Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1366/08.0YYPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
VALORAÇÃO
FACTOS CONSTANTES
AÇÃO PRINCIPAL
EXECUÇÃO CONTRA UM DOS CÔNJUGES
HABILITAÇÃO DE SUCESSORES
Nº do Documento: RP201907101366/08.0YYPRT-A.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º180, FLS.153-160)
Área Temática: .
Sumário: I - No incidente de habilitação de sucessores, mesmo que não tenham sido alegados pelo requerente, o juiz pode fundamentar a decisão em factos que constem dos autos principais a que respeita o incidente por se tratar de factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
II - Tendo sido penhorado, em execução instaurada apenas contra um dos cônjuges, bem imóvel comum, tendo o cônjuge não executado falecido, deve proceder-se à habilitação dos respectivos sucessores para realizar nestes a citação prevista nos artigos 740.º e 786.º do Código de Processo Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2019:1366.08.0YYPRT-A.P1
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Sumário
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:
I. Relatório:
Por apenso à execução para pagamento de quantia certa que move contra B…, veio a exequente C…, SA, deduzir, nos termos do artigo 351º e seguintes do Código de Processo Civil, incidente de habilitação de herdeiros contra a executada B… e contra D…, contribuinte fiscal n.º ………, residente no Porto; E…, NIF ……….., residente no Porto; F…, contribuinte fiscal n.º ………, residente em Vigo, Espanha, e G…, contribuinte fiscal n.º ………, residente na Maia.
Alegou para o efeito o seguinte que se transcreve na íntegra:
«1. Nos autos principais, em acção executiva instaurada contra a executada B…, aqui 1º requerido, de que este incidente é apenso, houve notícia do facto da morte do cônjuge da executada, H…, ocorrida em 18-06-2013, sendo que tal óbito se encontra provado pela respectiva certidão que se junta (doc. 1).
2. São universais herdeiros do falecido H…, nos termos do art. 2132º do Código Civil, o seu cônjuge B…, executada nos autos principais, com quem foi casado, desde 19-04-1964, no regime supletivo legal da comunhão geral de bens, conforme se alcança do assento de casamento cuja cópia se junta para os devidos efeitos (doc. 2),
3. e os seus filhos D…, E…, F… e G…, aqui requeridos,
4. tudo como melhor consta dos assentos dos respectivos nascimentos, cujas cópias se juntam para os devidos efeitos (doc. 3, 4, 5 e 6).
5. Devem, por isso, os ora requeridos – B…, D…, E…, F… e G… - ser habilitados como sucessores de H… para, com eles, prosseguir os autos principais os seus trâmites até final.
Termos em que se requer a V. Ex.ª a citação dos requeridos para, querendo, contestar, este incidente de habilitação, e, na procedência do mesmo, seguir a execução os seus termos, doravante, contra os requeridos habilitandos.»

Efectuadas as citações e a notificação dos requeridos, vieram estes apresentar contestação alegando o seguinte:
«1. Como bem refere a Requerente no artigo 1.º do seu requerimento inicial, a acção executiva a que o presente incidente foi apensado foi instaurada apenas contra a executada B…, aqui 1ª Requerida.
2. O presente incidente foi intentado por morte de H….
3. Dispõe o n.º 1 do art.º 351.º do Código de Processo Civil que: “A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.”
4. Assim, o incidente da habilitação de herdeiros visa a substituição de uma parte inicial na causa por uma parte subsequente, implicando a modificação da instância quanto aos sujeitos, designadamente por falecimento da parte inicial ou por perda de legitimidade para estar em juízo.
5. A habilitação dos sucessores da parte que falecer na pendência da causa tem natureza obrigatória uma vez que nos termos da al. a) do n.º 1 do artigo 269.º e da al. a) do n.º 1 do artigo 276.º, ambos do CPC, a causa suspende-se desde o falecimento da parte e só se reinicia com a notificação da decisão de habilitação do (s) sucessor (es) da parte falecida.
