os efeitos aqui em causa, sempre carecerá do necessário consentimento ou aceitação por parte do sujeito indicado para desempenhar tal função.
XI. Sucede que o recorrente não consentiu nem aceitou a sua nomeação como representante (em juízo) da sociedade arguida, porque entende que tal função não se acha incluída no conjunto das suas incumbências enquanto administrador da insolvência.
XH. Deve, então, revogar-se os despachos que determinaram/confirmaram a nomeação do recorrente para representar em juízo a sociedade arguida;
XIII. Consequentemente, deve ser declarada a nulidade de todos os actos praticados após essa nomeação, nos termos dos arts. 119.º, al. c) e 122.º, n.º 1, ambos do CPPenal;
XIV. Devendo ainda revogar-se o despacho em que se decide imputar ao ora recorrente as custas do incidente suscitado;
XV. Sendo certo que nem o recorrente (art.º 81.º, n.º 4 do CIRE) nem a arguida BB (art.º 57º, n.º 9) são admitidos a representar a sociedade arguida nos presentes autos, deverá ser designado um terceiro representante para o efeito, maxime, indicado pela sociedade arguida, na pessoa da sua sócia-gerente, nos termos do artigo 57.º, n.º 4 do CPPenal.»
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Entretanto, foi realizado o julgamento e, por sentença de 23-09-2022, foi decidido (transcrição):
«1) Condenar a arguida A..., Unipessoal Lda. como responsável penal pela prática do crime de abuso de confiança à segurança social na forma continuada, previsto e punido pelos art.s 105º, nºs1, 2, 4 e 7 e 107º, nº1 e 2 ambos do RGIT, nos termos do disposto nos art.7º, 12º, nºs 2 e 3, 15º, 16º e 17º todos do RGIT na pena de 150 (cento e cinquenta) dias a taxa de €7 (sete euros).
2) Condenar a arguida BB como autora pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, previsto e punido pelos art.s 105º, nºs1, 2, 4 e 7 e 107º, nº1 e 2 ambos do RGIT, bem como pelos art.s 30º, nº2 e 79º ambos do Código Penal, aplicáveis ex vi do disposto no art.3º, al.a) do RGIT, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias a taxa de €8 (oito euros).
3) Julgar parcialmente procedente o pedido indemnização cível deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP, condenando-se as arguidas solidariamente a pagarem a A..., Unipessoal Lda. e BB a pagaram €8.419,51 (oito mil quatrocentos e dezanove euros e cinquenta e um cêntimos) título de capital, a que acrescem juros vencidos sobre cada uma das prestações em dívida desde o seu vencimento e os que se vencerem até integral pagamento.
4) Condenar as arguidas a pagar as custas criminais, fixando-se a taxa de justiça para cada uma em 2 U.C (artigo 513º do Código de Processo Penal e artigo 8.º do R.C.P e tabela III anexa), a que acrescem os legais encargos nos termos do art.º 514.º do C.P.P
5) Condenar a demandante e das demandadas na proporção do decaimento, fixando-se o decaimento do Instituto da Segurança Social, IP em 1/5 e o decaimento das arguidas em 4/5.
Notifique e deposite.»
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Inconformada, a arguida BB interpôs recurso, solicitando a revogação da sentença proferida e a sua substituição por outra que a absolva do crime por que foi condenada, aduzindo em defesa da sua pretensão as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«A. Da sentença que ora se recorre resulta o entendimento que não é obrigatória a notificação do Sr. Administrador para proceder ao pagamento de contribuições em dívida à Segurança Social, porquanto não representa a sociedade para efeitos criminais, sendo que a sua representação circunscreve-se aos efeitos de carácter patrimonial.
B. No entanto, afigura-se inquestionável que a sociedade arguida não foi corretamente notificada para os efeitos previstos na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT dado que essa notificação já deveria ter sido efetuado em nome do Sr. Administrador Judicial.
C. O Sr. Administrador Judicial não foi notificado em 02.10.2018 (data da notificação à arguida ora recorrente por parte do Instituto da Segurança Social para proceder ao pagamento das contribuições em falta).
D. O Sr. Administrador Judicial foi notificado no ano de 2022
E. O Sr. Administrador Judicial representante da sociedade arguida A... Unipessoal, LDA., deveria ter sido notificado para pagamento voluntário no prazo de 30 dias, enquanto condição objetiva de punibilidade – assim qualificada pela jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 6/2006;
F. não se verificam – in casu – as condições de punibilidade do crime pelo facto de a sociedade insolvente não ter sido notificada na pessoa do Sr. Administrador Judicial nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4 alínea b) do RGIT.
G. Para que a sociedade arguida seja criminalmente responsabilizada, os seus gerentes (todos eles) têm que ser notificados nessa qualidade e enquanto responsáveis pela sociedade (e não apenas a título próprio), devendo essa notificação ser feita na pessoa do Administrador da Insolvência.
H. O Acórdão Uniformizador nº 6/2008, de 9 de Abril de 2008, fixou jurisprudência no sentido de que a exigência prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT, na redação da Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, configura uma nova condição objetiva de punibilidade.
I. Não deve a Arguida ser condenada dado que não se mostra verificada a condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT.
J. A Lei nº 53-A/2006 de 29 de Dezembro, que deu a redação vigente ao art. 105º do RGIT, acrescentou, no que respeita ao crime de abuso de confiança fiscal, e ao crime de abuso de confiança contra a segurança social [Ex vi, art. 107º, nº 2 do referido regime geral], uma nova condição objetiva de punibilidade – assim qualificada pela jurisprudência fixada pelo Acórdão Uniformizador nº 6/2006, supra referido – e que consiste em a falta de entrega das prestações tributárias e das prestações de segurança social, declaradas, deduzidas e não entregues, só ser punível se não forem pagas, com os legais acréscimos, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito feita.
K. Resulta das disposições conjugadas dos arts. 6º e 7º do RGIT que no âmbito dos crimes tributários vigora uma regra de responsabilidade cumulativa do ente coletivo e das pessoas singulares que, enquanto suporte de órgão ou representante, atuaram em seu nome e no seu [do ente coletivo] interesse, no cometimento da infração.
L. Trata-se, portanto, de uma responsabilidade penal atribuída a distintos sujeitos – o ente coletivo e a pessoa ou as pessoas singulares que o representam e atuam a sua vontade – fundada, embora, no mesmo facto, plenamente justificada pela circunstância de a vontade do ente coletivo, v.g., da sociedade, não se confundir com a vontade dos titulares dos seu órgãos, dos seus gerentes ou administradores.
M. Deste modo, a notificação prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT deve ser feita ao ente coletivo, à sociedade, na pessoa dos seus gerentes ou administradores, nesta mesma qualidade, e também, aos gerentes e administradores, agora na qualidade de pessoas singulares e portanto, fora daquela veste estatutária ou seja, a notificação referida deve ser feita a todos os sujeitos processuais que tenham a qualidade de arguido.
N. Quando deva ocorrer na pendência do processo criminal, a notificação está sujeita às regras previstas no C. de Processo Penal, devendo ser feita ao próprio arguido.
O. Por outro lado, no caso especifico das sociedades comerciais, quando haja já declaração de insolvência, a notificação deve ser feita ao administrador da insolvência.
P. Resulta do nº 4 do art. 81º do CIRE que: 4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
Q. No entanto e salvo melhor entendimento, a representação do administrador da insolvência prevista na norma citada abrange não apenas questões patrimoniais relativas à insolvência, mas também questões de natureza criminal sendo que, tem esta natureza, a notificação em análise.
R. Estamos perante uma dívida, que, porque têm natureza patrimonial, não pode deixar de interessar à insolvência.
