Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1002/10.4TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: OBRAS NA VIA PÚBLICA
DECLARAÇÕES DE PARTE
INCONSTITUCIONALIDADE
ACTIVIDADE PERIGOSA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP201503231002/10.4TVPRT.P1
Data do Acordão: 03/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão.
II – Mas a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias.
III – Neste enquadramento será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie.
IV – Não padecendo de qualquer inconstitucionalidade este entendimento, o qual, ao invés, continua a respeitar o princípio da livre apreciação da prova.
V – O conceito de atividade perigosa – em razão de si mesma ou por causa da natureza dos meios utilizados (artigo 493, n.º 2 do CC) – tem de ser preenchido em concreto, ou seja, na generalidade das atividades, é necessário atender ao acréscimo de perigosidade que revela.
VI – Cabe ao lesado, beneficiário da presunção de culpa, demonstrar os factos reveladores da referida perigosidade.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sumário (da responsabilidade do relator): 1 – A prova por declarações de parte é apreciada livremente pelo tribunal, na parte que não constitua confissão. 2 – Mas a livre apreciação é sempre condicionada pela razão, pela experiência e pelas circunstâncias. 3 – Neste enquadramento será normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie. 4 – Não padecendo de qualquer inconstitucionalidade este entendimento, o qual, ao invés, continua a respeitar o princípio da livre apreciação da prova. 5 – O conceito de atividade perigosa – em razão de si mesma ou por causa da natureza dos meios utilizados (artigo 493, n.º 2 do CC) – tem de ser preenchido em concreto, ou seja, na generalidade das atividades, é necessário atender ao acréscimo de perigosidade que revela. 6 – Cabe ao lesado, beneficiário da presunção de culpa, demonstrar os factos reveladores da referida perigosidade.

Processo 1002/10.4TVPRT.P1
Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Carlos Querido.

Recorrente – B…
Recorridas – C…, SA e D… – Companhia de Seguros, SA

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto:

1 – Relatório
1.1 – Os autos na 1.ª instância:
B… instaurou a presente ação e, demandando as sociedades C…, SA e D… – Companhia de Seguros, SA, pediu a condenação destas no pagamento da quantia de 149.463,43€ (a título de danos patrimoniais atuais, de danos patrimoniais futuros, de incapacidade permanente geral e ainda a título de danos não patrimoniais), acrescida de juros de mora desde a citação.

A autora, fundamentando a sua pretensão, alegou ter sofrido uma queda, quando passava na Rua …, nesta cidade, queda que adveio da ruína de um passadiço metálico ali instalado pela 1.ª ré, enquanto empreiteira a quem a Câmara Municipal … havia adjudicado obras de requalificação daquela artéria. Entende que, à luz da responsabilidade civil, pode reclamar das rés a indemnização pelos danos sofridos (e que concretiza), pois a 1.ª ré é a empreiteira e transferiu para a 2.ª ré a sua responsabilidade civil, através de contrato de seguro que era, à data do evento, válido e eficaz.

A ré C… contestou. Impugnou os factos alegados pela demandante e, em particular, invocou ter cumprido as regras de segurança e sinalização exigíveis para o tipo de obra que levava a cabo, tanto mais que, ao longo desta, foi fiscalizada e nunca foi detetado qualquer vício ou irregularidade nos passadiços ali existentes. Entende que a queda da autora resultou de imprevidência dela, uma vez que passava por um local em obras e, não tendo tomado as “devidas precauções”, escorregou e caiu. Por último, considera que, atenta a transferência da sua responsabilidade, cabe à seguradora o pagamento das indemnizações reclamadas, a haver procedência da pretensão da autora.

Também a seguradora D…, SA veio contestar. Impugna, por desconhecimento, os factos alegados e defende a prescrição do direito da autora, uma vez que o sinistro aconteceu em 23.11.2007 e a contestante só foi citada em 25.11.2010. Sustenta, por outro lado, que, resultando o sinistro da violação pela empreiteira das regras de segurança (conforme versão da autora) a sua responsabilidade de seguradora está excluída, atentas as condições particulares da apólice e, sem prescindir, chama a terreno a existência de uma franquia de 10% sobre os prejuízos indemnizáveis, com um mínimo de 250,00€.

Depois de completados os articulados da autora e da 1.ª ré (despacho de fls. 145/146 e articulados de fls. 151 e 154) teve lugar a audiência preliminar, com saneamento e condensação do processo. Nessa ocasião, foi fixado o valor da causa e julgou-se improcedente a exceção da prescrição invocada pela 2.ª ré (fls. 169 e ss.). Os autos prosseguiram com a realização do julgamento e a resposta à Base Instrutória (fls. 697/707). Foi, de seguida, proferida a sentença (objeto desta apelação), a qual julgou a ação improcedente e absolveu as rés dos pedidos contra elas formulados.