6. O falecido H… nunca foi parte no processo executivo.
7. Desta feita não podem os Requeridos suceder a uma posição processual inexistente.
8. Nas palavras de I…, o objectivo da habilitação de herdeiros é certificar que determinada (s) pessoa (s) sucedeu a outra na posição jurídica que esta ocupava.
9. Pelo que o presente incidente carece de fundamentos de facto e de direito e, em consequência, deve ser julgado totalmente improcedente. Sem prescindir,
10. Como refere Salvador da Costa
11. “…não basta que o habilitando seja herdeiro da parte falecida para que proceda o pedido de habilitação, certo ser indispensável a demonstração de que, segundo o direito substantivo, lhe sucedeu na relação jurídica em litígio”
12. O herdeiro será habilitado se, à luz do direito material, suceder na relação jurídica em discussão nos autos.
13. Pelo que, também por falta de demonstração de que os Requeridos sucederam a H… na relação jurídica em litígio, sempre teria de improceder o presente incidente.
Termos estes em que, e na subsunção do direito próprio, com o douto suprimento de V.ª/Ex.ª, deve o presente incidente ser julgado totalmente improcedente, com todas as devidas e legais consequências.»

A seguir a Mma. Juiza a quo determinou a notificação do «Exequente para, em face do artigo 3.º, n.º 3 do CPC, se pronunciar sobre a ilegitimidade arguida na contestação, esclarecendo por que razão instaurou a presente habilitação de herdeiros».
O exequente não respondeu a essa notificação.

A seguir a Mma. Juíza a quo proferiu a seguinte sentença:
« […] Os autos dispõe[m] de todos os elementos para proferir decisão - pois que a mesma é de direito – pelo que se passará de imediato a conhecer do mérito da causa sem necessidade de qualquer demais prova que também não foi requerida.
Fundamentação de facto:
1. Nos autos principais de execução aos quais estes estão apensos é executada B….
2. Nos autos principais foi penhorado, entre o mais, o imóvel descrito a fls. 36 e ss dos autos principais, a saber o descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto, Freguesia de … sob o n.º 906/19921127-X cuja aquisição se encontra registada pela Ap. 27 de 1999/12/02 a favor de B… casada com H… em regime de comunhão geral – cfr fls. 36 e ss dos autos principais.
3. H… faleceu a 18.6.2013.
4. Por decisão proferida nos autos principais pela SR. AE a 16.7.2015 foi suspensa a instância executiva pelo falecimento de H…, cônjuge da executada e de cuja citação depende nos termos do art. 740.º do CPC o prosseguimento da execução – cfr fls. 89 dos autos principais.
5. H… faleceu no estado de casado com a executada B… – cfr fls. 6 e ss dos presentes autos.
6. D…, E…, F… e G… são filhos da executada e de H… – cfr fls. fls. 7 a 11 destes autos.
Os factos acima expostos resultam provados por se tratar de matéria que decorre dos documentos juntos aos autos e os quais não foram impugnados.
Fundamentação de Direito
Os requeridos na qualidade de cônjuge e filhos do falecido H… são sucessores deste, como herdeiros legítimos (arts. 2131.º, 2132.º e 2133.º, nº 1, a), do C. Civil), por serem dele cônjuge e descendentes.
Os requeridos defendem que o presente incidente tem que improceder na medida em que o falecido H… não é parte nestes autos e portanto não podem suceder a uma relação inexistente.
Contudo e conforme decorre do disposto no art. 740.º n.º 1 do CPC e 786.º do Código de Processo Civil sendo penhorados bens comuns do casal é o cônjuge do executado citado para os efeitos referidos nas citadas disposições legais.
Tendo falecido o cônjuge da executada impõe-se habilitar os seus herdeiros para efeitos das referidas citações.
Assim a legitimidade das partes para os presentes autos decorre ope legis ou seja por força da lei.
Pelo exposto, improcede a oposição da requerida.
Assim sendo, ao abrigo do disposto nos arts. 371.º e 373.º do C. de Processo Civil, devem ser habilitados para prosseguirem os termos da presente acção, na qualidade de herdeiros do cônjuge da executada, H…, os referidos Requeridos (cônjuge e filhos do falecido).