S. Acresce que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente (cfr. art. 81º, nº 1 do CIRE),
T. A notificação no caso de sociedades comerciais já declaradas insolventes, quando está em causa, como é óbvio, a sua própria responsabilidade criminal, deve ser feita na pessoa do administrador da insolvência (cfr. Tiago Milheiro, Da Punibilidade nos Crimes de Abuso de Confiança Fiscal e de Abuso de Confiança contra a Segurança Social, Julgar, Maio – Agosto de 2010, EASJP, pág. 81).
U. Nesse sentido veja-se o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra – Processo n.º 2500/15.9T9CBR.C1, disponível em www.dgsi.pt:
V. E ainda o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do processo n.º 1192/16.2T9STR.E.1 que refere que:
W. A verdade é que o Sr. Administrador de Insolvência poderia ter pago.
X. No âmbito do processo de insolvência da sociedade coarguida, o estabelecimento destinado a farmácia foi vendido pelo valor de 1.245.000,00€ (um milhão duzentos e quarenta e cinco mil euros).
Y. Este valor permitirá que o Instituto da Segurança Social receba o seu crédito na totalidade face aos privilégios do estado.
Z. A falta de notificação de um co-responsável – a sociedade Arguida constitui circunstância impeditiva do prosseguimento do processo.
AA. Deste modo, não se mostra verificada a condição objetiva de punibilidade prevista na alínea b) do nº 4 do art. 105º do RGIT relativamente à arguida devendo, em consequência, ser a sentença proferida substituída por outra que absolva a arguida do crime de que vem acusada, fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA!»
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Por despacho de 23-12-2022 ambos os recursos foram admitidos, sendo o recurso interlocutório a subir com o recurso da decisão final.
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso interlocutório, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção dos despachos recorridos, concluindo que «[d]urante a vigência do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 94/2021, de 21/12, o administrador de insolvência de sociedade arguida declarada insolvente podia representá-la para efeitos criminais.»
Respondeu ainda ao recurso apresentado pela arguida BB, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da sentença recorrida, concluindo que (transcrição):
«a) O administrador judicial da sociedade arguida foi notificado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 105º nº 4 alínea b) do RGIT;
b) A representação do administrador de insolvência circunscreve-se aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência;
c) A arguida recorrente, na qualidade de representante legal da sociedade arguida, foi notificada nos termos do artigo 105º nº 4, alínea b) do RGIT».
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Não foram apresentadas outras respostas a qualquer dos recursos.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer onde se pronunciou pela inadmissibilidade legal e pelo não conhecimento por este Tribunal do recurso interlocutório, nos termos dos arts. 412.º, n.º 5, 414.º, n.º 3, e 417.º, n.ºs 3 e 6, al. a), do CPPenal, já que o recorrente não recorreu da sentença e não manifestou nos autos o seu interesse no conhecimento do recurso intercalar. Não obstante, afasta a verificação da nulidade consistente na ausência do arguido nas diligências em que era obrigatório estar presente.
Quando ao recurso da arguida BB, entende que o mesmo deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal e manifesta improcedência, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 414.º, n.º 2, 417.º, n.º 6, als. a) e b), e 420.º, n.ºs 1, als. a) e b), 2 e 3, do CPPenal, já que a falta de decisão judicial sobre a admissão ou não admissão de recurso não integra a invocada nulidade da sentença por omissão de pronúncia, carecendo a recorrente, para além disso, de legitimidade para a respectiva invocação, sendo certo que a nulidade do processado, já apreciada em instrução, não podia ser de novo suscitada.
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Notificados nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, ambos os recorrentes apresentaram resposta reiterando o entendimento exposto nos recursos e as conclusões ali extraídas, manifestando o recorrente AA o entendimento de que seria inconstitucional a rejeição do seu recurso sem prévio convite ao aperfeiçoamento.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento dos recursos.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir nos recursos
É pelas conclusões que os recorrentes extraem da motivação que apresentam que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente AA coloca à apreciação deste Tribunal no recurso interlocutório são as seguintes:
- Falta de consentimento e de fundamento legal para que o administrador de insolvência assuma a representação em juízo, em processo criminal, da sociedade arguida e consequente nulidade dos actos praticados após essa nomeação e revogação da decisão de condenação do recorrente nas custas do incidente;
As questões que a recorrente BB coloca à apreciação deste Tribunal no recurso da sentença são as seguintes:
- Não verificação da condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105.º, n.º 4, al. b), por ausência de notificação do administrador judicial nos termos ali estabelecidos.
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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença recorrida (transcrição):
«II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A) FACTOS PROVADOS
Finda a produção de prova resultaram provados os seguintes factos:
1. A arguida A...– Unipessoal Lda. é uma sociedade por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial, com o N...17 e tem por objecto social a exploração de farmácia.
2. A arguida BB, à data dos factos infra descritos, exercia funções de sócio-gerente da sociedade arguida cabendo-lhe, designadamente, a administração dos fluxos financeiros, em termos de recebimentos e pagamentos, tudo em nome e no interesse desta.
3. Nessa sua actividade, era a arguida quem decidia da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações correntes.
4. Assim, nos meses de Novembro de 2012 a 3 de Abril de 2014, a arguida dirigiu as actividades daquela sociedade, designadamente e para além do mais, contratava com os fornecedores, comercializava os produtos da sociedade, contratava os trabalhadores e procedia ao pagamento das remunerações aos empregados, estando, por conseguinte, a arguida obrigada a entregar mensalmente, nas Instituições da Segurança Social as folhas e remunerações pagas e devidas no mês anterior aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais daquela referida sociedade e a proceder ao desconto prévio dos valores das contribuições devidas à Segurança Social.
5. Desta feita, estava a arguida obrigada a auto liquidar e a entregar, entre o dia 10 e o dia 20 do mês seguinte àquele a que as contribuições dizem respeito, nos cofres da Segurança Social, os valores retidos nas retribuições pagas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais.
6. Todavia, apesar de a arguida efectivamente ter pago as remunerações respeitantes aos meses de Dezembro de 2012 a Junho de 2013, Agosto de 2013 a Fevereiro de 2014, inclusive, e de ter deduzido às mesmas o montante correspondente às respectivas contribuições para a Segurança Social, no valor global €8419,51 (oito mil quatrocentos e dezanove euros e cinquenta e um cêntimos) não procedeu à sua entrega na Segurança Social nos prazos legalmente estipulados, isto é, entre o dia 10 e o dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitam, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo, nem mesmo depois de notificado para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das cotizações retidas e juros de mora, nos termos do disposto no art.105º, nº4, al.b) do RGIT, nem até à presente data.
7. Assim, a arguida deveria ter entregado à Segurança Social e não entregou os montantes referentes às contribuições deduzidas nos salários dos trabalhadores e membros dos órgãos sociais abaixo discriminados:

MES



Novembro de 2012
Dezembro de 2012
Janeiro de 2013
Fevereiro de 2013
Março de 2013
Abril de 2013
Maio de 2013
Junho de 2013
Agosto de 2013
Setembro de 2013
Outubro de 2013
Novembro de 2013
Dezembro de 2013
Janeiro de 2014
Fevereiro de 2014
TOTAL €7.635,74

MES



Novembro de 2012
Dezembro de 2012
Janeiro de 2013
Fevereiro de 2013
Março de 2013
Abril de 2013
Maio de 2013
Junho de 2013
Agosto de 2013
Setembro de 2013
Outubro de 2013
Novembro de 2013
Dezembro de 2013
Janeiro de 2014
Fevereiro de 2014
Quotizações retidas e não pagas
Regime Geral dos Trabalhadores
por conta de Outrem;
(Valores globais mensais)
808,61€
808,61€
772,48€
642,21€
463,69€
455,59€
384,83€
384,83€
384,83€
427,32€
506,23€
331,48€
427,32€
506,23€
331,48€


Quotizações retidas e não pagas
Sub-regime dos Membros dos
Órgãos Sociais
(Valores globais mensais)
45,11€
45,11€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
53,35€
TOTAL €783,77

8. Apesar de a arguida ter deduzido àquelas remunerações pagas aos trabalhadores, membros dos órgãos sociais e trabalhadores pensionistas as quantias devidas à Segurança Social supra referidas, e de bem saber que tais quantias lhe não pertenciam e que estava, por lei, obrigada a entregá-las nos cofres da Segurança Social, a quem eram destinadas, não o fez, antes as fazendo suas, através do dispêndio das mesmas em proveito da sociedade e, pois, em seu proveito também.
9. Com a conduta supra descrita, causou, a arguida, à Segurança Social, um prejuízo de montante igual ao das quantias referidas, acrescido dos respectivos juros legais moratórios.
10. A arguida, após não ter entregado no mês de Novembro de 2012, os montantes destinados à Segurança Social que havia deduzido nas referidas remunerações, praticou o mesmo tipo de conduta ao longo de todos os restantes meses de Dezembro de 2012 a Junho de 2013, Agosto de 2013 a Fevereiro de 2014, porquanto, em virtude de não ter sido sujeita a inspecção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, se convenceu que a actuação que vinha levando a cabo estava a ser bem-sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.
11. Agiu sempre a arguida, de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito concretizado de deduzir as quantias acima referidas e de as não entregar à Segurança Social, tendo feito reverter e despendido em benefício da sociedade, sua representada, as quantias deduzidas e, indirectamente, em seu proveito próprio, quantias essas que bem sabia não lhe pertencer e estar obrigada a entregá-las nos cofres da Segurança Social.
12. Mais sabia, a arguida, que as suas relatadas condutas eram proibidas e punidas por lei penal como crime.
13. A sociedade arguida A..., Unipessoal Lda. não tem antecedentes criminais.
14. A arguida BB não tem antecedentes criminais.
15. A data dos factos a sociedade encontrava-se numa situação financeira difícil, que veio a cominar num processo de insolvência.
16. A sociedade arguida teve dificuldades de tesouraria e afectou os valores disponíveis ao pagamento de fornecedores, para assegurar a continuação da sua actividade.
17. Em Abril de 2014 foi decretada a insolvência da sociedade arguida.
18. O estabelecimento de farmácia da sociedade arguida foi vendido, no âmbito da liquidação no processo de insolvência pelo valor de 1.245.000,00.
19. No âmbito do proc. de insolvência foram reconhecidos créditos a favor do Instituto da Segurança Social no valor de €38.624,37.
20. A arguida BB é farmacêutica.
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Com relevância para a decisão da causa, não se provaram quaisquer outros factos para além dos supra descritos ou que estejam em contradição com aqueles, designadamente:
- A arguida deveria ter entregado à Segurança Social e não entregou os montantes referentes às contribuições deduzidas nos salários dos trabalhadores a seguir indicados: Abril de 2014, o valor de €331,48; Junho de 2014, o valor de €331,49; em Agosto de 2014, o valor de €503,67.
- A arguida deveria ter entregado à Segurança Social e não entregou os montantes referentes às contribuições deduzidas nos salários o valor total de €8.802,39
- A arguida deveria ter entregado à Segurança Social e não entregou os montantes referentes às contribuições deduzidas às remunerações pagas aos membros dos órgãos sociais a seguir indicados: Abril de 2014, o valor de €53,35; Junho de 2014, o valor de €53,35; em Agosto de 2014, o valor de €53,35.
- A arguida deveria ter entregado à Segurança Social e não entregou os montantes referentes às contribuições deduzidas às remunerações pagas aos membros dos órgãos sociais o total de 943,81€;
- A arguida deduziu às remunerações pagas o montante correspondente às respectivas contribuições para a Segurança Social, no valor global de 9.746,20€ (nove mil setecentos e quarenta e seis euros e vinte cêntimos).»