1.2 – Do recurso:
Inconformada, a autora veio apelar. Pretende a revogação da sentença (quer quanto aos factos que fixou, e que ora são impugnados, quer quanto à aplicação do Direito) e formula as seguintes Conclusões (onde negritos, sublinhados, itálicos e maiúsculas são da sua autoria):
1 - Encontra-se incorretamente julgada a matéria dos arts. 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 12.º da Base Instrutória, que o Tribunal a quo deveria dar como PROVADA.
2 - O Tribunal dispunha de um vasto acervo probatório para considerar tal factualidade como PROVADA, designadamente:
a) Depoimento da Testemunha E…, considerado “isento e rigorosamente imparcial” que referiu ter visto a autora dentro de um buraco – 02:35’ -, que o “passeio tinha umas passadiças mas estava um bocado deteriorado do lado direito, onde a senhora caiu” – 03:00’ – que havia “um rasgo de fora a fora” e que era “um bocadinho fundo” pois quando a Autora caiu “ficou pelo menos pela cinta” – 08:16’ – e “a senhora estava de pé dentro do buraco – 13:15’.
b) Depoimento da Testemunha F… que relatou o que a autora lhe havia contado, ou seja, “ao passar por um passadiço para os peões, a placa de metal terá deslizado” do que resultou a queda da Autora – 04:45’.
c) Depoimento da Testemunha G… que, relatando o que a autora lhe havia contado, esclareceu: “O que ela me disse e´ que a chapa virou, e que ela virou com a chapa.” – 08:00’ - “ela explicou-me que ia a passar na Rua … e por causa das obras pôs o pé numa coisa dessas vedações e caiu redonda num buraco” – 10:00’;
d) Declarações de Parte da autora: “tinha lá´ um passadiço que estava suportado em duas caixas de pedra, penso que teriam os saneamentos ou caixas ou assim.. e aquilo oscilou e eu rodopiei e cai´.”, “Não tinha parte lateral e era ferro ou metal.” – 02:30’; “Quando rodopiei cai´ numa zona funda” – 03:15’; “estava sob um buraco e fazia a ligação entre duas caixas. Portanto tinha dois paralelepípedos assim de ferro e havia duas caixas.. e portanto ele fazia essa ligação. Naquele bocado onde eu cai´ não havia qualquer espécie de passeio.” – 04:35’; “Era uma vala e portanto cai em cima do buraco. Buraco que se mantinha pela estrada fora” – 06:45’; “O passadiço a que eu me estou a referir acompanhava a zona toda das lojas, não era um passadiço em metal, eram duas placas, placas grandes, grossas, mas que estava uma sobreposta sobre outra e devera´ ter sido isso que ocasionou a queda.” – 10:00’; “aquilo oscilou e eu cai´” – 25:00’; “A soutora já explicou que pôs o pé na placa, a placa oscilou, e a senhora desequilibrou-se e caiu. Foi assim que a senhora caiu. Pela forma que a senhora referiu.” – resumo das declarações da Autora feito pelo Mm.o Juiz em interpelação à Advogada da ré.
e) Relatório completo de Episódio de Urgência a fls. 294.
3 - Ao invés, o Tribunal deu apenas como provado que: “ao circular na dita Rua … e já depois do edifício do H…, a Autora, ao passar sobre um passadiço em metal ali existente, em circunstâncias não apuradas, veio a cair ao solo, caindo num espaço no dito arruamento que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava.” Ou seja, de um modo geral, o que o Tribunal não acolheu foi que o passadiço tivesse oscilado, porque mal colocado, donde resultou a queda da autora. E só.
4 - Pois que, deu como provado o acidente, deu como provado que o acidente ocorreu quando esta atravessava uma estrutura (passadiço) ali colocado pela ré empreiteira (art. 10.º da BI), deu como provados os danos e estabeleceu um nexo de causalidade entre o acidente e os danos.
5 - Para fundamentar a decisão, o Tribunal a quo valorizou os depoimentos das testemunhas, considerando-os credíveis, isentos e imparciais, e, não encontrando contradições nas declarações da autora, prestadas em audiência e submetidas ao contraditório, deu-lhes credibilidade – vide resposta aos arts. 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 37.º e 38.º da Base Instrutória.
6 - Considerou, no entanto, que para prova da causa concreta da queda da Autora – a questão do passadiço ter oscilado – não bastariam as declarações da parte, que necessariamente tinham que estar apoiadas noutro meio de prova objectivo e imparcial.
7 - Concordando com o resguardo que hão de merecer, sempre, as declarações de parte enquanto único meio de prova, não concordamos que, in casu, as mesmas não se mostrassem suportadas por outros meios de prova, testemunhal e documental, como supra referimos.
8 - Contudo, não podia o Tribunal impor limites injustificados aos meios de prova de que a autora dispunha, o que deve ser analisado no caso concreto. Falecendo a prova testemunhal por si requerida e que poderia ter presenciado os factos (os trabalhadores da ré´ empreiteira presentes no local dos factos cuja identificação foi trazida aos autos pela própria ré, e que declararam nada saber quanto ao acidente que vitimou a autora; autor da chamada de emergência médica, a testemunha E… que, todavia, declarou não ter visto a autora a cair, só a tendo visto já caída), falecendo a prova por documentos, através da requerida e não efectivada junção do “livro de obra”, onde pudesse estar registado o acidente que a vitimou (vide despacho constante da Ata de 17/06/2014), veio a autora requerer a prestação de declarações.
9 - Com efeito, a autora, melhor do que ninguém, sabe porque caiu, e disse-o várias vezes – “a placa oscilou” – sem que fosse, de qualquer modo, infirmada esta sua percepção. A sensação da autora, e só por si sentida, de que o passadiço - ou chapa, ou placa em metal que nesse momento atravessava – oscilou, e´ um facto pessoal que só quem efetivamente atravessasse o dito passadiço poderia constatar.
10 - O esvaziamento completo do valor probatório das declarações de parte para prova daquela factualidade afigura-se contrário à lei (por violação do disposto no art. 466, n.º 3, do CPC – livre apreciação da prova) e é a negação absoluta do direito a` prova previsto no art. 20 da CRP, assim inconstitucional. O Tribunal a quo deveria interpretar o referido art. 466, n.º 3, do CPC, no sentido em que “as declarações de parte estão sujeitas à livre apreciação do julgador e, quando integradas num acervo probatório mais vasto, são decisivas para a prova de determinados factos, pois proporcionam um material probatório necessário à prova dos factos, designadamente, daqueles factos que foram experienciados apenas pela parte.
11 - Parece-nos inconstitucional a interpretação do art. 466 n.º 3 do CPC, por violação do disposto no art. 20 n.º 5 da CRP (principio da tutela jurisdicional efetiva), no sentido de que as declarações de parte tenham que ser corroboradas por outros meios de prova. De facto, o citado dispositivo determina que este meio de prova esteja sujeito, como aliás, a prova testemunhal, ao princípio da livre apreciação da prova.
12 - Ou seja, segundo a interpretação realizada pelo Tribunal, não basta conferir credibilidade às declarações da parte que as presta, mas exige-se ainda, que as mesmas sejam secundadas por outros meios de prova. Algo que, cremos, foge ao espírito da norma, constituindo mesmo uma limitação ao exercício de um direito, e de acesso à tutela jurisdicional, constitucionalmente consagrada.
13 - Em suma, caso o Tribunal confira credibilidade à versão apresentada pela parte que prestou as declarações (como parece ter sido o caso), a norma do art. 466 n.º 3 do CPC permite-lhe fixar a matéria de facto de acordo com a convicção que lhe advier do teor daquelas declarações, independentemente de a mesma estar, ou não, “ratificada” por outros meios de prova – na maior parte dos casos, com muito menor razão de ciência e de credibilidade.
14 - Deveria, pois, o Tribunal dar como provado, pelo menos, que: “AO CIRCULAR NA DITA RUA … E JÁ DEPOIS DO EDIFI´CIO DO H…, A AUTORA, AO PASSAR SOBRE UM PASSADIC¸O EM METAL ALI EXISTENTE, QUE NESSE MOMENTO OSCILOU, VEIO A CAIR AO SOLO, CAINDO NUM ESPAC¸O NO DITO ARRUAMENTO, À SUA DIREITA, QUE SE ENCONTRAVA A UM NI´VEL INFERIOR A`QUELE EM QUE ANTES CIRCULAVA E QUE ESTAVA A SER INTERVENCIONADO PELA RE´ EMPREITEIRA.” “O ALUDIDO PASSADIC¸O OSCILOU QUANDO A AUTORA NELE SE COLOCOU PORQUE SE ENCONTRAVA MAL APOIADO”. Mais.
15 - O Tribunal, partindo de dois factos dados como provados – que a autora “ao passar sobre um passadiço em metal” caiu “num espaço no dito arruamento que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava”, deveria, ao abrigo do disposto nos arts. 349 e 351 do CC, concluir que tal espaço – a “vala”, ou “rasgo” referidos pela prova testemunhal – não se encontrava devidamente isolado, protegido ou vedado.
16 - Assim, a queda da autora para um espaço de intervenção da obra, que se encontrava a um nível inferior – “era um bocadito fundo porque eu lembro-me que a senhora... ficou pelo menos pela cinta...” – 09:30 do depoimento da Testemunha E…, porque forçosamente leva a concluir que a obra, e esse concreto buraco, não se encontrava vedado ou protegido - “caiu diretamente num buraco... Não me lembro de grade nenhuma... Se houvesse uma grade, acho que caía com a senhora.” - 04:25’, do depoimento da Testemunha E…, constitui uma violação de regras de segurança da execução da obra, por omissão culposa da ré empreiteira, geradora de responsabilidade. Pelo exposto
17 - A ré empreiteira, considerada responsável pela colocação do passadiço onde ocorreu a queda da autora (arts. 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 10.º), tinha a obrigação de cumprir com todas as regras de segurança de execução da obra, fosse impedindo que o passadiço oscilasse, fosse vedando devidamente o buraco ou “espaço a um nível inferior” onde a autora efetivamente caiu;
18 - A ré empreiteira violou, quer o direito subjetivo da autora à integridade física, quer as disposições legais de segurança e prevenção de riscos em obras de construção - art. 135, 136 e 138 do REGEU, o DL 155/95, o DL 273/2003, a Portaria 101/96 e o Decreto 41821/58 - destinadas a proteger interesses alheios, designadamente, os utentes do espaço onde as obras estavam a ser realizadas;
19 - A ré empreiteira atuou com culpa, pois podia e devia ter agido de modo diverso, cumprindo com as regras de segurança a que estava obrigada por via legal e, tratando- se de uma empresa cujo objecto social é o de realização de obras, sempre se diga que a atuação da ré empreiteira foi dolosa, pois que tinha o dever de representar a produção de acidentes como possível, ainda que a título eventual, conformando-se com essa representação;
20 - Considerando os danos provados em resposta aos arts. 8.º, 9.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 30.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 50.º, 52.º, 55.º, 56.º, 58.º, 59.º, 60.º e 61.º da BI;
21 - Os danos considerados provados são consequência típica, normal e provável da lesão, pois que a autora cai sobre o lado esquerdo do seu corpo, sentindo fortes dores com incidência no braço esquerdo (art. 8.º), tendo-lhe sido diagnosticada, de imediato, na Urgência, fractura tipo Hostein a nível do terço inferior do úmero esquerdo (14.º e 15.º), em consequência da qual resultaram todas as lesões e incapacidades melhor identificadas no relatório pericial de fls. 532 a 534 e 608 e 609, que descreve as sequelas de que a autora ficou a padecer ao nível da movimentação do seu braço esquerdo, levadas aos factos provados nos arts. 25.º, 26.º, 30.º, 31.º, 33.º, 34.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 50.º, 52.º, 53.º, 55.º, 56.º, 58.º, 59.º, 60.º e 61.º;
22 - Demonstrado, pois, o facto típico, voluntário e ilícito – a ofensa a` integridade física da autora, por violação das regras de segurança a que está a ré obrigada no exercício da sua atividade –, a culpa - enquanto conduta reprovável da ré empreiteira que “podia e devia ter agido de outro modo” -, e o nexo de causalidade entre o facto e os danos (estes bem concretizados na sentença) que a autora não teria sofrido se não fosse a lesão decorrente da queda, devera´ ser responsabilizada a ré empreiteira (e a ré seguradora para quem foi transferida a responsabilidade civil daquela). Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio,
23 - As apontadas omissões quanto a` vedação da dita obra e instalação dos passadiços correspondem à violação de elementares regras de segurança, aliás impostas, desde logo e genericamente, pelo que a tal propósito vem determinado nos arts. 135 a 137 do RGEU, o DL 155/95, o DL 273/2003, a Portaria 101/96 e o Decreto 41821/58, o que se devera´ ter por verificado. Ademais,
24 - No âmbito da responsabilidade civil prevista no artigo 493, n.º 2, do CC, devera´ cair “a atividade que, mercê de qualquer dessas duas razões (da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados), tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral”.
25 - A abertura de uma vala, sem sinalização e sem dispor de qualquer tipo de proteção ou barreira, no decurso de obras “com escavações/buracos, ao nível do saneamento” (art. 2.º) levadas a cabo numa “Rua situada na Baixa do Porto e por onde circulam muitas pessoas a pé” (art. 11.º) e em que as pessoas que por ali transitavam tinham que, obrigatoriamente, atravessar no local onde tais trabalhos estavam a ser feitos, o que tudo elevava a possibilidade do risco de ocorrerem acidentes.
26 - Dada a conjugação de todos estes factores, tudo nos leva a concluir estarmos em presença de uma atividade que se tem de qualificar como perigosa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 493, n.º 2 do Código Civil.
27 - Cabia, pois, à ré provar em juízo que adoptou todas as providências exigidas pelas circunstâncias do caso em apreço para evitar que a autora caísse na vala. Por exemplo, demonstrando que a obra estava sinalizada e que o local intervencionado a um nível inferior do solo estava resguardado com vedação ou guarda-corpos. O que não logrou fazer – vide arts. 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 62.º, 63.º, 64.º e 65.º.
28 - “O risco da “causa desconhecida” desloca-se do lesado para o lesante: - se aquele que exerce uma atividade perigosa não conseguir fazer a prova de um “caso de força maior”, responde pelos danos decorrentes de “uma causa desconhecida.”.
29 - Não demonstrando a 1.ª ré que empregou todas as providências adequadas a evitar que a Autora caísse para uma vala, nem a inexistência da aludida “conexão de perigo ou de risco” entre as obras que ali levava a cabo e os danos que a autora veio a sofrer, por via de ter caído ao solo, numa vala ou “espaço no dito arruamento que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava”, não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, tal como resulta do disposto no artigo 493, n.º 2, in fine, do Código Civil, pelo que sobre ela (e sobre a 2.ª ré, na qualidade e âmbito do contrato de seguro celebrado) recai a obrigação de indemnizarem a autora pelos danos por esta sofridos em consequência do evento danoso que esta´ na génese dos presentes autos.
29 - E´ o que a jurisprudência dos Tribunais superiores vem defendendo, como se infere dos excertos que se transcrevem: Ac. TRC, de 19/06/2013, Proc. n.º 2219/09.0TJCBR.C1: “a abertura de uma vala em si mesma, e´ atividade perigosa”; Ac. STJ, de 02/06/2009, Processo n.º 560/2001.S1: “e´ o caso (...) ou do empreiteiro que abra um buraco na via pública”; Ac. do TRP, de 14/03/2013, Proc. n.º 977/09.0TBMCN.P1: “a abertura de buracos num espaço em que não se encontrava impedido o acesso e a circulação de pessoas estranhas a` obra obrigava à perfeita vedação e sinalização dos mesmos”; Ac. do TRP, de 09/01/2007, Proc. n.º 0621929: “A atividade de escavação no solo, porque consubstancia uma acrescida probabilidade de causar danos, traduz-se numa atividade perigosa pela sua própria natureza.”; Ac. do TRP, de 27/05/2014, Proc. n.º 264/12.7TBVLG.P1: “não estando o mesmo sinalizado com indicação de obras, nem vedado o respectivo espaço, o que origina para os transeuntes e (...) uma maior probabilidade de sofrerem danos”; Ac. do TRL, de 19/02/2008, Proc. n.º 831/2008.7: “a fonte de perigo estar em plena via pública, isto e´, em espaço público por onde poderiam legitimamente circular pessoas (...) A justificação encontra-se no facto de se tratar de locais de acesso ao público, sendo justificada a exigência de um especial dever de cuidado no que concerne a` manutenção de condições que evitem quedas ou outros acidentes.”
31 - Por último, procedendo a responsabilização da ré empreiteira devera´ ser declarada a nulidade da cláusula 3.4. da condições particulares da apólice de seguro através da qual a ré empreiteira transferiu a sua responsabilidade civil para a 2.ª Ré, Seguradora, uma vez que estamos em presença de um contrato de seguro de responsabilidade civil resultante da atividade de construção, e ao pretender excluir-se das coberturas do seguro os danos consequência da inobservância de disposições legais e/ou camarárias, esvazia-se a responsabilidade da seguradora naquela que é a principal causa geradora de responsabilidade civil da ré empreiteira. Como se expendeu no douto aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 19/06/2013, Proc. n.º 2219/09.0TJCBR.C1, “atento o supra referido objecto do contrato de seguro em apreço e que uma das causas geradoras de responsabilidade civil das empresas que laboram na área da construção civil é, precisamente, a inobservância das boas práticas e normas legais e regulamentares aplicáveis a cada uma das específicas áreas que integram o conceito amplo de “construção civil”, a ter-se como válida a referida cláusula de exclusão, a responsabilidade da seguradora ficaria reduzida a “quase nada”, excluindo-a relativamente a terceiros e esvaziando de conteúdo útil o objecto e finalidade do contrato.”

Apenas a ré seguradora respondeu ao recurso (fls. 806/809). Sucintamente, defende a bondade da sentença da 1.ª instância, pois entende que os factos fixados na decisão devem ser mantidos e que, à situação dos autos, não poderá aplicar-se o preceituado no n.º 2 do artigo 493 do Código Civil, nem “funciona a responsabilidade objetiva ou pelo risco, uma vez que esta só tem aplicação nos casos tipificados na lei”.

O recurso foi recebido nos termos legais (despacho de fls. 814) e, já nesta Relação, os autos correram Vistos. Cumpre conhecer o mérito da apelação.

1.3 – Objeto do recurso:
Definido pelas conclusões da apelante, o objeto do recurso compreende as questões:
1.3.1 – Se a matéria de facto correspondente aos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 12.º da Base Instrutória deveria ter sido dada como provada, tanto mais que será “inconstitucional a interpretação do art. 466 n.º 3 do CPC, por violação do disposto no art. 20 n.º 5 da CRP, no sentido de que as declarações de parte tenham que ser corroboradas por outros meios de prova”. Em conformidade, se devia “o Tribunal dar como provado, pelo menos, que: “Ao circular na dita rua … e já depois do edifício do H…, a autora, ao passar sobre um passadiço em metal ali existente, que nesse momento oscilou, veio a cair ao solo, caindo num espaço no dito arruamento, a` sua direita, que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava e que estava a ser intervencionado pela ré empreiteira” e “o aludido passadiço oscilou quando a autora nele se colocou porque se encontrava mal apoiado”.
1.3.2 – Se, em consequência, a ré empreiteira, responsável pela colocação do passadiço onde ocorreu a queda da autora, violou, quer o direito subjetivo da autora a` integridade física, quer as disposições legais de segurança e prevenção de riscos em obras de construção - art. 135, 136 e 138 do REGEU, o DL 155/95, o DL 273/2003, a Portaria 101/96 e o Decreto 41821/58 - destinadas a proteger interesses alheios.
1.3.3 – Se a atividade levada a cabo pela empreiteira tem de ser qualificada como perigosa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 493, n.º 2 do Código Civil.
1.3.4 – Se, a proceder a responsabilização da ré empreiteira, deverá ser declarada a nulidade da cláusula 3.4. da condições particulares da apólice de seguro através da qual esta transferiu a sua responsabilidade civil para a Seguradora.