Decisão:
Pelo exposto, declarando a improcedência da impugnação, dou provimento ao incidente deduzido declarando julgando procedente o presente incidente de habilitação de herdeiros e, em consequência, declaro B…, D…, E…, F… e G… habilitados para prosseguirem os termos da presente acção em substituição de H….
Custas pelo requerente.
Registe e notifique.»

Do assim decidido, os requeridos interpuseram recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. […] 2. A Recorrida requereu a habilitação dos Recorrentes como sucessores de H… para que a execução siga os seus termos contra os mesmos.
3. A douta sentença julgou os Recorrentes habilitados não para que a execução siga os seus termos contra eles mas para que os mesmos sejam notificados nos termos do disposto nos art.ºs 740.º n.º 1 e 786.º, ambos do CPC.
4. De acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 5.º do CPC cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e dispõe o n.º 1 do art.º 609.º do CPC, que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
5. Por sua vez, dispõe a parte final da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, que a sentença é nula quando conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
6. O Tribunal a quo proferiu sentença que condena os Recorrentes em objecto diverso do peticionado pelo que a mesma deve ser declarada nula, nos termos do disposto na parte final da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, com todos os devidos e legais efeitos.
7. Quer a aplicação do n.º 1 do art.º 740.º do CPC quer a aplicação do art.º 786.º do mesmo código pressupõem que exista um casal e que esse casal possua bens comuns que tenham sido penhorados o que, s.m.o., não é o caso dos presentes autos.
8. Com o falecimento de H… dissolveuse o casamento e extinguiuse a relação matrimonial, cessando todos os efeitos do casamento, tanto os pessoais como os patrimoniais.
9. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges não são aplicáveis as notificações nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art.º 740.º do CPC e/ou do art.º 786.º e, consequentemente, não devem os aqui Recorrentes ser habilitados para sucederem a H… para esse efeito.
10. Assim, s.m.o., os art.º 740.º, n.º 1 e 786.º do CPC não têm aplicabilidade aos casos em que, como o presente, o (a) cônjuge do (a) executado (a) tenha falecido, pois com o falecimento do cônjuge surge no espectro jurídico uma nova entidade, um património autónomo, a herança indivisa.
11. S.m.o., a decisão recorrida violou, pelo menos o n.º 1 do art.º 5.º, o n.º 1 do art.º 609.º, a parte final da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º, o art.º 740.º n.º 1 e o art.º 786.º, todos do CPC.
12. A correcta interpretação do n.º 1 do art.º 5.º, do n.º 1 do art.º 609.º, da parte final da al. d) do n.º 1 do art.º 615.º deveria ter levado o Tribunal a quo a não proferir sentença no sentido de julgar procedente o incidente e julgar os Requeridos habilitados nos termos e para os efeitos do disposto nos art.ºs 740.º n.º 1 e 786.º do CPC.
13. A correcta interpretação do disposto nos art.ºs 740.º n.º 1 e 786.º do CPC deveria ter levado o Tribunal a quo a não os aplicar aos presentes autos, indeferindo o incidente de habilitação.
O recorrido não respondeu às alegações de recurso.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a decisão é nula, se pode ser deduzido um incidente de habilitação dos sucessores de pessoa falecida que não é parte na acção e se, embora o falecido não tenha sido demandado na execução, a penhora de bens comuns e a citação daquele para os efeitos dos artigos 740.º, n.º 1, e 786.º do Código de Processo Civil justifica a habilitação dos respectivos sucessores para os termos da execução.
III. Os factos:
Relevam para a decisão a proferir os factos que constam do relatório que antecede.