*
Vejamos.
Do recurso interlocutório
Coloca-se neste recurso a questão prévia, suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, da (in)admissibilidade do recurso por não ter sido oportunamente manifestado pelo recorrente interesse na sua apreciação, seja em recurso da decisão final, seja em resposta ao recurso da sentença apresentado pela recorrente BB.
Reconhecendo o acerto da argumentação em que se fundamenta essa posição, não podemos deixar de considerar que no caso concreto o recorrente AA tem uma posição sui generis nos autos, que, quanto a nós, justifica a apreciação do recurso.
Com efeito, o recurso interlocutório em causa foi admitido por despacho de 23-12-2022, na mesma data e no mesmo despacho em que foi admitido o recurso da decisão final.
Compulsados os autos, verificamos que o recorrente não foi notificado para estar presente na data da leitura da sentença, sendo antes notificada a arguida BB, por si e na qualidade de legal representante da arguida pessoa colectiva que o recorrente representou no decurso da audiência (cf. fls. 654 – referência n.º 123080748). Esta tramitação terá resultado, cremos – pois nada é explicitado – da alteração legislativa que, entretanto, revogou o n.º 9 do art. 57.º do CPPenal que, cerca de um ano antes, havia fundamentado a nomeação de AA como legal representante daquela sociedade.
Não se pode, pois, invocar que o referido recorrente podia recorrer da sentença, pois dela nunca foi formalmente notificado (também não valendo como leitura a realizada na presença do respectivo advogado se o próprio não é, como não foi, notificado da data designada para o efeito).
Por outro lado, se, na data da leitura da sentença, já não representava a arguida pessoa colectiva, o referido administrador de insolvência, o aqui recorrente, deixou de ter legitimidade ou interesse para recorrer da decisão final, ou mesmo para responder ao recurso apresentado pela arguida BB, de que foi notificado.
Podia, é certo, como se invoca no parecer, apresentar um requerimento autónomo a manifestar interesse na apreciação do recurso. Porém, não o tendo feito e dada a realidade processual inusitada com que se deparou este Tribunal de recurso, sempre seria caso, entendemos, para formular convite ao aperfeiçoamento, à semelhança do que se estabelece nas disposições conjugadas dos arts. 412.º, n.º 5, 413.º, n.º 4 e 417.º, n.º 3, todos do CPPenal.
Todavia, como em resposta ao parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto, ao abrigo do art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente AA veio manifestar interesse na apreciação do recurso, não sendo o mesmo despiciendo – pois vem alegada a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c), do CPPenal, por ausência do arguido em caso em que a lei exige a sua comparência (audiência de julgamento) –, ficou prejudicada a formulação de convite ao aperfeiçoamento e conhecer-se-á de seguida do recurso interlocutório.
O núcleo essencial do recurso interlocutório centra-se na questão invocada pelo recorrente de que não podia ter sido nomeado representante da arguida A..., Unipessoal, Lda. em processo crime por ter sido nomeado administrador da massa insolvente dessa sociedade, sendo jurisprudência unânime que o administrador da insolvência não tem poderes de representação da sociedade insolvente no âmbito de processo criminal, mas apenas em questões de natureza patrimonial, nos termos restritivos do art. 81.º, n.º 4, do CIRE. Mais, alega que a nomeação depende de consentimento ou aceitação, que não dá.
É inequívoco que até à entrada em vigor da Lei 94/2021, de 21-12, que procedeu à alteração, entre outros, do art. 57.º do CPPenal, era entendimento jurisprudencial relativamente estabilizado que a representação dos entes colectivos arguidos em processos crime, e até à sua extinção – que ocorre com o registo do encerramento da liquidação – era realizada pelos seus representantes legais, não recaindo tal dever sobre o administrador de insolvência.
Neste sentido, apresentou o recorrente abundante jurisprudência, cujo teor não suscita qualquer observação, e que aqui acolhemos, aditando-se ainda à mesma, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra[2] de 09-06-2021, onde se sintetiza a ideia de que «[a] figura do Administrador de Insolvência tem alcance ao nível da questão patrimonial da empresa. Portanto, a representação do administrador da insolvência circunscreve-se aos aspectos de natureza patrimonial que interessem à insolvência; quanto aos restantes aspectos, nomeadamente, os que se referem à responsabilidade criminal da sociedade, que ainda não se encontra extinta, a representação continua a ser dos seus gerentes ou administradores.»