2 – Fundamentação
2.1 – Fundamentação de facto:
Sem prejuízo da apreciação da questão referida em 1.3.1 (mas atendendo, desde logo, que com a impugnação, a recorrente pretende que sejam dados como provados factos que assim não foram considerados, uma vez que receberam a resposta conjunta e restritiva, que ora sublinhamos) transcrevemos a matéria de facto considerada na sentença recorrida:
1 – A ré C…, SA havia transferido a sua responsabilidade civil perante terceiros, decorrente dos danos causados em consequência da sua atividade de construção civil e obras públicas, para a sociedade I…, SA, mediante o contrato titulado pela apólice n.º ../……, contrato esse constante de fls. 78/84 e cujo teor se dá como reproduzido – alínea A.
2 – A I…, SA foi, em novembro de 2009, incorporada na D… – Companhia de Seguros, SA, ora ré – alínea B.
3 – No dia 23.11.2007, após as 10 horas da manhã, a autora circulava a pé na Rua …, na cidade do Porto, pelo lado esquerdo da dita rua, atento o sentido ascendente, em direção à … – art. 1.º.
4 – Na dita Rua … estavam a ser realizadas obras de requalificação do arruamento, encontrando-se, pelo menos em parte do dito arruamento, o piso revolto e a terem lugar intervenções, com escavações/buracos, ao nível do saneamento da dita rua – art. 2.º.
5 – Tais obras foram adjudicadas à ré C…, SA – art. 3.º.
6 – Ao circular na dita Rua …, e já depois do edifício do H…, a autora, ao passar sobre um passadiço de metal ali existente, em circunstâncias não apuradas, veio a cair ao solo, caindo num espaço, no dito arruamento, que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava – arts. 4.º, 5.º, 6.º e 7.º.
7 – A autora sentiu logo fortes dores, em toda a parte esquerda do corpo, sobre a qual caiu e que embateu no chão, com uma forte incidência no braço esquerdo – art. 8.º.
8 – A autora permaneceu no local e imóvel até à chegada do INEM – art. 9.º.
9 – O passadiço antes referido foi ali instalado pela empreiteira ré, que realizava os trabalhos na dita Rua … – art. 10.º.
10 – A Rua … é uma rua situada na Baixa do Porto, e por onde circulam muitas pessoas a pé – art. 11.º.
11 – Na dita rua, e durante a obra levada a cabo pela ré, existiam vários passadiços em metal, alguns dos quais se destinavam a permitir a passagem para o interior das lojas / estabelecimentos comerciais ali em funcionamento – art. 13.º.
12 – A autora deu entrada na Urgência do Hospital de Santo António às 11H25 do dia 23.11.2007 – art. 14.º.
13 – Foi ali observada e radiografada, tendo-lhe sido diagnosticada fratura tipo Holstein a nível do terço inferior do úmero esquerdo, que exigia cirurgia – art. 15.º.
14 – Após feita a imobilização por tala gessada, a autora foi transferida para o Hospital Pedro Hispano, onde se manteve internada – art. 16.º.
15 – A autora veio a ser submetida a cirurgia em 27.11.2007 – fixação interna por placa DCP e parafusos – art. 17.º.
16 – No pós operatório, esteve imobilizada com gesso, durante cerca de seis semanas e meia – art. 18.º.
17 – Posteriormente, passou a ser acompanhada em consulta externa naquele mesmo Hospital Pedro Hispano – art. 19.º.
18 – Observada e radiografada em 18.02.2008, a autora apresentava consolidação óssea sem alterações neurovasculares e foi encaminhada para Fisioterapia – art. 20.º.
19 – Entre março de 2008 e maio de 2009, efetuou tratamentos de fisioterapia – art. 21.º.
20 – Nesse período, motivada pelas dores e limitação funcional que, não obstante, continuava a sentir, a autora efetuou tratamentos de acupuntura – art. 22.º.
21 – Observada por Ortopedia, em maio de 2009, a autora apresentava: - Rigidez do cotovelo esquerdo com ângulos de 20-130 graus e com pronosupinação livre; - Ombro esquerdo com artrose da acrómio-clavicular e esclerose do troquiter, mas com dores a movimentos de levar a mão à nuca e ombro; - Perda de forças MSE com parestesias do cutâneo braquial, confirmada por eletromiografia – art. 23.º.
22 – Observada por Ortopedia e Traumatologia, em 23.09.2009, apresentava: - Morfo-anatomia alterada por existência de cicatriz a nível do braço e cotovelo esquerdos; - Cotovelo esquerdo fazendo uma extensão de – 30 graus até uma flexão ativa/passiva de 120 graus; -Défice de força de extensão e de abdução do polegar esquerdo; - Ombro esquerdo: muito ligeira limitação da rotação externa, despertando ligeira dor de stress dos últimos graus de movimento; - garra manual e/ou força de preensão da mão esquerda limitadas em relação ao lado contra lateral; - Cicatriz lateral em S itálico, a nível da face lateral do braço e do cotovelo esquerdos, com cerca de 17 cm de comprimento, não aderente aos planos profundos, que atinge os dois terços inferiores do braço, até ao cotovelo; - Força de preensão e garra manual limitada à esquerda – art. 24.º.
23 – A autora sente, ainda hoje, dificuldades acrescidas para tratar da sua higiene pessoal, para lavar o rosto, para se pentear e para agarrar com a mão esquerda em objetos pesados e transportá-los – art. 25.º.
24 – A autora tem dificuldades acrescidas para realizar tarefas domésticas, quer na cozinha, quer na limpeza ou tratamento de roupas, que exijam o levantar do braço esquerdo acima da cabeça – art. 26.º.
25 – A autora era uma pessoa ágil e expedita – art. 30.º.
26 – Passou a necessitar de assistência doméstica acrescida, para a realização de tarefas domésticas (preparação de refeições e limpezas) – art. 33.º.
27 – A autora, após o acidente, efetuou tratamentos em endocrinologia e para redução do seu peso – art. 34.º.
28 – A autora esteve ausente do trabalho nos períodos compreendidos entre 23.11.2007 e 27.12.2007 e entre 2.01.2008 e 30.01.2008 – art. 35.º.
29 - ... tendo-lhe sido descontadas as quantias de 191,09€ e 173,86€, respetivamente respeitantes a subsídio de refeição e abono para falhas – art. 36.º.
30 – Na sequência do seu transporte para o Hospital, após o acidente, a autora perdeu um dos sapatos que calçava, calçado este (par) de valor não concretamente apurado – art. 37.º.
31 – Na urgência, porque necessário à observação e tratamentos médicos subsequentes, foram inutilizadas duas peças de roupa que a autora vestia: uma camisola de gola alta e um casaco de malha, cujo valor não foi possível apurar – art. 38.º.
32 – A título de taxas moderadoras, despendeu a quantia total de 38,40€ - art. 39.º.
33 – Com o apoio doméstico, apenas algumas horas por semana (limpeza, higiene pessoal e confeção de refeições), a autora despendeu, até hoje, uma quantia média mensal de 250,00€ - art. 45.º.
34 – A autora sentiu fortes dores nos momentos que se seguiram ao acidente e até à cirurgia e ao longo de todo o pós operatório – art. 46.º.
35 – Essas dores ascenderam ao grau 5 em 7 – art. 47.º.
36 – A autora ainda hoje sente dores, e continuará a sentir – art. 48.º.
37 – A autora vê a sua imagem pessoal prejudicada pela cicatriz que possui no seu braço esquerdo, com cerca de 19 cm de comprimento – art. 50.º.
38 – O dano estético sofrido pela autora situa-se no nível 2, numa escala de 1 a 7 – art. 52.º.
39 – A autora está limitada em alguns movimentos do braço esquerdo, tendo dificuldades acrescidas para elevar esse braço ao nível da face – art. 55.º.
40 – A autora tem grandes dificuldades para agarrar ou transportar objetos com a mão esquerda, em especial objetos pesados (de peso superior a 5Kg) – art. 56.º.
41 – É provável que se verifique algum agravamento das ditas sequelas, sem que seja, porém, possível, à data, quantificar esse agravamento – art. 58.º.
42 – A autora sofre de um “deficit” funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável (numa escala de 1 a 100) em 13 pontos – art. 59.º.
43 – A autora necessitará de ser apoiada, no seu domicílio, na realização das lides domésticas e higiene pessoal, até à sua morte – art. 60.º.
44 – O que ascende a uma despesa mensal de 250,00€ - art. 61.º.
45 – Alguns dos passadiços colocados na zona da obra eram em metal, com pavimento antiderrapante, possuindo guarda corpos e com várias dimensões em termos de largura e comprimento – art. 64.º.
46 – Os ditos passadiços estavam assentes sobre o chão – art. 65.º.

2.2 – Factos a atender e, Aplicando o Direito, as suas consequências e a natureza (perigosa ou não) da atividade levada a cabo pela 1.ª ré.
1.3.1 - Se a matéria de facto correspondente aos artigos 4.º, 5.º, 6.º, 7.º e 12.º da Base Instrutória deveria ter sido dada como provada, tanto mais que será “inconstitucional a interpretação do art. 466 n.º 3 do CPC, por violação do disposto no art. 20 n.º 5 da CRP, no sentido de que as declarações de parte tenham que ser corroboradas por outros meios de prova”.

Em sede de considerações gerais, deixamos dito que o nosso regime processual civil, desde há muito, admite a competência das Relações para o julgamento de direito e de facto, competência que distingue, nessa amplitude, a apelação da revista, o tribunal que funciona como segunda instância e o Supremo. Com efeito, já no domínio do Código de Processo Civil (CPC) que precedeu o que, com alterações múltiplas, foi vigente até 31.08.2013, as decisões do tribunal colectivo sobre a matéria de facto podiam ser modificadas quando do processo constassem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão, quando os elementos fornecidos pelo processo impusessem, sem possibilidade de contradição por qualquer outra prova, uma decisão diferente e, por último, nos casos de apresentação de documento novo e superveniente, documento por si bastante à destruição da prova que havia fundado a decisão da primeira instância[1].

O regime acabado de referir manteve-se consagrado no CPC de 1961 e as suas alterações só adquiriram relevante significado quando se assumiu processualmente o chamado duplo grau de jurisdição em matéria de facto. Visando a sua efetivação, o Decreto-Lei n.º 39/95, de 15.02, consubstanciou, além de outras alterações, a do artigo 712 do CPC[2] e aditou o artigo 690-A do mesmo diploma, ao mesmo tempo que deixa plasmado no seu preâmbulo que se pretendeu regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências, permitindo alcançar um triplo objectivo: Em primeiro lugar, a criação de um verdadeiro e efetivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, pois considerava o regime vigente insuficiente, porquanto a relação, apesar de teoricamente conhecer de facto e de direito, se limitará, para além de reapreciar questões puramente jurídicas, a uma mera cassação de vícios lógicos ou intrínsecos patentes face ao texto da própria decisão recorrida e seus fundamentos, sendo, porém, perfeitamente inviável, perante o estatuído no artigo 712.º que o erro, ainda que manifesto, na livre apreciação das provas possa ser sindicado pelo tribunal para determinar a anulação do julgamento. Em segundo lugar, o legislador entende que o registo dos depoimentos é idóneo para afrontar o clima de quase total impunidade e da absoluta falta de controlo que envolve o possível perjúrio do depoente e, por último o registo da prova é apresentado como instrumento adequado para satisfazer o próprio interesse do tribunal e dos magistrados que o integram.

O mesmo diploma, no entanto, considerava que o novo regime não deverá redundar na criação de fatores de agravamento da morosidade da justiça civil. Importava prevenir e minimizar os riscos de perturbação do andamento do processo, procurando adoptar um sistema que realizasse o melhor possível o delicado equilíbrio entre as garantias das partes e as exigências de eficácia e celeridade do processo de modo a obviar que o aparente reforço daquelas pudesse redundar na violação do fundamental e básico direito à obtenção de uma decisão final em prazo razoável. E esclarece o que tantas vezes é citado e deve ser sublinhado: a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, pontos que, por isso, o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso. Ou seja – e voltamos a transcrever – não podia admitir-se como sendo lícito ao recorrente que este se limitasse a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido. Dito de outro modo, A consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente[3], no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

O duplo grau de jurisdição em matéria de facto, no sentido e limites com que deve ser entendido, resultava explicitado numa leitura conjugada dos artigos 690-A e 712 (na redação anterior), abrangendo as situações que o CPT/39 já admitia, e as possibilidades posteriores, resultantes, em especial, da gravação da prova. Com efeito, esclarecia aquele segundo preceito, que a possibilidade de alteração da (decisão sobre a) matéria de facto devia acontecer quando, justificando-se em concreto, “a) do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida; b) os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; c) o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou”. E o recurso que pretendesse impugnar a matéria de facto havia de especificar, sob pena de rejeição, e assim onerando o recorrente, “a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida” (artigo 690-A, nº 1, do CPC).

Como já se mostrava claro no preâmbulo do diploma que consagrou o duplo grau de jurisdição em matéria de facto, os ónus impostos ao recorrente que pretenda sindicar o julgamento da matéria de facto têm por fim combater uma indiscriminada e vaga manifestação contrária a esse julgamento, obrigando a uma precisa e concreta tomada de posição quanto aos aspetos que entendia mal apreciados, acrescendo a necessária indicação dos meios de prova que deviam ter conduzido a julgamento diferente e, além disso, havendo gravação da prova, com referência ao assinalado, para cada depoimento, na ata respectiva.