IV. O mérito do recurso:
A] da nulidade da sentença:
Pese embora misturem as duas situações e suscitem a dúvida sobre a qualificação exacta do vício que pretendem acusar, os recorrentes parece defender que o tribunal a quo proferiu sentença onde conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento e que condena em objecto diverso do peticionado pelo que a sentença é nula, nos termos do disposto na parte final da alínea d) e da alínea e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
A recorrentes alicerça essa afirmação na circunstância de o exequente ter requerido a habilitação dos «sucessores de H… para, com eles, prosseguir os autos principais os seus trâmites até final» e, na parte final, para prosseguir «a execução os seus termos, doravante, contra os requeridos habilitandos», enquanto na sentença recorrida eles foram julgados habilitados não para que a execução siga os seus termos contra eles mas para serem notificados nos termos do disposto nos artigos 740.º, n.º 1, e 786.º, ambos do Código de Processo Civil.
Quid iuris?
A sentença recorrida não decidiu de facto o que os recorrentes afirmam. Ainda que na respectiva fundamentação se afirme que a habilitação é necessária em virtude de terem sido penhorados bens comuns e, por isso, haver necessidade de citar o cônjuge falecido do executado nos termos do disposto nos artigos 740.º, n.º 1, e 786.º do Código de Processo Civil, na parte dispositiva da sentença o que se dispõe é a habilitação dos sucessores para com eles em substituição do falecido prosseguirem os termos da presente acção, leia-se, execução. Tendo sido isso mesmo que foi pedido pela requerente da habilitação não parece que se possa falar em condenação em objecto diverso do … peticionado.
De todo o modo, a sentença do incidente de habilitação de sucessores apenas decreta a habilitação dos sucessores da parte falecida, isto é, verifica se as pessoas indicadas têm a qualidade de herdeiro ou a qualidade que os legitima a substituir a parte falecida e declara que essa qualidade existe, julgando, em consequência, as pessoas indicadas habilitadas para com elas prosseguirem os termos da demanda.
O pedido deduzido no requerimento do incidente é o de serem habilitados os sucessores, a decisão que a final é proferida é a de julgar as pessoas indicadas como sucessores habilitadas ou não. Não cabe no objecto do incidente de habilitação de sucessores a determinação dos termos em que depois terá lugar a sua intervenção no processo, nem, tão pouco, qualquer delimitação ou cerceamento dessa intervenção. Quando a mesma ocorrer, caberá ao juiz do processo onde ela é feita decidir se a admite e em que termos. Logo, mesmo que o tribunal tivesse invocado determinada intervenção processual para justificar a necessidade da habilitação incidente, daí não resulta que a intervenção dos sucessores devesse ser essa ou apenas essa.
Acresce que ainda que se requeresse a habilitação dos sucessores para os termos da demanda e a habilitação dos sucessores tivesse sido decretada apenas para alguns dos actos processuais possíveis de serem praticados na demanda com ou pelos habilitados, nem assim haveria excesso de pronúncia ou condenação em objecto diverso, porque quem pode o mais pode o menos e por isso tal decisão estaria perfeitamente compreendida na pretensão deduzida pela requerente (seria um menos, não um mais, não um excesso).
A questão não é, portanto, a da nulidade da sentença por condenação em objecto diverso ou excesso de pronúncia mas sim a de saber quais as consequências da circunstância de o requerente não ter alegado no requerimento inicial os factos que depois na sentença a Mma. Juíza a quo indica como fundamento da sua decisão, mais especificamente o facto de na execução terem sido penhorados bens comuns do casal composto pela executada e pelo marido entretanto falecido.
Os incidentes da instância são deduzidos, em regra, através de um requerimento inicial, o qual deve «obedecer, com as necessárias adaptações, ao formalismo estabelecido no artigo 467.º, n.º 1 [hoje o artigo 552.º], para a petição inicial» - cit. Salvador da Costa, in Os incidentes da Instância, 2.ª edição, pág. 12 -. Por conseguinte, é requisito do requerimento inicial do incidente a indicação dos fundamentos de facto que constituam a respectiva causa de pedir.
Na habilitação de sucessores, tratar-se-á dos factos jurídicos concretos em função dos quais as pessoas indicadas adquiriram a qualidade de sucessores do falecido, isto é, adquiriram por morte deste (sucederam) a titularidade da relação jurídica em função da qual ele era parte na acção. Como existem direitos ou posições jurídicas que se extinguem com a morte do seu titular e outros que se transmitem, aqueles factos jurídicos dependem do que está efectivamente em causa.