Simplesmente, como muito bem se enuncia no despacho recorrido de 23-06-2022, com a alteração legislativa mencionada modificou-se totalmente o paradigma da representação das pessoas colectivas arguidas em processo crime, posto que passou a ser proibida a sua representação em juízo por quem (pessoa singular), detendo poderes de representação legal do ente colectivo, também assumia a posição de arguido no processo.
Assim, a referida lei, ao introduzir um n.º 9 ao art. 57.º do CPPenal onde se prescrevia que em caso algum a pessoa coletiva ou entidade equiparada arguida pode ser representada pela pessoa singular que também tenha a qualidade de arguido relativamente aos factos que são objeto do processo, passou, na realidade, a proibir aquilo que era a prática judiciária estabilizada, respaldada também no entendimento jurisprudencial invocado.
Desaparecendo a possibilidade desta sobreposição para efeitos de representação em juízo da pessoa colectiva arguida em processo penal por seu representante legal que simultaneamente também assumisse a posição de arguido no processo, cabe questionar como podia ser realizada a representação da pessoa colectiva em processo penal?
A mesma Lei 94/2021, de 21-12, que introduziu na redação do art. 57.º do CPPenal os n.ºs 4 a 9, estabeleceu no seu n.º 4 que a pessoa coletiva ou entidade equiparada pode ser constituída arguida, sendo representada por quem a pessoa coletiva designar ou, na ausência de tal designação, por quem a lei designar.
O problema do caso concreto – mas muitos outros se podem configurar em múltiplas situações – é que, tratando-se de sociedade unipessoal, representada apenas pela sócia e gerente que também assume a qualidade de arguida no processo, deparamo-nos com um aparente vazio legislativo quanto à representatividade daquela.
Com efeito, as razões do estabelecimento da apontada incompatibilidade (por certo por eventual conflito de interesses), traduzida na impossibilidade de representação da sociedade pela sua legal representante em processo crime, devem considerar-se ainda presentes na possibilidade de designação do novo representante da pessoa colectiva no âmbito do mesmo tipo de processos, sob pena de se deixar entrar pela janela o que se impediu de forma directa pela porta, sendo certo ainda que a lei processual penal não designa quem deverá representar a pessoa colectiva numa tal situação.
Em face deste vazio legislativo, cabe recorrer subsidiariamente, ao abrigo do disposto no art. 4.º do CPPenal, às normas do processo civil, concretamente ao seu art. 25.º, n.º 2, onde se determina que sendo demandada pessoa coletiva ou sociedade que não tenha quem a represente, ou ocorrendo conflito de interesses entre a ré e o seu representante, o juiz da causa designa representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respetiva representação em juízo.
Dando cumprimento a uma tal orientação – embora sem remissão legal para o preceito –, o Tribunal a quo, e muito bem, nomeou como representante especial o administrador da insolvência, posto que se afigura ser a pessoa mais apetrechada, por estar mais próxima da sociedade, para a representar em juízo.
Esta nomeação não resulta directamente da lei ou do estatuto de administrador de insolvência, como parece pretender o recorrente, fundamentando o seu recurso nesse pressuposto.
É antes uma nomeação especial, feita pelo juiz titular do processo, em caso em que o ordenamento jurídico não apresenta qualquer solução legal para a representação da pessoa colectiva arguida para além desta nomeação ad hoc.
Neste sentido, defende Germano Marques da Silva[3] (embora em contexto legislativo anterior à entrada em vigor da Lei 94/2021, de 21-12, o que para o caso é irrelevante) que «[n]ão nos diz a lei processual penal como é que a pessoa coletiva ou entidade equiparada deve estar no processo como arguida. Parece-nos que a solução consiste em recorrer ao processo civil, como direito subsidiário, donde que, por força do disposto nos arts. 25.º e 26.º do Código de Processo Civil (ex vi do art. 4.º do CPP) as pessoas coletivas e equiparadas são representadas em juízo por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem. Se a entidade coletiva e equiparada não tiverem quem as represente deve ser designado representante especial.»
E tendo esta natureza, tal nomeação não depende do consentimento ou aceitação do visado, como o referido autor também reconhece[4], mas apenas da sua capacidade física ou psíquica para o exercício da função, que em concreto não foi questionada.
Nenhuma censura deve, pois, recair sobre a decisão de nomear o administrador de insolvência como representante especial em juízo da arguida A..., Unipessoal, Lda. no âmbito do presente processo crime.
Assim sendo, não ocorreu a nulidade insanável invocada, tendo a referida arguida pessoa colectiva estado representada em audiência de julgamento pelo aqui recorrente.
É certo que o regime descrito vigorou por pouco tempo, apercebendo-se talvez o legislador – e não o intérprete – que as soluções jurídicas decorrentes das alterações introduzidas pela Lei 94/2021, de 21-12, não eram as mais correctas.
Assim, decorridos pouco mais de 4 (quatro) meses de vigência daquelas alterações, a Lei 13/2022, de 01-08, revogou o analisado n.º 9 do art. 57.º do CPPenal, dando nova redacção ao seu n.º 5, que passou a determinar que a pessoa coletiva é representada por quem legal ou estatutariamente a deva representar e a entidade que careça de personalidade jurídica é representada pela pessoa que aja como diretor, gerente ou administrador e, na sua falta, por pessoa escolhida pela maioria dos associados.