Já então seria legítimo dizer-se que, na ponderação das razões de oneração do recorrente, mas na aceitação do chamado duplo grau de jurisdição, a referência aos meios probatórios que impunham decisão diversa não tem que ser entendida, ou entendida apenas, para os casos de provas contrárias ou depoimentos conflituantes, numa espécie de cotejo das versões, em busca da maior credibilidade, quando não da menor descrença; se é certo que assim sucede muitas vezes, a impugnação da matéria de facto continua a fazer sentido para quem nem sequer apresentou prova, mas, beneficiando de não ser onerado, pretende que se reveja a decisão para a qual contribuiu apenas a prova da outra parte. Com efeito, nem toda a prova tem o mesmo valor e alguma, mesmo não tendo sido feita a prova contrária, pode não ter valor suficiente. Neste contexto, não há propriamente (outros) meios de prova que imponham solução diversa e a indicação daqueles que, no entendimento de quem recorrente, se mostram precários (contraditórios, sem direto conhecimento dos factos, com esquecimentos seletivos, etc., etc.) cumpre o ónus que lhe era – e é - exigido.

Seja como for, importa ter presente que a eventual modificação da matéria de facto ocorre num recurso e não – propriamente – num segundo julgamento. É que duplo grau não é repetição, mesmo quando é reapreciação, e as provas foram produzidas num tempo e num modo que se tem por adquirido, sob pena de uma busca infrutífera à (inexistente) verdade absoluta. Acresce que a 1.ª instância tem factores de ponderação relevantes que a Relação não possui[4], dos quais será de destacar a imediação. Em suma, o labor da Relação deve orientar-se para a deteção do erro de julgamento na decisão da matéria de facto, não chegando a essa classificação qualquer divergência na valoração da prova[5].

O que acabámos de dizer continua a ser verdade nos dias atuais, e depois da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, mas a expressão (de – apenas – busca do erro de julgamento) não deve ter o acolhimento que corresponda a uma visão restritiva da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, porquanto, conforme já se anotou (nota 5) a Relação forma a sua própria convicção sobre as provas que reaprecia. E o novo diploma legal veio explicitar este último entendimento, já seguido por muitas decisões jurisprudenciais.

A modificabilidade da decisão de facto encontra-se hoje prevista no artigo 662 do CPC. De acordo com o seu n.º 1, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. O recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto continua onerado, agora nos termos do artigo 640 do CPC, em moldes pouco diversos do que já anteriormente lhe seria exigido[6], e numa “manifestação especial do princípio da cooperação para a descoberta da verdade[7]”, apresentando-se como essencial que o discordante fundamente a sua impugnação, esclareça o porquê de dever dar-se como provada ou como não provada determinada factualidade[8], mas o citado artigo 662 do CPC vem dar outra abrangência ou, pelo menos, clarificar os propósitos da modificabilidade da decisão de facto.

Atualmente – e de acordo com o preceito por último citado –, a Relação (não apenas pode) deve alterar a matéria de facto, verificadas as circunstâncias legalmente previstas. Assim, “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis”[9].

E, se é verdade que a reapreciação da matéria de facto continua a “não poder confundir-se com um novo julgamento”, se “a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro deve proceder à correspondente modificação da decisão.”[10]

Importa, de seguida, apreciar a concreta impugnação da recorrente. Antes disso, ainda assim, e porque pertinente ao caso em análise, cumpre perceber qual o sentido e o valor do depoimento pessoal, o seu enquadramento processual e também – assim se apreciando a inconstitucionalidade invocada pela apelante – se a exigência de outras (diferentes) provas corroborantes desse depoimento pessoal, como condição da sua valoração relevante, viola a previsão do artigo 20, n.º 5 da Constituição (CRP).

Permitimo-nos iniciar esta apreciação com duas citações, que só à primeira vista serão alheias ao Direito, e que, valendo para toda a prova dependente diretamente da lembrança humana, realçam a dificuldade da certeza e a inerente necessidade de balançar a “verdade” com as imperfeições da memória. A primeira é de Philip Roth e aparece na sua Autobiografia de Um Romancista: “É claro que os factos nunca vêm ter connosco assim, sem mais nem menos, antes são incorporados por uma imaginação que é formada pela nossa experiência anterior. As recordações do passado não são recordações de factos mas recordações da nossa imaginação dos factos.[11]” A segunda é de Cícero e refere, em contraposição aos que consagram teorias determinadas e por coerência a elas defendem ideias que não costumam dar-se ao trabalho de demonstrar, que se limita “a procurar o provável e penso que não podemos ir mais além do verosímil (...)[12]”[13].

Acautelados pelas citações antecedentes, regressemos ao depoimento pessoal.

O depoimento pessoal (e assim o identificamos para destrinça com o depoimento de parte), ou seja, a prova por declarações de parte, surgiu com a entrada em vigor da Lei 41/2013, de 26 de junho, estando previsto no artigo 466 do atual Código de processo Civil (CPC). Na Exposição de Motivos do diploma faz-se-lhe referência e esclarece-se que, agora se prevê “a possibilidade de prestarem declarações em audiência as próprias partes, quando face à natureza pessoal dos factos a averiguar tal diligência se justifique, as quais são livremente valoradas pelo juiz, na parte em que não representem confissão”.

O novo meio probatório corresponde ao acolhimento da “possibilidade de a parte se pronunciar, a requerimento próprio, sobre factos que lhe são favoráveis, com intencionalidade probatória, restrita porém a factos de direta e pessoal intervenção da parte ou do seu direto conhecimento[14]”.

Efetivamente, o CPC atual manteve o “regime tradicional”, desde logo o relativo ao depoimento de parte, mas acrescentou esta previsão, ou seja, a “possibilidade de as próprias partes tomarem a iniciativa de prestação de declarações”, ainda que com “carácter facultativo, na medida em que é a própria parte que se oferece para depor, requerendo a prestação de declarações (art. 466.º 1)[15]”. Trata-se, assim, de “algo muito diferente[16] do depoimento de parte.[17]”

Sobre o valor probatório das declarações de parte – e é isso mesmo o que aqui, essencialmente, está em causa – o n.º 3 do artigo 466 do CPC esclarece que “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”, ou seja, num caso e noutro (isto é, na afirmação dos factos favoráveis ou no reconhecimento dos factos desfavoráveis) o regime valorativo é igual ao do depoimento de parte[18] e, substantivamente, à (prova por) confissão[19].

Atendendo à “natureza essencialmente supletiva”[20] das declarações de parte, vários autores, direta ou indiretamente, apontam a sua “previsível insuficiência probatória” ou fraca fiabilidade[21]”. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, distinguindo a validade do meio de prova da sua suficiência, referem[22] que “A experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por esta razão, compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente.” Paulo Pimenta realça a natureza supletiva da prova por declarações de parte, dizendo que será um meio a que as partes recorrerão “nos casos em que, face à natureza pessoal dos factos a averiguar, pressintam que os outros meios probatórios usados não terão sido bastantes para assegurar o convencimento do juiz.[23]”. Luís Filipe Pires de Sousa[24], abordando a valoração das declarações prestadas pelas partes, quando não constituam confissão, remete para considerações aplicáveis ao próprio depoimento testemunhal (necessidade de valorar primeiramente a declaração da parte e só depois a pessoa da parte; ponderação da expectável coerência das declarações e da afirmação do detalhe) e prossegue: “Um segundo parâmetro particularmente relevante é o da existência de corroborações periféricas que confirmem o teor das declarações de parte”, corroborações que “consistem no facto das declarações de parte serem confirmadas por outros dados que, indiretamente, demonstrem a veracidade da declaração.”[25]

Feitas as considerações anteriores, justifica-se que concluamos que as declarações de parte, previstas no artigo 466 do atual CPC, são um meio de prova legalmente admissível e pertinentemente adequado à prova dos factos que sejam da natureza que ele mesmo pressupõe (factos em que as partes tenham intervindo pessoalmente ou de que as partes tenham conhecimento direto). Tais declarações são apreciadas livremente pelo tribunal (466, n.º 3 do CPC) e, nessa apreciação, engloba-se a sua suficiência à demonstração do facto a provar.

A afirmação, perentória e inequívoca, de as declarações das partes não poderem fundar, de per si e só por si, um facto constitutivo do direito do depoente, não é correta, porquanto, apresentada sem qualquer outra explicação, não deixaria de violar, ela mesma, a liberdade valorativa que decorre do citado n.º 3 do artigo 466 do CPC. Mas compreende-se que, tendencialmente e como não deixam de afirmar os autores anteriormente citados, as declarações das partes, sem qualquer corroboração de outra prova, qualquer que ela seja, não apresentem, ainda assim, e sempre num juízo de liberdade de apreciação pelo tribunal, a suficiência bastante à demonstração positiva do facto pretendido provar.

Neste contexto de suficiência probatória, e não propriamente de valoração negativa e condicionada da prova (e só assim pode ser, respeitando o princípio que se consagra no artigo 466, n.º 3 do CPC) parece-nos claro que nunca pode estar em causa a violação da norma constitucional que salvaguarda a tutela efetiva do direito (artigo 20, n.º 5 da CRP). Poderíamos mesmo dizer (perspetivando de modo inverso o problema) que [também] a admissão da prova por declaração de parte num sentido interpretativo de onde decorresse, em qualquer circunstância, a prova dos factos constitutivos do direito invocado por mero efeito das declarações favoráveis não deixaria de violar a norma constitucional, na medida em que, num processo de partes como é o processo civil, deixaria sem possibilidade de defesa – e aí, sem tutela efetiva – a parte contrária.

Decorre do antes avançado, que sempre será a consagrada liberdade de apreciação da prova o fio de prumo que estabelece o equilíbrio dos interesses tutelados, quer, desde logo, constitucionalmente, mas igualmente em sede infraconstitucional. Nesta compreensão importa ter presente que, sempre que falamos em liberdade de apreciação, nunca é bastante a reflexão abstrata e sempre se coloca em equação o caso concreto. E como, desde logo, no caso que aqui apreciamos, o tribunal julgou segundo a sua liberdade (exigindo mais ou menos corroboração das declarações da parte, o que é ainda liberdade de apreciação) afastamos claramente a invocada eventual inconstitucionalidade[26], que aconteceria, isso sim, em violação do “direito à prova”[27], se as declarações de parte fossem apenas valoradas quando revelassem factos desfavoráveis[28].

Entendemos que a recorrente cumpriu cabalmente o ónus de quem impugna a matéria de facto, salientando as razões da sua discordância e o sentido das respostas que deviam ter sido dadas. Por isso, importa apreciar, agora em concreto, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

Defende a autora que os pontos de facto 4 a 7 da Base Instrutória (“4 - ... Pouco depois de passar pelo edifício do H…, a Autora iniciou a travessia de um passadiço/plataforma, em metal, que ali se encontrava para permitir a passagem de peões, pois que o solo se encontrava remexido? 5 - No momento em que a Autora colocou o seu pé sobre o passadiço/plataforma, este oscilou, num movimento descendente e ligeiramente para o lado direito? 6 - Vindo a ruir pelo canto superior direito (em relação à posição da Autora), sofrendo, simultaneamente, uma inclinação tal que a Autora não teve como se equilibrar, rodopiando e caindo no chão sobre o seu lado esquerdo? E 7 - A Autora caiu para o “meio” da rua, ou seja, a parte habitualmente destinada ao trânsito automóvel, que se encontrava totalmente esburacada e num plano bastante inferior?”) bem como o seu ponto 12 (“O aludido passadiço encontrava-se “mal apoiado/colocado/instalado", pois que oscilou apenas com o peso da Autora, quando esta sobre ele se colocou?”[29]) deviam ter obtido uma resposta (integralmente) positiva, ao contrário do decidido na 1.ª instância que, de forma restritiva e conjunta, respondeu aos primeiros (provado apenas) “que ao circular na dita Rua … e já depois do edifício do H…, a Autora, ao passar sobre um passadiço em metal ali existente, em circunstâncias não apuradas, veio a cair ao solo, caindo num espaço no dito arruamento que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava” e respondeu “não provado” ao 12.