Se o falecido era parte na acção em virtude de ser proprietário, comproprietário ou proprietário em comum de um bem, a qualidade de sucessores cabe às pessoas que lhe sucederam nessa posição, o que em princípio sucede com os herdeiros e legatários (cf. artigos 2014.º e 2030.º do Código Civil).
No caso, precisamente por se tratar de uma sucessão na posição de titular de relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida, a atribuição da qualidade de herdeiros às pessoas indicadas como sucessores é bastante para consubstanciar a sua qualidade de sucessor do falecido, precisamente porque os sucessores (mortis causa) são, em princípio, os herdeiros. Nessa medida, o requerimento inicial possuía causa de pedir e não padecia de ineptidão.
Pode é entender-se que o mesmo enfermava de insuficiência na exposição dos factos porquanto no caso havia a necessidade de justificar porque se estava a requerer a habilitação de sucessores de quem não era parte na execução principal, uma vez que o incidente se encontra literalmente configurado no artigo 351.º do Código de Processo Civil como incidente para habilitação dos sucessores de quem tem a posição de parte na acção a que o incidente respeita e, segundo afirmava a própria requerente da habilitação, a acção (executiva) não tinha sido instaurada contra o falecido e este não tinha a qualidade de parte.
A Mma. Juíza a quo não proferiu propriamente um despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial, limitou-se a mandar notificar a requerente para se «pronunciar sobre a ilegitimidade arguida na contestação, esclarecendo por que razão instaurou a presente habilitação de herdeiros». Apesar de a requerente não ter reagido a esta notificação, a Mma. Juíza a quo proferiu decisão, acrescentando à fundamentação da decisão os factos relativos à penhora de um bem comum do casal na execução e à posterior suspensão da execução em virtude do falecimento do cônjuge da executada, ainda não citado na execução.
Podia fazê-lo? A resposta, cremos bem, é positiva.
Para além de as partes apenas estarem obrigadas, sob pena de ineptidão, a alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e esta não se confundir com a alegação dos factos necessários para que a pretensão possa ser acolhida, existe uma excepção à necessidade de os factos serem alegados pelas partes nos respectivos articulados para poderem ser atendidos pelo tribunal que cobre precisamente a situação dos autos.
Referimo-nos à excepção da alínea c) do n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, segundo a qual na sua decisão o tribunal deve levar em consideração, ainda que não tenham sido alegados pelas partes, os «factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções».
Com base nessa norma, tratando-se de um incidente da instância processado por apenso ou nos próprios autos da acção principal a que respeita, o tribunal pode levar em consideração, mesmo que o requerente do incidente não os tenha alegado – sem prejuízo, mas também sem necessidade, de convite ao aperfeiçoamento[1] –, os factos que constem dos autos principais a que o mesmo juiz preside, sobretudo quando estes são referentes a actos processuais documentados nos próprios autos.
Nesse sentido, ao contrário do defendido pela recorrentes, entendemos que a sentença recorrida não enferma das nulidades do excesso de pronúncia ou de condenação em objecto diverso do peticionado. Improcede assim esta questão do recurso.
B] da matéria de direito:
A decisão recorrida – depois de julgar verificada a qualidade de herdeiros do falecido e consequentemente sucessores nos direitos patrimoniais respectivos – julgou procedente a habilitação por ter entendido que tendo sido penhorados na execução bens comuns do casal, haverá que proceder à citação do cônjuge da executada para os termos do artigo 740.º e 786.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, e como o cônjuge faleceu a citação terá de ser feita nos respectivos sucessores, em substituição do falecido.
Os recorrentes discordam deste entendimento, sustentando que com o falecimento do marido da executada o respectivo casamento se dissolveu e cessaram todos os efeitos do casamento, nomeadamente os patrimoniais, razão pela qual a citação para os efeitos daqueles normativos já não tem de ser feita uma vez que tais normas pressupõem a existência de um casamento, razão pela qual os recorrentes não podem ser habilitados.
Quid iuris?