No dia 02-08-2022, data da entrada em vigor destas alterações, cessado que se encontrava o impedimento criado por lei naquele período de pouco mais de quatro meses, a legal representante da sociedade reassumiu a respectiva representação nos autos e as funções do representante especial cessaram – n.º 3 do art. 25.º do CPCivil ex vi art. 4.º do CPPenal.
A arguida A..., Unipessoal, Lda. nunca deixou de estar representada em juízo, e em coerência com o regime jurídico a cada momento vigente, pelo que nenhuma nulidade insanável inquinou a tramitação dos autos, designadamente no decurso da audiência de julgamento.
Relativamente às custas do incidente em que foi condenado o recorrente, o recurso é parco em argumentos, depreendendo-se que é da revogação do processado que resulta a procedência deste segmento do recurso.
Porém, não obtendo provimento aquela primeira parte do recurso, e revelando a tramitação dos autos que teve de ser proferido um terceiro despacho para dar por encerrada a nomeação que aqui se discutiu, quando o percurso normal é a apresentação de recurso face a despacho com o qual não se concorda, ou eventualmente de um pedido de esclarecimento, o que apenas justificaria a prolação de dois despachos, nenhuma censura entendemos deve recair sobre as decisões recorridas, que são de manter nos seus precisos termos.
*
Do recurso da sentença
Já enunciámos que a única questão que a recorrente invocou nas conclusões da sua motivação respeita à não verificação da condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105.º, n.º 4, al. b), por ausência de notificação do administrador judicial nos termos ali estabelecidos.
Todavia, existe uma outra questão que a recorrente aborda nas alegações do seu recurso, sem, contudo, a transpor para as respectivas conclusões, a saber, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Não obstante esta omissão, uma vez que estamos perante questão de conhecimento oficioso, como resulta do disposto no art. 379.º, n.º 2, do CPPenal, entendemos não ser pertinente a formulação de convite ao aperfeiçoamento, conhecendo-se, desde já, da apontada nulidade.
A questão colocada pela recorrente neste segmento do recurso está, de alguma forma, relacionada com o recurso interlocutório, que é o mote para a arguição da mencionada nulidade.
A este propósito alega a recorrente o seguinte:
«Face à discordância relativamente à sua nomeação como representante da sociedade em juízo, o Sr. Administrador interpôs, em 14.07.2022 recurso, solicitando que ao mesmo fosse atribuído efeito suspensivo nos termos e para os efeitos do disposto no artigo do artigo 408.º do Código de Processo Penal.
5. Até à presente dada, a Mma Juiz a quo não se pronunciou sobre a admissibilidade do recurso interposto em 14.07.2022 nos termos definidos pelo disposto no artigo 414.º do Código de Processo Penal.
6. No entanto, proferiu sentença final em 23.09.2022.
7. Na sentença para prova da matéria de facto são relevadas as declarações do Sr. Administrador enquanto representante da sociedade arguida (página 7) da sentença.
8. Com o devido respeito, deveria a Mma juiz a quo ter proferido decisão sobre a admissibilidade do recurso interposto pelo Sr. Administrador Judicial, nomeadamente sobre o modo de subida e respetivo efeito.
9. E só após a prolação do acórdão proferir sentença.
10. Até porque o Sr. Administrador Judicial no recurso interposto suscitou a nulidade de todos os atos praticados após a sua nomeação nos termos do disposto nos artigos 1129.º alínea c) e artigo 122.º
Acresce que,
11. O artigo 57.º que previa que a sociedade não podia estar representada em juízo pelo gerente quando este também fosse arguido, foi expressamente revogado pela Lei 13/2022 de 1 de Agosto – cfr. artigo 4.
12. Face a tal revogação expressa, a pessoa colectiva arguida voltou a ser representada por quem, legal ou estatutariamente, a representa.
13. Significa que aquando da prolação da sentença de que ora se recorre já havia sido alterado a lei no sentido acima referido.
14. Nos termos do art.379.º, n.º1, al. c), do C.P.P., é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”.
15. E acrescenta o número 2 que: “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.
16. Estamos, salvo melhor entendimento, perante uma situação em que a Mma Juiz deixou de conhecer e que devia conhecer.
17. Não é uma qualquer consideração, argumento ou razão produzido pela ora recorrente.
18. Efetivamente, quando as partes põem ao tribunal determinada questão, no caso o Sr. Administrador Judicial, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista;
19. E o que importa é que o tribunal decida a questão posta;
20. O que não sucedeu.
21. Assim, houve omissão de pronúncia pelo Tribunal a quo sobre questão que devesse apreciar.
22. Em face do exposto, deve ser declarada a nulidade da sentença recorrida, que deve ser substituída por outra que se pronuncie sobre a referida questão, isto é, sobre o recurso interposto pelo Sr. Administrador Judicial em 14.07.2022 onde manifesta a sua discordância quanto à representação da sociedade arguida em juízo e pugna pela nulidade de todos os atos praticados.»