Sucintamente, e como decorre das suas conclusões, a apelante entende que deviam ter sido outras as respostas do tribunal recorrido, porquanto “dispunha de um vasto acervo probatório para considerar tal factualidade como provada, designadamente: Depoimento da testemunha E… (...) de F… que relatou o que a autora lhe havia contado (...) da testemunha G… que, relatando o que a autora lhe havia contado, esclareceu (...) Declarações de Parte da autora (...) Relatório completo de Episódio de Urgência a fls. 294”. E acrescenta que o tribunal “valorizou os depoimentos das testemunhas, considerando-os credíveis, isentos e imparciais, e, não encontrando contradições nas declarações da autora, prestadas em audiência e submetidas ao contraditório, deu-lhes credibilidade”, mas, no entanto, entendeu que, “para prova da causa concreta da queda da Autora – a questão do passadiço ter oscilado – não bastariam as declarações da parte, que necessariamente tinham que estar apoiadas noutro meio de prova objectivo e imparcial”.

O tribunal recorrido, na fundamentação das respostas dadas, deixou escrito o que ora se sintetiza e sublinha: “(...) quanto à matéria do art. 1.º ponderou o depoimento da testemunha E…, que viu a Autora pouco tempo após a sua queda ao solo (sem, no entanto, ter assistido à queda) e que promoveu a chamada do INEM. A testemunha, de forma isenta e rigorosamente imparcial, relatou o que viu no local, nomeadamente a situação da Autora e a sua posição no dito arruamento, confirmando também que junto ao «passeio» do lado esquerdo, no sentido ascendente e em direção à …, existiam uns passadiços em metal, embora sem precisar as suas exatas dimensões, assim como um rasgo, com profundidade que não conseguiu precisar, em sentido longitudinal em relação à Rua … (...) quanto à matéria constante das respostas aos arts. 4.º, 5.º, 6.º e 7.º (e 66.º) ponderou o tribunal o citado depoimento da testemunha E…, conjugando, ainda, esse depoimento com a informação do Hospital de Santo António (para onde a Autora foi transportada pelo INEM) a fls. 294 (relatório completo de episódio de urgência). No que se reporta às exatas circunstâncias em que ocorreu a queda da Autora [sublinhado do tribunal recorrido] porém, não foi possível ao tribunal apurar as mesmas pois que, como se evidencia de forma expressa dos depoimentos de todas [negrito do tribunal recorrido] as testemunhas inquiridas nenhuma assistiu à queda. A testemunha O… (elemento que fazia parte da equipa do INEM), naturalmente, não assistiu ao mesmo, mas, além disso, não se recordava de nada relacionado com o sinistro; as testemunhas J…, K… (funcionário da Ré e que trabalhou na obra), L… (diretor de produção na obra) e M… nenhum conhecimento revelaram do acidente, vindo a saber apenas da sua ocorrência vários meses após o mesmo e após participação da Autora. Relativamente a` testemunha N… (empregada doméstica e que trabalha para a Autora e sua família) também a mesma nada revelou saber do acidente. As demais testemunhas, F…, filho da Autora, e G…, irmã da Autora, também confirmaram, de forma expressa, não conhecerem as circunstâncias do acidente, sendo certo que apenas contactaram a Autora quando esta já se encontrava no Hospital. Desta forma, o seu depoimento, na parte respeitante ao acidente, teve por base, como aliás as testemunhas referiram expressamente no seu depoimento, a versão da Autora (...). Em suma (...) nenhuma prova foi produzida quanto às circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, ou seja o que, concretamente, motivou a queda da Autora, qual a causa da dita queda. É certo, que foram tomadas declarações de parte à Autora, e nestas, a Autora, naturalmente, confirmou «expressis verbis» a sua alegação. No entanto, ter-se-á de convir que, inexistindo um qualquer outro meio de prova objectivo e imparcial que suporte a demonstração da factualidade controvertida, não são, manifestamente, suficientes, para colmatar a sobredita ausência absoluta de prova [negrito do tribunal recorrido] apenas e só as declarações da parte que, naturalmente, esta´ pessoal e emocionalmente envolvida no litígio e para quem o mesmo litígio e a sua sorte representa sempre um seu interesse (na decisão favorável do pleito). E, por via de tudo isto, não resultaram provadas as circunstâncias em que ocorreu a queda da Autora e provada a sua concreta causa, matéria sobre a qual o tribunal não formou, pelo exposto, a necessária e segura convicção. Por via, ainda, do antes exposto, e como consequência lógica dessa ausência de prova, não resultou provada a matéria do art. 12.º da BI (...) quanto à matéria dos arts. 10.º, 11.º e 13.º ponderou o tribunal os depoimentos das testemunhas J…, K…, L… e M… (representante do dono da obra), todos confirmando a colocação dos passadiços pela Ré enquanto empreiteira, assim como confirmando que o local é muito frequentado por peões, situando-se numa rua comercial da baixa da cidade do Porto, facto aliás que é de conhecimento geral e notório (...) No que se refere a` matéria dos arts. 37.º e 38.º ponderou o tribunal o depoimento das testemunhas F.…, filho da Autora, G…, irmã da Autora, que confirmaram tais factos, assim, como em complemento, as próprias declarações da Autora, que os explicitou de forma mais pormenorizada. Relativamente a` matéria dos arts. 62.º e 63.º, a mesma não resultou provada porquanto embora as testemunhas J…, M… e L… se tenham referido a` sinalização existente em obra e à existência de um projeto de sinalização, certo e´ que, não só não souberam precisar, de forma concreta e rigorosa, a exata sinalização presente, sendo certo, ainda, que nenhuma das fotografias juntas (incluindo as constantes dos elementos enviados pela empresa de fiscalização – vide CD ROM junto a fls. 259-260) e´ ilustrativa da alegada sinalização, assim como não foi junto qualquer projeto de sinalização (...). Relativamente já à matéria constante dos arts. 64.º e 65.º ponderou o tribunal o depoimento das aludidas testemunhas J…, M… e L…, conjugando estes depoimentos com as várias fotos juntas aos autos a fls. 193, 197, 201, 218, 269 e 270 e contidas no CD ROM a fls. 259-260, fotos ilustrativas dos vários tipos de passadiços existentes e da sua colocação no solo”.