O incidente de habilitação de sucessores constitui o meio processual de operar a modificação subjectiva da instância, através da substituição da parte primitiva pelos respectivos sucessores na relação substantiva em litígio (artigo 262.º do Código de Processo Civil).
Trata-se, portanto, de uma excepção ao princípio da estabilidade da instância caracterizada pelo falecimento da parte e transmissão por via sucessória da posição que ela ocupava na relação substantiva.
A habilitação de sucessores tem assim como requisitos o falecimento de uma parte na acção e que a relação substantiva de que ele era titular não se tenha extinto com o respectivo óbito. Os sucessores da parte falecida são chamados a substituir a parte falecida porque lhe sucederam na titularidade da relação substantiva em litígio e por isso têm interesse em ocupar a posição de parte.
Parece, portanto, que só pode haver lugar ao incidente habilitação de sucessores, enquanto incidente de uma determinada acção, se quem faleceu tinha na acção a qualidade de parte. Isso mesmo resulta expresso do teor do n.º 1 do artigo 351.º do Código de Processo Civil que se refere à «habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda». À contrário, seríamos levados a considerar que não se pode promover a habilitação de terceiros que não sejam partes na acção, ainda que os mesmos possam ter interesse económico ou mesmo jurídico na acção.
Sucede que para além das situações em que ab initio a acção se estabelece entre determinadas pessoas que assumem assim originariamente a qualidade de parte, outras existem em que a qualidade de parte na acção não é originária e em que às partes inicialmente presentes na acção se podem juntar outras pessoas que a partir desse momento assumirão também a posição de partes.
Não havendo dúvida de que depois de assumirem a posição de parte estes terceiros passam a usufruir desse estatuto, razão pela qual se depois falecerem será necessária a habilitação dos respectivos sucessores, o que se deve questionar é se isso é possível quando ainda existe apenas a possibilidade ou potencialidade da intervenção desses terceiros.
Cremos dever distinguir as situações em que a intervenção é voluntária e corresponde ao exercício de um direito potestativo, das situações em que por razões processuais a intervenção é obrigatória e o terceiro é citado para os termos da causa ainda que depois possa optar por não intervir, suportando no entanto as respectivas consequências jurídico-processuais se o não fizer.
São exemplo da primeira situação a intervenção principal espontânea, a assistência, a oposição espontânea ou a oposição mediante embargos de terceiro. Em qualquer dessas situações cabe ao interessado tomar a iniciativa de se apresentar na acção a assumir a posição de parte, não cabendo na acção a prática de qualquer acto intimando-o a fazê-lo. Já por exemplo na intervenção provocada ou oposição provocada, uma vez verificada a admissibilidade da intervenção, o terceiro é citado e se não intervier na acção a sentença não deixa de produzir efeitos quanto a ele uma vez que com a citação adquiriu o estatuto de parte, acessória ou principal.
Também no âmbito do processo executivo existem situações em que terceiros estranhos à acção podem passar a intervir neste e a nela exercer direitos processuais próprios de uma parte. É precisamente o caso do cônjuge do executado e dos credores com garantia real, os quais, após a penhora são citados para a execução, podendo nela intervir e praticar actos próprios de uma parte na execução.
Se a citação não fosse obrigatória, podia entender-se que tendo a pessoa a citar falecido entretanto a sua citação era dispensada e bastaria aos seus sucessores que quisessem intervir na execução em substituição dele deduzir no requerimento da sua intervenção a chamada habilitação-legitimidade.
Todavia, nos termos do n.º 6 do artigo 786.º do Código de Processo Civil, a citação dessas pessoas é, no caso da execução, um acto processual obrigatório, cuja falta acarreta inclusivamente a mesma consequência processual da falta de citação do réu, isto é, a anulação da totalidade do processado, com as excepções previstas no preceito.
Ora se a citação tem de ser feita sob pena de importar a nulidade de actos processuais e se a citação não pode ser feita na pessoa do citando porque este faleceu parece evidente que tem de se admitir o incidente da habilitação dos respectivos sucessores por essa ser a única forma de desbloquear tal impasse.