Ora, estabelece o art. 379.º do CPPenal, que a sentença é nula:
1.º - Se não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
2.º - Se condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
3.º - Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Está em causa a verificação da situação prevista na primeira parte do 3.º ponto indicado.
Porém, é entendimento jurisprudencial pacífico que as questões a que se refere a primeira parte da al. c) do art. 379.º do CPPenal são aquelas que, não estando já previstas, ou arredadas, por força da previsão do art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPPenal, o Ministério Público, os assistentes, os arguidos e as partes civis tragam à apreciação do tribunal de julgamento no âmbito do objecto do processo, ou as que, neste enquadramento, sejam de conhecimento oficioso, desde que assumam dignidade processual penal bastante para serem uma questão objecto do processo, do dissídio ou do problema concreto a decidir, como algumas nulidades ou a prescrição da responsabilidade criminal, por exemplo.

No caso em apreço, é patente que a recorrente está claramente equivocada quanto à abrangência daquele segmento normativo.
Se bem percebemos a questão colocada, terá sido por o Tribunal a quo, à data da prolação da sentença recorrida, não ter ainda admitido o recurso interlocutório apresentado por diferente recorrente, nem fixado o seu modo de subida e efeito, que omitiu pronúncia sobre questão que devia apreciar.
Salvo o devido respeito, é de elementar conhecimento jurídico que as sentenças – peça cuja nulidade foi invocada – não são o local próprio para conhecer da admissão de outros recursos.
E o pior que poderia acontecer caso, posteriormente à prolação sentença, fosse determinada a subida imediata, em separado e com efeito suspensivo do recurso interlocutório apresentado pelo administrador da sociedade insolvente, e o mesmo tivesse provimento, era ser declarada a sua nulidade para que fosse prolatada decisão em conformidade com a do Tribunal da Relação naquele recurso interlocutório, o que até implicaria a repetição do julgamento.
Mas nada disto respeita à omissão de pronúncia na sentença recorrida de questão que devesse ter sido ali apreciada.
O Tribunal a quo apreciou todas as questões que se lhe impunha analisar, tendo por certa a representação da arguida pessoa colectiva pelo Administrador de insolvência, posto que este era o único contexto jurídico, com base nos despachos que havia anteriormente proferido, com que podia contar.
E interposto o recurso interlocutório sobre esta matéria – sem prejuízo de o Tribunal a quo poder reparar o despacho recorrido, faculdade, e não imposição, decorrente do disposto no art. 414.º, n.º 4, do CPPenal, mas que sempre ocorreria em despacho autónomo, e não na sentença –, apenas o Tribunal de recurso poderia voltar a emitir pronúncia sobre a validade da representação da arguida pessoa colectiva pelo Administrador de insolvência.
Dito isto, reconhece-se que o Tribunal a quo não andou bem, pois devia ter proferido despacho de admissão/rejeição do recurso interlocutório logo após a sua apresentação, em 14-07-2022, e não apenas a 23-12-2022, quando, simultaneamente, admitiu o recurso da decisão final que ora se aprecia.
Mas essa incorrecta tramitação em nada contende com o teor da sentença e com as questões que nesta deveriam ser apreciadas. Como já se afirmou, apenas abriu a porta à possibilidade, que não se verificou – pois o recurso interlocutório sempre deveria subir a final, com o da sentença, e com efeito meramente devolutivo – de ter de ser anulada a decisão e o processado desde o julgamento.
Assim, compulsada a decisão recorrida, não se reconhece a verificação da invocada nulidade, nem qualquer outra falha que seja de conhecimento oficioso.

Relativamente à questão que é suscitada nas conclusões do recurso, de que não se mostra cumprida a condição objectiva de punibilidade prevista no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, importa esclarecer, face à posição assumida pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, que, apesar de tal questão já ter sido apreciada em sede instrução, entende-se que não está a recorrente impedida de a suscitar de novo, pois também o juiz do julgamento não está amarrado à qualificação jurídica dos factos que é realizada nas fases anteriores à de julgamento.
Por tal razão, também tomaremos conhecimento do recurso.
A questão que resta apreciar é, unicamente, a de saber quem deve ser notificado para efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT: se o administrador de insolvência se as arguidas, sendo neste caso a sociedade na pessoa dos seus legais representantes.
Resulta do processo, concretamente de fls. 11, 24, 27 e 40 e 43, que a recorrente e a sociedade A..., Unipessoal Lda., esta na pessoa da recorrente na qualidade sua legal representante, foram, cada uma, notificadas para proceder ao pagamento, no prazo de 30 dias, do valor de € 9746,20, relativo a quotizações retidas e não entregues à Segurança Social, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.
Na sequência do decidido no recurso interlocutório, é fácil perceber que à data da realização de tais notificações, muito anteriores à acusação, que data de 20-02-2020, estava em vigor regime legal em termos processuais penais que nada determinava quanto à representação das pessoas colectivas em processos crime, como resulta da redacção dos arts. 57.º e 58.º do CPPenal até à entrada em vigor da Lei 94/2021, de 21-12.
Contudo, como se deu nota no recurso intercalar, era jurisprudência relativamente estabilizada, que também perfilhamos, a que considerava que essa representação, a partir da declaração de insolvência da sociedade, incumbia ainda aos legais representantes das sociedades, até à respectiva extinção, e não aos administradores de insolvência.