Na reapreciação da prova, ponderámos os documentos juntos aos autos, concretamente o Relatório completo de episódio de Urgência[30] e as fotografias e colhemos as seguintes notas dos depoimentos (testemunhais) e da autora[31], que ora sintetizamos:
1 – O…. Técnico do INEM. Ficheiro 20140612103002 – 517444 – 2175860.
A única informação a que teve acesso (e agora, por outra testemunha[32]) é que a equipa (do INEM) tinha socorrido uma senhora, mas o episódio não é recente (min. 2,00) e não se recorda; olhando a senhora – que seria a socorrida – “não lhe diz nada” (4,20).
2 – F…. Produtor Audiovisual. Filho da autora. Ficheiro 2014061210. Não assistiu ao acidente e viu a mãe a primeira vez no dia seguinte, já no Hospital Pedro Hispano, pois na ocasião (do acidente) estava em Lisboa. Foi-lhe dito que a mãe estava a descer a Rua … e ao passar um passadiço a placa terá deslizado e a mãe caiu, mais “pormenores não sabe”... mas tem ideia que não havia gradeamento de proteção (min. 6,00). A rua em causa é de muito movimento e – na altura – não estava impedida a passagem de peões[33]. Quanto ao vestuário estragado no acidente, deve ter sido o que mãe levava vestido, mas não sabe concretizar, pois não estava com ela (19,30). As fotografias (que vieram juntar aos autos) foram tiradas no fim de semana a seguir ou no seguinte a este, pela testemunha e pela tia, irmã da mãe (23,00). Foi confrontado com as fotografias, mas não consegue precisar se foram as por si tiradas: as que tirou foi à rua (27,00). Entretanto, a mãe reformou-se (34,30).
3 – J…. Engenheiro Civil. Trabalhou na C… até janeiro de 2008. Na altura fazia parte do corpo técnico da obra (Diretor Técnico da Empreitada). Ficheiro 20140612112131. Ia à obra todos os dias, mas não a toda a hora. Não viu o acidente. Não se recorda quando teve conhecimento (do acidente), mas – apenas – admite que a empresa teve conhecimento. A testemunha não era o responsável pela segurança (4,30). Era uma obra completa de infraestruturas, a rua estava a ser intervencionada, era um estaleiro. De certeza que havia trabalhadores na obra, aquando do acidente. A empreitada era seguida pelo dono da obra, também na parte da segurança e com registo diário de atividades (7,00). Não sabe do acidente e conclui que alguém o terá comunicado ao dono da obra; a Q… era a empresa que fazia a fiscalização, para o dono da obra (9,00)[34]. Quando são informados de qualquer desconformidade de segurança, corrigem. No dia do acidente não haveria problemas (de segurança) pois, de contrário, a obra estaria parada (17,00). Não se lembra, em concreto, mas a fiscalização era diária, ou seja, pelo menos no dia anterior, tinham de ter garantidas as condições (de segurança) para avançar com a obra (21,00). Os passadiços que recorda tinham grades laterais e, se estavam na obra, tinham sido aprovados; os peões passavam por caminhos sinalizados, quando não havia passeios (27,00).
Não consegue precisar qual a zona da obra onde decorriam os trabalhos e tem ideia do acidente em razão de uma reclamação (34,30). Não consegue precisar a sinalização então existente, mas ela não tinha que estar ao longo de toda a empreitada (39,00).
A obra era controlada diariamente e todo o material de segurança era previamente fiscalizado pelo responsável de segurança (46,00). Havia passadiços de dois tamanhos diferentes. A sinalização faz parte do plano de segurança e os sinais foram aplicados (50,00). Ninguém lhe disse ter presenciado um acidente (56,30).
4 – K…. Funcionário da C…. Condutor manobrador de máquinas (giratória de pneus) em 2007. Ficheiro 20140617104425. Não se lembra de qualquer acidente nem da presença do INEM. Mais tarde alguns meses, soube de uma ocorrência através da técnica de segurança (min. 3,00). Não houve (mais) nenhum acidente, naquela obra; os passeios estavam em condições e nos buracos havia passadiços. A fiscalização da obra era de manhã à noite; a obra acabou em dezembro, e em novembro já não tinha valas (6,00). Confrontado com as fotografias, diz que a obra, em novembro “já não estava assim”, as fotografias são anteriores, de certeza (10,00).
Não sabe em que local estavam a trabalhar naquele dia; a “sua” máquina estava lá até ao fim da obra, mas em novembro (já) lá andavam subempreiteiros (13,00).
5 – G…. Professora Aposentada. Irmã da autora. Ficheiro 2014617110529. Não assistiu ao acidente, mas foi ver a irmã ao Hospital Pedro Hispano, no próprio dia. A irmã esteve em convalescença em sua casa. O acidente foi há sete anos, em novembro (min. 3,00). Sabe onde foi o acidente, pois foi lá mais tarde e tirou fotografias, com o sobrinho (filho da autora), passados oito ou quinze dias. A rua estava com muitos buracos, canalizações à vista e passagens muito precárias e pouco sólidas; tudo esburacado, com placas metálicas e vedações, ligadas às casas comerciais. Não recorda se passava muita gente, quando foi lá. Foram lá fotografar “porque era muito injusto o que aconteceu à B…” (6,30). A B… ia calmamente para o carro, que estava perto, pôs o pé numa das vedações, entre as covas, “e caiu redonda, caiu num buraco” (7,30). Ela disse que teve de segurar e levantar um (dos) braços. Ela disse que a chapa virou e ela virou com a chapa (8,30). Quando lá foi, não viu se as chapas estavam fixas ou não. Ela disse que caiu “e eu sei que caiu num buraco”. Havia coisas de metal sobre as coisas esburacadas (10,00). Seguramente que a versão da sua irmã foi genuína, em cima da hora, (ela) pôs o pé e caiu redonda no buraco, pôs o pé no passadiço e caiu no buraco (10,30)[35]. Ficou com a roupa destruída (contou-lhe a irmã) e “acho que” os sapatos (19,30).
Foi a irmã que lhe explicou que ficou com a roupa estragada, não sabe se suja, mas a ideia é que estragou os sapatos na queda. Não estava lá para ver, mas tem a ideia que lhe cortaram (a roupa) no Hospital, “é o tipo de coisa que se conta”, mas não viu a roupa estragada (22,20).
Chama passadiço à chapa, a irmã caiu de uma chapa. As fotografias foram tiradas no fim de semana seguinte no outro seguinte (24,30). Tirou as fotografias e a ideia que tem é que a rua estava esburacada (26,30). São exibidas as fotografias à testemunha: não se lembra quantas tirou e não mais as viu; devem ser da rua …, que foi onde (as) tirou (30,20). Só tirou na rua … (35,00). Quando lá foi, já tinha falado com a irmã, mas a irmã não foi, a testemunha foi com o sobrinho (39,00). Ficou com a ideia que a placa se terá movido, mas, quando lá foi, não se dirigiu a um sítio em concreto; se a irmã lhe disse qual era, agora não recorda (41,30)[36].
6 – N…. Trabalha na casa da autora e na casa das irmãs. Ficheiro 201406171202027. Não assistiu ao acidente, soube dele quando estava na casa da irmã da autora, no próprio dia; não foi ver a autora ao hospital, viu-a depois, em casa da irmã dela, e muito debilitada (min. 4,00)[37].
7 – L…. Funcionário da C… com a categoria de Diretor de Produção. Ficheiro 20140617142429. Só teve conhecimento do acidente após informação do dono da obra, mais de meio ano depois, quando já tinham saído da obra. Até então, não teve conhecimento, embora fosse à obra, no mínimo, uma vez por semana (min. 3,20). Confrontado com as fotografias, refere que não foram todas tiradas na mesma ocasião e algumas já revelam o passeio pronto. A obra acabou antes do fim do ano (12,00). A obra tinha fiscalização externa diária e havia guarda corpos e chapa antiderrapante (19,00). Se houver chão firme e não houver buracos, não são precisos passadiços, mas pode haver chapas, enquanto o betão não seca, o que demora 4 a 5 horas. Andaram subempreiteiros na obra (24,30). As chapas são aprovadas (43,00).
8 – M…. Engenheiro Civil. Trabalhou para a S…, até 2009, enquanto gestor de empreendimento e nomeadamente na obra aqui em causa. Ficheiro 2014617151054. A fiscalização da obra foi subcontratada. A testemunha passava naquela obra 2 a 3 vezes por semana, podendo lá ficar o dia inteiro, se necessário, e reunia com a fiscalização e com o empreiteiro (min. 2,40). Recorda-se de ter ido à obra “imensas” vezes para resolver questões técnicas; por questões de segurança também ia, mas não pode concretizar: a maior parte das vezes era por prevenção, por ser uma obra em estrada aberta, com o comércio a funcionar (6,00). Havia um técnico de segurança, com essa função específica, da empresa de segurança. O documento formal de entrega da obra é de 2008, a obra terá terminado em dezembro de 2007. Havia rigoroso controle de segurança, por ser uma zona de tráfego pedonal; o trânsito automóvel foi cortado e havia placas a indicar os circuitos pedonais (11,00). Quando fazem parar a obra, em razão de alguma desobediência do empreiteiro, e por questões de segurança, é para os meios serem deslocados à resolução imediata do problema (20,00). A fiscalização em obra era diária. Do acidente de 2007 só teve conhecimento passado meio ano, através de uma carta de advogado e, antes, a fiscalização e o empreiteiro desconheciam o mesmo (23,00). Perante as fotografias, esclarece que a obra é faseada e pode haver, ao longo dela, situações muito diferentes: não consegue localizar nelas o espaço ou o tempo da obra, mas revelam que se estava a construir o pavimento final, embora sempre possa haver um buraco aberto, em razão de uma situação pendente (27,30).
É impossível colocar sinalização metro a metro, mas havia painéis nos acessos (34,00). A testemunha explica os faxes que lhe são lidos, e as chamadas de atenção para a segurança (44,00) quase diárias (47,30). Não sabe como foi (que aconteceu) o acidente, e é muito complicado avaliá-lo seis meses depois, já que (repete) soube dele meio ano depois (53,30). Das fotografias revela-se uma chapa de aço entre passeios, que está estável (56,00). A comunicação que deu conta do acidente será a carta (que lhe é mostrada) junta a fls. 21, comunicação de uma advogada (62,00).
9 – E…. Reformado da Função Pública. Ficheiro 20140630111755. Teve sempre o telemóvel que tinha na ocasião do acidente e sabe de cor o número. O acidente foi antes de 2009, ano em que se aposentou. Na altura, viu uma senhora dentro de um buraco e ligou para o 112, este demorou cinco minutos e levou a senhora. A rua estava esburacada e o passeio tinha um passadiço (min. 3,30). O 112 é que foi buscar a senhora; ela estava a queixar-se, de cabeça para cima. Os passadiços davam para passar para as lojas. Não se lembra de grades, e não viu cair a senhora (5,00). A senhora estava, quem desce, do lado direito, a cerca de 30 metros da …. Não deu sentido da roupa da senhora; ela queixava-se, mas não sabe o que tinha magoado. A senhora estava de pé. Pensa que havia gente a trabalhar, aquilo andava em obras, mas não faz ideia (quantos). Há ali sempre gente a passar, e tem ideia que foi da parte da manhã (8,00).
O rasgo era só do lado direito e a direito, para baixo, quem vai a descer; era comprido e acompanhava o sentido do passeio. Era um bocadito fundo, que à senhora chegava pela cinta. Estava de pé (10,00). É uma zona de muito movimento. A testemunha ficou até chegar o INEM, que nem cinco minutos demorou: parou ao lado das grades e foi buscar a senhora, “não sei mais nada” (11,30). Da parte de baixo não se lembra de grades, mas lembra-se de passadiços para (se) ir para as lojas. Não sabe para que era o buraco, mas era do lado direito, quem descia (13,40). As pessoas continuaram a circular normalmente. A senhora não lhe disse como tinha caído (15,00). Não viu tirarem a senhora do buraco; o sítio é muito “em antes” do H…, e o INEM teve de vir a pé (16,20).
10 – B…. Autora. Ficheiro 20140630113521. O acidente foi a 23 de novembro, pelas 10H20, 10H30. Foi tomar um café e desceu a rua, e quando depois a subia, aconteceu. Subia … – … (…), já depois do H…, a meio da rua, entre o H… e o T… (min. 2,30). Ia a passar um passadiço, suportado entre duas caixas de pedra e “aquilo oscilou e eu rodopiei e cai”. O passadiço não tinha parte lateral e era de ferro ou metal. Toda a rua estava completamente esburacada, e em terra. Quando rodopiou caiu numa zona funda e “quando dei por mim tive de tentar levantar o braço do chão” e ficou ali, por causa das dores. Apareceu “aquele” senhor, que chamou o 112 (4,30). O passadiço estava sobre um buraco e fazia a ligação entre duas caixas e, naquele bocado, não havia qualquer espécie de passeio. Não sabe o porquê de não ter ido pelo lado direito, que já tinha passeio, “fiz a curva da … e continuei”. Estavam 3 senhores a trabalhar, junto ao H…, tinham pás na mão. Viram a autora no chão, mas não sabe se se aperceberam como caiu (7,30). Caiu, verificou o que tinha... o buraco era uma vala revolvida, não de grande profundidade, mas mantendo-se pela estrada fora. Lembra-se de estar no chão e compreender o que tinha no braço, e manteve-se quieta, até lhe fazerem a imobilização. Não faz ideia quem instalou o passadiço. O passadiço acompanhava a zona do lado das lojas; não era um passadiço em metal, mas duas placas grossas sobrepostas (“e deve ter sido isso que causou a queda”); estava a circular pela rua e ia para o carro. A depoente foi confrontada com as fotografias e refere que as placas não eram as que constam destas, sim de um metal completamente diferente (13,00)[38].
A rua estava toda revolvida e baixa, apenas menos onde a ambulância parou, por já não poder entrar. Não sabe a profundidade do buraco, mas a terra estava revolvida e andavam a trabalhar, pensa que a colocarem canos ou saneamento (23,30). Não ia com pressa; não ia a correr, mas a andar normalmente, e “aquilo oscilou e caí” (25,40). Não tropeçou, pois “se tropeçasse provavelmente caia para a frente” (26,30).
Se na carta (escrita pela advogada) referiu que circulava no passeio, “pode haver imprecisão” e “não” foi assistida pelos trabalhadores (33,20). Pensa que havia outras pessoas a circular, “mas não faz ideia” (35,40).

Na sequência da reapreciação da prova a que procedemos, cumpre agora fazer uma análise crítica da mesma (sem necessidade de repetirmos o que já ficou dito, em especial a propósito das declarações de parte), com vista a apurar se deve ser alterada, no sentido pretendido pela apelante, a decisão sobre a matéria de facto. Vejamos:
1 – As fotografias juntas aos autos não têm qualquer valor probatório no esclarecimento do modo como a autora caiu ou no porquê da queda. Sequer resulta delas, atentos os depoimentos prestados, que as mesmas, não sendo do dia do acidente e não se sabendo se são do local preciso do acidente que revelem uma imagem de como estaria exatamente o local naquele dia. O documento relativo ao episódio de Urgência (fls. 294) demonstra apenas que a história, a causa da urgência, foi uma queda na via pública.

2 – Nenhuma testemunha viu o acidente. A testemunha E… viu a autora num buraco (cuja profundidade pouco soube explicar), quando esta já estava em pé. Chamou o 112, que demorou, se tanto, 5 minutos, e, nesse período de tempo, não falou com a autora sobre a razão da queda (o que nos parece algo desconforme com a normalidade)[39]. A testemunha refere que estariam a passar (ou continuariam a passar) pessoas e haveria trabalhadores, mas do seu depoimento não resulta que mais alguém tivesse parado nem que os trabalhadores tenham sido chamados ou se tenham aprestado a vir socorrer a autora, durante aqueles aludidos cinco minutos[40]. As testemunhas P… e G… (filho e irmã) da autora apenas transmitiram a versão da autora sobre a causa do acidente e, na possibilidade de objetivarem por outro meio o sucedido, acabaram por se deslocar ao local apenas uma semana ou duas depois do evento. A testemunha (funcionário do INEM) que socorreu a autora não se lembrava absolutamente de nada[41]. A testemunha N… só viu a autora depois, na casa da irmã e as testemunhas ligadas à obra, nenhuma delas viu, ouviu falar, ou tomou imediato conhecimento do acidente.

3 – No circunstancialismo probatório acabado de referir, podem as declarações da autora ser bastantes a que se dê como provada a pretendida causa do acidente? Naturalmente que elas tinham essa finalidade, quando foram requeridas[42], mas são, em concreto, num juízo de livre apreciação, suficientes?

4 – A resposta, com todo o respeito é inequivocamente negativa. O facto que aqui está em causa é essencial e não instrumental, constitutivo do direito e não (apenas) suporte de uma eventual presunção judicial (quem cai, não cai naturalmente por ação alheia: pode ser que assim seja, ou pode não)[43]. Ora, além das declarações da autora não serem coincidentes com a versão, globalmente entendida, que tomou a iniciativa de juntar aos autos (referimo-nos ao documento de fls. 21), as mesmas mostram-se completamente desacompanhadas de qualquer outra prova que, para além delas mesmas, a suporte ou mesmo a indicie.

5 – O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz “o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas[44]”, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se “com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios”, sendo “antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem[45]”.

E, porque não pode deixar de ser assim, pelas razões que fomos dizendo, atendendo à insuficiência das declarações de parte prestadas pela autora, para demonstrarem, no caso, o facto pretendido, atendendo também à inexistência de qualquer outra prova que o demonstre, suporte ou indicie, entendemos (sem que daí resulte a violação de qualquer preceito constitucional, como oportunamente explicámos) que os factos provados e não provados na 1.ª instância devem ser integralmente mantidos, assim improcedendo, nesta parte, a apelação da autora.

1.3.2 – Se, em consequência, a ré empreiteira, responsável pela colocação do passadiço onde ocorreu a queda da autora, violou, quer o direito subjetivo da autora a` integridade física, quer as disposições legais de segurança e prevenção de riscos em obras de construção - art. 135, 136 e 138 do REGEU, o DL 155/95, o DL 273/2003, a Portaria 101/96 e o Decreto 41821/58 - destinadas a proteger interesses alheios.
Como se viu, mantivemos integralmente a matéria de facto (provada e não provada) que a 1.ª instância considerou. Com base neles, o tribunal recorrido, depois de uma detalhada reflexão sobre a responsabilidade civil extracontratual (salientando os seus pressupostos: ilicitude, culpa e nexo de causalidade adequada) entendeu que a pretensão da autora não podia proceder por a mesma não ter logrado demonstrar “a existência de qualquer facto (voluntário) ilícito cometido pela ré, ao nível das condições de segurança ou qualidades exigíveis na escolha/seleção do passadiço existente no local e onde ocorreu a sua queda ou, ainda, na instalação do mesmo no solo, em particular quanto às condições da sua colocação no solo (por forma a garantir a sua estabilidade e segurança) ou quanto às características físicas (ausência de guarda corpos, altura e peso da estrutura, ausência de piso antiderrapante) ou até quanto à manutenção ou conservação de tal passadiço. (...) Com efeito, analisada a petição inicial, a ilicitude da conduta da ré empreiteira e responsável pela colocação dos passadiços, traduzir-se-ia no facto de o passadiço onde veio a ocorrer a sua queda ao solo se encontrar incorretamente apoiado no solo, o que teria provocado que o mesmo cedesse ou ruísse, causando o seu desequilíbrio e queda ao solo. Ora, nesta perspetiva, nada a Autora logrou demonstrar, razão porque inexiste o alegado facto ilícito imputável à ré/empreiteira”.