Pode questionar-se se isso deve ser assim mesmo que no caso da citação do cônjuge esta deva ter lugar nos termos do artigo 740.º do Código de Processo Civil[2].
Estabelece o n.º 1 deste preceito que quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, o cônjuge do executado é citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns. O n.º 2 acrescenta que apensado o requerimento de separação ou junta a certidão, a execução fica suspensa até à partilha.
A separação de bens pressupõe obviamente a existência de uma sociedade conjugal. Se esta já se dissolveu, designadamente por morte de um dos cônjuges, a separação de bens já não pode ser requerida, pode é ser requerida a partilha subsequente à abertura da sucessão por morte de um dos titulares do património. A ser assim, como nos parece, podíamos ser levados a concluir que a citação nos termos do artigo 740.º do Código de Processo Civil já não teria de ser feita e, consequentemente, também não era necessária a habilitação dos sucessores do cônjuge falecido.
Cremos porém que não se deve entender assim.
Em primeiro lugar porque embora o artigo 740.º do Código de Processo Civil se refira apenas à acção de separação de bens, ele não dispensa a necessidade de posteriormente se proceder à partilha dos bens (é o que resulta do n.º 2). Por conseguinte, se por efeito do óbito do cônjuge é já possível passar directamente à partilha sem necessidade da instauração prévia de uma acção se separação de bens, tal não obsta à aplicação do disposto no artigo 740.º, significa apenas que os passos decorrentes dessa citação serão afinal menos ou mais abreviados.
Em segundo lugar porque no caso concreto a citação não será exclusivamente nos termos do artigo 740.º do Código de Processo Civil. Com efeito, uma vez que o bem comum penhorado que demanda a citação para esse efeito é um bem imóvel e que os cônjuges eram casados no regime de comunhão geral de bens, a situação preenche em simultâneo a previsão do artigo 740.º (penhora de bens comuns do casal em execução movida só contra um dos cônjuges) e da primeira parte da alínea a) do n.º 1 do artigo 786.º do Código de Processo Civil (penhora de bens imóveis que a executada não podia alienar livremente: artigo 1682.º-A do Código Civil).
Nesta situação a citação não é afinal apenas para requerer a separação de bens ou demonstrar tê-la já requerido porquanto nos termos do artigo 787.º do Código de Processo Civil os sucessores do cônjuge falecido podem inclusivamente, na sequência da citação, deduzir, no prazo de 20 dias, oposição à penhora e exercer, nas fases da execução posteriores à sua citação, todos os direitos que a lei processual confere ao executado, podendo cumular eventuais fundamentos de oposição à execução. Ora nenhuma destas intervenções processuais está prejudicada pela dissolução do casamento por óbito de um dos cônjuges.
Sendo assim, como nos parece, estando penhorado um bem imóvel (que no caso é comum mas para o efeito até podia ser um bem próprio) que a executada não podia alienar livremente impõe-se a citação do respectivo cônjuge para a execução, a qual não está prejudicada pelo óbito deste atenta a amplitude da intervenção como parte que pode ser desencadeada a partir da citação. Por isso, tendo o citando falecido, é possível e é mesmo necessária a habilitação dos respectivos sucessores, os quais são afinal os herdeiros porque foram eles que sucederam na titularidade das relações jurídicas patrimoniais inerentes á propriedade do imóvel penhorado.
A habilitação foi, por isso, justificadamente decretada, improcedendo o recurso.
V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pelos recorrentes.
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Porto, 10 de Julho de 2019.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 508)
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
[a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas]
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[1] A consideração desses factos poderia levantar questões relacionadas com princípio do contraditório e a proibição de decisões - surpresa, mas como elas não vêem suscitadas no recurso não cabe aqui qualquer tomada de posição sobre as mesmas.
[2] Cumpre referir que no caso a penhora dos bens comuns ocorreu no dia 15/06/2009 e o óbito do cônjuge da executada ocorreu no dia 18/06/2013. A solução para a questão colocada seria diferente, cremos, se o óbito tivesse ocorrido antes da penhora.