Este entendimento estava, e está, em consonância com o disposto no art. 25.º, n.º 1, do CPCivil, ex vi art. 4.º do CPPenal, a que já aludimos do recurso interlocutório em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos, segundo o qual as pessoas coletivas e as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.
Relativamente às sociedades unipessoais por quotas, como é a sociedade arguida, determina o art. 270.º-E, n.º 1, do CSComerciais que o sócio único exerce as competências das assembleias gerais, podendo, designadamente, nomear gerentes.
No caso dos autos, como resulta do respectivo registo comercial e está consignado na sentença, a arguida BB exercia, à data dos factos, as funções de sócio-gerente da sociedade arguida, sendo, pois, a sua representante legal.
Por outro lado, essa função, salvo alteração estatutária mantinha-se até à extinção da sociedade.
Relevam a este propósito os arts. 146.º, n.º 2 e 160.º, n.º 2, do referido diploma legal, de acordo com os quais a sociedade em liquidação mantém a personalidade jurídica e, salvo quando outra coisa resulte das disposições subsequentes ou da modalidade da liquidação, continuam a ser-lhe aplicáveis, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas, sendo certo que a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação.
Lembra-se, ainda, que nos termos do art. 82.º, n.º1, do CIRE os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, destacando-se aí apenas que os seus titulares não são remunerados, salvo no caso previsto no artigo 227.º[5].
Nenhuma condição excepcional se verificou no caso concreto, pelo que, à data do cumprimento da notificação a que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT – que possui natureza e relevância assumidamente penal e processual penal[6], estando reconhecida como condição objectiva de punibilidade pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para fixação de jurisprudência n.º 6/2008[7], de 09-04 –, a mesma teria de ser realizada na pessoa da arguida BB a título pessoal e enquanto legal representante da A..., Unipessoal Lda., como efectivamente ocorreu.
Tal notificação não tinha, por isso, de ser realizada na pessoa do administrador de insolvência.
Neste sentido, vejam-se, entre muitos outros, nestes mesmos indicados, os acórdãos do TRL de 12-10-2011, relatado por Maria José Costa Pinto no âmbito do Proc. n.º 674/08.4IDLSB-A.L1-3, e de 13-02-2020 relatado por Cristina Branco no âmbito do Proc. n.º 566/18.9PWLSB.L1-9, do TRP de 26-01-2011 relatado por Cravo Roxo no âmbito do proc. n.º 559/07.1TALSD.P1, e de 26-10-2017 relatado por Neto de Moura no âmbito do Proc. n.º 1023/15.0T9VFR-B.P1, e do TRC de 14-10-2015 relatado por Elisa Sales no âmbito do Proc. n.º 47/13.7IDLRA.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Improcede, deste modo, a argumentação de que não está verificada no caso concreto a condição objectiva de punibilidade a que alude o art. 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, sendo de negar provimento ao recurso.
*
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:

a) - Negar total provimento ao recurso interlocutório interposto por AA e em confirmar os despachos recorridos;

b) - Negar total provimento ao recurso da sentença interposto por BB e em confirmar a decisão recorrida.

c) - Condenar os recorrentes nas custas dos recursos respectivos, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida por AA e em 4 UC a devida pela arguida recorrente (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 1.º, 3.º e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).


Porto, 07 de Junho de 2023

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)

Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Relatado por Alice Santos no âmbito do Proc. n.º 2121/13.0TACBR-A.C1, acessível in https://trc.pt/sociedades-comerciais-prestacao-de-tir/.
[3] Comentário Sobre a representação das pessoas coletivas constituídas arguidas em processo penal, Católica Law Review, Volume II, n.º 3, Novembro de 2018, págs. 103 a 111, acessível in https://revistas.ucp.pt/index.php/catolicalawreview/article/view/9102/8967.
[4] Idem.
[5] «1 - Enquanto a administração da insolvência for assegurada pelo próprio devedor, manter-se-ão as remunerações dos seus administradores e membros dos seus órgãos sociais.»
[6] E não meramente patrimonial, como decorre do disposto no art. 81.º, n.º 4, do CIRE segundo o qual o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, salientando-se no n.º 5 desse preceito (o que bem demonstra a limitação daquela representação) que a representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.
Concorda-se, pois, com a argumentação que consta do acórdão do TRL 12-10-2011, relatado por Maria José Costa Pinto no âmbito do Proc. n.º 674/08.4IDLSB-A.L1-3, acessível in www.dgsi.pt, quando afirma que «as funções do administrador da insolvência se direccionam, essencialmente, para a liquidação da massa insolvente, e, por outro, que os seus poderes de representação se restringem aos efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.»
[7] Relatado por Santos Cabral, publicado no DR I Série, n.º 94 de 15-05-2008.