Os factos que justificaram a decisão recorrida, atenta a não prova de outros, são (apenas) estes: No dia 23.11.07, após as 10 horas, a autora circulava a pé na Rua …, cidade do Porto, pelo seu lado esquerdo, atento o sentido ascendente, em direção à …; Na dita Rua … estavam a ser realizadas obras de requalificação do arruamento, encontrando-se, pelo menos em parte do dito arruamento, o piso revolto e a terem lugar intervenções, com escavações/buracos, ao nível do saneamento; Ao circular na dita Rua …, e já depois do edifício do H…, a autora, ao passar sobre um passadiço de metal ali existente, em circunstâncias não apuradas, veio a cair ao solo, caindo num espaço, no dito arruamento, que se encontrava a um nível inferior àquele em que antes circulava; O passadiço antes referido foi ali instalado pela empreiteira ré; A Rua … é uma rua situada na Baixa do Porto, e por onde circulam muitas pessoas a pé. Na dita rua, e durante a obra levada a cabo pela ré, existiam vários passadiços em metal, alguns dos quais se destinavam a permitir a passagem para o interior das lojas / estabelecimentos comerciais ali em funcionamento; Alguns dos passadiços colocados na zona da obra eram em metal, com pavimento antiderrapante, possuindo guarda corpos e com várias dimensões em termos de largura e comprimento; Os ditos passadiços estavam assentes sobre o chão.

E, perante estes mesmos factos, não podemos deixar de confirmar o acerto do decidido.

Acrescentamos, ainda assim – uma vez que a recorrente parece defender a ilicitude da conduta da ré não só pela violação do direito subjetivo da autora, mas por infração das normas do RGEU, destinadas a proteger interesses alheios (e ainda que, se bem vemos, não tenha demonstrado tais infracções[46]) – o que deixámos dito em recente acórdão[47]: as normas públicas, “no caso as normas regulamentares do RGEU, por si só ou em si mesmas, nunca resolvem o problema, mesmo que se admita que, só elas e em determinado caso concreto, já provem a ilicitude”, porquanto “sempre será necessário que os factos apurados integrem/preencham as previsões do direito privado, ou seja – e no que importa – o disposto no artigo (...) artigo 483” do Código Civil.

Prosseguindo.

1.3.3 – Se a atividade levada a cabo pela empreiteira tem de ser qualificada como perigosa, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 493, n.º 2 do Código Civil.
Entende a recorrente, ainda assim, que a abertura de uma vala “sem sinalização e sem dispor de qualquer tipo de proteção ou barreira, no decurso de obras “com escavações/buracos, ao nível do saneamento” levadas a cabo em rua “em que as pessoas que por ali transitavam tinham que, obrigatoriamente, atravessar no local onde tais trabalhos estavam a ser feitos, o que tudo elevava a possibilidade do risco de ocorrerem acidentes” implica estarmos “em presença de uma atividade perigosa, nos termos e para os efeitos do artigo 493, n.º 2 do Código Civil” e, por isso, cabia “à ré provar que adotou todas as providências (...) o que não logrou fazer”. Uma vez que a ré não demonstrou “que empregou todas as providências adequadas a evitar que a Autora caísse para uma vala, nem a inexistência da aludida “conexão de perigo ou de risco” entre as obras e os danos que a autora veio a sofrer (...) não ilidiu a presunção de culpa que sobre si impendia, como resulta do disposto no artigo 493, n.º 2, in fine, do Código Civil”[48].

A 1.ª instância, apreciando esta questão, entendeu que “a construção civil e as obras de escavações ou desaterros que as integram, abstratamente consideradas, por si só e abstraindo dos meios utilizados, não constituem atividade (...) perigosa” e que à autora, enquanto beneficiária da presunção de culpa” teria de concretamente demonstrar os factos “que inculquem a sobredita atividade perigosa levada a cabo pela Ré/empreiteira (...)” o “que, manifestamente, a autora não logrou fazer”.

O n.º 2 do artigo 493 do CC, presume a culpa de quem haja causado danos a um terceiro no desenvolvimento de uma atividade perigosa, seja perigosa por sua própria natureza, seja pela natureza dos meios utilizados.

Como refere Antunes Varela[49], o “caráter perigoso da atividade (causadora dos danos) pode resultar (...) ou da própria natureza da atividade (fabrico de explosivos, confeção de peças pirotécnicas, navegação aérea, etc.[50]) ou da natureza dos meios utilizados (tratamento médico com ondas curtas ou com raios X, corte de papel em guilhotina mecânica, tratamento dentário com broca, etc.).

Mário Júlio de Almeida Costa esclarece que se deve tratar de uma atividade que “mercê de qualquer dessas duas razões tenha ínsita ou envolva uma probabilidade maior de causar danos do que a verificada nas restantes atividades em geral.” E, se assim for, a responsabilidade só é afastada se o agente “mostrar que empregou todas as providências” com o fim de prevenir os danos, expressão essa (“todas as providências”) que “não afasta o critério geral da diligência do homem médio, embora (...) adaptada aqui essa diligência ao caso das atividades perigosas, que exigem maiores cautelas.[51]”

Tendo sempre presente que “não se pode confundir, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6 de fevereiro de 1996, “a eventual perigosidade do evento com o que seria próprio da atividade ou dos meios””[52], entendemos, tal como entendeu a 1.ª instância que a perigosidade da atividade ou dos meios tem que se apurar em cada caso ou, o mesmo é dizer, a atividade aqui em causa (de construção civil ou obras públicas) não é necessariamente uma atividade perigosa, para efeitos do disposto no artigo 493, n.º 2 do CC.

Aliás, a jurisprudência citada pela apelante (e ressalvando o último dos acórdãos que aqui vamos referir), salvo o devido respeito, não traduz uma posição diferente daquela que foi defendida na sentença recorrida, nem nos parece desconforme ao nosso entendimento sobre a questão agora em apreço.

Vejamos: No acórdão do STJ de 2.06.2009 (Relator, Conselheiro Fonseca Ramos, dgsi) a matéria de facto revela que se estava perante uma propriedade particular, mas aberta à circulação pública e onde existia um caminho que estava cortado em toda a sua largura por uma vala de 3 metros de largura e 1,5 metros de profundidade, sem qualquer sinalização prévia, que assim se mantinha há vários anos e onde já haviam ocorrido outros acidentes; No acórdão da Relação de Lisboa de 19.02.2008 (Relator, Desembargador Abrantes Geraldes, dgsi) está sumariado que a construção civil, em si mesma, não constitui uma presunção de culpa para o construtor[53]; No acórdão da relação de Coimbra de 19.06.2013 (Relator, Desembargador Arlindo Oliveira, dgsi) aprecia-se um caso de uma vala, aberta para instalação de condutas de gás, com cerca de 80 cm de profundidade e 30 cm de largura, não sinalizada e sem qualquer proteção e em que os transeuntes tinham obrigatoriamente de passar, atravessando à frente de uma máquina e respetiva pá e passando sobre a vala aberta[54]. Finalmente, em relação aos acórdãos desta Relação (todos em dgsi), que a apelante cita: O de 27.05.2014 (Relator, Desembargador Rodrigues Pires) considera que a atividade de construção civil, na maior parte das situações, não tem caráter perigoso, mas que como tal deve considerar-se o caso em que se utiliza um andaime na reparação de um edifício, andaime colocado no passeio, sem sinalização nem vedação; o de 14.03.2013 (Relator, Desembargador Aristides Rodrigues Almeida) aprecia o caso em que são abertos buracos na rua de uma povoação, para a colocação de sinais de trânsito, e tais buracos são deixados abertos durante a noite, sem sinalização nem vedação do local; o de 9.01.2007 (Relator, Desembargador Marques Castilho) refere, efetivamente, que “a atividade de escavação do solo, porque consubstancia uma acrescida probabilidade de causar danos, traduz-se numa atividade perigosa pela sua própria natureza.”

Assim, tal como se decidiu, nem os factos apurados (e supra repetidos) revelam uma atividade, de per si ou pelos meios concretamente empregues, que deva considerar-se perigosa, nem outros (que o revelassem) a autora (beneficiária da presunção de culpa) demonstrou.

Em conformidade, também nesta parte deve ter-se a apelação por improcedente.

Finalmente, devemos dizer que a questão enunciada em 1.3.4 (Se, a proceder a responsabilização da ré empreiteira, deverá ser declarada a nulidade da cláusula 3.4. da condições particulares da apólice de seguro através da qual esta transferiu a sua responsabilidade civil para a Seguradora) se mostra prejudicada.

Com efeito, como decorre dos seus próprios termos, a mesma pressupunha o prévio reconhecimento da responsabilidade da ré empreiteira (e, em razão desta, da responsabilidade da recorrida Seguradora), o que, como anteriormente vimos, não se verifica.

Por tudo o que se deixou dito, revela-se totalmente improcedente a presente apelação.

As custas do presente recurso, atento o total decaimento, são integralmente devidas pela recorrente.

3 – Decisão:
Pelo exposto, acorda-se na Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a presente apelação e, em conformidade, confirma-se a sentença proferida na 1.ª instância.

Custas pela recorrente.

Porto, 23.03.2015
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Carlos Querido
__________
[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, 3.ª edição, 1952, Reimpressão Coimbra Editora, 2007, págs. 469/475.
[2] José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes (Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 121/127) dizem-nos que este artigo “foi crescendo, desde 1939 a 1999, ao longo de sucessivas alterações”, alterações de que dão detalhada nota.
[3] Sobre o ónus do recorrente, João Aveiro Pereira, “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, in O Direito, Ano 141.º, 2009, II, Almedina, págs. 309/337, em especial, págs. 317/319.
[4] Sem embargo de entendermos (como melhor se verá adiante e hoje tomamos por consensual) que a Relação forma a sua própria convicção.
[5] Cf. Abrantes Geraldes, “Reforma dos recursos em processo civil”, in Julgar, n.º 4, 2008, págs. 74/76.
[6] “Apesar de algumas alterações de redação, o artigo 640º prevê o que já antes era uma prática jurisprudencial, segundo a qual, entre o mais, o recorrente tem de indicar o sentido da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (...)” – Elizabeth Fernandez, Um Novo Código de processo Civil?, Vida Económica, 2014, pág. 185.
[7] Rui Pinto, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 418.
[8] O incumprimento do ónus deve levar à rejeição (total ou parcial) do recurso relativo à impugnação da decisão da matéria de facto. A este propósito, António Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 128/129) refere que tal deve acontecer quando se verifique “alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação; f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos.”
[9] António Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 225.
[10] António Abrantes Geraldes, ob. cit., págs. 235/236.
[11] Philip Roth, Os Factos – Autobiografia de Um Romancista, tradução de Francisco Agarez, D. Quixote, 2014, pág. 18.
[12] Marco Túlio Cícero, Textos Filosóficos II – Diálogos em Túsculo, tradução do latim, introdução e notas de J.A. Segurado e Campos, Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 99.
[13] A referência feita a Cícero e à procura da verdade, justifica que também aqui citemos Maria Clara Calheiros (Para Uma Teoria da Prova, Coimbra Editora, 2015, págs. 66 e ss.). A autora, abordando “O problema da verdade no contexto das diferentes leituras do processo judicial”, pergunta, “o que é a verdade, hoje?” e, depois de percorrer diversas posições e teorias, que vão de um manifesto ceticismo ou relativismo à aceitação de uma “teoria da verdade”, refere (fls. 74/75) serem hoje “muito mais fecundas e interessantes posições como a de TARUFFO que oferece uma possibilidade de encontrar um lugar para a verdade no processo, não abdicando de fazer o necessário enquadramento epistemológico, ideológico e pragmático desta questão. Assim, a verdade de que fala aquele autor caracterizar-se-ia como relativa (como de resto seriam também as verdades extraprocessuais) ordenada a tornar possível um processo visto como um meio de obter uma decisão justa, legal e não arbitrária, e realizável na prática, segundo as concretas regras de produção de prova, existentes em cada ordenamento”. E, parecendo-nos em jeito de conclusão, afirma a autora (a fls. 75, ainda): “não podemos deixar de pôr em relevo que a construção de uma verdade sólida nos processos judiciais só é possível com um conhecimento, tão profundo quanto possível, de tudo aquilo que a pode dificultar, e inviabilizar, mesmo.”
[14] Estrela Chaby, O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, pág. 49. A pág. 46 da mesma obra, a autora esclarece que as declarações de parte “claramente não estão intencionadas à obtenção da confissão” e, mais adiante (págs. 47/48) refere que não se trata “afinal – e ao contrário do que se afirma na exposição de motivos da proposta (ali se refere a “natureza pessoal dos factos”) – de factos pessoais (por exemplo, relativos ao domínio dos factos internos, da vontade própria, mas de factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente, que podem ser de qualquer natureza (negociações, intervenção num acidente, etc.); não se trata aqui de facto de que a parte deva ter conhecimento, mas de factos dos quais a parte tenha direto conhecimento”.
[15] Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 356.
[16] Assim não parece ser para Rui Pinto (ob. cit., pág. 283), pelo menos no “plano objetivo”, já que “os depoimentos de parte já admitiam que a parte produzisse tanto declarações favoráveis como desfavoráveis”; A novidade “reside em expressamente se admitir legitimidade para a parte requerer a prestação de declarações por si mesma, algo negado pela letra – mas, não tanto por uma interpretação atualista – dos artigos 452.º, n.º 2 e 453.º, n.º 3”.
[17] Jorge Augusto Pais de Amaral, Direito Processual Civil, 11.ª edição, Almedina, 2013, pág. 234. Salientando as diferenças, refere o autor: “As declarações de parte resultam da iniciativa da própria parte (...) encontram especial justificação nos casos em que não é admissível a confissão dos factos (...) Por outro lado, também podem aproveitar à contraparte, visto que é eventualmente possível que as declarações acrescentem o reconhecimento de factos desfavoráveis ao declarante”.
[18] Rui Pinto, ob. cit., pág. 284.
[19] Não pode esquecer-se, por isso que, nos termos do Código Civil, e referimo-nos ao seu artigo 361, mesmo os factos desfavoráveis (sublinhado nosso), quando não possam valer como confissão, são livremente apreciados pelo tribunal, ou seja, constituem “um meio de prova a ser livremente valorado pelo tribunal” (José Alberto González, Código Civil Anotado, Volume I, Quid Juris, 2011, pág. 479).
[20] João Correia/Paulo Pimenta/Sérgio Castanheira, Introdução ao Estudo e à Aplicação do Código de Processo Civil de 2013, Almedina, 2013, pág. 57.
[21] Estrela Chaby, ob. cit., pág. 50, nota 124.
[22] Primeiras Notas ao Código de Processo Civil – Os Artigos da Reforma, 2.ª edição, 2014, pág. 395
[23] Ob. cit., pág. 257.
[24] Prova Testemunhal, Almedina, 2013, págs. 364/366.
[25] E acrescenta, na mesma pág. 365 da ob. cit.: “Esses dados podem provir de outros depoimentos realizados sobre a mesma factualidade e que sejam confluentes com a declaração em causa. Podem também emergir de factos que ocorrem ao mesmo tempo (ou mesmo com antecedência) que o facto principal, nomeadamente de circunstâncias que acompanham ou são inerentes à ocorrência do facto principal. Abarcam-se aqui sobretudo os factos-base ou indícios de presunções judiciais”.
[26] Como refere Rui Medeiros (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I – 2.ª edição, págs. 437 e 443), o “direito de acesso aos tribunais e a uma tutela efetiva” assumem “significativa relevância prática (...). Concretamente, no que à produção de prova se refere, o Tribunal Constitucional tem entendido que um tal direito não implica necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova permitidos em direito em qualquer tipo de processo e independentemente do objeto do litígio e não excluí em absoluto a introdução de limitações quantitativas na produção de certos meios de prova. Todavia, as limitações à produção de prova não podem ser arbitrárias ou desproporcionadas (Acs. n.ºs 209/95, 604/95 e 681/06)”.
[27] Direito esse que “é um pilar fundamental do direito à proteção jurídica por via judiciária, que compreende não só o direito das partes a disporem no processo dos meios de prova sobre os factos alegados, mas também o direito ao modo de participação na produção da prova, bem como o direito de aproveitarem da prova produzida no processo, mesmo emanada da parte contrária, segundo o princípio da aquisição processual (...)” – Manuel Tomé Soares Gomes, “Um olhar sobre a prova em demanda da verdade no Processo Civil”, in Revista do CEJ, n.º 3, 2.º Semestre 2005, págs. 127/168, a pág. 166.
[28] Parece-nos que vão neste sentido as afirmações de João Paulo Remédio Marques (“A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte chamada a prestar informações ou esclarecimentos”, in Revista Julgar, n.º 16, Coimbra Editora, 2012, págs. 137/172). Como o autor afirma no ponto X. das suas conclusões, a fls. 169, “Nos casos em que os factos controvertidos somente podem ser provados a partir das declarações não confessórias das partes enquanto fundamento dos factos-base de presunções judiciais, é materialmente inconstitucional a interpretação do art. 552.º do CPC [anterior], se e quando, no âmbito de uma inquirição oficiosa das partes, limitar o depoimento de parte apenas aos factos (desfavoráveis) que, por isso mesmo, possam ser objeto de confissão judicial, impedindo a produção e a valoração probatória (como princípio de prova, livre ou estando na génese de factos-base de presunções judiciais) das declarações respeitantes a factos favoráveis ao depoente, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo equitativo, na ofensa do direito à prova”
[29] Antecedido dos pontos 10 (“O passadiço/plataforma acima referido era uma estrutura de apoio e foi ali instalada pelo empreiteiro que realizava os trabalhos na Rua …?”) e 11 (“A Rua … e´ um local fortemente frequentado?”) que receberam as seguintes respostas: 10 - provado apenas que o passadiço antes referido foi ali instalado pela empresa empreiteira e ora Ré que realizava trabalhos na dita Rua …. 11 – “provado apenas que a Rua … é uma Rua situada na baixa do Porto e por onde circulavam muitas pessoas a pé”.
[30] Fls. 294. Aí se refere a data de admissão da autora às 11H25 do dia 23.11.2007 e, como “Queixa inicial” o seguinte: “História de queda na via pública. Dor no membro superior esquerdo. Enf. U… / 11:30hr 23-11-2007”. Na “História da doença” refere-se: “Queda ao mm nível com traumatismo direto do MSD. Dor e incapacidade funcional do braço dto. Sem défices neurológicos. Rx – fratura 1/3 distal diáfise do úmero direito (Holstein Lewis). Imobiliza-se com tala gessada e transfere-se para o hospital da área da residência. Dr. V… / 12.32hr 23-11-2007”.
[31] Que verificámos serem cabalmente concordantes com as referências aos mesmos feitas pela apelante e, igualmente, pelo tribunal recorrido, na parte descritiva da fundamentação da decisão de facto.
[32] Esclarece, mais adiante, que a testemunha a que se refere é o Sr. E…, que lhe disse que foi quem acionou o 112.
[33] Seguidamente, a testemunha depôs sobre as consequências do acidente e as diversas limitações sofridas pela sua mãe (6,30/14,00).
[34] Leitura de faxes relativos a segurança e fiscalização da obra (11,00/13,00).
[35] Prossegue o depoimento referindo as consequências do acidente e as limitações da autora (10,30/19,00).
[36] O depoimento da testemunha prossegue até final (54,00) essencialmente com referencias às limitações da autora.
[37] O restante depoimento versou (4,00/8,00; 9,00/15,00 e 20,00 em diante) sobre as debilidades da autora, consequência do acidente, sobre a prestação laboral da testemunha e os valores de pagamento desta.
[38] O depoimento da autora, sensivelmente entre os minutos 14,00 e 22,00, refere-se às consequências do acidente, aos tratamentos e aos artigos estragados, incluindo sapatos.
[39] Parece-nos que seria normal que a testemunha perguntasse como caiu a autora, já para não dizer, que perguntasse o que lhe doía ou se tinha algo partido.
[40] É certo que na carta junta pela autora a fls. 21, escrita pela sua ilustre mandatária e dirigida à S… da C.M. …, a autora refere que foi assistida “pelos referidos trabalhadores e por alguns transeuntes que logo se prontificaram.” Mas esta afirmação não corresponde, nem ao depoimento desta testemunha, nem às declarações de parte da autora.
[41] Testemunha esta que não é o Enfermeiro que é identificado no episódio de Urgência (o qual, ainda assim, repara que a dor da autora é no “membro superior esquerdo” – como nos parece revelar a fotografia de fls. 212 – ao contrário do médico que a localiza no “braço dto”).
[42] Note-se que as testemunhas arroladas pela autora, ressalvando a testemunha E…, que agora também sustentam a impugnação da matéria de facto (e referimo-nos ao filho da autora e à irmã desta) não foram indicadas a nenhum dos pontos da matéria de facto de que se discorda. E se é certo que, atento o princípio da aquisição processual (cf. nota 28), nada obsta que ora se suporte a impugnação nos depoimentos que anteriormente não se consideraram – pelo menos ao serem indicados – relevantes à demonstração dos factos aqui em causa, a referência que fazemos serve, pelo menos, para salientar, como já dissemos anteriormente, o carácter subsidiário da prova por declarações de parte.
[43] É por isso que não há razão para a conclusão da apelante, no sentido de o tribunal, confiando nas declarações de parte para a prova de alguns factos (nomeadamente a roupa estragada), haveria de nela confiar para a prova de todos (nomeadamente para os que aqui se discutem). Não pensamos assim: se alguém vai para o Hospital com um braço partido, é normal que lhe rasguem a roupa que cobre esse braço; se alguém cai na via pública, mesmo que ao atravessar um passadiço, não é normal (nem deixa de ser) que caia por trepidação deste ou porque, por qualquer descuido, se desequilibrou.
[44] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 2012, pág. 245.
[45] Fernando Pereira Rodrigues, A Prova em Direito Civil, Coimbra Editora, 2011, pág. 15.
[46] Naturalmente que não é o resultado que demonstra a causa (não cuidando aqui, agora, de presunções e, ainda menos, de criação de perigo), tem é que ser causado adequadamente pelo facto.
[47] Acórdão da Relação do Porto de 2.03.2015 (Processo n.º 2400/11.TBFLG.P1), dgsi.
[48] Acrescentando a jurisprudência que entende tal defender: “TRC, de 19/06/13, 2219/09.0TJCBR: “a abertura de uma vala em si mesma, e´ atividade perigosa”; STJ, de 02/06/09, 560/01: “o caso (...) ou do empreiteiro que abra um buraco na via pública”; TRP, de 14/03/13, 977/09.0TBMCN.P1: “a abertura de buracos num espaço em que não se encontrava impedido o acesso e a circulação de pessoas estranhas a` obra obrigava a` perfeita vedação e sinalização dos mesmos”; TRP, de 09/01/07, 0621929: “A atividade de escavação no solo, porque consubstancia uma acrescida probabilidade de causar danos, traduz-se numa atividade perigosa pela sua própria natureza.”; TRP, de 27/05/14, 264/12.7TBVLG: “não estando o mesmo sinalizado com indicação de obras, nem vedado o respectivo espaço, o que origina para os transeuntes e (...) uma maior probabilidade de sofrerem danos”; TRL, de 19/02/08, 831/2008.7: “a fonte de perigo estar em plena via pública, isto e´, em espaço público por onde poderiam legitimamente circular pessoas (...) A justificação encontra-se no facto de se tratar de locais de acesso ao público, sendo justificada a exigência de um especial dever de cuidado no que concerne a` manutenção de condições que evitem quedas ou outros acidentes.”
[49] Das Obrigações em Geral, Volume I, 8.ª edição, Almedina, 1994, pág. 606.
[50] Referindo também (ob. cit., pág. 605), “tratamento com rádio, transporte de combustíveis, navegação marítima...”
[51] Direito das Obrigações, 8.ª edição, Almedina, 200, pág. 529 e nota 4.
[52] Ana Maria Taveira da Fonseca, “Responsabilidade civil pelos danos causados pela ruína de edifícios ou outras obras”, in Novas Tendências da Responsabilidade Civil, Almedina, 2007, págs. 85/2006, a pág. 116/117.
[53] Dizendo-se no acórdão: “É abusivo qualificar como perigosa a atividade de construção civil, sem quaisquer limitações ou condicionantes. Sendo uma inequívoca fonte de perigo no que concerne à ocorrência de acidentes de trabalho, como o confirmam os dados que vão sendo divulgados, a exigir das empresas e dos trabalhadores o respeito por regras de proteção e segurança, não pode afirmar-se, sem negar a realidade que emerge do número de empresas que se dedicam à referida atividade e do número de pessoas que estão direta ou indiretamente relacionados, que, por si ou pela natureza dos meios geralmente utilizados, seja de qualificar como perigosa. Poderá concluir-se, em determinadas circunstâncias, pela existência da referida perigosidade ou afirmar-se que a perigosidade é promovida por determinados meios concretamente utilizados. Contudo, as circunstâncias que em concreto se observam nestes autos jamais permitem uma tal afirmação.”
[54] Não deixando de se dizer, ainda assim, que a “atividade perigosa” referida no n.º 2 do artigo 493 do CC é um conceito indeterminado, a apreciar caso a caso.